Acórdão do Tribunal da Relação de Évora | |||
Processo: |
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Relator: | RENATO BARROSO | ||
Descritores: | OFENSA À INTEGRIDADE FÍSICA OFENSA À INTEGRIDADE FÍSICA QUALIFICADA CIRCUNSTÂNCIAS AGRAVANTES IMAGEM GLOBAL DO FACTO | ||
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Data do Acordão: | 10/24/2023 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
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Sumário: | I. As circunstâncias do § 2.º do artigo 132.º, enquanto elementos de culpa, exigem que, na análise do caso concreto, se demonstre uma especial censurabilidade ou perversidade. II. Subjacente à especial censurabilidade e perversidade está um acrescido desvalor ético - jurídico traduzindo culpa agravada e que tem a ver com «a maior desconformidade que a personalidade manifestada no facto possui, face à suposta querida ordem jurídica, em relação à desconformidade, já de si grande, da personalidade subjacente à prática de um homicídio simples». III. Os factos que relevam para essa apreciação correspondem a todas as circunstâncias da conduta, quer na ação externa (instrumento utilizado, tipo e número das lesões, dinâmica do evento, etc.), quer nos aspetos relacionados com os motivos e objetivos que presidiram à ação (factos psíquicos) - o que se não confunde com o dolo. IV. Ainda que na apreciação global dos factos se constate a existência de reflexão sobre os meios empregues e persistência na intenção de ofender o corpo da vítima por mais de vinte e quatro horas, atentando que as circunstâncias descritas nas als. do § 2.º do artigo 132.º do C. Penal não são de funcionamento automático, não se configura que o quadro factual apurado revele uma especial censurabilidade, tendo em conta o local público em que as agressões ocorreram, na presença de várias pessoas, a natureza das mesmas e as suas consequências para a ofendida. V. isto é, da avaliação da imagem global que ressalta dos factos praticados, não emerge aquele desvalor da conduta especialmente censurável, aquele juízo particularmente negativo, que justifique o seu enquadramento por via da qualificação do crime. | ||
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Decisão Texto Integral: | ACORDAM OS JUÍZES, EM CONFERÊNCIA, NA SECÇÃO CRIMINAL DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE ÉVORA 1. RELATÓRIO A – Decisão Recorrida No processo comum singular nº 511/20.1GABNV, do Tribunal Judicial da Comarca de Santarém, Juízo Local Criminal de Benavente, Juiz 2, submetida a julgamento nos termos da acusação pública formulada contra si e outro arguido, foi a arguida AA condenada pela prática de: - um crime de ameaça, p.p., pelo Artº 153 nº1 do C. Penal, na pena de 60 (sessenta) dias de multa, à taxa diária de € 5,00 (cinco euros), - um crime de coacção, p.p., pelo Artº 154 nº1 do C. Penal, na pena de 100 (cem) dias de multa, à taxa diária de € 5,00 (cinco euros) Em cúmulo jurídico destas penas, na pena única de 130 (cento e trinta) dias de multa, à taxa diária de € 5,00 (cinco euros), no valor total de € 650,00 (seiscentos e cinquenta euros). - um crime de ofensa à integridade física qualificada p.p., pelos Artsº 143 nº1 e 145 nsº1 al. a) e 2, por referência ao disposto no Artº 132 nº2 al. j), todos do C. Penal, na pena de 1 (um) ano de prisão suspensa na sua execução por igual período. B – Recurso Inconformada com o assim decidido, recorreu a arguida, apresentando as seguintes conclusões (transcrição): 1. Afigura-se à recorrente, desde logo, que é de improceder a circunstância qualificativa agravante do crime de ofensa à integridade física; 2. Tais circunstâncias, enunciadas no n.º 2 do artigo 132.º do Código Penal, com recurso à técnica dos exemplos-padrão, não são de aplicação automática; 3. Ou seja, da verificação das mesmas terá que resultar evidente um desvalor acrescido da conduta, do qual avulte uma especial censurabilidade; 4. Afigura-se-nos que, em concreto, tal não se verifica; 5. O modo como os factos ocorrem – à vista de todos, no café, onde fica facilitado o socorro, sem recurso a emboscadas, sem que tenham sido provocadas lesões físicas relevantes, as quais nem sequer demandaram dias de incapacidade ou cuidados médicos – não podem revelar a especial censurabilidade exigida para a qualificação do crime em causa; 6. A recorrente deverá, assim, ser condenada pelo crime de ofensa à integridade física simples, p. e p. peloartigo143.º, n.º1doCódigo Penal, 7. Com a sua consequente absolvição pelo crime na sua forma qualificada; 8. Subsidiariamente, sempre se afiguraria manifestamente exagerada a reacção penal pelo crime de ofensa à integridade física qualificada; 9. Talilícitoé punidocompenade prisãode ummêsaquatroanos. 10. A recorrente não apresenta quaisquer antecedentes criminais; 11. Assumiu os factos, ainda que parcialmente, não obstante uma postura algo desculpabilizante; 12. Da conduta da recorrente não sobrevieram consequências de monta para a ofendida, que não necessitou, sequer, de receber tratamento médico ou sofreu quaisquer dias de incapacidade; 13. A recorrente está familiar e socialmente inserida. 14. Tudo ponderado, afigura-se-nos que se justifica uma redução da pena de prisão concretamente aplicada, de 1 (um) ano para 6 (seis) meses de prisão, 15.A substituir por multa, nos termos do artigo 45.º do Código Penal. C – Resposta ao Recurso Apenas o MP, junto do tribunal recorrido, respondeu ao recurso, pugnando pela sua improcedência, apesar de não ter apresentado conclusões. D – Tramitação subsequente Aqui recebidos, foram os autos com vista ao Exmº Procurador-Geral Adjunto, que se pronunciou pela manutenção da decisão recorrida. Cumprido o disposto no Artº 417 nº2 do CPP, não houve resposta. Efectuado exame preliminar, determinou-se que o recurso fosse julgado em conferência. Colhidos os vistos legais e tendo o processo ido à conferência, cumpre apreciar e decidir. 2. FUNDAMENTAÇÃO A – Objecto do recurso De acordo com o disposto no Artº 412 do CPP e com a Jurisprudência fixada pelo Acórdão do Plenário da Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça n.º 7/95, de 19/10/95, publicado no D.R. I-A de 28/12/95 (neste sentido, que constitui jurisprudência dominante, podem consultar-se, entre outros, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 12 de Setembro de 2007, proferido no processo n.º 07P2583, acessível em HYPERLINK "http://www.dgsi.pt/" HYPERLINK "http://www.dgsi.pt/"www.dgsi.pt, que se indica pela exposição da evolução legislativa, doutrinária e jurisprudencial nesta matéria), o objecto do recurso define-se pelas conclusões que a recorrente extrai da respectiva motivação, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso. Na verdade e apesar de a recorrente delimitar, com as conclusões que retira das suas motivações de recurso, o âmbito do conhecimento do tribunal ad quem, este, contudo, como se afirma no citado aresto de fixação de jurisprudência, deve apreciar oficiosamente da eventual existência dos vícios previstos no nº2 do Artº 410 do CPP, mesmo que o recurso se atenha a questões de direito. As possibilidades de conhecimento oficioso, por parte deste Tribunal da Relação, decorrem, assim, da necessidade de indagação da verificação de algum dos vícios da decisão recorrida, previstos no nº 2 do Artº 410 do CPP, ou de alguma das causas de nulidade dessa decisão, consagradas no nº1 do Artº 379 do mesmo diploma legal. In casu e cotejando a decisão em crise, não se vislumbra qualquer uma dessas situações, seja pela via da nulidade, seja ainda, pelos vícios referidos no nº2 do Artº 410 do CPP, os quais, recorde-se, têm de resultar da sentença recorrida considerada na sua globalidade, por si só ou conjugada com as regras de experiência comum, sem possibilidade de recurso a quaisquer elementos que ao mesmo sejam estranhos, ainda que constem dos autos. Efectivamente, do seu exame, não ocorre qualquer falha na avaliação da prova feita pelo Tribunal a quo, revelando-se a mesma como coerente com as regras de experiência comum e conforme à prova produzida, na medida em que os factos assumidos como provados são suporte bastante para a decisão a que se chegou, não se detectando incompatibilidade entre eles e os factos dados como não provados ou entre a fundamentação e a decisão. Assim sendo, considera-se definitivamente fixada a decisão proferida pela 1ª Instância sobre a matéria de facto. Também não se verifica a inobservância de requisito cominado sob pena de nulidade que não deva considerar-se sanada (Artº 410 nº3 do CPP) Posto isto, inexistindo qualquer questão merecedora de aferição oficiosa, o objecto do recurso cinge-se às conclusões da recorrente, onde peticiona a absolvição do crime de ofensa à integridade física qualificada e a sua condenação pelo crime de ofensa à integridade física simples, ou, assim não se entendendo, por uma redução da pena aplicada pelo tribunal a quo. B – Apreciação Definidas as questões a tratar, importa considerar o que se mostra fixado, em termos factuais, pela instância recorrida. Aí, foi dado como provado e não provado, o seguinte (transcrição): Fundamentação de Facto Factos provados: Produzida a prova e discutida a causa, resultaram provados, com relevância para a decisão da causa, os seguintes factos: 1. No dia 24 de Novembro de 2020, a hora não concretamente apurada, a arguida AA dirigiu-se às instalações do estabelecimento comercial “Intermarché”, sito em Benavente, local onde a ofendida BB, à data trabalhava. 2. Nas circunstâncias de tempo e lugar acima descritas, e na sequência de uma altercação mantida entre a arguida AA e uma funcionária de identidade desconhecida do aludido estabelecimento comercial, BB solicitou a esta última para que se dirigisse para a área do armazém, almejando assim fazer cessar os apontados desacatos. 3. Todavia, desagradada com a intervenção de BB, a arguida AA dirigiu-se a esta e disse-lhe: “Vou-te bater!”, provocando-lhe, deste modo, profundo receio pelo que de mal lhe pudesse acontecer. 4. No dia 25 de Novembro de 2020, cerca das 15.00h, a arguida AA deslocou-se às instalações do estabelecimento comercial denominado “Café Benvindo”, sito na Rua Fernando Figueiredo, Benavente, com o intuito de ali encontrar BB. 5. Ao constatar que BB não se encontrava no apontado “Café Benvindo”, a arguida AA abeirou-se de CC e disse-lhe em tom sério: “diz à tua irmã se amanhã de manhã ela não se encontrar no café, levas tu e leva a tua mãe”. 6. A ofendida BB tomou conhecimento das suas palavras supra descritas nesse mesmo dia 25.11.2020, sentindo em consequência, profundo receio que caso não cumprisse a ordem proferida pela arguida AA, esta iria bater e ferir a sua mãe e bem assim, a sua irmã CC. 7. No dia 26 de Novembro de 2020, cerca das 18.00h, os arguidos AA e DD deslocaram-se às instalações do supra identificado estabelecimento comercial, com o fito único de ali encontrar BB. 8. Nessa ocasião, a arguida AA avistou a ofendida BB apeada à porta do mencionado estabelecimento comercial, encaminhando-se pois na sua direcção. 9. Acto contínuo, a arguida AA encetou discussão com BB por motivos não concretamente apurados. 10. Na sequência da altercação despoletada, a arguida AA, abeirou-se de BB e empurrou-a com força com as mãos, provocando o desequilíbrio da mesma. 11. Após, a arguida desferiu uma pancada com a mão aberta na face esquerda de BB e, em seguida, agarrou os cabelos da mesma, puxando-os com força. 12. Nesse momento, CC – a qual se encontrava, igualmente, no interior do identificado “Café Benvindo” – posicionou-se entre a arguida AA e BB, pretendendo, deste modo, obstacularizar a que aquela continuasse a agredir esta última. 13. Em consequência directa e necessária da conduta perpetrada pela arguida AA, a ofendida BB sofreu dores na zona do corpo atingidas, “edema da face esquerda com eritema” e “equimose com edema na face posterior da mão”. 14. A arguida AA bem sabia que ao agir conforme supra descrito, mormente, ao proferir as palavras “eu vou-te bater!”, tais eram aptas e adequadas a provocar na ofendida BB medo e inquietação, fazendo-a igualmente, temer pela sua integridade física, cerceando, desta forma, a liberdade de determinação da mesma, circunstância que quis e logrou conseguir. 15. Ao dirigir-se a CC dizendo-lhe “diz à tua irmã se amanhã de manhã ela não se encontrar no café, levas tu e leva a tua mãe” – palavras que chegaram ao conhecimento da visada BB – e, aproveitando-se, em consequência, do temor que lhe incutiu, a arguida AA actuou com o propósito concretizado de forçar BB a dirigir-se, no dia 26.11.2020, para as instalações do estabelecimento comercial “Café Benvindo”, contra a sua vontade, cerceando, deste modo, a liberdade de determinação da mesma, circunstância que representou e logrou conseguir. 16. Ao agir conforme supra descrito, a arguida AA actuou com o propósito concretizado de molestar o corpo da ofendida BB, plano esse que cogitou no dia 24 de Novembro de 2020, persistindo com tal fito por período superior a 24 horas, vindo, pois a concretizá-la no dia 26 de Novembro de 2020, cerca das 18.00 horas, ocasião em que logrou encontrar a ofendida no supra identificado “Café Benvindo”. 17. A arguida AA agiu de forma voluntária, livre, deliberada e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei. 18. Desconhecem-se antecedentes criminais à arguida AA, constando do seu certificado de registo criminal que os não tem. (…) 23. Os arguidos vivem em união de facto e têm um filho menor. Matéria de facto não provada: Não resultaram provados os seguintes factos, consignando-se que não foram tidas em consideração considerações conclusivas, de direito ou irrelevantes para a decisão a tomar: A. Que nas circunstâncias referidas em 5, a arguida tenha dito: “levas tu e leva ela”. B. Que nas circunstâncias referidas em 6, a ofendida tenha tido receio que a arguida lhe iria bater e ferir. C. Todavia o arguido DD abeirou-se de CC e, sem que nada o fizesse prever, desferiu-lhe uma pancada com a mão fechada no rosto, provocando-lhe dores na zona do corpo atingida. D. Ao agir como supra descrito em C, o arguido DD actuou com o propósito concretizado de molestar o corpo da ofendida CC, bem sabendo que a agressão por si infligida era apta e adequada a causar as lesões acima mencionadas, resultado que quis e logrou atingir. E. O arguido DD agiu de forma livre deliberada e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei. Exarados os factos, aprecie-se da bondade do recurso. B.1. Qualificação jurídica do crime Alega a recorrente que na situação dos autos não se verifica a circunstância qualificativa agravante do crime de ofensa à integridade física, já que os factos em causa não revelam uma especial censurabilidade que justifique a sua condenação pelo tipo agravado, do qual deverá, por isso, ser absolvida, sendo apenas condenada pelo ilícito previsto no Artº 143 nº1 do C. Penal. Nesta sede, escreveu-se na decisão recorrida (transcrição): Fundamentação de Direito Enquadramento jurídico-criminal: Apurados os factos importa agora proceder ao seu enquadramento jurídico. São imputados a AA, em autoria material, na forma consumada, e em concurso efectivo a prática de um crime de ameaça, p. e p. pelo artigo 153.º, n.º 1, do Código Penal (C.P.); um crime de coacção, p. e p. pelo artigo 154.º, n.º 1, do C.P.; e um crime de ofensa à integridade física qualificada, p. e p. pelo artigo 143.º, n.º 1, 145, n.º 1, alínea a), com referência ao disposto nos artigos 143.º, n.º 1, e 132.º, n.º 2, alínea j), todos do C.P. e a DD, em autoria material, na forma consumada, a prática de um crime de ofensa à integridade física, p. e p. pelo artigo 143.º, n.º 1, do C.P. (…) Da ofensa à integridade física Dispõe o artigo 143.º, n.º 1, do C.P. que quem ofender o corpo ou a saúde de outra pessoa é punido com pena de prisão até três anos ou com pena de multa. O bem jurídico protegido é a integridade física das demais pessoas. Assim, integra este tipo de ilícito, qualquer dano ocasionado por alguém e traduzido em ofensa à normalidade funcional do corpo ou organismo humano, seja do ponto de vista anatómico, seja do ponto de vista fisiológico ou psíquico, desde que o agente tenha actuado com dolo, em qualquer das suas formas, em relação a tal facto. Como tal, trata-se de um crime de dano e de resultado, sendo igualmente de realização instantânea, bastando para o seu preenchimento a verificação do resultado do dano no corpo ou na saúde do outro (Cfr. Faria, Paula Ribeiro de, in Comentário Conimbricense do Código Penal, Coimbra Editora, 2001, Tomo I, p. 204) Entende-se por ofensa no corpo “todo o mau trato através do qual o agente é prejudicado no seu bem estar físico de uma forma não insignificante”(Ob Cit. 205), sendo certo que qualquer actuação que provoque uma ferida ou uma nódoa negra se pode integrar neste tipo de crime, desde que não seja insignificante. Há que ter em conta que se trata de um tipo de crime doloso, sendo certo que admite o dolo em qualquer das suas modalidades. O crime assume maior gravidade e é punido com maior severidade no nosso ordenamento penal se, pelas circunstâncias em que foi cometido, o agente revelou perversidade, nos termos do artigo 145.º, n.º 1, alínea a), do mesmo diploma legal. Dispõe o referido artigo: “Se as ofensas à integridade física forem produzidas em circunstâncias que revelem especial censurabilidade ou perversidade do agente, este é punido com pena de prisão até quatro anos no caso do artigo 143.º”. Nos termos do número 2, para se aferir a especial perversidade ou censurabilidade, há que fazer apelo às circunstâncias tipificadas no n.º 2 do artigo 132.º. Ora, o referido artigo 132.º, na sua alínea j) preceitua que: “Agir com frieza de ânimo, com reflexão sobre os meios empregados ou ter persistido na intenção de matar por mais de vinte e quatro horas…” também implica a qualificação do crime. Ora, analisando os factos que se encontram provados nos presentes autos, verifica-se que a arguida anunciou a intenção de bater na ofendida no dia 24 de Novembro, tendo depois ido ao café da mãe desta mandar-lhe um recado em que ainda transparece essa intenção e ainda que mais de vinte e quatro depois concretizou a agressão. Ficou igualmente provado que da agressão descrita advieram para a ofendida as lesões que resultaram dos elementos clínicos juntos, e bem assim que agiu com frieza de ânimo, já que chamou a ofendida ao café da mãe para concretizar as agressões. Ora, as lesões sofridas preenchem a previsão do artigo 143.º, n.º 1, sendo uma clara ofensa no corpo de outra pessoa, no caso a ofendida. Encontrando-se preenchidos, então, os elementos objectivos do tipo de crime de ofensa à integridade física qualificada, resta aferir se se encontram igualmente preenchidos os elementos subjectivos. Ora, como foi exarado acima, o tipo de crime ora em causa implica o dolo, em qualquer das suas modalidades. No caso vertente, encontra-se provado que a arguida agiu livre, deliberada e conscientemente, querendo atingir o resultado que atingiu, pelo que a sua conduta se insere na previsão do n.º 1 do artigo 14.º do C.P., como dolo directo. Assim, pelo preenchimento dos elementos objectivos e subjectivos do tipo, constituiu-se a arguida como autora material do crime de ofensa à integridade física qualificada, nos termos do artigo 143.º, n.º 1 e 145.º, n.º 1, alínea a), por apelo ao 132.º, n.º 2, alínea j), e 14.º, n.º 1, todos do C.P.. Como se ensina amplamente na Doutrina e Jurisprudência, os exemplos-padrão plasmados no nº 2 do Artº 132 do C. Penal são meramente exemplificativos, ali se enumerando várias circunstâncias que consubstanciam elementos da culpa e não do tipo, o que quer dizer, não só que as mesmas não são de funcionamento automático, como também, que outros factores, ali não enumerados, podem, em concreto, revelar que o agente, no cometimento do crime, revelou uma especial censurabilidade ou perversidade, justificadoras da punição agravada da norma. Nessa medida, o que importa aferir é se a factualidade da dinâmica criminosa permite concluir por uma atitude mais desvaliosa do agente, por uma personalidade delituosa particularmente negativa, em suma, por um especial juízo de censura. "Sendo a enumeração meramente exemplificativa, sempre poderão existir outras circunstâncias não descritas no tipo penal, mas reveladoras da apontada situação, dando origem, assim, aos chamados casos de homicídio qualificado atípico. O que é fundamental é que se trate de um homicídio qualificado em circunstâncias que possam desencadear o efeito de indício de uma maior culpa" (Ac. do STJ de 4/7/96, in CJ, Ac. STJ, ano IV, Tº2, pág. 222. Cfr. Teresa Serra, "Homicídio Qualificado - Tipo de culpa e Medida da Pena", pág. 70 a 75). As circunstâncias do nº2 do Artº 132, enquanto elementos de culpa, exigem que, na análise do caso concreto, se demonstre uma especial censurabilidade ou perversidade (Ac. do STJ de 12/07/89, in BMJ 389, pág. 310). Pode dizer-se, como Teresa Serra, que existe especial censurabilidade quando "as circunstâncias em que a morte foi causada são de tal modo graves que reflectem uma atitude profundamente distanciada do agente em relação a uma determinação normal com os valores"; por seu turno, a especial perversidade supõe "uma atitude profundamente rejeitável, no sentido de ter sido determinada e constituir indício de motivos e sentimentos que são absolutamente rejeitados pela sociedade" (ob. cit, pág. 63 e 64). Subjacente, então, à especial censurabilidade e perversidade está um acrescido desvalor ético - jurídico traduzindo culpa agravada e que tem a ver com "a maior desconformidade que a personalidade manifestada no facto possui, face à suposta querida ordem jurídica, em relação à desconformidade, já de si grande, da personalidade subjacente à prática de um homicídio simples" (cfr. Figueiredo Dias, Comentário Conimbricense do Código Penal, vol. I, Coimbra Editora, 1999, p. 29 , C.J., ano XII, Tº4, pág. 52 e "Liberdade, Culpa e Direito Penal", Coimbra Ed., 3ª edição, 1995, págs. 183-185). Os factos relevantes para tal apreciação correspondem a todas as circunstâncias da conduta, quer na acção externa (instrumento utilizado, tipo e número das lesões, dinâmica do evento, etc), quer nos aspectos relacionados com os motivos e objectivos que presidiram à acção (factos psíquicos), o que não se confunde com o dolo (sobre a distinção e em geral sobre a valoração jurídico - penal do móbil do crime vide, por todos, o Ac. do STJ de 9/11/94, in BMJ 441, pág. 36-52). Tendo por base estas premissas crê-se que assiste inteira razão à recorrente quando defende que o circunstancialismo concreto não é revelador da especial censurabilidade ou perversidade que justifique a agravação da conduta por via da estatuído nos Artsº 145 nº1 al. a), por referência à al. j) do nº2 do Artº 132, ambos do C. Penal. Diz-nos esta última norma que “agir com frieza de ânimo, com reflexão sobre os meios empregados ou ter persistido na intenção de matar por mais de vinte e quatro horas…”. O que se provou factualmente é que na sequência de dois dias depois de a arguida ter ameaçado que batia à ofendida, após uma discussão entre as duas, dentro de um café, a arguida empurrou-a com força, com as mãos, provocando o seu desequilíbrio, desferindo-lhe uma pancada com a mão aberta na face esquerda daquela e, em seguida, agarrou os cabelos da mesma, puxando-os com força, tendo esta, em consequência directa e necessária de tal conduta,sofrido dores na zona do corpo atingidas, “edema da face esquerda com eritema” e “equimose com edema na face posterior da mão”. Ora, sendo indiscutível, atenta a factualidade apurada, que arguida actuou com o propósito concretizado de molestar o corpo da ofendida, plano que cogitou no dia 24/11/20 e que concretizou no dia 26/11/20, persistindo assim com tal fito por período superior a 24 horas, a verdade é que da mera circunstância de se constatar essa reflexão sobre os meios empregues e a persistência na intenção criminosa por mais de vinte e quatro horas, não significa, por si só, que a conduta em causa demonstre, por parte da arguida, uma particular censurabilidade ou perversidade, tendo em conta os demais factos que caracterizam a situação concreta em aferição. Estamos na presença de um desentendimento entre a recorrente e a ofendida, que se arrastou por vários dias, tendo a arguida agredido a ofendida num café, à vista de todos, sendo que tal agressão acabou por ser facilmente sanada, pela intervenção da irmã da ofendida que se interpôs entre ambas. Por outro lado, a própria natureza da agressão – empurrão com força, uma pancada com a mão aberta na face e puxão de cabelos, também com força – não revestem gravidade assinalável que justifique o revestimento da conduta pelas vestes mais rigorosas do crime de ofensa à integridade física qualificada. De igual modo, as lesões provocadas por tal agressão apresentam-se como leves, sem quaisquer sequelas e que não foram devedoras de cuidados médicos ou de incapacidade clinicamente reconhecida. Ora, na apreciação global dos factos e ainda que subsista a reflexão sobre os meios empregues e da persistência na intenção de ofender o corpo da vítima por mais de vinte e quatro horas, sabendo-se, como se disse, que as circunstâncias descritas nas als. do nº 2 do Artº 132 do C. Penal não são de funcionamento automático, não se configura que o descrito quadro factual revele uma especial censurabilidade, tendo em conta o local público em que as agressões ocorreram, na presença de várias pessoas, a natureza das mesmas e as suas consequências para a ofendida. Não há, na imagem global do crime, aquele desvalor da conduta especialmente censurável, aquele juízo particularmente negativo, que justifique o seu enquadramento por via da qualificação do crime tal como vinha proposto pela acusação pública. Assim sendo, afigura-se-nos que é de proceder o recurso, no sentido de a arguida ser absolvida do crime de ofensa à integridade física qualificada, p.p., pelos Artsº 143 e 145 nº1 al. a), por referência à al. j) do nº2 do Artº 132, ambos do C. Penal, devendo, por isso, ser condenada pela prática de um crime de ofensa à integridade física simples, p.p., pelo Artº 143 nº1 do citado Código. B.2. Pena Cabe agora determinar a pena a aplicar à arguida pela prática do referido crime que é punido com pena de prisão até três anos ou com pena de multa. Dispõe o Artº 70 do C. Penal que “se ao crime forem aplicáveis, em alternativa, pena privativa e pena não privativa de liberdade, o tribunal dá preferência à segunda sempre que esta realizar de forma adequada e suficiente as finalidades da punição”. E estas, de acordo com o explicitado no Artº 40 do mesmo Código, visam “a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade”, o que vale por dizer, as exigências da prevenção geral positiva e da prevenção especial de socialização. No caso vertente, a arguida não apresenta antecedentes criminais encontra-se integrada social e familiarmente, é jovem e tem um filho menor, pelo que, à semelhança do que entendeu o tribunal recorrido quanto aos outros crimes pelos quais a condenou – ameaça e coacção – também aqui se considera suficiente a aplicação de uma pena de multa. Na determinação da pena concreta, importa ter em conta, nos termos do Artº 71 do C. Penal, as necessidades de prevenção geral e especial que nos autos se imponham, bem como, as exigências de reprovação do crime, não olvidando que a pena tem de ser orientada em função da culpa concreta do agente e que deve ser proporcional a esta, em sentido pedagógico e ressocializador. Como ensina Figueiredo Dias in Direito Penal, Parte Geral, Tomo 2, As consequências jurídicas do crime. 1988, pág. 279 e segs: «As exigências de prevenção geral, ... constituirão o limiar mínimo da pena, abaixo do qual já não será possível ir, sob pena de se pôr em risco a função tutelar do Direito e as expectativas comunitárias na validade da norma violada ; As exigências de culpa do agente serão o limite inultrapassável de todas e quaisquer considerações preventivas, por respeito ao princípio politico-criminal da necessidade da pena (Artº 18 nº2 da CRP) e do princípio constitucional da dignidade da pessoa humana (consagrado no nº1 do mesmo comando). Por fim, as exigências de prevenção especial de socialização, sendo elas que irão determinar, em último termo e dentro dos limites referidos, a medida concreta da pena» Importa ainda ter em conta que: «A função primordial de uma pena, sem embargo dos aspectos decorrentes de uma prevenção especial positiva, consiste na prevenção dos comportamentos danosos incidentes sobre bens jurídicos penalmente protegidos. O seu limite máximo fixar-se-á, em homenagem à salvaguarda da dignidade humana do condenado, em função da medida da culpa revelada, que assim a delimitará, por maiores que sejam as exigências de carácter preventivo que social e normativamente se imponham. O seu limite mínimo é dado pelo quantum da pena que em concreto ainda realize eficazmente essa protecção dos bens jurídicos. Dentro destes dois limites, situar-se-á o espaço possível para resposta às necessidades da reintegração social do agente. Ainda, embora com pressuposto e limite na culpa do agente, o único entendimento consentâneo com as finalidades de aplicação da pena é a tutela de bens jurídicos e, (só) na medida do possível, a reinserção do agente na comunidade» (Cfr. Anabela Miranda Rodrigues, RPCC, Ano 12º, nº 2, pág. 182 e Ac. do STJ de 4-10-07, Proc. nº 2692/07. Tendo presente as exigências de prevenção geral face ao bem jurídico protegido pela incriminação, ou seja, a liberdade e a integridade física e psíquica das pessoas em geral e as demandas de prevenção especial, expressas pelo dolo directo, pela natureza e consequência das agressões reveladoras do grau da ilicitude, sem olvidar a idade da arguida, a ausência de antecedentes criminais e a sua integração familiar e tendo ainda em conta as medidas das penas parcelares já fixadas pela instância recorrida para os demais ilícitos em que a arguida foi condenada e que não foram por si contestados, entende-se condenar a ora recorrente, numa moldura penal entre 10 e 360 dias, pelo crime de ofensa à integridade física simples, p.p., pelo Artº 143 nº1 do C. Penal, numa pena de 200 dias de multa, à taxa já fixada de € 5,00. Efectuando o cúmulo jurídico destas penas com as determinadas pela instância recorrida pelos mencionados ilícitos de ameaça e coacção – respectivamente, 60 e 100 dias de multa – ponderando, em conjunto, os factos delitivos e a personalidade do agente, nos termos do 77 do C. Penal, encontra-se a pena única de 280 dias de multa. 3. DECISÃO Nestes termos, decide-se conceder provimento ao recurso: - Absolve-se a recorrente da prática do crime de ofensa à integridade física qualificada, p.p., pelos Artsº 143 e 145 nº1 al. a), por referência à al. j) do nº 2 do Artº 132, ambos do C. Penal; - Condena-se a recorrente pela prática de um crime de ofensa à integridade física simples, p.p., pelo Artº 143 nº1 do citado Código, na pena de 200 (duzentos) dias de multa, à taxa diária de € 5,00 (cinco euros); - Efectuando o cúmulo jurídico destas penas com as já fixadas pela instância recorrida em relação aos crimes de ameaça e coacção pela qual a arguida também vai condenada, condena-se a recorrente na pena única de 280 (duzentos e oitenta) dias de multa, à taxa diária de € 5,00 (cinco euros), no valor total de € 1 400,00 (mil e quatrocentos euros). No mais, mantêm-se o decidido na decisão recorrida. Sem custas. xxx Consigna-se, nos termos e para os efeitos do disposto no Artº 94 nº2 do CPP, que o presente acórdão foi elaborado pelo relator e integralmente revisto pelos signatários. xxx Évora, 24 de Outubro de 2023 Renato Barroso (Relator) Carlos Campos Lobo (Adjunto) João Carrola (Adjunto) |