Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
65/24.0T8PTM.E1
Relator: ISABEL DE MATOS PEIXOTO IMAGINÁRIO
Descritores: SIMULAÇÃO
REQUISITOS
OCUPAÇÃO DE IMÓVEL
RESTITUIÇÃO
Data do Acordão: 04/09/2025
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: - tendo a Ré alegado, em sede de contestação, que os pagamentos mensais que realizava em favor da Autora se destinavam a honrar acordo destinado a reembolsar esta do preço pago na aquisição da fração por aquela, não pode ser admitida, em sede de recurso, a invocar a existência de contrato de arrendamento verbal sustentada nesses pagamentos mensais;
- os requisitos de que depende a afirmação de que o negócio foi simulado, cuja prova onera a parte que invoca a simulação, hão de estar enunciados no rol dos factos provados para que alcance sucesso a afirmação da nulidade com tal fundamento.
(Sumário da Relatora)
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Évora


I – As Partes e o Litígio

Recorrente / Ré: (…)
Recorridos / Autores: (…) e (…)
Réu: (…)

Trata-se de uma ação declarativa de condenação no âmbito da qual os AA formularam o pedido de condenação dos Réus a:
a) reconhecer o direito de propriedade dos Autores sobre a fração autónoma designada pela letra F, sita em Urb. das (…), (…), Lote 44, r/c, (…), concelho de Lagos, inscrita na matriz predial urbana com o artigo (…) e descrita na Conservatória do Registo Predial de Lagos sob o n.º (…);
b) restituir aos Autores a suprarreferida fração autónoma;
c) abster-se da prática de qualquer ato que impeça ou diminua a utilização pelos Autores da fração autónoma;
d) no pagamento do valor de € 1.000,00 (mil euros) por cada mês de utilização da fração autónoma, a título de enriquecimento sem causa, contados desde o início do incumprimento da interpelação por parte dos Réus e juros de mora até à restituição do imóvel.
Para tanto, alegaram ser proprietários da mencionada fração autónoma, que os Réus ocupam sem título para tanto.
Em sede de contestação, a Ré pugnou pela improcedência da ação, alinhando os seguintes argumentos:
- a qualidade de inquilina da fração, juntamente com o Réu;
- o processo de execução fiscal contra a senhoria no qual exerceu direito de preferência na aquisição da fração;
- a aquisição da fração teve lugar mediante depósito do preço pelos Autores, dada a falta de capital da Ré;
- o acordo entre a Ré e os Autores no sentido de que aquela ia posteriormente pagando o preço de acordo com as suas possibilidades;
- o pagamento mensal de € 300,00 desde setembro de 2018, que passou a € 350,00 desde outubro de 2022 em diante para honrar o cumprimento do acordo estabelecido com os Autores;
- a outorga de escritura de doação da fração aos Autores a 20/08/2018 com a finalidade única de os Autores apresentarem o comprovativo da aquisição no Banco;
- a utilização da fração como casa de morada de família.
Mais deduziu a Ré reconvenção, alegando a nulidade, por simulação, da doação, o que pretende ver declarado.
Peticionou a condenação dos AA como litigantes de má-fé em multa e indemnização.
Os Autores apresentaram réplica, na qual impugnam os factos alegados na reconvenção. Peticionam a condenação da Ré como litigante de má-fé em multa e indemnização não inferior a € 4.000,00.

II – O Objeto do Recurso
Decorridos os trâmites processuais documentados nos autos, foi proferida sentença decidindo:
«A) - julgar a ação parcialmente procedente, por provada, e, em consequência:
- declarar os Autores proprietários da fração autónoma designada pela letra F, correspondente ao r/c do prédio urbano sito na Urb. das (…), (…), Lote 44, concelho de Lagos, descrito na Conservatória do Registo Predial de Lagos sob o n.º (…) e inscrito na matriz predial urbana com o artigo (…);
- condenar os Réus na entrega aos Autores da fração autónoma, livre de pessoas e bens;
- condenar os Réus no pagamento de uma indemnização pela ocupação, desde 30/11/2023 até à data da efetiva entrega, computada em € 350,00 mensais, acrescidos de juros de mora, à taxa de juros civis, contadas desde a data da prolação da sentença até efetivo e integral pagamento;
B) julgar a reconvenção improcedente, por não provada e, em consequência, absolver os Autores do pedido;
C) julgar os incidentes de condenação como litigantes de má-fé improcedente, por provados, e, em consequência, absolver os Autores e a Ré dos pedidos.»

Inconformada, a Ré apresentou-se a recorrer, pugnando pela revogação da decisão recorrida, a substituir por outra que declare a nulidade da sentença, decrete a nulidade da escritura de doação, mantendo a Recorrente a posse da fração, mais condenando os Autores por litigância de má-fé. As conclusões da alegação do recurso são as seguintes:
«1- Há clara contradição entre a prova na qual assentou a decisão do douto tribunal a quo e os fundamentos de facto e a decisão, que tendo os mesmos como alicerce, foi proferida nos autos.
2- Ou seja, da prova documental junta aos autos e, bem assim, da prova testemunhal, que se encontra documentada em suporte áudio, não resultam preenchidos os pressupostos fácticos nem legais para operar a condenação da Recorrente e do Réu (…) a reconhecerem os Réus como donos e legítimos proprietários da fração autónoma, designada pela Letra F, com os lugares de estacionamento n.º 21 e 22, correspondente ao r/c, apartamento 06, do prédio urbano sito na Urbanização das (…), (…), Lote 45.
3- E a restituírem a fração livre de pessoas e bens aos Recorridos.
4- ao invés de condenar os Recorridos a reconhecerem a Recorrente como e legítima possuidora da fração autónoma, designada pela Letra F, com os lugares de estacionamento n.º 21 e 22, correspondente ao r/c, apartamento 06, do prédio urbano sito na Urbanização das (…), (…), Lote 45.
5- Operando a Declaração de Nulidade da Escritura de Doação outorgada entre a Recorrente e os Recorridos por se tratar de negócio simulado.
6- Uma vez que das regras da experiência comum e da livre apreciação da prova, conjugadas com as declarações de parte do Autor marido/ Recorrido, resulta claro que a fração causa de pedir nos presentes auto, foi comprada para continuar a ser a casa de morada de família da aqui Recorrente, como sempre havia sido desde 01 de Abril de 2011, data em que a mesma a arrendara, tendo continuado a ser até à presente data, sempre que a Recorrente se encontrava em Portugal.
7- Era na fração, causa de pedir nos presentes autos que a Recorrente tinha os seus móveis, os seus bens pessoais e residia, sempre que o seu trabalho lhe permitia, quando se encontrava em Portugal, recebendo os seus familiares e amigos, sempre que estes a visitavam ou vinham a Portugal passar as férias, o que foi confirmado pelas testemunhas (…), (…), (…) e (…).
8- Resultando, claro que a vontade das partes era a aquisição da fração para a aqui recorrente residir, o que resulta claramente das declarações de parte do Recorrido, quando ele refere e várias vezes, que foi a Recorrente quem o incentivara a comprar a fração autónoma, para esta ter casa para morar e para guardar os seus móveis.
9- Encontra-se a douta sentença recorrida inquinada, padecendo da nulidade prevista no artigo 615.º, n.º 1, alínea c), do Código de Processo Civil, a qual ocorre quando se verifica um vício real no raciocínio expedido pelo julgador que leve a que se conclua em sentido oposto ou diferente de toda a lógica expressa na formação da decisão,
6- o que nos parece ser o caso na questão em apreço, pois a julgadora na sua decisão entende que não foi feita prova cabal, como refere nos factos não provados que ficou acordado com os Recorridos que a Ré ia pagando o dinheiro que lhe entregaram de acordo com as suas possibilidades, nem que os Recorridos tenham começado a pressionar a Ré para colocar a fração em seu nome, alegando que haviam solicitado um empréstimo na Alemanha e que o Banco os estava a pressionar para fazerem prova da aquisição da fração e nem que a Recorrente tenha outorgado a escritura para que os Recorridos a pudessem apresentar ao Banco.
7- Ora, entende a aqui Recorrente, que quanto aos factos dados como não provados andou mal a Mm.ª Juiz, porquanto resulta dos autos e das regras da experiência comum, conjugada com as declarações de parte, que como refere a Mm.ª Juiz são contraditórias, resultou provado o seguinte:
1 - Os Autores começaram a pressionar a Ré para colocar a fração em seu nome, alegando que haviam solicitado um empréstimo na Alemanha e que o Banco os estava a pressionar para fazerem prova da aquisição da fração.
2- A Ré outorgou a escritura de doação para que os Autores a pudessem apresentar no Banco.
3- Que o acordado entre Autores e a Ré é que a casa seria para esta residir enquanto vida e para estes continuarem a vir passar as férias, como sempre fizeram.
4- Que o Autor se opôs a que ficasse a constar na escritura de doação a reserva de usufruto a favor da Ré, alegando não ser necessário, porque eram família.
5- Que a Ré não quis fazer qualquer negócio, com a escritura de Doação, uma vez que a fração havia sido adquirida pelos Autores para si, ou no limite o que a Ré quis fazer foi uma escritura de doação com reserva de usufruto, pagando para tanto parte do empréstimo contraído pelos Autores, para pagamento do preço da fração autónoma.
8- Aqui chegados, impunha-se que a M.ª Juiz a quo tivesse proferido uma decisão diferente, julgando procedente por provado o Pedido Reconvencional formulado pela aqui Recorrente.
9- Refere e bem a Mm.ª Juiz que a Ré, para ilidir a presunção, do direito de propriedade a favor dos autores, invoca a simulação do contrato de doação através do qual os Autores adquiriram o direito de propriedade, pedindo que se reconheça a nulidade desse negócio.”
10- “O que nos remete para a existência de divergência intencional entre a vontade real e a vontade declarada, mormente apurar se existe um negócio simulado, na medida em que se alega que as partes sabiam o que declararam, pese embora não o desejassem, com o intuito de enganar terceiro.”
11- Pelo que dúvidas não restam que houve aqui um negócio simulado, porquanto como estipula o artigo 240.º do Código Civil “Se, por acordo entre declarante e declaratário, e no intuito de enganar terceiros, houver divergência entre a declaração negocial e a vontade real do declarante, o negócio diz-se simulado”.
12- Encontrando-se preenchidos os requisitos proclamados no supra identificado artigo, tendo a douta Sentença recorrida, ao decidir como decidiu, violado por erro de interpretação e de aplicação o citado artigo 240.º do Código Civil.
13- Ocorre, pois, que o negócio simulado é sempre nulo, mas já a invalidade ou validade do negócio dissimulado é decidida autonomamente, completamente à parte do negócio simulado, dependendo dos requisitos legais que para o negócio dissimulado estejam estabelecidos.
14- Refere e bem a Mm.ª Juiz a quo que: “ao Tribunal, em tal determinação, não está vedado efetuar e retirar ilações/inferências, ou socorrer-se de presunções judiciais ou naturais no julgamento da matéria de facto, mas sempre a partir de factos conhecidos (neste sentido, o Ac. do TRE de 19.06.2008, acessível in www.dgsi.pt).
15- No caso concreto, pela análise da matéria de facto que devia ter sido dada como provada, como acima se aduziu, e extrai-se claramente e sem margens para duvidas que inexistiu vontade de doar isto é transmitir a propriedade, pelo menos no seu todo, da Recorrente para os Recorridos.
16- Estabelece o artigo 414º. do C.P.C. que: “a dúvida sobre a realidade de um facto e sobre a repartição do ónus da prova resolve-se contra a parte a quem o facto aproveita”.
17- Pois apesar, da doação nunca a posse se transmitiu da Recorrente para os recorridos, tendo sido esta quem desde 2011, data em que foi contratado o Arrendamento se manteve na posse da fração,
18- Foi por conta da posse, conferida pelo Contrato de Arrendamento outorgado e mantido entre a Recorrente e o Réu (…) e a empresa (…)-Projetos de Engenharia, Lda., que o Serviço de Finanças, de acordo com a exigência legal, imposta pelo artigo 1091.º do Código Civil, aquando da venda da fração causa de pedir nos presentes autos, que foi penhora à Sociedade senhoria, no âmbito do Proc. n.º 4102/12.2TBPTM, notificou à aqui Recorrente e o Réu (…), para exercer a preferência legal, pelo valor de € 95.164,07, valor pelo qual a mesma havia sido adjudicada a (…), na modalidade de venda por leilão eletrónico.
19- Assim, porque a aqui Recorrente e o Réu (…) não dispunham de dinheiro para efetuar o pagamento do preço, ficou acordado entre Recorrente e Recorridos, que seriam estes últimos a disponibilizar o dinheiro para o pagamento do preço, por forma a que a Recorrente e o Réu (…) não ficassem sem casa nem sítio para guardar as mobílias, factos que a Mm.ª Juiz a quo deu, e bem, por provados.
20- A aqui Recorrente manteve-se na posse da fração autónoma, desde a data em que a mesma lhe foi adquirida, através do direito de preferência ás Finanças, e manteve essa posse desde a data da outorga da escritura simulada, até aos dias de hoje.
Ainda sem prescindir.
Caso assim não se entenda, por mero dever de patrocínio, sempre se dirá:
21- A esta posse os Recorridos só se vêm opor em 30.08.2023, interpelando os Réus para procederem à entrega da fração no prazo de 3 meses a contar da data da receção da interpelação, cerca de 5 anos depois de ter sido outorgada a escritura de Doação, por despeito, como resulta das declarações do Recorrido marido.
22- Aproveitando-se do facto de não ter ficado a constar na escritura a Reserva de Usufruto, alegando para tanto, após a concretização da mesma ter sido outorgado entre Recorrente e Recorridos um mero Contrato de Comodato para guardar os móveis, não conseguindo depois explicar o porquê das transferências mensais efetuadas pela Recorrente para a conta da Recorrida.
23- Acabando por dizer que tal quantia se destinava ao pagamento pelo depósito dos mesmos. Isto é, confessando ter feito um contrato de arrendamento verbal, ao invés de um contrato de comodato.
24- Pelo que a interpelação como alega a aqui Recorrente, ainda que por motivo diverso era igualmente ilícita e ilegal, não podendo consequentemente operar.
25- Pelo que não podia a Mm.ª Juiz a quo ter condenado com base nesta a aqui Recorrente a entregar a fração autónoma aos Recorridos e nem em pagar a indemnização, mesmo porque como ficou provado, a Recorrente tem vindo a entregar mensalmente aos Recorridos, desde 13/09/2018 até Setembro de 2022, passado a transferir “religiosamente” todos os meses para a conta da Recorrida (...) a quantia de € 300,00 e tendo passado a transferir desde Outubro de 2022, até à data a efetuar a transferência mensal de € 350,00.
26- Das Declarações do Recorrido marido, resulta a confissão que a fração foi comprada para a aqui Recorrente viver, facto dado por provado pela Mm.ª Juiz “Os Autores entregaram dinheiro à Ré para proceder ao depósito do preço e para que não ficasse sem casa nem sítio para guardar as mobílias”.
27- Tendo igualmente sido dado como provado que “A Ré efetuou desde 13.09.2018 até setembro de 2022 transferência mensal da quantia de € 300,00 para a conta da Autora (…) e a partir de outubro de 2022 passou a efetuar transferência mensal da quantia de € 350,00, o que tem vindo a fazer até à data”.
28- Quantia essa que o Recorrido acaba por confessar que “Aí houve o acordo, que a gente, ela ofereceu € 300,00 para poder deixar estar lá os móveis e nós dissemos ok ficavam lá os móveis e ela podia vir a Portugal passar férias quando quisesse”.
29- De onde resulta a confissão do Autor, ter sido intenção das partes outorgar um contrato de arrendamento para habitação verbal da fração reivindicada.
30- Tendo implicado a permissão pelos Recorridos de ocupação pela Ré, mediante o pagamento da quantia mensal de € 300,00, o que configura um contrato de arrendamento, de acordo com a definição dada pelo artigo 1094.º do Código Civil que:
“1 - O contrato de arrendamento urbano para habitação pode celebrar-se com prazo certo ou por duração indeterminada.
2 - No contrato com prazo certo pode convencionar-se que, após a primeira renovação, o arrendamento tenha duração indeterminada.
3 - No silêncio das partes, o contrato considera-se celebrado por prazo certo, pelo período de cinco anos.”
31- Estando perante um Contrato de Arrendamento o mesmo terá sido outorgado após o dia 20 de agosto de 2018, data em que foi outorgada a escritura de Doação, tendo a primeira renda sido paga no dia 13 de setembro de 2018, pelo que se presume ter sido outorgado em data próxima a esse dia.
32- Assim o Contrato iniciado em setembro de 2018 teria a duração de 5 (cinco) anos, ou seja teria termo em finais de agosto, inícios de setembro de 2023.
33- Ora a interpelação foi efetuada em 30.08.2023, não tendo cumprido com os prazos legalmente estabelecidos, ou seja de acordo com o artigo 1097.º do Código Civil, a interpelação tinha que ter ocorrido, pelo menos com 120 dias de antecedência mínima do termo do contrato, tendo consequentemente o contrato se renovado por cinco anos, uma vez que nada foi estabelecido pelas partes, conforme regula o artigo 1096.º do Código Civil, encontrando-se o contrato de arrendamento em vigor, pelo menos, até 2028.
34- Face ao exposto, não podia a Mm.ª Juiz a quo ter decidido como decidiu, condenando os Réus a entregar aos Autores a fração autónoma, livre de pessoas e bens, tendo violado por erro de aplicação os citados artigos 1094.º, 1096.º e 1097.º, todos do Código Civil.
35- A aqui Recorrente alegou que a interpelação, era ilegal por ilegítima e por se basear num logro, tendo sido por isso que se manteve na posse da referida fração, o que salvo melhor opinião, se encontrava provado.
36- Não tendo a Mm.ª Juiz a quo dado tal facto como provado, deixando-se de pronunciar relativamente ao mesmo, como lhe competia.
37- Tendo ocorrido, consequentemente a nulidade prevista no artigo 615.º, n.º 1, alínea d), do Código de Processo Civil, que ocorre quando o juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento.
38- Ora, tal omissão, atenta a sua importância, resultou numa decisão desconforme à prova documental e testemunhal junta aos autos e analisada na audiência, porquanto, do supra transcrito resulta claramente que a Mm.ª Juiz não atentou na prova produzida, como lhe competia.
39- Face, ao exposto padece a douta sentença recorrida do vício de ilegalidade, tendo que ser declarada nula a sentença recorrida, com todas as legais consequências.
40- Pelo que teremos que concluir que é exigível que se proceda a um controlo sobre a matéria de facto julgada na fase da audiência final, nos termos do artigo 640.º do Código de Processo Civil, para que a decisão recorrida seja reponderada.
41- Tendo em conta a prova documental e a prova gravada que se encontra junta aos autos e na qual o Mm.º Juiz alega ter baseado a sua convicção.
42- Tendo, consequentemente, que se proceder a uma correta aplicação do direito ao caso sub judice.
Ainda sem prescindir:
43- No que se refere ao pedido de condenação dos Recorridos como litigantes de má-fé deduzidos pela Recorrente, atendendo ao supra exposto, deverá ser julgado procedente, porquanto, como bem refere a Mm.ª Juíza a quo, “Como é sabido, a má-fé traduz-se na utilização maliciosa e abusiva do processo enquanto violação do dever de correção processual (artigos 7.º e 8.º, do Código de Processo Civil e antigo artigo 266.º-A) (vide neste sentido Correia de Sousa, “Litigância de Má-fé”, in Coletânea de Sumários de Jurisprudência, 2.ª Ed., pág. 7),” porquanto os Recorridos deduziram pretensão cuja falta de fundamento não devia ignorar, alterando a verdade dos factos ou omitido factos relevantes para a decisão da causa, fazendo do processo ou dos meios processuais um uso manifestamente reprovável, com o fim de conseguir um objetivo ilegal, entorpecendo a ação da justiça”.
44 - Face ao exposto e salvo mais douta opinião, diferente teria que ter sido a Decisão do Dr. Juiz a quo, julgando improcedente a pretensão dos autores e procedente a reconvenção deduzida pela ré, aqui Recorrente, o que se requer a este tribunal ad quem
Os Recorridos apresentaram contra-alegações sustentando que o recurso deverá ser julgado improcedente, mantendo-se a decisão recorrida, salientando que não é possível entender quais os concretos pontos que a Recorrente considera incorretamente julgados, que não foi provada a simulação da doação nem a existência de contrato de arrendamento que legitime a ocupação da fração pelos Recorrentes.

Cumpre conhecer das seguintes questões[1]:
i) da nulidade da sentença;
ii) da impugnação da decisão relativa à matéria de facto;
iii) do contrato de arrendamento tendo por objeto a fração;
iv) da nulidade da escritura de doação.

III – Fundamentos
A – Os factos provados em 1.ª Instância
1- Em 01 de abril de 2011, os Réus outorgaram um escrito, denominado “Contrato de Arrendamento Urbano de Duração Limitada para Habitação em Regime de Renda Livre” juntamente com a Sociedade (…)-Projectos de Engenharia, Lda., através do qual lhes foi cedido o gozo e fruição da fração autónoma designada pela Letra F, com os lugares de estacionamento n.º 21 e 22, correspondente ao r/c, apartamento 06, do prédio urbano sito na Urbanização das (…), (…), Lote 45, descrito na Conservatória do Registo Predial de Lagos sob o n.º (…) e inscrito na matriz predial urbana sob o art. (…), da freguesia da (…), pelo prazo de 60 meses (cfr. doc. 2 junto com a contestação).
2- Os Réus passaram a residir na fração autónoma, e entre os anos de 2013 e 2022 foram residir para Inglaterra, onde trabalhavam.
3- Quando regressavam a Portugal passavam os períodos de férias na fração autónoma, onde também passavam férias os Autores e outros familiares.
4- Desde o ano de 2016, os Autores tinham intenção de adquirir um imóvel em Portugal para passar férias quando vêm da Alemanha, onde residem.
5- Em data não concretamente apurada, a Ré teve conhecimento, através de um edital, que corria termos um Processo de Execução Fiscal contra a Sociedade (…)-Projectos de Engenharia, Lda., no qual se encontrava penhorada a fração autónoma, a ser vendida pelo valor base de € 77.594,46, na modalidade de leilão eletrónico (cfr. doc. 3 junto com a contestação).
6- A referida fração foi adjudicada no âmbito do Processo n.º 4102/12.2TBPTM a (…), pelo valor de € 95.164,07 (cfr. doc. 4 junto com a contestação).
7- Foi remetida notificação aos Réus para exercerem o direito de preferência, no prazo de 10 dias, o qual a Ré exerceu, tendo-lhe sido adjudicada a fração (cfr. docs. 5, 6 e 8 juntos com a contestação).
8- Os Réus não dispunham de dinheiro para efetuar o pagamento do preço e acordaram com os Autores que seriam estes a disponibilizar o dinheiro para efetuar esse pagamento.
9- Os Autores entregaram dinheiro à Ré para proceder ao depósito do preço e para que não ficasse sem casa nem sítio para guardar as mobílias.
10- Após o que a Ré efetuou o pagamento do preço (cfr. docs. 7, 8 e 9 juntos com a contestação).
11- Através de escritura de doação, outorgada no dia 20 de agosto de 2018, a Ré declarou doar aos Autores, sem reserva ou encargo e por conta da quota disponível, a fração autónoma identificada em 1 (cfr. doc. 17 junto com a contestação).
12- A Ré efetuou desde 13/09/2018 até setembro de 2022 transferência mensal da quantia de € 300,00 para a conta da Autora (…) e a partir de outubro de 2022 passou a efetuar transferência mensal da quantia de € 350,00, o que tem vindo a fazer até à data (cfr. docs. 10 a 16 juntos com a contestação e com o req. datado de 04.11.2024).
13- Os Autores têm inscrita a seu favor pela ap. (…), de 2018.08.2 a aquisição, por doação, da fração autónoma designada pela letra F, sita em Urb. das (…), (…), Lote 44, r/c, (…), concelho de Lagos, inscrita na matriz predial urbana com o artigo n.º (…) e descrita na Conservatória do Registo Predial de Lagos sob o n.º … (cfr. Doc. 1 junto com a contestação).
14- Em data não apurada do ano de 2022, após deixarem de residir em Inglaterra e regressarem a Portugal, os Réus passaram a viver na fração autónoma.
15- Em 30/08/2023 os Autores interpelaram os Réus para procederem à entrega da fração no prazo de três meses a contar da data da receção da interpelação (cfr. doc. 4 junto com a p. i.).
16- Os Réus não o fizeram e em após o dia 09 de novembro de 2023 procederam à troca das fechaduras, impedindo o acesso dos Autores à fração.
17- A contrapartida mensal pela cedência do gozo e fruição da fração autónoma ronda os € 1.000,00 (mil euros) por mês.

B – As questões do Recurso
i) Da nulidade da sentença
A Recorrente sustenta que existe contradição entre a prova na qual assentou a decisão e os fundamentos de facto e a decisão, pois da prova não resultaram preenchidos os pressupostos fácticos e legais para operar a condenação dos Réus naqueles termos.
Nos termos do disposto no artigo 615.º, n.º 1, alínea c), do CPC é nula a sentença quando os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível. A contradição entre os fundamentos e a decisão verifica-se quando a construção da sentença é viciosa, uma vez que os fundamentos referidos conduziriam logicamente, não ao resultado expresso, mas a uma decisão de sentido oposto; ocorre quando a decisão briga com o fundamento, está em oposição com ele[2], quando o fundamento repele a decisão.
No caso em apreço constata-se que os fundamentos invocados pela Recorrente não relevam para efeitos de nulidade da sentença por oposição entre os fundamentos e a decisão. Antes evidenciam que a Recorrente discorda com a decisão tomada, considera que a prova produzida implica em decisão de facto e de direito diversa daquela que foi proferida em 1.ª Instância.
O que contende com o mérito da decisão, e não já com vícios que se repercutam em sede de nulidade da referida peça processual.

ii) Da impugnação da decisão relativa à matéria de facto
A Recorrente considera que o Tribunal de 1.ª Instância incorreu em erro quanto a factos dados como provados e quanto a factos dados como não provados.
Porém, e como desde logo apontaram os Recorridos, não são evidenciados os concretos pontos da matéria de facto que, no entender da Recorrente, foram incorretamente julgados.
Nos termos do n.º 1 do artigo 640.º do CPC, quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;
b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;
c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
Trata-se de um regime espartano, que estabelece quais são os requisitos formais das alegações de recurso em que seja colocada em crise a decisão sobre a matéria de facto. Tem em vista definir concretamente o que está sujeito a instância recursional e aquilo que resulta cristalizado e imutável, transitado em julgado. Dele decorre que a matéria de facto provada apenas há de ser colocada em causa na medida em que seja expressamente indicado pelo recorrente, não bastando mera alusão encapotada; só assim, aliás, se possibilita o exercício do contraditório de modo pleno e eficaz.
Como se salienta em Acórdão desta Relação[3], «essa disposição impõe a indicação concreta dos pontos de facto a alterar e dos meios probatórios relevantes para tal alteração, com indicação dos depoimentos em que se funda a impugnação, por referência ao assinalado na ata. É necessário que haja uma indicação especificada dos pontos de facto a alterar – i.e., tem de haver uma indicação ponto por ponto (facto a facto/quesito a quesito) do que deve ser alterado, em que sentido (resposta positiva, negativa ou restritiva) e com que particular fundamento, com referência a concretos trechos de depoimentos, embora sem necessidade de transcrição (ou outros meios probatórios) (cfr. Lebre de Freitas et alii, Código de Processo Civil Anotado, vol. 3.º, Coimbra Editora, Coimbra, 2003, págs. 53-55).»
A mais recente do STJ enfatiza o âmbito de cumprimentos dos ónus legais no que respeita à alínea a) do n.º 1 do artigo 640.º do CPC nos seguintes termos:
Ac. STJ de 19/03/2024, proc. n.º 150/19.0T8PVZ.P1.S1, Luís Espírito Santo:
É manifesto o incumprimento pelo impugnante da obrigação prevista no artigo 640.º, n.º 1, alínea a), do Código de Processo Civil, quando nas conclusões do recurso não consta a indicação de qualquer ponto da matéria de facto que houvesse sido impugnado pelos recorrentes, o que é por si suficiente para determinar a imediata rejeição da impugnação.
Ac. STJ 27/4/2023, proc. n.º 4696/15.0T8BRG.G1.S1, João Cura Mariano:
A não indicação nas conclusões das alegações do recurso de apelação dos concretos pontos da matéria de facto que se pretende impugnar permite a rejeição imediata do recurso nessa parte.
“As referidas exigências devem ser apreciadas à luz de um critério de rigor. Trata-se, afinal, de uma decorrência do princípio da auto-responsabilidade das partes, impedindo que a impugnação da decisão da matéria de facto se transforme numa mera manifestação de inconsequente inconformismo.”[4] A não verificação de tais requisitos implica na rejeição do recurso da decisão da matéria de facto, não havendo lugar, sequer, à prolação de despacho com vista ao aperfeiçoamento.[5]
Termos em que, com fundamento no regime inserto no artigo 640.º, n.º 1, alínea a), do CPC, vai rejeitado o recurso atinente à impugnação da decisão relativa à matéria de facto.

iii) Do contrato de arrendamento tendo por objeto a fração
A Recorrente apresenta-se a sustentar assistir-lhe direito à ocupação da fração por ter resultado provado existir um contrato de arrendamento verbal, o que justifica as transferências mensais por si efetuadas para a conta da Recorrida.
Inexistem factos que suportem tal pretensão.
De todo o modo, sempre seria de a rejeitar, porquanto o que foi alegado em sede de contestação foi o seguinte:
«13.º - Como não tinha o dinheiro para efetuar o pagamento do preço, a aqui Contestante, disse aos filhos, incluindo aos aqui Autores que ia solicitar um Empréstimo Bancário,
14.º - Tendo estes prontamente se oferecido para lhe emprestar o dinheiro para pagamento do preço, acordando que a Contestante ia posteriormente pagando o mesmo de acordo com as suas possibilidades.
(…)
18.º - A partir de 13/09/2018 a aqui Contestante, para honrar o cumprimento do Acordo estabelecido com os aqui Autores passou a efetuar mensalmente o pagamento da quantia de € 300,00 (trezentos euros), mensais, para a conta bancária da Autora (…),
19.º - Tendo pago religiosamente essa quantia até setembro de 2022.
20.º - Tendo em outubro de 2022 passado a efetuar o pagamento mensal da quantia de € 350,00 (trezentos e cinquenta euros), quantia que tem vindo a pagar até à presente data.
21.º - Encontrando-se atualmente paga a quantia de € 19.650,00 (dezanove mil e seiscentos e cinquenta euros).»
A versão trazida a juízo pela Recorrente foi a de que foi pagando as mencionadas quantias mensais em cumprimento do acordo feito com os Autores de reembolso do preço por eles pago na aquisição da fração.
Nunca a Recorrente se arrogou da qualidade de arrendatária nem esgrimiu a pretensão de lhe ser reconhecida tal qualidade.
Ora, o recurso constitui o meio processual de modificar decisões e não de criar decisões sobre matéria nova, não submetida ao exame do tribunal de que se recorre. Tem em vista a reapreciação ou a reponderação das questões submetidas a litígio, já apreciadas e decididas pelo tribunal recorrido e não a pronúncia sobre questões diversas. Em regra, o tribunal não pode ser chamado a pronunciar-se sobre matéria que não foi alegada pelas partes na instância recorrida ou sobre pedidos que nela não foram formulados. Os recursos são meios de impugnação de decisões judiciais e não meios de julgamento de questões novas.[6]
Donde, não cabe invocar em sede de recurso questões que não tenham sido suscitadas perante o tribunal recorrido, conforme resulta do regime inserto nos artigos 627.º, n.º 1 e 635.º, n.º 3, do CPC, salvo se a lei expressamente determinar o contrário (artigo 665.º, n.º 2, do CPC) ou nas situações em que a matéria é de conhecimento oficioso (artigo 608.º, n.º 2, do CPC, aplicável ex vi do artigo 663.º, n.º 2, do CPC).
Muito menos tratando-se, como se trata, de matéria de exceção perentória, que tinha de ser expressamente invocada.
Termos em que soçobra a referida pretensão da Recorrente.

iv) Da nulidade da escritura de doação
A nulidade da escritura de doação vem invocada com fundamento na simulação, avançando a Recorrente que as declarações de vontade prestadas não correspondem ao que as parte queriam, o que teve lugar com o intuito de lesar terceiros, pois tem mais 2 filhos, para além da Autora, e ambas as partes sabiam que estava em causa a legítima, dado não dispor de outros bens.
Vejamos.
Nos termos do disposto no artigo 240.º do Código Civil, se, por acordo entre declarante e declaratário, e no intuito de enganar terceiros, houver divergência entre a declaração negocial e a vontade real do declarante, o negócio diz-se simulado (n.º 1). O negócio simulado é nulo (n.º 2).
O negócio é simulado quando, de facto, as partes não quiseram celebrar contrato algum. Para a existência de simulação impõe-se a verificação de três requisitos: a divergência entre a vontade real e a vontade declarada; o intuito de enganar ou iludir terceiros (animus decipiendi); o acordo simulatório (pactum simulationis).
O ónus da prova de tais requisitos, na medida em que são constitutivos do respetivo direito, recai sobre o sujeito que invoca a simulação – artigo 342.º, n.º 1, do Código Civil.
E é no rol dos factos provados que há de perscrutar-se a real intenção dos contraentes ou outorgantes no negócio jurídico, o conhecimento, pelo declaratário, da vontade real do declarante e a vontade deste (artigo 236.º, n.º 2, do Código Civil), a intenção de enganar terceiros e ainda o acordo na consumação do negócio nesses moldes.
Analisada a factualidade provada no presente processo, é manifesto que inexiste fundamento para afirmar que, não obstante as declarações negociais que conformam o contrato de doação, as partes não quiseram celebrar contrato algum, que tenham atuado conluiadamente com o intuito de enganar terceiros, nomeadamente os demais filhos da Recorrente e irmãos da Recorrida.
O contrato de doação celebrado não se reveste, pois, de nulidade, por simulação.

É manifesto que improcedem as conclusões da alegação do presente recurso, inexistindo fundamento para revogação da decisão recorrida.

As custas recaem sobre a Recorrente – artigo 527.º, n.º 1, do CPC.

Sumário: (…)

IV – DECISÃO
Nestes termos, decide-se pela total improcedência do recurso, em consequência do que se confirma a decisão recorrida.
Custas pela Recorrente.
Évora, 9 de abril de 2025
Isabel de Matos Peixoto Imaginário
Vítor Sequinho dos Santos
Ana Margarida Carvalho Pinheiro Leite


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[1] Atentas as conclusões da alegação de recurso, que definem o objeto e delimitam o âmbito do recurso.
[2] Cfr. Alberto dos Reis, CPC anotado, vol. V, págs. 141 e 142.
[3] Proferido a 04/11/2009 (Mário Serrano).
[4] Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, 3.ª edição, pág. 143.
[5] V. Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, 3.ª edição, págs. 141 e 142.
[6] Miguel Teixeira de Sousa, Estudos Sobre o Novo Processo Civil, 2ª ed., LEX, Lisboa 1997, pág. 395.