Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
4696/15.0T8BRG.G1.S1
Nº Convencional: 2.ª SECÇÃO
Relator: JOÃO CURA MARIANO
Descritores: IMPUGNAÇÃO DA DECISÃO DA MATÉRIA DE FACTO
RECURSO DE APELAÇÃO
REJEIÇÃO DE RECURSO
CONCLUSÕES DA MOTIVAÇÃO
ÓNUS DE CONCLUIR
PRINCÍPIO DO CONTRADITÓRIO
OBJETO DO RECURSO
CONVITE AO APERFEIÇOAMENTO
OMISSÃO
MOTIVAÇÃO DO RECURSO
INCONSTITUCIONALIDADE
PROCESSO EQUITATIVO
Data do Acordão: 04/27/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA
Sumário :
A não indicação nas conclusões das alegações do recurso de apelação dos concretos pontos da matéria de facto que se pretende impugnar permite a rejeição imediata do recurso nessa parte.
Decisão Texto Integral:
Requerente: AA

Requerida: BB

Menor: CC

                                              

                                               *

I – Relatório

O Requerente intentou ação de alteração da regulação do exercício das responsabilidades parentais contra a Requerida, relativamente ao Menor, filho de ambos, requerendo a alteração do regime fixado em 21.10.2014, por sentença homologatória do acordo de regulação do exercício das responsabilidades parentais a que os progenitores chegaram na Instância Central ....

Foi proferida sentença que regulou as responsabilidades parentais relativas ao Menor.

A Requerida interpôs recurso desta decisão para o Tribunal da Relação.

Foi proferido acórdão pelo Tribunal da Relação que rejeitou a impugnação da matéria de facto deduzida no recurso interposto.

A Requerida interpôs recurso de revista para o Supremo Tribunal de Justiça daquele acórdão, tendo concluído do seguinte modo:

1. A Recorrente discorda do indeferimento do recurso apresentado quanto à matéria de facto defendido pela Relação de Guimarães;

2. A Recorrente defende que os dispositivos legais apontados na decisão proferida, para fundamento do indeferimento do recurso, foram cumpridos aquando da apresentação do recurso no Tribunal da Relação de Guimarães;

3. A decisão sobre a questão do teor das conclusões apresentadas, se servem ou não para respeitar o disposto no art.º 640.º do Código de Processo Civil, consubstancia, uma violação do art.º 202.º, n.º 2 da Constituição da República Portuguesa, não podendo os tribunais indeferir o recurso sobre matéria de facto por questão puramente formal, sem análise da questão substancial e sem dar possibilidade de aperfeiçoamento ou contraditório, caso entendam que a questão formal irá prevalecer;

4. A Revista pode ter por fundamento a violação ou errada aplicação da lei de processo;

5. No entender da Recorrente, o Tribunal a quo violou o disposto no art.º 640.º, alínea a) e c) do C.P.C., tendo, erroneamente, aplicado o referido dispositivo pois constam das conclusões do recurso apresentado na Relação de Guimarães as conclusões que o Tribunal em causa diz que não constam;

6. Com efeito, das conclusões do recurso então apresentado resulta inequívoco que a Recorrente pretendia impugnar a matéria de facto;

7. O Recorrido percebeu claramente quais eram esses pontos e, apesar de apresentadas fora de tempo, as suas alegações de resposta incidiram sobre os concretos pontos de facto impugnados pela Recorrente;

8. Ou seja, pela leitura das conclusões o tribunal da Relação de Guimarães ficou a saber que a Recorrente impugnava matéria de facto, constando das alegações os concretos pontos de facto e os elementos de prova que permitiam alterar a decisão tomada pela 1.ª instância;

9. Cumpriu-se, assim, o disposto na alínea a) do art.º 640.º do C.P.C.;

10. Tendo-se cumprido o disposto no art.º 640.º, alíneas a) e c) do C.P.C., é convicção da Recorrente que a apreciação que resultou em indeferimento do recurso na parte da matéria de facto, pecou por excesso, porquanto o teor das conclusões é suficiente para o julgador entender a motivação do recurso da recorrente e a decisão que a recorrente entendia que deveria ter sido proferida;

11. Não tendo assim entendido, violou o Tribunal a quo, o disposto no art.º 640.º, alíneas a) e c) do C.P.C.;

12.   Note-se, ainda, que ao abrigo dos princípios do acesso à justiça, da justa composição do litígio e da prevalência do princípio de acesso à justiça e não denegação do acesso à justiça sobre questões de índole puramente formal que são menores e falecem perante princípios de substancialidade de maior gravidade a que os tribunais estão sujeitos, o relator, em caso de dúvida, deveria convidar o recorrente a completar e esclarecer as conclusões apresentadas, mesmo na parte da matéria de facto, nas partes que considere deficientes ou obscuras, no prazo de 5 dias, nos termos do disposto no art.º 639.º, n.º 3 do C.P.C., por analogia, ou, decorrente da imposição do art.º 652.º, alínea a), parte final, sendo que entendendo-se de forma diversa tal não serve para aumentar a confiança dos cidadãos na justiça.

13.   Não se ignora a posição maioritária (mas não unânime) da jurisprudência, quanto à não existência de despacho de aperfeiçoamento no recurso da matéria de facto, mas, como referem Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Pires de Sousa in “CPC Anotado”, p. 831, 3.ª edição, Almedina, esse facto “deve fazer pender para uma solução que se revele proporcionada relativamente à gravidade da falha verificada”.

14.   Note-se que a parte contrária retorquiu, ponto por ponto, as alegações da Recorrente, pelo que não haverá lugar à invocação de uma qualquer violação do contraditório

15.   E acrescentamos, em jeito de remate, que em sede de processos de jurisdição voluntária como o presente e em situações em que a matéria a analisar é vasta (o presente processo judicial tem sete anos de duração…) e o prazo de recurso é reduzido a metade (por força do art. 32.º do RGPTC), mais branda deverá ser a aplicação de tal regra ou menor prevalência deverá ser dada aos critérios formais face à função primeira dos Tribunais e das leis, em particular quando o superior interesse da criança é o desiderato do processo judicial.

O Requerente apresentou contra-alegações, apoiando a decisão recorrida.

                                               *

II – O objeto do recurso

Atentas as conclusões das alegações de recurso e o conteúdo da decisão recorrida, cumpre apreciar se não se justificava a rejeição pela Relação da parte do recurso de apelação em que se impugnava a decisão sobre a matéria de facto proferida pela 1.ª instância.

                                               *

III – Factos processuais

Da análise das alegações do recurso de apelação apresentado pela Requerida constata-se o seguinte:

1. A Requerida no corpo das alegações indicou quais os concretos pontos da matéria de facto cuja prova impugnava.

2. Nas conclusões dessas alegações, relativamente à impugnação da decisão sobre a matéria de facto a Requerida limitou-se a referir:,

III – Muitos dos factos dados como provados não tiveram em conta todo o conjunto de elementos probatórios carreados para os autos que, na sua análise conjunta e com apelo às regras da experiência comum, impunham decisão diversa;

IV – Outros factos foram imitidos, mas isso devem ser dados como provados pois existe prova bastante nos autos para alcançar essa decisão e eles são úteis para a boa decisão da causa;

V – A correção dos indicados erros permitem a este Tribunal corrigir os erros de Direito existentes na sentença.

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IV – O direito aplicável

Dispõe o artigo 640.º, n.º 1, do Código de Processo Civil:

Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:

a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;

b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;

c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.

A Requerida, no recurso de apelação que interpôs para o Tribunal da Relação, pretendeu impugnar a decisão sobre a matéria de facto proferida pela 1.ª instância.

Para tal indicou no corpo das alegações os concretos pontos da matéria de facto que pretendia impugnar mas, nas conclusões desse recurso, limitou-se a fazer uma referência genérica à impugnação da decisão sobre a matéria de facto.

A decisão recorrida efetuou o seguinte raciocínio:

... são as conclusões que delimitam o objeto do recurso, em consonância com a regra geral que se extrai do artigo 635º do CPC, pelo que a enunciação dos pontos de facto cuja modificação é pretendida pelo recorrente tem de ser feita nas conclusões.

Essa especificação é indispensável, na medida em que as conclusões circunscrevem a área de intervenção do tribunal ad quem, exercendo uma função semelhante à do pedido, na petição inicial, ou à das exceções, na contestação. Não sendo, manifestamente, uma questão de conhecimento oficioso, a circunstância de não se especificarem os concretos pontos de facto incorretamente julgados consubstancia, desde logo, uma falta de indicação do seu objeto.

Com efeito, as conclusões exercem a importante função de delimitação do objeto do recurso, através da identificação clara e rigorosa daquilo que se pretende impugnar na decisão recorrida e sobre o qual se pretende que o tribunal superior faça uma reapreciação. O tribunal superior só aprecia o objeto definido pelas conclusões e, por isso, não tem de conhecer de uma questão, seja ela factual ou de direito, que não consta das conclusões, a não ser que se trate de matéria de conhecimento oficioso. O que não consta das conclusões não é objeto de conhecimento. E formular conclusões não é remeter para a motivação. A exigência de formulação de conclusões não é suprível por mera remissão.

Além de habilitar a um adequado exercício do contraditório pelo recorrido, a necessidade dessa especificação está também intimamente ligada às duas regras impostas no artigo 608º, nº 2, do CPC, onde se estabelece que «o juiz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, excetuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras; não pode ocupar-se senão das questões suscitadas pelas partes, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o conhecimento oficioso de outras».

Em conformidade com o disposto no artigo 635º do CPC, uma questão considera-se integrada no recurso se constar das conclusões; se assim suceder, o tribunal de recurso tem de resolver a questão que foi submetida à sua apreciação. Pelo contrário, se determinada questão não for indicada nas conclusões o tribunal não pode ocupar-se dela, ou seja, não pode dela conhecer, exceto se lhe for imposto o conhecimento oficioso.

Sendo assim, num recurso em matéria de facto, se o tribunal de recurso não aborda um ponto de facto que o recorrente identifica como incorretamente julgado, verifica-se uma nulidade por omissão de pronúncia (artigos 666º, nº 1, e 615º, nº 1-d, 1ª parte, do CPC); se decide relativamente a um ponto de facto que o recorrente não identificou como incorretamente julgado, em princípio, comete uma nulidade por excesso de pronúncia (art. 615º, nº 1-d, 2ª parte, do CPC).

Vejamos agora qual é a consequência da falta de especificação nas conclusões dos concretos pontos de facto incorretamente julgados.

Por um lado, exceto em matéria de que lhe cumpre apreciar oficiosamente, é inequívoco que o tribunal superior não pode conhecer de uma questão que não foi enunciada nas conclusões.

Por outro lado, a lei expressamente impõe a rejeição da impugnação da decisão sobre a matéria de facto quando o recorrente não especificar os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados – artigo 640º, nº 1, al. a), do CPC. Estabelecendo um paralelismo com a petição inicial, tal como esta está ferida de ineptidão quando falta a indicação do pedido, também as conclusões num recurso em matéria de facto em que não se indicam os concretos pontos de facto incorretamente julgados são “ineptas”.

E não se justifica sequer a prolação de qualquer despacho de convite à sua indicação. Foi propósito deliberado de o legislador não instituir qualquer convite ao aperfeiçoamento das alegações a dirigir ao apelante. Por um lado, a lei é a este respeito imperativa, ao cominar a imediata rejeição do recurso, nessa parte, para a falta de cumprimento pelo recorrente do referido ónus processual. Por outro lado, não há lugar a convite ao aperfeiçoamento das conclusões, uma vez que o artigo 652º, nº 1, al. a), do CPC apenas prevê a intervenção do relator quanto ao aperfeiçoamento das «conclusões das respetivas alegações, nos termos do nº 3 do artigo 639º», ou seja, quanto à matéria de direito e já não quanto à matéria de facto.

Nos termos do artigo 640.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, um dos requisitos a que obedece a impugnação da matéria de facto é o da indicação dos concretos pontos de facto que se consideram incorretamente julgados, uma vez que só essa indicação permitirá quer à contraparte, quer ao tribunal saber quais os juízos probatórios que o recorrente pretende pôr em causa com a interposição do recurso.

A Requerida, no requerimento de interposição de recurso de apelação, indicou os concretos pontos de facto que pretendia ver alterados, mas efetuou essa indicação no corpo das alegações e não nas suas conclusões, onde se limitou a efetuar uma referência genérica reveladora que tinha deduzido uma impugnação à decisão sobre a matéria de facto.

Como bem se refere na fundamentação do acórdão recorrido, as conclusões de um recurso exercem a importante função de delimitação do objeto do seu objeto, através da identificação clara e rigorosa daquilo que se pretende impugnar na decisão recorrida e sobre o qual se pretende que o tribunal superior faça uma reapreciação. O tribunal superior só aprecia o objeto definido pelas conclusões e, por isso, não tem de conhecer de uma questão, seja ela factual ou de direito, que não consta das conclusões, a não ser que se trate de matéria de conhecimento oficioso.  E essa identificação não pode ser efetuada apenas por uma simples e genérica remissão para o corpo das alegações, uma vez que ela não define, com certeza qual o âmbito do recurso interposto, não cumprindo os objetivos visados com a exigência da existência de conclusões nas alegações de recurso.

Resta saber se este incumprimento tem como consequência a rejeição imediata da impugnação da decisão sobre a matéria de facto ou se, ao invés, deve ser proferido um despacho que convide o Recorrente a aperfeiçoar as conclusões apresentadas.

O artigo 640.º do Código de Processo Civil, impõe a rejeição imediata da impugnação relativa à matéria de facto no recurso de apelação quando não se proceda às especificações que constam das três alíneas do seu n.º 1, onde se inclui, na sua alínea a), a indicação dos concretos pontos de facto  que se consideram incorretamente julgados.

Ora, quando esta omissão ocorre apenas na parte conclusiva do recurso, como sucede no caso presente, o que se verifica é um deficiente cumprimento do ónus de formular as conclusões do recurso, uma vez que a especificação dos concretos pontos de facto que se consideram incorretamente julgados foi feita no corpo das alegações, mas a sua referência nas conclusões foi deficiente, uma vez que o Recorrente limitou-se a fazer uma referência genérica a essa alegação, sem que aí tenha indicado os concretos pontos de facto impugnados.

Poder-se-ia, pois, pensar que a consequência para essa deficiência não deve ser a mesma que está prevista para a total falta de especificação daqueles pontos – a rejeição imediata da impugnação – devendo antes ser dirigido um convite à correção da redação das conclusões, nos termos do artigo 639.º, n.º 3, do Código de Processo Civil.

Não tem sido esse, no entanto, o mais recente entendimento da jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça [1], na leitura do disposto no artigo 639.º, n.º 3, do Código de Processo Civil, considerando-se que o disposto neste número não é aplicável à impugnação da decisão sobre a matéria de facto, reportando-se essa possibilidade às situações previstas no número anterior, ou seja quando o recurso versa sobre matéria de direito e não sobre matéria de facto [2].

Quando essa deficiência ocorre nos requisitos da impugnação da matéria de facto a sanção é aquela que está prevista no artigo 640.º, n.º 1, do Código de Processo Civil – rejeição imediata do recurso, sem hipóteses de correção.

Esta solução não infringe qualquer princípio constitucional, designadamente a exigência de um processo equitativo, uma vez que este modelo processual não impõe que em qualquer situação de omissão de cumprimento de determinados requisitos formais legalmente previstos não possa ser determinada a perda de um direito processual sem que seja concedida à parte uma oportunidade de suprir essa omissão, conforme tem sido entendimento reiterado do Tribunal Constitucional.

Na verdade, na definição da tramitação do processo civil, vigora uma ampla discricionariedade legislativa que permite ao legislador ordinário, por razões de conveniência, oportunidade e celeridade, fazer incidir ónus processuais sobre as partes e prever quais as cominações ou preclusões que resultam do seu incumprimento, desde que não sejam surpreendentes, sejam funcionalmente adequadas aos fins do processo e que as preclusões que decorram do seu incumprimento não se revelam totalmente desproporcionadas à gravidade e relevân­cia da falta.

Estamos perante um ónus de alegação previsto na lei, de fácil cumprimento, com a cominação de rejeição também expressamente prevista na lei, e em que a imposição de um convite à correção resultaria desrazoavelmente em mais um acréscimo de um prazo para impugnação da matéria de facto que já se encontra legalmente acrescido.

Por estas razões, improcede o recurso interposto, confirmando-se a decisão recorrida.

                                               *

Decisão

Pelo exposto, acorda-se em julgar improcedente o recurso interposto, confirmando-se o acórdão recorrido.

                                               *

Custas pela Recorrente.

                                               *

Notifique.

                                               *

Lisboa, 27 de abril de 2023

João Cura Mariano (Relator)

Fernando Baptista

Vieira e Cunha

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[1] V.g. os acórdãos de 25.05.2018, Proc. nº 4386/07 (Rel. Fernanda Isabel Pereira), de 09.02.2021, Proc. nº 16926/04 (Rel. Jorge Dias), de 18.02.2021, Proc. nº 20592/16 (Rel. Nuno Pinto de Oliveira), de 09.06.2021, Proc. nº 10.300/18 (Rel. Ricardo Costa), de 07.07.2021, Proc. nº 682/19 (Rel. Barateiro Martins), de 09.12.2021, Proc. nº 9296/18 (Rel. Rijo Ferreira), de 02.02.2022, Proc. 1786/17 (Rel. Fernando Samões), de 14.02.2023, Proc. nº 1680/19 (Rel. Jorge Dias), e de 14.02.2023, Proc. nº 82/20 (Rel. Pedro Lima Gonçalves).
[2] Essa parece ser também a opinião de ABRANTES GERALDES, Recursos em Processo Civil, 7.ª ed., Almedina, 2020, p. 639-640.