Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
475/23.0GBLLE.E1
Relator: RENATO BARROSO
Descritores: MEIOS DE PROVA
GRAVAÇÃO DE SOM
GRAVAÇÃO LÍCITA
Data do Acordão: 09/16/2025
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: I - Se as gravações de som trazidas aos autos pela assistente apenas foram efetuadas com vista a provarem os factos posteriormente narrados nas acusações (pública e particular), ou seja, com o propósito de obtenção da prova dos ilícitos de ameaça e de injúria que estavam a ser cometidos pelos arguidos, tais gravações são lícitas e valem como meio de prova.
II - A circunstância de as referidas gravações terem sido realizadas sem o consentimento dos visados, atento o desiderato que esteve subjacente à captação do som, não as torna ilícitas, e, por isso, inaproveitáveis, na medida em que se mostram justificadas ao abrigo do disposto nos artigos 31º, nº 1 al. b), e 34º, ambos do Código Penal e 79º, nº 2, do Código Civil.
III - A necessidade de obtenção de prova em relação à prática dos crimes de que estava a ser vítima, crimes que, em muitos casos, se revestem de prova difícil, e a circunstância de das ditas gravações não resultar qualquer sacrifício intolerável para os direitos dos arguidos, redundam na conclusão que a ilicitude de tais gravações se mostra excluída, podendo, nessa medida, as mesmas serem valoradas como prova.
Decisão Texto Integral:

ACORDAM OS JUÍZES, EM CONFERÊNCIA, NA SECÇÃO CRIMINAL DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE ÉVORA

1. RELATÓRIO

A – Decisão Recorrida

No processo comum singular nº 475/23.0GBLLE, do Tribunal Judicial da Comarca de Faro, Juízo Local Criminal de Loulé, Juiz 3, após terem sido submetidos a julgamento nos termos da acusação do MP, os arguidos A e R, foi decidido o seguinte (transcrição):

Julgam-se procedentes a acusação pública e a particular, e:
O arguido A é condenado, pela prática em concurso efectivo de – um crime de ameaça agravada, previsto nos artigos 153, n.º 1, e 155, n.º 1, al. a), do Código Penal, na pena parcelar de cento e dez dias de multa, – e de um crime de injúria, previsto no artigo 181, n.º 1, do Código Penal, na pena parcelar de sessenta dias de multa, e em cúmulo jurídico, cf. artigo 77, n.º 1, CP, é condenado na pena única de cento e trinta dias de multa, à taxa diária de seis euros.
A arguida R é condenada, pela prática em concurso efectivo de – um crime de ameaça, previsto nos artigos 153, n.º 1, do Código Penal, na pena parcelar de sessenta dias de multa, – e de um crime de injúria, previsto no artigo 181, n.º 1, do Código Penal, na pena parcelar de sessenta dias de multa, e em cúmulo jurídico, cf. artigo 77, n.º 1, CP, é condenado na pena única de oitenta dias de multa, à taxa diária de seis euros.
Julga-se parcialmente procedente o pedido cível, e são condenados a pagar à demandante S – o demandado A a quantia de novecentos euros (pela ameaça agravada) e quinhentos euros (pela injúria), no total de mil e quatrocentos euros, e a demandada R a quantia de quinhentos euros (pela ameaça) e quinhentos euros (injúria), no total de mil euros: todas acrescidas de juros de mora à taxa legal desde esta decisão até pagamento, e do resto são absolvidos.

B – Recurso

Inconformados com o assim decidido, recorreram os arguidos, em peça conjunta, tendo concluído as respectivas motivações da seguinte forma (transcrição):

I- Os Recorrentes entendem que existem na douta Sentença violações e vícios: Violação do art. 127.º do CPP por apreciação da prova contrariamente às regras da experiência; violação do princípio penal in dubio pro reo; violação do princípio da presunção de inocência; vícios dos art. 410, n.º 2 al. b) por contradição insanável na própria fundamentação entre si, e do art 410, n.º 2 al. c) por erro notório na apreciação da prova, ambos do CPP; e decorrente dos anteriores, ilicitude de gravações à revelia dos arguidos, nos termos do art. 199.º do CP e a sua utilização como prova pelo Tribunal com violação do art.167.º, n.º 1 do CPP; violação da medida concreta da pena por excesso (art.71 do CPP); e excesso de indemnização atribuída à demandante, face aos factos provados.
II- Perante a prova produzida e examinada em julgamento não podiam ser dados como provados, quer na sua totalidade, quer em trechos parciais mas essenciais dos mesmos, o Facto Provado 2 quanto ao que ali se escreve “e disseram à assistente”; o Facto Provado 3 da Acusação Pública; o Facto Provado 5 da Acusação Pública; o Facto Provado 6 da Acusação Pública; o Facto Provado 2 da Acusação Particular na expressão que ali se escreve: “quando conseguiram perceber que a assistente estava também no exterior residência”; o Facto Provado 4 da Acusação; o Facto Provado 7 da Acusação Particular.
III- A prova directa dos factos são as declarações dos arguidos, as da assistente e uma gravação em áudio: Inexiste outra prova directa dos factos.
IV- Os arguidos nas suas declarações (fls. 11 da Sentença), embora não podendo concretizar, não negaram ter proferido aquelas expressões; mas negaram que fossem elas dirigidas à Assistente, pois que as proferiram dentro da sua habitação, nunca chegaram a visualizar a Assistente, nem nunca proferiram o nome dela; e até porque junta à sua habitação existem mais vizinhos.
V- A própria assistente isso confirma nas suas declarações a fls 12 e 13 da Sentença.
VI- Perante esta prova o Tribunal decidiu erradamente ao condenar os arguidos, como se as expressões tivessem sido afinal dirigidas, por eles, à assistente; e só porque a assistente disse que se convenceu que as expressões eram para ela, apesar de não ter visto os arguidos, que também nunca a viram a ela nem a nomearam.
VII- Esta afirmação feita pela assistente, e com esta segurança e certeza que ela pretende dar-lhe, assenta apenas e tão só, na apreciação subjectiva e autoconvencimento ainda mais subjectivo de que era a ela, exactamente a ela que as expressões estavam a ser dirigidas pelos arguidos.
VIII- Resulta das regras da experiência, que no padrão normal das situações de injúria, o ofensor confronta a ofendida, dirigindo-se-lhe pessoalmente (daí a injúria) o que não quadra com a situação apreciada nestes autos.
IX- Não foi feita qualquer prova, nem a Sentença disso dá conta, que os arguidos, contrariamente ao que declararam, sabiam que a assistente estava ali a escutá-los, e aliás a gravar as expressões; e que foi a ela, concretamente a ela, que as expressões foram dirigidas. E nada na fundamentação pode servir para se retirar qualquer certeza quanto a isso; aliás o que resulta da fundamentação é que nem a assistente viu os arguidos, nem os arguidos a viram a ela nem nunca a referiram.
X- Os factos acima indicados como dados por provados sem fundamentação que os sustente, são exactamente aqueles em que o Tribunal no seu texto escreve que os arguidos disseram à assistente, pois que nunca se confrontaram uns e outros; a conclusão tirada sob o Facto 2 da Acusação Particular, de que como diz o texto, o teriam feito “quando conseguiram perceber que a assistente estava também na exterior residência”, sem que na fundamentação conste como é que isso conseguiram.
XI- Com as provas disponíveis e ainda também com a redacção do próprio texto da Sentença, resulta evidente e com todo o respeito por opinião diversa, que aquelas conclusões violam o art. 127.º do CPP, pois que ainda que livre a entidade julgadora na apreciação que faz da prova, não a pode fazer discricionariamente, nem em sentido contrário às regras da experiência, como aqui foi feito,
XII- Pelo que simultaneamente também existe contradição insanável da fundamentação entre si, uma vez que aqueles factos provados não se compaginam ou se sustentam na restante fundamentação que afinal acolhe factos dos quais aqueles dados por provados não podiam resultar. Ou seja ocorre ainda o vício do artigo 410,º., n.º 2 al. b) do CPP.
XIII- Mesmo que o Tribunal perante as duas versões contraditórias, tivesse que optar por uma ou por outra, não o poderia fazer sem ter uma certeza segura de que a versão da assistente e a sua convicção subjectiva eram indesmentíveis.
XIV- No texto da decisão não encontramos bases de fundamentação que nos possa garantir a segurança daquela certeza quanto à convicção afirmada pela assistente; pelo que esta dúvida que necessariamente tem que se instalar entre o que diz a assistente e o que dizem os arguidos, deve ser declarada e valorizada favoravelmente a estes, com base no princípio in dúbio pro reo, princípio que se mostra assim também violado.
XV- Não havendo contacto visual, nem sabendo os arguidos que a assistente ali se encontrava, e havendo ainda outros vizinhos para além da assistente a morar perto da residência dos arguidos, o Tribunal devia ter decidido pela absolvição por existir uma dúvida razoável, e aplicar assim o princípio do in dubio pro reo.
XVI- Não o fazendo, o Tribunal “a quo” violou o art. 127.º do CPP e o in dúbio pró reo; e asim também o principio da presunção de inocência.
XVII- E pelas mesmas razões, incorre nos vícios do artigo 410.º, n.º 2 alínea b) e al. c) do CPP, que constando do texto da decisão e dele resultando, também se invocam como fundamento para o presente recurso.
XVIII- Vindo o presente recurso ser procedente com base nas violações e vícios alegados, necessariamente resulta que as gravações foram feitas apenas e só com base num convencimento subjectivo da assistente de que aquelas frases lhe eram dirigidas, o que não pode resultar provado. Desse modo, a assistente não grava aquelas expressões para provar uma ofensa feita a si própria, mas apenas com base num juízo incorrecto que formulou e pelo qual se deixou induzir.
XIX- Desse modo, mesmo que se considere que por estar a agir em erro, quer quanto aos factos quer quanto à ilicitude, a gravação feita pela assistente poderá não cair na alçada do artigo 192.º do CPP, o que é certo é que não poderá tal gravação ser utilizada como foi, isto é como prova, uma vez que viola o art. 167.º, n.º 1 do CPP, devendo considerar-se não admissível, e até considerar-se nula, nos termos dos artigos e 125.º e 126.º do mesmo CPP.
XX- Mesmo que porventura se considerasse que haveria, no caso concreto, algum dos aludidos crimes, pelo menos os crimes de injúrias teriam sempre que ser considerados inexistentes, pois que não houve qualquer imputação directa e na presença da assistente que lhe tivesse sido feita pelos arguidos, nunca foi referida a assistente como a pessoa a quem as expressões se dirigiam, pelo que nunca a condenação por esse crime poderia existir.
XXI- E ainda que se pudesse sustentar (o que não se admite) que teria ocorrido o crime de ameaças a pena é exagerada devendo desde logo, ser reduzida para uma pena menor, que nunca deveria ultrapassar metade da que foi fixada; pelo que foram violados os artigos 181.º e 71.º ambos do CP.
XXII- Pelo mesmo tipo de razões não deve haver lugar a qualquer indemnização, mas mesmo que houvesse, sempre a mesma teria que ser em montante inferior aquele que foi estipulado, nunca superior a 250,00€ para o arguido e a 200,00 para a arguida.
Nestes termos e nos melhores de direito, deve ser dado provimento ao presente recurso e, em consequência, serem os arguidos absolvidos dos crimes de que vem condenando bem co o do Pedido civil.

C – Resposta ao Recurso

O MP, junto do tribunal recorrido, respondeu ao recurso, com as seguintes conclusões (transcrição):

I. Não se descortina ter ocorrido “erro de julgamento ou erro notório na apreciação da prova” como não se constata a existência de qualquer outro dos vícios consagrados no art.º 410º do Código de Processo Penal.
II. O juiz do tribunal “a quo” formulou a sua convicção de acordo com a prova produzida em julgamento, fundamentando a sua decisão de acordo com as regras da experiência comum e numa sequência lógica, pelo que não violou o princípio da livre apreciação da prova.
III. A prova produzida não deixou no espírito do julgador qualquer tipo de dúvida quanto à imputação dos factos constantes da acusação ao recorrente, razão pela qual não foram violados os princípios da presunção de inocência e do “in dubio pro reo”.
IV. Do texto da decisão recorrida, conjugada com a sua motivação e com as regras da experiência comum não resulta que devesse ter sido outra a decisão tomada pelo tribunal recorrido.
V. Por fim e quanto à medida concreta da pena e ao montante da indemnização cível, também aqui consideramos não assistir razão aos recorrentes, tendo face aos factos dados como provados por um lado e o previsto na lei por outro, não poderia o tribunal a quo tomar outra decisão.
Termos em que, não deve o recurso interposto pelo recorrente merecer provimento, mantendo-se integralmente a decisão recorrida,

D – Tramitação subsequente
Aqui recebidos, foram os autos com vista ao Exmº Procurador-Geral Adjunto, que se pronunciou pela improcedência do recurso.
Observado o disposto no Artº 417 nº2 do CPP, não foi apresentada resposta.
Efectuado o exame preliminar, determinou-se que o recurso fosse julgado em conferência.
Colhidos os vistos legais e tendo o processo ido à conferência, cumpre apreciar e decidir.

2. FUNDAMENTAÇÃO

A – Objecto do recurso

De acordo com o disposto no Artº 412 do CPP e com a Jurisprudência fixada pelo Acórdão do Plenário da Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça n.º 7/95, de 19/10/95, publicado no D.R. I-A de 28/12/95 (neste sentido, que constitui jurisprudência dominante, podem consultar-se, entre outros, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 12 de Setembro de 2007, proferido no processo n.º 07P2583, acessível em HYPERLINK "http://www.dgsi.pt/" HYPERLINK "http://www.dgsi.pt/"www.dgsi.pt, que se indica pela exposição da evolução legislativa, doutrinária e jurisprudencial nesta matéria), o objecto do recurso define-se pelas conclusões que os recorrentes extraíram da respectiva motivação, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso.
Na verdade e apesar de os recorrentes delimitarem, com as conclusões que retiram das suas motivações de recurso, o âmbito do conhecimento do tribunal ad quem, este, contudo, como se afirma no citado aresto de fixação de jurisprudência, deve apreciar oficiosamente da eventual existência dos vícios previstos no nº2 do Artº 410 do CPP, mesmo que o recurso se atenha a questões de direito.
As possibilidades de conhecimento oficioso, por parte deste Tribunal da Relação, decorrem, assim, da necessidade de indagação da verificação de algum dos vícios da decisão recorrida, previstos no nº 2 do Artº 410 do CPP, ou de alguma das causas de nulidade dessa decisão, consagradas no nº1 do Artº 379 do mesmo diploma legal.
O objecto do recurso cinge-se às conclusões dos recorrentes, das quais, se podem extrair e agrupar, de uma forma lógica e sistemática, as seguintes questões:

1) Nulidade da prova
2) Impugnação factual
3) Alteração da medida da pena
x
Ainda que os recorrentes também solicitem a diminuição do valor indemnizatório em que foram condenados, importa dizer, como questão prévia, que, nesse domínio, o recurso não pode ser apreciado, por força do disposto no Artº 400 nº2 do CPP.
Com efeito, a assistente formulou pedido de indemnização civil contra os arguidos, pela condenação destes, a título de danos patrimoniais e não patrimoniais, nas quantias totais de € 2.102,00, em relação ao arguido, e de € 1.602,00, no que toca à arguida.
Nesta sede, a decisão recorrida condenou os arguidos a pagar à assistente, as importâncias de € 1.400,00 e € 1.000,00, respectivamente, para o arguido e para a arguida.
Diz o Artº 400 nº2 do CPP, que o recurso da parte da sentença relativa à indemnização civil só é admissível desde que o valor do pedido seja superior à alçada do tribunal de que se recorre e a decisão impugnada seja desfavorável para o recorrente em valor superior a metade dessa alçada.
Ora, o valor da alçada do tribunal recorrido, de acordo com o Artº 44 da Lei 62/03 de 20/08, é de € 5.000,00.
Assim sendo, há que concluir que tendo o pedido de indemnização civil formulado pela recorrente se cifrado em € 2.102,00, e € 1.602,00, não atingindo, por isso, na globalidade, o valor da alçada do tribunal de 1ª instância, não se mostra verificada, desde logo, a 1ª parte do nº2 do Artº 400 do CPP, pelo que o recurso dos recorrentes, nesta parte, não pode ser conhecido, devendo ser rejeitado, nos termos combinados dos Artsº 420 nº1 al. b) e 414 nº2, ambos do CPP.
Também a 2ª parte daquele normativo não se mostra preenchida, já que o montante das condenações (€ 1.400,00 e € 1.000,00) não é superior a metade daquela alçada.
Por outro lado, nos termos do nº3 do Artº 414 do CPP, a decisão que admite o recurso não vincula o tribunal superior.
Assim sendo, não se conhecerá do presente recurso, no que respeita à parte relativa ao pedido de indemnização civil.
x
Definidas as questões a tratar, importa considerar o que se mostra fixado, em termos factuais, pela instância recorrida.
Aí, foi dado como provado e não provado, o seguinte (transcrição):

FACTOS PROVADOS
I, Acusação pública:
1, Os arguidos A e R são vizinhos da assistente S.
2, No dia 20 de Abril de 2023, pelas 17 h 10 min, a assistente encontrava-se no interior da sua residência, sita na (….), em Loulé, quando os arguidos surgiram no exterior e disseram à assistente as seguintes expressões, entre outras e em tom sério – arguido A: “vou mata-la”, “vou fazer-lhe uma espera e quando a apanhar vou encosta-la à parede”, “corto-te aos bocados”, “Hás-de dar mais cenouras ao cão, que eu enfio-te é a cenoura pelo cu acima”; “um dia vou ter de dar com uma martelada nos cornos da velha que a fodo”; “tu devias era morrer”; “faço-lhe o que fiz ao outro, encostei-o contra a parede a ti faço-te o mesmo, um dia quando fores ali a entrar eu estou à tua espera”; “vou-te encostar contra a parede a ti ou ao teu marido” – arguida R: “”há-de haver um dia que te vou partir esses cornos antes de te ires daqui embora”; “um dia faço-vos uma espera”.
3, Como consequência directa e necessária do comportamento dos arguidos, a assistente sentiu medo e inquietação e temeu pela sua integridade física e pela sua vida, sentindo a sua liberdade de determinação prejudicada.
4, Sabiam os arguidos que ameaçavam a assistente, o arguido com a prática de crimes contra a integridade física e contra a vida, e a arguida com a prática de crimes contra a integridade física.
5, Os arguidos actuaram com intenção concretizada de fazer a assistente sentir medo e inquietação, temer pela sua integridade física e pela sua vida, e de prejudicar a sua liberdade de determinação, o que conseguiram.
6, Em tudo acima descrito, agiram os arguidos de forma livre, deliberada e consciente, bem sabendo serem as suas condutas censuráveis, proibidas e punidas por lei penal.
II, Acusação particular:
1, A assistente, juntamente com o seu esposo, J, são vizinhos dos arguidos.
2, No dia 20 de Abril de 2023, pelas 17 h, a assistente S encontrava-se no interior da sua residência, sita na (…..), em Loulé, quando os arguidos surgiram na varanda da residência destes e, quando conseguiram perceber que a assistente estava também no exterior residência, para que esta os conseguisse ouvir, proferiram em tom sério, ameaçador e injurioso as seguintes expressões:
Designadamente,
A arguida Rosalina Ferreira: “puta”, “Não penses que ficas a rir daqui a meia dúzia de dias vais com o caralho às costas, sais daqui desta casa… cabra”, “venenosa”, “mando-te uma coisa para aí que nem sabes”, “se tivesses que fazer filha da puta”, “Há de haver um dia que hei de partir esses cornos todos antes de ires embora”, “bebe o teu próprio veneno, que és uma víbora, infeliz, tens mesmo cara de infeliz…mesmo cara de algarvia infeliz”, alguém te faz mal sua vaca… És uma vaca de merda”, ”És uma merda isso é o que tu és ”, “alguém te faz mal sua vaca… És uma vaca de merda”, ”És uma merda isso é o que tu és ”, “ordinária”;
E o Arguido A: “hás de dar mais cenouras ao cão, que eu enfio-te as cenouras é pelo cú acima…hás de dar mais cenouras ao cão, que eu enfio-te é uma cenoura pelo cú acima… venenosa… assassina”, “faz isso aos teus… mata os teus cães cabrona, puta cínica”, “Não me conhecesses minimamente…o último que tentou passou um mau bocado e tu passas igual vaca de merda”, “devias morrer puta de merda”, “o que estás a fazer aos animais devia fazer-te a ti… És uma assassina”, “puta do caralho”, “Hás de ter vindo dos confins do diabo”, “um dia que fores a entrar ali estou à tua espera…vou-te encostar contra a parede a ti ou ao teu marido”, “Se me acontecer alguma coisa ao cão nem que eu gaste dinheiro…mas se eu descobrir estás feita”.
3, Tais expressões foram proferidas pelos arguidos em voz alta e de forma a serem escutadas por quem quer que se encontrasse nas imediações, como efectivamente sucedeu.
4, Com tais expressões quiseram os arguidos ofender gravemente a honra e consideração social devida à assistente.
5, O que conseguiram.
6, Deixando a assistente muito nervosa e abalada.
7, Bem sabiam os arguidos que a sua conduta era proibida por lei.
8, No entanto, não se coibiram de levá-la a cabo de forma deliberada, livre e consciente.
III, Pedido cível:
-10, A demandante S dá aqui por inteiramente reproduzida a matéria fáctica constante da acusação particular supradeduzida e ainda os factos da douta acusação pública contra os arguidos, para todos os efeitos legais.
14, No local, durante e após a ocorrência dos factos expostos, a demandante sentiu-se violentada na sua consideração, bom-nome e honra, uma vez que as expressões contra ela foram proferidas na varanda da residência dos demandados eram ouvidas por quem quer que estivesse em casa da demandante ou nas imediações das residências.
15, Desde esse dia e nos seguintes teve a demandante dificuldade em concentrar-se no seu trabalho e em conciliar o sono, dado o abalo nervoso que sentiu por se ver ameaçada e injuriada pelos demandados, os quais são seus vizinhos, sendo esta obrigada a vê-los todos os dias.
16, A demandante é mulher bem formada, respeitadora e respeitada, pelo que toda esta situação mexeu com o seu orgulho, sentindo-se humilhada e envergonhada.
17, Os demandados atingiram a honra, consideração, bom-nome e brio pessoal da demandante na varanda da sua residência com o propósito de rebaixar e ultrajar a demandante.
18, Afectando desse modo até à presente data, a sua vida familiar, pessoal e profissional.
19, Pois desde esse dia houve dias que a demandante nem teve coragem de sair de casa, tendo inclusive deixado de ir para a varanda da sua residência, onde no dia 20 de Março de 2023 ouviu as supradescritas ameaças e injúrias.
21, Os demandados agiram voluntária e conscientemente ofendendo-a na sua honra e consideração.
-24, No dia 20 de Março de 2023, pelas 17 h, a demandante foi vítima do crime de ameaça agravada por parte do demandado e crime de ameaça por parte da demandada.
25, Como consequência directa dos comportamentos dos demandados, a demandante sentiu medo e inquietação e temeu pela sua integridade física e pela sua vida, sentindo a sua liberdade limitada ao interior da sua residência, pois passou desse esse dia a ter receio de sair sem antes verificar se os vizinhos estavam na rua.
26, A demandante, após as expressões proferidas pelos demandados, sentiu-se ameaçada e ofendida pelo tom sério e ameaçador das palavras proferidas pelos demandados, conforme é possível verificar através das gravações juntas ao presente processo.
27, Os demandados pretenderam fazer medo e inquietação à demandante.
28, Tendo esta passado a sentir medo temendo pela sua integridade física e mesmo pela sua vida.
29, A demandante, além do medo, deixou de sair de casa sem olhar ao seu redor com receio de algum dos demandados efectivar as ameaças proferidas.
IV
1, O arguido carece de antecedentes criminais.
2, A arguida carece de antecedentes criminais.
3, O arguido, de 69 anos, casado com a arguida, recebe 1800 euros mensais de reforma, frequentou o curso industrial, que deixou por acabar no último ano, pagam renda de casa de 850 euros mensais, possui carro, que paga com 318 euros por mês, tem filhas de 43 e 42, independentes.
4, A arguida, de 74 anos, casada com o arguido, recebe por mês 1100 euros de reforma, pagam de renda de casa 850 euros mensais, possui carro, tem as duas filhas maiores.
5, A demandante, de 66 anos, com o 12.º ano de escolaridade, recebe de reforma trezentos e tal euros por mês, possui carro, é casada, o marido é reformado, mas trabalha, pagam 800 euros de renda mensal de casa, têm filhos de 44 e 35 anos, independentes.

NÃO PROVADOS
Relevante para a decisão da causa nenhum outro facto se provou.

B – Apreciação

Estabelecida a base factual pela sentença em análise, importa apreciar da bondade do peticionado pelos recorrentes.

B.1. Nulidade da prova

Alegam os recorrentes, nos termos dos Artsº 125 e 126, ambos do CPP, a nulidade da prova utilizada pelo tribunal para fundar a sua motivação factual, no que toca às gravações de som efectuadas pela assistente, na medida em não foram feitas para provar uma ofensa que lhe estava a ser dirigida, mas apenas por uma convicção errónea que as frases em causa lhe eram dirigidas, pelo que as ditas gravações não podem ser admitidas, nos termos do Artº 167 nº1 do CPP.
Sobre esta matéria, já o tribunal recorrido se pronunciou na sentença sindicada, nos seguintes termos (transcrição):

A defesa dos arguidos invocou, em alegações, a ilicitude da gravação de som feita pela assistente, constante da caneta electrónica junta aos autos, por realizada sem consentimento dos arguidos.
Ora, como se tem ponderando em casos análogos deste juízo, sobre os registos de voz e imagem feitos por particulares dispõe o artigo 167, n.º 1, do Código de Processo Penal, que «As reproduções fotográficas, cinematográficas, fonográficas ou por meio de processo electrónico e, de um modo geral, quaisquer reproduções mecânicas só valem como prova dos factos ou coisas reproduzidas se não forem ilícitas, nos termos da lei penal». Donde resulta que a validade deste tipo de prova depende da sua não ilicitude perante a lei penal substantiva, cf. acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 29.03.2016, Proc. n.º 558/13.4GBLLE.E1, www.dgsi.pt.
Convoca-se outrossim (visto o crime de devassa da vida privada previsto no artigo 192 do Código Penal exigir, como especial elemento subjectivo do tipo de ilícito, a intenção de devassar a vida privada das pessoas, designadamente a intimidade da vida familiar ou sexual, o que não é aqui o caso) o crime de gravações e fotografias ilícitas previsto no artigo 199 do Código Penal, que tutela os direitos à palavra e à imagem: «1 - Quem sem consentimento: a) Gravar palavras proferidas por outra pessoa e não destinadas ao público, mesmo que lhe sejam dirigidas; ou b) Utilizar ou permitir que se utilizem as gravações referidas na alínea anterior, mesmo que licitamente produzidas; é punido com pena de prisão até 1 ano ou com pena de multa até 240 dias. 2 - Na mesma pena incorre quem, contra vontade: a) Fotografar ou filmar outra pessoa, mesmo em eventos em que tenha legitimamente participado; ou b) Utilizar ou permitir que se utilizem fotografias ou filmes referidos na alínea anterior, mesmo que licitamente obtidos». Segundo este preceito, «só é típica a conduta do agente contra a vontade do titular do direito à imagem, contrariedade que se presume no caso concreto tanto em relação à captação das imagens do arguido em termos que o tornam facilmente reconhecível, como à utilização do filme, dado o mau relacionamento entre ambos que o processo espelha e, em todo o caso, a concreta finalidade da obtenção das imagens, ou seja, a dedução de acusação e eventual condenação do arguido», cf. Acórdão da Relação de Évora de 29.03.2016, Proc. n.º 558/13.4GBLLE.E1, www.dgsi.pt.
Mas aqueles direitos à palavra e à imagem «não são, nem devem ser sacralizados como núcleo essenciais da vivência pessoal que se sobreponham a todo e qualquer tipo de ponderação de outros valores» (Santos Cabral, Código de Processo Penal Comentado, Almedina, 2014, p. 704). Neste sentido, «É criminalmente atípica a obtenção de fotografias ou de filmagens, mesmo sem consentimento do visado, sempre que exista justa causa nesse procedimento, designadamente quando as mesmas estejam enquadradas em lugares públicos, visem a realização de interesses públicos ou hajam ocorrido publicamente, constituindo único limite a esta justa causa a inadmissibilidade de atentados intoleráveis à liberdade, dignidade e integridade moral do visado», cf. acórdão do STJ de 28.09.2011, Proc. n.º 22/09.6YGLSB.S2, www.dgsi.pt. Portanto, a ilicitude criminal da conduta de quem realiza registos de voz e/ou imagem sem o consentimento ou contra a vontade do visado pode ser afastada pela verificação de causas de justificação, e assim ser admissível a prova recolhida por esse meio, nomeadamente «consistente numa legítima defesa - obter testemunho do crime praticado pelo arguido para o enfrentar e obstar a que prossiga na agressão - ou num direito de necessidade (probatório) - agir para obter prova para o perseguir criminalmente» nos termos do artigo 34 do Código Penal, cf. Acórdão da Relação de Évora de 25.11.2014, Proc. n.º 187/10.4ZRLSB.E1, www.dgsi.pt, ou em «exigências de justiça», cf. artigo 79, n.º 2, do Código Civil, por força do artigo 31, n.º 1, do Código Penal, que prevê que «Não é necessário o consentimento da pessoa retratada quando assim o justifiquem (…) exigências de polícia ou de justiça»), «devendo tratar-se de situação em que a utilização da imagem se mostre necessária ou mesmo indispensável à afirmação da justiça buscada, e num quadro em que a tutela da imagem do visado se encontre numa situação de menor valia intrínseca, ao ponto de a sua ofensa não se mostrar desproporcionada nem ofensiva (ou intoleravelmente ofensiva) do valor intrínseco da pessoa que justifica aquela tutela», cf. Acórdão da Relação de Évora de 24.04.2012, Proc. n.º 932/10.8PAOLH.E1, www.dgsi.pt. Enquadre-se a questão no âmbito do exercício do direito à prova enquadrável no artigo 31, n.º 1, al. b), do Código Penal, ou nas citadas exigências de justiça, importa convocar os critérios de adequação, necessidade e proporcionalidade do artigo 18, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa, de modo que «a reprodução mecânica deve ser adequada para salvaguardar o interesse constitucional na descoberta do crime e punição do agente necessária porque não existem outras provas ou são insuficientes para um cabal esclarecimento dos factos; proporcional sopesando os valores constitucionais conflituantes, como pro exemplo o interesse público e da vítima na descoberta do crime, eficiência penal, segurança, pacificação social, justiça, garantias de defesa do arguido», cf. Tiago Caiado Milheiro, Comentário Judiciário do Código de Processo Penal, Tomo II, Almedina, 2019, p. 541.
Já sob o prisma do direito de necessidade, cf. artigo 34 do Código Penal, já se considerou que «O registo e utilização da imagem do arguido a riscar os automóveis da assistente são adequados a afastar o perigo que permanece atual enquanto aqueles comportamentos se repetem ou podem repetir, sendo certo que os factos relativos a cada um dos crimes de dano ocorreram com três meses de intervalo entre si (al. a) do art. 34º C. penal) e que não foi a assistente a criar a situação de perigo representada pela realização de riscos nos automóveis al. b) do art. 34º do C.Penal). Por outro lado, no caso presente e noutros semelhantes - em que o perigo inicial contra o bem da assistente provém de quem vem a sofrer ação típica contra o direito à imagem – o interesse da assistente a salvaguardar é superior ao interesse do arguido sacrificado, sendo razoável impor-lhe o sacrifício daquele mesmo interesse, não obstante a natureza patrimonial do interesse salvaguardado face à natureza pessoal do direito à imagem sacrificado, atentas as razões adiantadas por F. Dias a propósito do critério de aferição da superioridade do interesse salvaguardado em sede de direito de necessidade, ao justificar a desnecessidade/inadequação de figuras como o chamado direito de necessidade defensivo, nestas constelações de casos. (…) Interesse prevalecente que, numa apreciação global de casos como o presente, não pode deixar de considerar-se ser o interesse da vítima inicial de atentado contra a sua pessoa ou património, que só coloca em causa o direito à imagem do responsável pela dita agressão inicial para pôr termo ao perigo de verificação ou continuação dessa mesma agressão, nomeadamente através da perseguição penal respetiva. Na verdade, estando em causa mera reação do agente (a assistente) contra um interesse jurídico (o direito à imagem) do agressor (o arguido dos crimes de dano), nada obstará ao sacrifício do direito à imagem do arguido, que não se encontra associado a outras dimensões da vida privada, como meio necessário para proteger o património da assistente posto em perigo pela conduta do autor do dano, sendo certo que em casos como o presente pode dizer-se mesmo que o interesse sacrificado (o direito à imagem) constitui um interesse dificilmente digno de proteção penal (citado de Comentário Conimbricense I, 2ª ed. p. 1224) – cfr art. 34º do C.Penal. A não ser assim, acabaria por aceitar-se a condenação por crime contra o direito à imagem de quem se limita a documentar através de filme ou fotografia o facto ilícito de que é vítima, o que representaria uma inversão dos valores e interesses penalmente tutelados, se não mesmo a subversão, em alguma medida, do regime dos direitos fundamentais. Tanto mais que para além do interesse em proteger a esfera pessoal ou patrimonial da assistente de atentados ilícitos, estará igualmente em causa projeção do direito fundamental de acesso dos particulares ao direito e a tutela jurisdicional efetiva que a CRP reconhece no art. 20º da CRP, pois as mais das vezes a fotografia ou filme são determinantes na prova do ilícito típico», cf. acórdão da Relação de Évora de 29.03.2016, Proc. n.º 558/13.4GBLLE.E1, www.dgsi.pt.
Essencial é que os bens jurídicos da imagem e da palavra não estejam a ser instrumentalizados na ofensa de outros valores tutelados pelo direito penal, pois que o comportamento ilícito do titular daqueles direitos no seu uso determina a perda da dignidade penal da respectiva ofensa, cf. Santos Cabral, Código de Processo Penal Comentado, Almedina, 2014, p. 704 e 705, e acórdão da Relaçãoi do Porto de 27.01.2016, Proc. n.º 1548/12.0TDPRT.P1, seguido pelo acórdão da Relação de Lisboa de 21.03.2019, Proc. n.º 1784/17.2T9AMD.L1-9, www.dgsi.pt.
Ora, no caso sujeito a gravação áudio carreada para os autos pela assistente e ofendida documenta parte dos factos narrados nas acusações. E é claro e resulta do depoimento desta em julgamento que gravou o áudio com o propósito de obter prova contra os arguidos quando estes praticavam os factos, e obviamente sem o consentimento destes como referido pela próprio em julgamento.
Mas, perante os factos e expressões que ficaram registados, entende-se que tal gravação é justificada: quer pelo exercício do direito à prova, enquadrável no artigo 31.º, n.º 1, al. b), do Código Penal; quer por exigências de justiça, nos termos do artigo 79, n.º 2, do Código Civil, por força do artigo 31, n.º 1, do Código Penal; quer com base num direito de necessidade probatório, nos termos do artigo 34, também do Código Penal.
Com efeito, nas duas primeiras hipóteses as gravações em causa ultrapassam o teste da proporcionalidade, por serem: adequadas a salvaguardar o interesse constitucional na descoberta do crime e punição dos arguidos; necessárias porque a única outra prova existente seriam as declarações sobretudo da própria ofendida, mas também de seu filho e seu marido, que são desde logo interessadas para um cabal esclarecimento dos factos, bem se sabendo que a prova de crime praticados em residências é às vezes difícil; e proporcional porquanto o direito à palavra dos arguidos não sofreu intolerável ou desproporcionada ofensa perante os interesses público e da vítima na prova do crime, num quadro, aliás, em que aqueles direitos se encontram numa situação de menor valia intrínseca.
E também segundo o direito de necessidade (probatório) previsto no artigo 34 do Código Penal se alcança a mesma conclusão, visto que: as gravações são adequadas a afastar o perigo que permanecia actual de factos idênticos serem repetidos pelos arguidos (pois as gravação intencional só se justifica por a ofendida saber que tal iria acontecer e ser recorrente); a situação foi criada pelos arguidos; o interesse da ofendida a salvaguardar é, como se disse, superior ao interesse dos arguidos, sendo razoável impor-lhes o sacrifício daquele mesmo interesse que só põe em causa o direito à palavra com vista à perseguição penal.
Finalmente, como já se ponderou e repete, «A não ser assim, acabaria por aceitar-se a condenação por crime contra o direito à imagem de quem se limita a documentar através de filme ou fotografia o facto ilícito de que é vítima, o que representaria uma inversão dos valores e interesses penalmente tutelados, senão mesmo a subversão, em alguma medida, do regime dos direitos fundamentais».
Razões por onde se conclui pela exclusão da ilicitude da gravação, e portanto pela admissibilidade da sua valoração.

Pouco mais há a acrescentar, atenta a justeza do decidido.
Como bem nota a decisão recorrida, as gravações trazidas aos autos pela assistente apenas foram efectuadas com vista a provarem os factos posteriormente narrados nas acusações, pública e particular, o mesmo é dizer, com o propósito, declarado, de obtenção da prova dos ilícitos de ameaça e injúria que estavam a ser cometidos pelos arguidos.
Evidentemente, que as mesmas foram realizadas sem o consentimento dos visados, mas tal circunstância, atendo o desiderato que esteve subjacente à captação do som, não as torna ilícitas e, por isso, inaproveitáveis, na medida em que se mostram justificadas ao abrigo do disposto nos Artsº 31 nº1 al. b) e 34, ambos do C. Penal e 79 nº2 do C. Civil.
A necessidade de obtenção de prova em relação à prática de crimes de que estava a ser vítima e que, em muitos casos, se reveste de prova difícil, e a circunstância de das ditas gravações não resultar qualquer sacrifício intolerável para com os direitos dos arguidos, redundam na conclusão evidente que a ilicitude de tais gravações se mostra excluída, podendo, nessa medida, as mesmas serem valoradas como prova.
Falece por isso o recurso nesta parte.

B.2. Impugnação factual

Entendem os recorrentes que o tribunal recorrido errou ao ter dado como provados os factos que permitiram a sua condenação pelos crimes de ameaça e injúria que lhes eram imputados, na medida em que, em seu entender, a prova produzida em Audiência não permitia tal assunção probatória, tendo o tribunal, nessa apreciação, violado o princípio in dubio pro reo, para além de ter incorrido nos vícios de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada e do erro notório na apreciação da prova.
Preceitua o Artº 410 nº2, do CPP, que, “mesmo nos casos em que a lei restrinja a cognição do tribunal de recurso a matéria de direito, o recurso pode ter como fundamentos, desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum:
a) - A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada;
b) - A contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão;
c) - Erro notório na apreciação da prova”.
Por outro lado, dispõe o seu nº3, que, “o recurso pode ainda ter como fundamento, mesmo que a lei restrinja a cognição do tribunal de recurso a matéria de direito, a inobservância de requisito cominado sob pena de nulidade que não deva considerar-se sanada”.
Como ressalta do nº2 do citado Artº410, a norma reporta-se aos vícios intrínsecos da decisão, como peça autónoma, verificáveis pelo simples exame do seu texto ou por esse exame conjugado com as regras da experiência comum, sendo por isso evidente que os ditos vícios têm de resultar do acórdão recorrido considerado na sua globalidade, por si só, ou conjugado com as regras de experiência comum, sem possibilidade de recurso a quaisquer elementos que ao mesmo sejam estranhos, ainda que constem dos autos.
Daí que não possa invocar-se a existência de qualquer um dos vícios enumerados nas alíneas do referido nº2 apelando para elementos não constantes da sentença, como seja, por exemplo, um documento junto aos autos, ou um depoimento prestado em audiência, ainda que os depoimentos se achem documentados como é o caso dos autos.
São vícios que não podem ser confundidos - apesar de assim suceder com frequência - com o erro de julgamento, que resulta de uma errada apreciação da prova produzida ou da insuficiência desta para fundamentar a decisão recorrida.
Como referem Leal Henriques e Simas Santos, in Recursos em Processo Penal, de acordo com o Código de Processo Penal revisto, 7ªedição, 2008, Rei dos Livros, pág.75, por contradição insanável da fundamentação ou entre os fundamentos e a decisão, entende-se a incompatibilidade, não ultrapassável através da própria decisão recorrida, entre os factos provados, entre estes e os não provados ou entre a fundamentação probatória e a decisão.
Ensina amplamente a jurisprudência, que tal só ocorrerá, quando, analisada a matéria de facto, se chegue a conclusões antagónicas entre si e que não podem ser ultrapassadas, ou seja, quando se dá por provado e como não provado o mesmo facto, quando se afirma e se nega a mesma coisa, ou quando, se dão como provados factos contraditórios entre si, ou a contradição se estabelece entre a fundamentação probatória da matéria de facto, ou ainda, entre a fundamentação e a decisão.
Com o devido respeito, mal se entende a alegação dos recorrentes de que a decisão recorrida padece deste vício, na medida em que nenhuma oposição existe entre os factos provados e os não provados, entre aqueles entre si, no seio da fundamentação probatória, ou entre esta e a decisão.
Relativamente ao invocado erro notório na apreciação da prova, ensinam Simas Santos e Leal-Henriques, em Recursos Penais, Rei dos Livros, 8ª Ed., pág. 80, que é uma “falha grosseira e ostensiva na análise da prova, perceptível para o cidadão comum, denunciadora de que se deram provados factos inconciliáveis entre si, isto é, que o que se teve como provado ou não provado está em desconformidade com o que realmente se provou ou não provou, seja, que foram provados factos incompatíveis entre si ou as conclusões são ilógicas ou inaceitáveis ou que se tirou de um facto dado como provado uma conclusão logicamente inaceitável.
Ou, dito de outro modo, há um tal erro quando um homem médio, perante o que consta do texto da decisão recorrida, por si ou conjugada com o senso comum, facilmente se dá conta de que o tribunal violou as regras da experiência ou se baseou em juízos ilógicos, arbitrários ou mesmo contraditórios ou se desrespeitaram regras sobre o valor da prova vinculada ou das legis artis.”
Erro notório na apreciação da prova, é, assim, aquele que não escapa à normal observação da generalidade das pessoas, isto é, o que, pela sua certeza, não pode passar despercebido ao comum dos cidadãos e que só se deve ter como apurado quando se dá por assente uma determinada factualidade com base em juízos ilógicos, arbitrários, contraditórios e insustentáveis, e que, por isso, desde que detectados no texto decisório, se apresentem como manifestamente violadores das regras da experiência comum.
Ora, os recorrentes não assinalam, como se disse, em concreto, qualquer situação que resulte do erro notório na apreciação da prova, enquanto vício da matéria de facto nos termos expostos, já que, lendo o texto da motivação do recurso, constata-se que este vício mais não traduz do que a sua discordância em relação ao modo como foi valorizada, pelo tribunal recorrido, a prova produzida, nomeadamente, o modo de apreciação do depoimento da assistente em oposição às suas próprias declarações.
Mas tal discordância, entre o que foi dado como provado e aquilo que os recorrentes entendem não ter resultado da prova produzida, não integra a noção do vício em causa, sendo certo que do texto da decisão sob recurso não se vê que o tribunal recorrido tenha retirado de um facto dado como provado uma conclusão logicamente inaceitável ou dado como provado algo que está grosseiramente errado.
Com efeito, não se verifica este vício se a discordância decorre do modo como o tribunal teria apreciado a prova produzida, pelo que o simples facto de a versão dos recorrentes sobre a matéria de facto não coincidir com a que foi acolhida pelo julgador, tal não conduz ao erro notório na apreciação da prova.
O alegado pelos recorrentes não consubstancia, assim, os vícios reclamados, nem estes se entrevem no descritivo factual, nem da decisão despontam.
Deduzem assim os recorrentes, na essência, uma impugnação da matéria de facto, traduzida num alegado erro de julgamento, com a pretensa violação do princípio in dubio pro reo.
O erro de julgamento, decorrente do Artº 412 nº3 do CPP, não é o erro-vício da sentença previsto no nº2 do Artº 410 do mesmo diploma legal.
A base de um recurso deste género, relativo à matéria de facto, é a incorrecta e deficiente apreciação da prova testemunhal produzida na audiência de julgamento, pelo tribunal recorrido, por ter valorizado, indevidamente, alguns testemunhos em detrimento de outros.
É sabido que constitui princípio geral que as Relações conhecem de facto e de direito, nos termos do estatuído no Artº 428 do CPP, sendo que, no tocante à matéria de facto, é também sabido que o Tribunal da Relação deve conhecer da questão de facto pela seguinte ordem: primeiro, da impugnação alargada, se tiver sido suscitada, incumbindo a quem recorre o ónus de impugnação especificada, previsto no Artº 412 nsº3 e 4 do citado diploma, condição para que a mesma seja apreciada e, depois e se for o caso, dos vícios a que alude o Artº 410 nº2 do aludido Código.
O erro de julgamento, ínsito no Artº 412 nº3, do CPP, ocorre quando o tribunal considere provado um determinado facto, sem que dele tivesse sido feita prova, pelo que deveria ter sido considerado não provado, ou quando dá como não provado um facto que, face à prova que foi produzida, deveria ter sido considerado provado.
Nesta situação, de erro de julgamento, o recurso quer reapreciar a prova gravada em 1ª instância, havendo que a ouvir em 2ª instância.
Neste caso, a apreciação não se restringe ao texto da decisão recorrida, alargando-se à análise do que se contém e pode extrair da prova produzida em audiência de julgamento, mas sempre dentro dos limites fornecidos pelo recorrente, no estrito cumprimento do ónus de especificação imposto pelos nsº3 e 4 do Artº 412 do CPP.
É que nestes casos de impugnação ampla, o recurso da matéria de facto não visa a realização de um segundo julgamento sobre aquela matéria, agora com base na audição das gravações, antes constituindo um mero remédio para obviar a eventuais erros ou incorrecções da decisão recorrida na forma como apreciou a prova, na perspectiva dos concretos pontos de facto identificados pelo recorrente.
E é exactamente porque o recurso em que se impugne amplamente a decisão sobre a matéria de facto não constitui um novo julgamento do objecto do processo, mas antes, um remédio jurídico que se destina a despistar e corrigir, cirurgicamente, erros in judicando (violação de normas de direito substantivo) ou in procedendo (violação de normas de direito processual), que se impõe, ao recorrente, o ónus de proceder a uma tríplice especificação, nos termos constantes do nº3 do Artº 412 do Código de Processo Penal.
Assim, impõe-se-lhe a especificação dos concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados, o que só se satisfaz com a indicação do facto individualizado que consta da sentença recorrida e que considera indevidamente julgado.
Mais se lhe atribui, a discriminação das concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida, o que se traduz na anotação do conteúdo específico do meio de prova ou de obtenção de prova que acarreta decisão diversa da recorrida, acrescendo a necessidade de explicitação da razão pela qual essa prova implica essa diferente decisão, devendo assim, reportar o conteúdo específico do meio de prova por si invocado com o facto individualizado que considera incorrectamente julgado.
Por fim, é-lhe ainda assacada a pormenorização das provas que devem ser renovadas, o que só se compraz com a informação dos meios de prova produzidos na audiência de julgamento em sede de 1ª instância, dos vícios referidos nas alíneas do nº2 do artº 410 do CPP e das razões para crer que aquela renovação da prova permitirá evitar o reenvio do processo (Cfr. Artº 430 nº1 do citado diploma).
No fundo, o que está em causa e se exige na impugnação mais ampla da matéria de facto, é que o recorrente indique a sua decisão de facto em alternativa à decisão de facto que consta da decisão revidenda, justificando, em relação a cada facto alternativo que propõe, porque deveria o Tribunal ter decidido de forma diferente.
Ou, por outras palavras, como se afirma no Acórdão de Fixação de Jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, de 08/03/12, publicado no D.R., I Série, nº 77, de 18/04/12:
«Impõe-se ao recorrente a necessidade de observância de requisitos formais da motivação de recurso face à imposta especificação dos concretos pontos da matéria de facto, que considera incorrectamente julgados, das concretas provas e referência ao conteúdo concreto dos depoimentos que o levam a concluir que o tribunal julgou incorrectamente e que impõem decisão diversa da recorrida, tudo com referência ao consignado na acta, com o que se opera a delimitação do âmbito do recurso. Esta exigência é de entender como contemplando o princípio da lealdade processual, de modo a definir em termos concretos o exacto sentido e alcance da pretensão, de modo a poder ser exercido o contraditório.
A reapreciação por esta via não é global, antes sendo um reexame parcelar, restrito aos concretos pontos de facto que o recorrente entende incorrectamente julgados e às concretas razões de discordância, necessário sendo que se especifiquem as provas que imponham decisão diversa da recorrida e não apenas a permitam, não bastando remeter na íntegra para as declarações e depoimentos de algumas testemunhas.
O especial/acrescido ónus de alegação/especificação dos concretos pontos de discórdia do recorrente (seja ele arguido, ou assistente), em relação à fixação da facticidade impugnada, bem como das concretas provas, que, em seu entendimento, imporão (iam) uma outra, diversa, solução ao nível da definição do campo temático factual, proposto a subsequente tratamento substantivo, justifica-se plenamente, se tivermos em vista que a reapreciação da matéria de facto não é, não pode ser, um segundo, um novo, um outro integral, julgamento da matéria de facto.
Pede-se ao tribunal de recurso uma intromissão no julgamento da matéria de facto, um juízo substitutivo do proclamado na 1ª instância, mas há que ter em atenção que o duplo grau de jurisdição em matéria de facto não visa a repetição do julgamento em segunda instância, não impõe uma avaliação global, não pressupõe uma reapreciação pelo tribunal de recurso do complexo dos elementos de prova produzidos e que serviram de fundamento à decisão recorrida e muito menos um novo julgamento da causa, em toda a sua extensão, tal como ocorreu na 1ª instância, tratando-se de um reexame necessariamente segmentado, não da totalidade da matéria de facto, envolvendo tal reponderação um julgamento/reexame meramente parcelar, de via reduzida, substitutivo».
Postos estes considerandos e sem os olvidarmos, é evidente, atento o seu confronto com a argumentação recursiva, que os recorrentes não deram cumprimento, ainda que de forma mínima, à tripla exigência resultante do Artº 412 do CPP, o que sempre implicaria o naufrágio do recurso.
De todo o modo, atente-se na forma como na sentença recorrida se justificou a motivação da decisão de facto (transcrição):

FUNDAMENTAÇÃO
O tribunal fundou a sua convicção nos meios de prova produzidos em audiência de discussão e julgamento, em que:
O arguido declarou terem tentado envenenar-lhe o cão, que é como mais uma pessoa, um dia o cão vomitou. E que não fala com a ofendida há anos, alertou os condomínios por causa da assistente que deixava os cães à solta e defecavam à frente da garagem dele durante anos, mas não tem provas de que a assistente lhe tentou matar o cão, não fala com ela nem com o marido há muitos anos. Mas que não sucedeu nada, são vizinhos com as casas encostadas, e várias vezes lhe destruíram plantas. O marido da assistente entrou depois, nesse dia em que o cão vomitou, e só foi uma vez isso do cão. E que não se identifica com as gravações, o que pode ter dito não foi para ela, assistente, e afinal não sabe se disse, não tomou nota. Associa o dia do envenenamento do cão com o dos factos porque foi o dia em que se exaltou. E afinal estavam a falar sozinhos ele e sua mulher (arguida), referia-se a quem fez aquilo ao cão, que não sabe se foi a assistente, e há coisas com que ele (arguido) se identifica aí (nas expressões), é a parte das cenouras, viu no vómito do cão rodelas de cenouras onduladas (cortadas com máquinas), do tipo que ele (arguido) não usa, e nesse dia 24.04.2023 só encontrou as cenouras do vómito do cão, que já vomitara, e continuou a vomitar. E ficou completamente desorientado. E que tem vizinhos à frente também, casados, acha, e disse coisas que em condições normais não se dizem nessa altura, que já não se lembra.
A arguida declarou não falar com a assistente, e que chegou a casa com o marido (arguido) e viu o cão e vómitos nesse dia; supuseram que fosse envenenamento, pois usa ração seca, e o cão vomitou rodelas de cenoura cortadas em máquinas de cozinha, que ela (arguida) não usa nem dá ao cão. E ficou exaltada, mas, como não sabia quem era, calou-se, e talvez tivesse dito algo, mas não dirigidas à assistente ou a alguém específico. E que é evidente que uma pessoa enervada diz o que deve e o que não deve, e deve ter dito algo, que não é pessoa de ficar calada, é de Aveiro; mas não dirigida a pessoa específica, mas alguma coisa disse, isso disse, «sabe que disse asneira, alguma asneira». E que depois curaram o cão, e não viu a assistente nesse dia (do cão).
A assistente declarou ser vizinha dos arguidos, morar na (….), agora denominadas Rua (…..) (como disse o arguido também), e que estava a passar roupa a ferro na garagem quando ouviu os seus cães a ladrar, foi acima ver o que se passava, e afirmou os factos e em suma que os arguidos chamaram-lhe de tudo e mais alguma coisa: que a cortavam aos pedaços, se desse mais cenouras ao cão, ela não disse nada, e gravou, ficou gravado, e transcreveram para o papel. E que foi logo no próprio dia à GNR, chamou o marido, e foram os dois à GNR. O marido estava a trabalhar, e não ouviu, ficou a saber pelas gravações, em meia hora apareceu ali o marido, da parte da tarde. E, que saiba, não viu ninguém por ali, mas é possível que houvesse, os gritos eram tantos. E que isto começou há doze anos desde que os arguidos foram morar para lá, pois ela, assistente, já lá morava, são três moradias geminadas a dos arguidos é um pouco mais avançada. E que certa vez saíram sem olhar os arguidos, e bateram com o carro no do marido dela, e quando ela estendia a roupa, o arguido ia à varanda refrescar a casa e molhava-lhe a roupa, e ela disse-lhe «boa educação, sim senhor». E não é a primeira vez que lhe chamam nomes. O cão de uma vizinha ia fazer (defecar) à porta dos arguidos, e os arguidos punham (as fezes) à frente da porta dela, assistente, e ela pô-las à frente da porta deles, arguidos, e chamaram-lhe de tudo, dessa vez desculpou, agora não, que a ameaçaram de morte. E aquilo, a casa, é formada por garagem, primeiro andar e outro piso, a casa dela é a do meio, são três casas geminadas. E que não viu os arguidos, ouvia-os só. E também como não era a primeira vez que lhe diziam coisas dessas, disse que era para ela, assistente, que lhe enfiava as cenouras no seu rabo dela, não pronunciaram o seu nome dela, ofendida, estavam ali ao pé do muro os arguidos, mas sem visibilidade de uns para os outros (isto é, ela não via os arguidos, e os arguidos não a viam a ela). E de vaca, puta, filha-da-puta, vai para o caralho, e mais coisas, o arguido, e ameaças de morte a ela e ao marido, encontro-te e faço-te como fiz ao outro; e a arguida disse as mesmas expressões também e «tem mesmo cara de algarvia, vaca, filha da puta», dizia um e dizia outro, «já devia ter ido embora há muito tempo, mas antes de sair daqui parto-te esses cornos todos». E enfim que não vai ao jardim, tem medo, mantém-se fechada, em casa, com medo. E que ela foi notificada para sair, pelo senhorio por outras razões, daí os arguidos dizerem para irem embora. E gravou com o telemóvel, pois quando houve a situação dos dejectos pediu ao filho que lhe pusesse a gravação no telemóvel, e entregou a gravação ao filho, que a pôs na pen, que entregou a mandatária. E que depois de ter feito a denúncia na GNR a coisa acalmou. Quem a ameaçou de morte foi só o arguido. E que a sua vizinha do outro lado não estava em casa, pois quando está em casa o cão dessa vizinha vem ao portão. E que o seu marido ao vir não ouviu já nada, ela pôs-lhe a gravação para ele ouvir. E, confrontado com fls 1 das fotos juntas em audiência, cf. fls 124, disse que as casas dela e dos arguidos são como se vê nessa foto, e os arguidos estavam atrás do muro de separação das casas que impedia que fossem vistos.
J afirmou ser marido da assistente e vizinho dos arguidos, mas que não estava lá (em casa), a assistente ligou-lhe que fora agredida verbalmente pelos vizinhos do lado. E que estava em Quarteira, foi logo a casa, viu a ofendida no sofá, nervosa, pálida. E ela contou-lhe o que sucedera, que lhe chamaram todos os nomes e filha da puta, e estava atrapalhada com dificuldade de exprimir-se. E que ela lhe mostrou a gravação, depois saiu menos à rua, e referiu também o episódio dos dejectos, como a assistente. E enfim que dias depois, dentro dos oito dias seguintes, teve um enfarte também, em parte por suceder este caso.
D afirmou ser filho da assistente e ter tirado a gravação do telemóvel da mãe para o computador, depois para caneta electrónica, que entregou à advogada da mãe, que a entregou no processo; e que depois do caso a mãe se tornou uma eremita, fechou-se em casa completamente, aonde ela vai abrir as janelas para entrar o sol, e o pai também ficou fragilizado com a situação, teve um enfarte, fez um cateterismo.
Foi reproduzida a gravação da caneta electrónica de fls 52, e a assistente confirmou serem essas expressões que ouviu, como também as testemunhas D e J, e que as ouviram depois na gravação.
E aqui o arguido declarou que o que dizem assistente e testemunhas não corresponde à realidade, os cães andavam à solta, mas houve razões de queixa por causa de cães.
Ora, extrai-se das próprias declarações dos arguidos que consideram ter razões de queixa da assistente, sua vizinha contígua, como também das desta, e até nem falarem com ela desde tempos, por motivos de cães, e que no dia dos factos os arguidos se exaltaram por terem visto o seu cão a vomitar rodelas de cenoura, cuidando ter sido envenenado, e também que disseram expressões que não concretizaram, mas que sempre foram achando, sobretudo a arguida, serem «asneiras». Por sua vez, essas expressões dos arguidos foram concretizadas pela assistente, que afirmou também tê-las gravadas no telemóvel, do outro lado do muro que separa a sua da casa dos arguido, cf. fotografia de fls 124, junta pelo arguido, e corroboradas pelas testemunhas J e D, filho e marido dela, que as ouviram da gravação feita quando em casa da assistente, chamado logo o marido por ela quando se encontrava em Quarteira; além de que tais expressões constam da pen de fls 52, para onde foram transferidas por D segundo a assistente e as testemunhas, e do auto de transcrição de fls 53 e verso, e foram reproduzidas em audiência de julgamento, cf. acta, em que se podem ouvir as vozes dos arguidos a pronunciá-las. E, tendo em conta ainda o teor das expressões, referentes a cães, motivo já de anterior zanga dos arguidos com a assistente, dirigidas a mulher, como a assistente é, mencionando a saída desejada dessa mulher e família dali, e tendo a assistente explicado que tivera questão com o senhorio por pretender despejá-la, como explicou de modo credível como ouviu as vozes dos arguidos e se foi aproximando até ao muro que separava as varandas dela e a dos arguidos, que precisamente diziam essas expressões encostados ou ao pé desse muro divisório, portanto junto à casa e varanda da arguida, que explicou também ficar a sua casa entre a dos arguidos e a de outra vizinha, que em princípio nem estaria em casa, pois quando está, o cão dessa vizinha vem ao pátio, como não fez nesse dia, e que portanto, se os arguidos quisessem apostrofar essa vizinha, dirigir-se-iam a essa casa, não ficando por perto da varanda da assistente, que finalmente tomou essas expressões como dirigidas a ela, assistente, também por já serem semelhantes a outras que disse ter perdoado: por tudo isto bem se compreende que a assistente as tivesse tomado, como nesta conjuntura e ponderações feitas entende o tribunal não só que os arguidos disseram essas expressões, mas também que com elas pretendiam dirigir-se, como se dirigiram, à assistente e demandante, com as consequências na pessoa e no ânimo desta que se consideraram provadas por atestadas por ela e testemunhas, que bem o podiam fazer por viverem ou conviverem com ela, como é próprio de maridos e filhos, e enfim por serem consequências normais dos comportamentos minazes, insultuosos e injuriosos dos arguidos.
Para os antecedentes criminais da arguida, CRC juntos aos autos; para a situação económica e financeira de arguidos e demandante, as suas respectivas declarações.

Lendo o teor das motivações de recurso, constata-se que os recorrentes baseiam a sua discordância na factualidade assumida pelo tribunal recorrido com a circunstância de não se ter provado que as expressões proferidas por aqueles se dirigissem à assistente, até porque nem esta os via, nem aqueles estavam no seu âmbito de visão.
Ora, da motivação transcrita, é evidente que o tribunal justificou, com suficiência bastante, a razão pela qual considerou que as ditas expressões se destinavam à assistente, tendo em conta o conflito latente entre eles, o factos de tal evento já se ter repetido anteriormente e da assistente ter descrito, em depoimento genuíno, a situação, em tudo idêntica ao que foi assumido como apurado, de onde não resulta qualquer dúvida que as ditas expressões se dirigiam à assistente, até porque parte delas foram visualizadas por esta, quando os arguidos se posicionaram na varanda da residência.
Por fim, em Audiência de Julgamento foi ouvida a gravação recolhida pela assistente, onde são audíveis as vozes dos arguidos a proferirem as ditas expressões.
Da argumentação recursiva facilmente se compreende que o que há, da parte dos recorrentes, é a invocação de um erro de julgamento, apontando uma deficiente valoração probatória no que toca à matéria em causa, entendendo que uma apreciação crítica do conjunto da prova produzida, nomeadamente, das suas próprias declarações, teria de levar, necessariamente, a conclusão contrária da assumida pelo tribunal recorrido, no sentido de não dar por assente o cometimento dos crimes dos quais vinham acusados.
Em abono de tal invocação, aduz que o tribunal a quo cometeu esse erro por ter aceitado a versão apresentada pela assistente, sem que a mesma tenha a virtualidade de afastar a que por eles foi deduzida.
Nesta medida, aquilo que os recorrentes trazem à liça é, unicamente, a sua discordância com o tribunal julgador no tocante à apreciação que este fez da prova, pretendendo sobrepor a sua perspectiva pessoal à livre convicção daquele tribunal, mas esquecendo que esta, neste domínio, se impõe soberanamente sem outros limites para além dos que a lei assinala.
A base de um recurso relativo ao erro de julgamento, é, como se disse, a incorrecta e deficiente apreciação da prova testemunhal produzida na audiência de julgamento, pelo tribunal recorrido, por ter valorizado, indevidamente, alguns testemunhos em detrimento de outros.
Numa palavra, o dissídio dos recorrentes não assenta em qualquer divergência entre o que afirmam ter sido dito no decurso da audiência e aquilo que quem julgou diz que se disse, nessa mesma ocasião, mas apenas e tão só, na avaliação que faz da prova que ali foi produzida.
Ora, o tribunal recorrido explicou, com suficiência bastante, as razões pelas quais valorizou o depoimento da assistente e não considerou as declarações dos arguidos, descrevendo, com minúcia e precisão, o conteúdo de cada depoimento e o modo como foi valorado, sendo perfeitamente elucidativo do exame crítico efectuado pelo tribunal a quo, pelo que nos dispensamos de repetir o que ali se plasmou.
Considerada a prova produzida, inexistem motivos que justifique qualquer alteração desta convicção probatória, sendo que a mesma se apresenta conforme, quer com tal prova, quer com as regras de experiência e o sentido das coisas, até porque a interpretação e a valoração concertadas dos meios de prova, são efectuadas nos termos do Artº 127 do CPP - princípio da livre apreciação da prova – onde se estipula que: Salvo quando a lei dispuser diferentemente, a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente.
Tal princípio assenta, fundamentalmente, em duas premissas:
A de que o juiz decide de forma livre e de acordo com a sua íntima convicção, formada a partir do confronto das provas produzidas em audiência.
E que tal convicção há-de ser formada com base em regras de experiência comum.
Nestes termos, o juiz não está sujeito a critérios de valoração de cada um dos meios probatórios, legalmente pré-determinados, sistema da prova legal, sendo o tribunal livre na apreciação que faz da prova e na forma como atinge a sua convicção.
Contudo, sendo esta uma apreciação discricionária, não é a mesma arbitrária, tendo a referida apreciação os seus limites.
Na verdade, livre convicção não pode ser sinónimo de arbitrariedade.
Ou seja, a livre apreciação da prova tem sempre de se traduzir numa valoração "racional e crítica, de acordo com as regras comuns da lógica, da razão, das máximas da experiência (…), que permita objectivar a apreciação, requisito necessário para uma efectiva motivação da decisão” de modo a que seja possível, por qualquer pessoa, entender porque é que o tribunal se convenceu de determinado facto, ou, dito de outro modo; porque é que o juiz conferiu credibilidade a uma testemunha e descredibilizou outra, por exemplo.
A sentença, para além dos factos provados e não provados e da indicação dos meios de prova, deve conter os elementos que, em razão das regras da experiência ou de critérios lógicos, constituam o substrato racional que conduziu a que a convicção do tribunal se formasse em determinado sentido ou valorasse de determinada forma os diversos meios de prova apresentados na audiência- Ac. do STJ de 13/02/92, CJ Tomo I, pág. 36.
O que o juiz não pode fazer nunca é decidir de forma imotivada ou seja, decidir sem indicar o iter formativo da sua convicção, «é o aspecto valorativo cuja análise há-de permitir (…) comprovar se o raciocínio foi lógico ou se foi racional ou absurdo» (Germano Marques da Silva, in Curso de Processo Penal, II, pág. 126 e sgs.).
Como se diz no Ac. da Relação de Coimbra, de 18/02/09, proferido no proc. 1019/05.0GCVIS.IC, disponível em www.dgsi.pt:
“A sindicância da matéria de facto na impugnação ampla, ainda que debruçando-se sobre a prova produzida em audiência de julgamento, sofre quatro tipos de limitações (cfr ac. do S.T.J., em acórdão de 12 de Junho de 2008 (Processo:07P4375, www.dgsi.pt):
1º) – A que decorre da necessidade de observância pelo recorrente do mencionado ónus de especificação, pelo que a reapreciação é restrita aos concretos pontos de facto que o recorrente entende incorrectamente julgados e às concretas razões de discordância, sendo necessário que se especifiquem as provas que imponham decisão diversa da recorrida e não apenas a permitam;
2º) – A que decorre da natural falta de oralidade e de imediação, com as provas produzidas em audiência, circunscrevendo-se o “contacto” com as provas ao que consta das gravações;
3ª) – A que resulta da circunstância de a reponderação de facto pela Relação não constituir um segundo/novo julgamento, cingindo-se a uma intervenção cirúrgica, no sentido de restrita à indagação, ponto por ponto, da existência ou não dos concretos erros de julgamento de facto apontados pelo recorrente, procedendo à sua correcção se for caso disse;
4ª) – A que tem a ver com o facto de ao tribunal de 2.ª instância, no recurso da matéria de facto, só ser possível alterar o decidido pela 1.ª instância se as provas indicadas pelo recorrente impuserem decisão diversa da proferida (al. b) do n.º3 do citado artigo 412.º)”.
Bem andou assim o tribunal recorrido, pois a factualidade provada e não provada configura-se como adequada às regras de experiência, à normalidade da vida e à razoabilidade das coisas, razão pela qual, não merecendo censura, não é sindicável por este tribunal, inexistindo por isso motivos para ser alterado.
No confronto entre as duas versões em causa – a dos arguidos e da assistente – o tribunal optou por aquela que era sustentada pelos meios de prova produzidos, quer de prova directa, quer de prova circunstancial, em detrimento de uma outra sem qualquer corroboração em meios de prova fiáveis, na medida em que a mesma, pelas contradições expostas, não se configurava como credível.
A verdade é que o tribunal a quo explicou, com aptidão, a razão pela qual não teve dúvidas de que os factos ocorreram como vinham descritos nas acusações, apesar das duas versões em jogo.
Bem andou assim o tribunal recorrido, pois a factualidade provada configura-se como adequada às regras de experiência, à normalidade da vida e à razoabilidade das coisas, razão pela qual, não merecendo censura, não é sindicável por este tribunal, inexistindo por isso motivos para ser alterada.
O modo de valoração das provas e o juízo resultante dessa mesma aferição, efectuado pelo tribunal a quo, ao não coincidir com a perspectiva dos recorrentes nos termos em que estes as analisam e nas consequências que daí derivam, não traduz, face ao que se expôs, qualquer erro ou vício.
Os recorrentes não alegam que a análise que o tribunal a quo faz do conteúdo dos depoimentos não corresponde ao que na realidade foi dito em sede de audiência de julgamento, afirmando, isso sim, que deveria ter sido dada outra credibilidade às declarações por si prestadas e retirada essa mesma credibilidade ao depoimento prestado pela assistente.
Os recorrentes também não demonstram que o tribunal a quo, ao decidir como decidiu, ao dar como provados os factos que assim considerou, contrariou as regras da experiência ou desrespeitou princípios basilares do direito probatório, como seja valorando prova proibida ou não considerando prova legalmente vinculada.
Por outro lado, dizem os recorrentes, que o tribunal recorrido, ao ter dado como provados os factos que permitiram a sua condenação pelos crimes que lhes eram imputados, tendo em conta que existem duas versões antagónicas, as deles e a da assistente, violou o princípio in dubio pro reo.
Salvaguardando sempre o devido respeito por opinião contrária, os ora recorrentes parecem desconhecer o alcance deste princípio, cuja violação só ocorre, quando, em sede de prova, perante uma dúvida objectiva e intransponível, o tribunal decide desfavoravelmente ao arguido.
Sendo uma emanação do princípio constitucional da presunção de inocência, surge como resposta ao problema da incerteza em processo penal, impondo a absolvição do acusado quando a produção de prova não permita resolver a dúvida inicial que está na base do processo.
Se, a final, persistir uma dúvida razoável e insanável acerca da culpabilidade ou dos concretos contornos da actuação do acusado, esse non liquet na questão da prova terá de ser resolvido a seu favor, por imposição do estatuído no Artº 32 nº1 da Constituição da República Portuguesa.
Mas esta dúvida, não é aquela que os recorrentes entendem que o tribunal deveria ter tido, mas antes, a que este efectivamente teve.
Ora, resulta com toda a clareza, da fundamentação da sentença recorrida, que não existiu qualquer dúvida no espírito do julgador, na construção do esqueleto factual dos autos, após a apreciação, livre mas responsável, livre mas motivada, da prova produzida em Audiência de Julgamento, corroborada com a já existente nos autos.
Nessa medida, não tem cabimento a aplicação do referenciado princípio in dubio pro reo, pois o tribunal a quo entendeu que havia sido produzida suficiente prova do cometimento dos factos pelos arguidos, entendimento que foi sufragado ao abrigo do já escalpelizado princípio da livre apreciação da aprova, ínsito no Artº 127do CPP.
Importa trazer à colação o já afirmado em Acórdão deste Tribunal da Relação, em 03/05/07, proferido no processo n.º 80/07-3 disponível no sítio da internet www.dgsi.pt:
«O erro na apreciação das provas relevante para a alteração da decisão de facto pressupõe, pois, que estas (as provas) deveriam conduzir a uma decisão necessária e forçosamente diversa e não uma decisão possivelmente diferente; se a interpretação, apreciação e valoração das provas permitir uma decisão, diversa da proferida, mas sem excluir logicamente a razoabilidade desta, neste caso pode haver erro na apreciação das provas, mas não será juridicamente relevante para efeitos de modificação da matéria de facto pelo Tribunal Superior; a decisão proferida com base numa interpretação e valoração (ainda que discutíveis) fundamentadas nas provas produzidas contida no espaço definido pela livre apreciação das provas e pela convicção por elas criada no espírito do juiz, não pode ser alterada, a menos que contra ela se apresentem provas irrefutáveis, já existentes nos autos e desconsideradas ou supervenientes.
Por outras palavras: a sindicância da decisão de facto deve limitar-se à aferição da sua razoabilidade em face das provas produzidas …
… A segunda instância em matéria de facto não vai à procura de uma nova convicção (que lhe está de todo em todo vedada exactamente pela falta desses elementos intraduzíveis na gravação da prova), mas tão só apreciar se a convicção expressa pelo tribunal a quo na decisão da matéria de facto tem suporte razoável …»
A decisão, nesta matéria, do tribunal recorrido, foi proferida com base numa interpretação e valoração que se mostra suficientemente fundamentada, quer nas provas produzidas, quer pela livre convicção por elas criada no espírito do julgador, só podendo ser alterada, se contra si se apresentassem meios de prova irrefutáveis, existentes nos autos e que tivessem sido desconsiderados, ou se a mesma se configurasse como totalmente irrazoável, contrária às mais elementares regras de experiência ou ao sentido das coisas.
Mas nenhuma destas condições é o caso sub judice, em que o decidido pelo tribunal recorrido, se desenha com lógica e razoabilidade necessárias, de modo que se deve concluir como no aresto citado: “… se a interpretação, apreciação e valoração das provas permitir uma decisão, diversa da proferida, mas sem excluir logicamente a razoabilidade desta, neste caso pode haver erro na apreciação das provas, mas não será juridicamente relevante para efeitos de modificação da matéria de facto pelo Tribunal Superior.”
Discordar, sem qualquer fundamento legal, leva simplesmente à sua improcedência, como já por este Tribunal foi afirmado em Acórdão de 23/03/01 : “A divergência quanto à decisão da 1ª instância sobre a matéria de facto será relevante na Relação apenas quando resultar demonstrada pelos meios de prova indicados pelo recorrente a ocorrência de um erro na apreciação do seu valor probatório, sendo necessário para que ele se verifique, que os mencionados meios de prova se mostrem inequívocos no sentido pretendido pelo recorrente”.
O presente tribunal só poderia assim alterar o decidido factualmente pela 1ª instância se existissem provas nos autos que impusessem decisão diferente e in casu, embora a prova produzida, eventualmente e no entendimento dos recorrentes, permitisse uma decisão de facto em sentido diverso, ela não impunha decisão distinta, pelo que o por si pretendido está destinado ao fracasso.
Trata-se de uma evidente limitação em matéria de facto, o qual não serve para possibilitar uma intervenção reparadora do tribunal de recurso face a toda e qualquer discordância relativamente à apreciação factual levada a cabo pelo tribunal recorrido, mas apenas e tão só, para os casos em que esta foi proferida através de uma clara, flagrante e patente violação das regras que regem a apreciação da prova, seja porque assente em prova proibida, seja porque existe evidente desconformidade entre a prova produzida e a decisão recorrida.
Só nestes casos é que se poderá dizer que as provas impõem uma decisão diversa.
Mas esta não é, manifestamente, a situação dos autos.
Inexistindo assim qualquer erro na avaliação da prova por banda do tribunal a quo, ou o cometimento de qualquer vício pelo tribunal recorrido, ter-se-á que finalizar pela improcedência do recurso, também nesta parte.

B.3. Medida da pena

Neste domínio, alegam os recorrentes, apesar de não justificarem tal alegação, que as penas aplicadas são exageradas não devendo ultrapassar, no máximo, metade do que foi fixado.
Esta ausência de argumentação para o peticionado dispensa aprofundadas considerações para confirmar o que ressalta da leitura da decisão condenatória e que se fundamentou no seguinte (transcrição):

Penas
Ao crime de ameaça previsto no artigo 153, ao crime de ameaça agravada previsto também no artigo 155, n.º 1, al. a), e ao crime de injúria previsto no artigo 181, todos do CP, correspondem, respectivamente, as seguintes penas: prisão de um mês até um ano, ou multa de dez a 120 dias; prisão de um mês a dois anos, ou multa de dez a 240 dias; e prisão de um mês a três meses, ou multa de dez a 120 dias, cf. artigos 41, n.º 1, e 47, n.º 1, CP.
Nos termos do artigo 70 CP, quando ao crime ou crimes seja aplicável pena privativa e não privativa da liberdade, o tribunal deverá optar pela segunda, desde que essa realize de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.
A pena visa a protecção de bens jurídicos (prevenção geral) e a reintegração do agente na sociedade (prevenção especial), segundo o disposto no artigo 40, n.º 1, CP, e não deve ultrapassar o limite da culpa.
A conflitualidade que perturba as relações da comunidade da comarca, com faltas de respeito recorrentes, optando o cidadão por recorrer à via do insulto e ameaça física e moral como modo de resolução dos seus conflitos, faz adensar as exigências de prevenção geral, em que o valor jurídico da norma que tutela os direitos de personalidade (cf. artigo 70 do Código Civil) se encontra em grave crise.
Mas os arguidos não têm antecedentes criminais, representando o arguido 69 anos, e a arguida 74 anos, não se lhe conhecendo comportamentos anteriores aos factos, nem posteriores, desta natureza e calibre, o que esbate as exigências de prevenção especial.
Donde, perante o caso dos autos, e atento o disposto no artigo 70 do CP, tais exigências sequenciem a decisão de aplicação de penas não privativas da liberdade, por estas se haverem por adequadas e suficientes a assegurar as finalidades da punição evitando da parte dos arguidos novos crimes e consolidando aos olhos da comunidade o valor das normas violadas.
Dispõe ainda o artigo 71, n.º 2, CP, que na determinação concreta das penas, o tribunal atende à culpa e a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, deponham a favor dos arguidos ou contra eles.
A culpa dos arguidos é acentuada, pois que, por um lado, nenhum motivo fundado consta que lhe desse a assistente para tais desmandos, e, por outro, actuaram de modo que podiam ser ouvidas por transeuntes ou vizinhança, e não somente pela assistente, que se encontrava em sua própria casa.
No domínio do grau da ilicitude, sopesa-se o modo de execução dos crimes, a extensão dos danos deles advenientes, e os sentimentos vivenciados pelo assistente, factores que correspondem a uma ilicitude situada num plano médio.
O dolo dos arguidos foi sempre directo e intenso, atento o facto de as expressões terem sido proferidas de propósito, em voz alta, incluindo vários nomes ofensivos e humilhantes.
Tudo ponderado, determina-se a pena de cento e dez dias pela ameaça agravada, de sessenta dias pela ameaça simples, e de sessenta dias por cada uma das injúrias.
A taxa diária da pena de multa fixa-se em função da situação económica e financeira dos arguidos e dos seus encargos pessoais (cf. artigo 47, n.º 2, CP), e dentro do mínimo de cinco e o máximo de quinhentos euros, sem se olvidar que se está graduando uma verdadeira pena que, como tal, deve comportar sacrifício na sua execução por forma que se alcancem as finalidades da prevenção geral e especial, e, perante o apurado neste particular pelas próprias declarações dos arguidos, reformados, fixam-se as taxas diárias em seis euros.
Encontrando-se as referidas penas em concurso efectivo, segundo o disposto no artigo 77, n.º 1, CP, urge proceder ao cúmulo jurídico para chegar a pena única, que não pode ser superior à soma das penas parcelares aplicadas nem inferior à mais alta dessas penas, relevando considerar em conjunto os factos e a personalidade dos arguidos. Neste particular pondera-se o carácter isolado deste comportamento na vida dos arguidos, pessoas na casa dos sessenta e setenta anos, inseridos socialmente, portanto a não suscitarem particulares apreensões ao direito, e os factos foram praticados todos na mesma ocasião, com base no que se determina a pena única - de cento e trinta dias de multa ao arguido, - e de oitenta dias de multa à arguida, ambas à referida taxa diária.

Como se sabe, na determinação da pena concreta, importa ter em conta, nos termos do Artº 71 do C. Penal, as necessidades de prevenção geral e especial que nos autos se imponham, bem como, as exigências de reprovação do crime, não olvidando que a pena tem de ser orientada em função da culpa concreta do agente e que deve ser proporcional a esta, em sentido pedagógico e ressocializador.
Como ensina Figueiredo Dias in Direito Penal, Parte Geral, Tomo 2, As consequências jurídicas do crime. 1988, pág. 279 e segs:
As exigências de prevenção geral, ... constituirão o limiar mínimo da pena, abaixo do qual já não será possível ir, sob pena de se pôr em risco a função tutelar do Direito e as expectativas comunitárias na validade da norma violada.
As exigências de culpa do agente serão o limite inultrapassável de todas e quaisquer considerações preventivas, por respeito ao princípio politico-criminal da necessidade da pena (Artº 18 nº2 da CRP) e do principio constitucional da dignidade da pessoa humana (consagrado no nº1 do mesmo comando)
Por fim, as exigências de prevenção especial de socialização, sendo elas que irão determinar, em último termo e dentro dos limites referidos, a medida concreta da pena
Importa ainda ter em conta que:
”«A função primordial de uma pena, sem embargo dos aspectos decorrentes de uma prevenção especial positiva, consiste na prevenção dos comportamentos danosos incidentes sobre bens jurídicos penalmente protegidos.
O seu limite máximo fixar-se-á, em homenagem à salvaguarda da dignidade humana do condenado, em função da medida da culpa revelada, que assim a delimitará, por maiores que sejam as exigências de carácter preventivo que social e normativamente se imponham.
O seu limite mínimo é dado pelo quantum da pena que em concreto ainda realize eficazmente essa protecção dos bens jurídicos.
Dentro destes dois limites situar-se-á o espaço possível para resposta às necessidades da reintegração social do agente.
Ainda, embora com pressuposto e limite na culpa do agente, o único entendimento consentâneo com as finalidades de aplicação da pena é a tutela de bens jurídicos e, (só) na medida do possível, a reinserção do agente na comunidade” (Cf. Anabela Miranda Rodrigues, RPCC, Ano 12º, nº 2, pág. 182)
Ora, confrontando o raciocínio expendido pela instância recorrida, constata-se que ali foram tidos em conta, na determinação da pena a aplicar aos arguidos, todos os critérios legais a que alude o Artº 71 do C. Penal, não podendo aqueles queixar-se de severidade por banda do tribunal a quo.
Ponderando a dimensão da ilicitude dos factos, atenta a natureza das palavras proferidas pelos arguidos e o circunstancialismo envolvente, a intensidade do dolo, a reiteração do comportamento e o seu modo de execução, o nível de ameaça, as consequências que da conduta dos recorrentes advieram para a pessoa e família da assistente, não olvidando a inexistência de antecedentes criminais e a inserção familiar e social dos arguidos, julgam-se adequadas, justas e proporcionais, quer às razões de prevenção geral e especial que no caso concorrem, quer às finalidades punitivas supra mencionadas, quer ainda, à culpa do agente, as penas (parcelares e únicas, estas, considerando, em conjunto, a gravidade e reiteração dos factos e as personalidades dos arguidos), aplicadas pelo tribunal a quo.
Em suma, aferidos todos os vectores em causa, o decidido pela 1ª instância, em sede de fixação das penas, não merece a censura que lhe é assacada pelos recorrentes, já que as penas que lhes foram aplicadas – parcelares e única – não ultrapassam a medida da sua culpa, assim se concluindo pela improcedência do recurso.

3. DECISÃO

Nestes termos, decide-se negar provimento ao recurso e em consequência, manter, na íntegra, a sentença recorrida.
Custas a cargo dos recorrentes, fixando-se a taxa de justiça, atendendo ao trabalho e complexidade das questões suscitadas, em 3 UC, ao abrigo do disposto nos Artsº 513 nº1 e 514 nº1, ambos do CPP e 8 do Regulamento das Custas Processuais e tabela III anexa.
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Consigna-se, nos termos e para os efeitos do disposto no Artº 94 nº2 do CPP, que o presente acórdão foi elaborado pelo relator e integralmente revisto pelos signatários.

Évora, 16 de setembro de 2025
Renato Barroso
Maria José Cortes
Fernando Pina