Acórdão do Tribunal da Relação de Évora | |||
Processo: |
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Relator: | MÁRIO BRANCO COELHO | ||
Descritores: | CONDUÇÃO SOB A INFLUÊNCIA DO ÁLCOOL DIREITO DE REGRESSO DA SEGURADORA ERRO MÁXIMO ADMISSÍVEL ÓNUS DE ALEGAÇÃO E PROVA MATÉRIA DE FACTO MATÉRIA DE DIREITO | ||
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Data do Acordão: | 01/16/2025 | ||
Votação: | MAIORIA COM * VOT VENC | ||
Texto Integral: | S | ||
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Decisão: | MAIORIA COM VOTO DE VENCIDO | ||
Área Temática: | CÍVEL | ||
Legislação Nacional: | CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL; DL 291/2007; CÓDIGO DA ESTRADA | ||
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Sumário: | 1. Do art. 607.º n.ºs 3 a 5 do Código de Processo Civil decorre o dever de o tribunal discriminar os factos que julga provados e os que julga não provados, e após interpretar e aplicar as normas jurídicas correspondentes, concluindo pela decisão final. 2. Daí que a enunciação da matéria de facto deva ser expurgada de valorações jurídicas, de locuções metafóricas ou de excessos de adjectivação. 3. Nomeadamente, deve evitar-se a inclusão na matéria de facto de afirmações de direito, em matéria jurídica controvertida nos autos, contendo em si mesmos a decisão da própria causa. 4. Em acção de exercício do direito de regresso da seguradora contra o condutor que causou um acidente conduzindo com uma taxa de alcoolemia superior à legalmente admitida, não podem ser considerados como factos provados que o acidente se deveu a “culpa exclusiva da imprudência e imprevidência do Réu”, e que este “estava sob a influência do álcool”. 5. Tratam-se de afirmações de direito, em matéria jurídica controvertida nos autos, nomeadamente a culpa que constitui um dos requisitos do instituto jurídico da responsabilidade civil por factos ilícitos, e a condução sob a influência do álcool, conceito legal definido no art. 81.º n.º 2 do Código da Estrada. 6. O art. 27.º n.º 1 al. c) do DL 291/2007 deve ser interpretado no sentido de a seguradora gozar automaticamente do direito de regresso contra o condutor causador do acidente quando seja portador de uma TAS superior à legalmente admitida, não sendo assim exigível que alegue e prove a existência de um nexo de causalidade entre a alcoolemia e a produção do acidente. 7. Pressupostos do exercício do direito de regresso são que o condutor tenha dado causa ao acidente e que seja portador de uma TAS superior à legalmente permitida, quantificada no art. 81.º n.º 2 do Código da Estrada como a igual ou superior a 0,5 g/l. 8. Sendo o condutor sujeito a colheita do seu sangue cerca de 2 horas e 52 minutos após o acidente, tendo a análise efectuada apresentado uma TAS com resultado expresso como 0,50 ± 0,06g/l, pelo que tendo em consideração a incerteza estimada para o método em vigor, a mesma poderá variar entre 0,44 e 0,56g/l, deve concluir-se não há certeza acerca da efectiva presença de uma alcoolemia igual ou superior à legalmente quantificada. (Sumário elaborado pelo relator) | ||
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Decisão Texto Integral: | Acordam os Juízes da 1.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora: No Juízo Central Cível de Portimão, Fidelidade – Companhia de Seguros, S.A., demandou AA, pedindo a sua condenação no pagamento da quantia de € 78.739,73, acrescida de juros, e ainda de todas as verbas que decorram do sinistro e que ainda não foi possível liquidar e pagar. Alegou que assumiu a responsabilidade de indemnizar terceiros pelos danos causados por viatura conduzida pelo R., e que este, quando conduzia com uma TAS de 0,5g/l, atropelou um peão que atravessava uma passadeira. Pretende, pois, exercer o direito de regresso das quantias pagas ao peão em consequência dos danos por este sofridos, com fundamento no disposto no art. 27.º n.º 1 al. c) do DL 291/2007, de 21 de Agosto (Regime do Sistema de Seguro Obrigatório de Responsabilidade Civil Automóvel). Contestando, o R. alegou que há incerteza quanto ao grau de alcoolemia e que, por isso, está excluído o direito de regresso, acrescentado que terá sido o peão que não agiu com a devida prudência. Após julgamento, a sentença decidiu julgar a acção procedente, condenando o R. no pagamento da quantia de € 78.739,73, acrescida de juros, e ainda nas verbas que decorram do sinistro e que ainda não foi possível liquidar e pagar, a liquidar. Inconformado, o R. recorreu e concluiu: (…) A resposta sustenta a manutenção do julgado. Recebidos os autos neste Tribunal, o Relator, após ter concedido o prévio contraditório às partes, proferiu despacho ordenando a produção de novos meios de prova, ao abrigo do art. 662.º n.º 2 al. b) do Código de Processo Civil, que a seguir se transcreve: “Nos presentes autos, Fidelidade – Companhia de Seguros S.A., demandou AA, pedindo a sua condenação no pagamento da quantia de € 78.793,73, e outras quantias a liquidar. Alegou que o Réu atropelou um peão numa passadeira, quando conduzia sob a influência de álcool – uma TAS de 0,50 g/L. A A. segurava os riscos decorrentes da circulação do veículo conduzido pelo Réu, e as quantias reclamadas respeitam a tratamentos ministrados ao peão atropelado. O fundamento jurídico para o pedido formulado é a norma contida no art. 27.º n.º 1 al. c) do DL 291/2007, de 21 de Agosto (Regime do Sistema de Seguro Obrigatório de Responsabilidade Civil Automóvel). De acordo com os factos já apurados, o acidente ocorreu no dia 01.09.2021, pelas 15.30 horas. A essa hora o Réu conduzia o veículo atropelante e está provado que havia ingerido bebidas alcoólicas. Do auto policial consta o seguinte: o condutor “foi submetido ao teste de álcool por ar expirado em aparelho qualitativo apresentando o resultado: com indícios de álcool”. E acrescenta o seguinte: o condutor “não foi submetido ao teste de álcool por ar expirado através de alcoolímetro quantitativo por: incapacidade.” Mais consta que foi submetido ao teste de álcool através de análise sanguínea, no Hospital do Barlavento Algarvio, em Portimão. Do relatório final deste exame, emitido pelo Serviço de Química e Toxicologia Forenses da Delegação do Sul do INMLCF, consta o seguinte: · Data e hora da colheita: 01.09.2022, às 18 horas e 22 minutos; · Local de colheita: Centro Hospitalar do Algarve, EPE; · Quantificação de etanol no sangue por GC/HS/FID / Amostra: sangue / Procedimento de ensaio: PE-STF-S-401 Rev08 / Resultado: 0,50 ± 0,06 g/L; Esta resposta suscita dúvida para a decisão do caso, pois, de acordo com o art. 81.º n.º 2 do Código da Estrada, “Considera-se sob influência de álcool o condutor que apresente uma taxa de álcool no sangue igual ou superior a 0,5 g/l ou que, após exame realizado nos termos previstos no presente Código e legislação complementar, seja como tal considerado em relatório médico.” Face ao resultado que consta do relatório final do INMLCF, o Réu alega que não se pode considerar provado, com a necessária certeza, que no momento do acidente conduzia com uma TAS de 0,50 g/L. Face à margem de erro constante desse relatório, o Réu alega que apenas se pode considerar provado, com a necessária certeza, que conduzia com uma TAS de, pelo menos, 0,44 g/L. Constitui competência do Serviço de Química e Toxicologia Forenses do INMLCF emitir pareceres e prestar assessoria técnico-científica no domínio das suas competências – arts. 6.º n.º 2 e 5.º n.º 2 dos Estatutos do INMLCF, I.P., aprovados pela Portaria 19/2013, de 21 de Janeiro. Usando dos poderes conferidos pelo art. 662.º n.º 2 al. b) do Código de Processo Civil, determino a produção de novos meios de prova, solicitando parecer ao aludido Serviço de Química e Toxicologia Forenses acerca da ponderação da margem de incerteza de ± 0,06 g/l na determinação da TAS. Para o efeito, solicita-se a resposta às seguintes questões: 1.ª Quando a TAS é apurada por análise sanguínea há dedução de EMA (erro máximo admissível) ou o resultado apurado por este método científico é fidedigno e exacto? 2.ª Considerando que o sinistro ocorreu às 15:30h, e a colheita de sangue ao condutor ocorreu apenas às 18:22h, é possível determinar qual seria a TAS do condutor à hora do sinistro? 3.ª Em média, quando é que a TAS atinge o seu pico/valor mais elevado após a ingestão de bebidas alcoólicas? 4.ª Em média, qual o grau/taxa a que vai ocorrendo a diminuição de álcool no sangue após a ingestão de bebidas alcoólicas? 5.ª Pode-se afirmar com certeza absoluta que o Réu conduzia com a TAS de 0,50 g/L, no momento do acidente? 6.ª A que se deve a menção, no resultado, da margem ± 0,06 g/L?” Em resposta, aquele Serviço de Química e Toxicologia Forenses informou o seguinte: “Em resposta às questões apresentadas por V. Exa. vimos informar, 1- A qualquer resultado analítico, não apenas na área da Toxicologia Forense, corresponde uma incerteza. O facto de o método analítico utilizado por este serviço para a determinação de alcoolemia estar acreditado pelo Instituto Português de Acreditação I.P., sendo por isso sujeito a auditorias anuais realizadas por auditores externos e independentes, obriga-nos a estimar e a apresentar o respectivo valor da incerteza associada a cada determinação. A representação da incerteza como ± x significa que este valor (x) caracteriza a dispersão dos valores que podem ser atribuídos ao resultado obtido. Assim, um resultado expresso como 0,50 ± 0,06 g/L significa que foi analiticamente determinada uma alcoolémia de 0,50 g/L e que, tendo em consideração a incerteza estimada para o método em vigor, a mesma poderá variar entre 0,44 e 0,56 g/L. 2- O cálculo retrospectivo da concentração de álcool no sangue tem, subjacente, a condição de se estar na fase de eliminação do etanol (álcool), ou seja, depois de ter sido atingido o valor mais elevado após a última ingestão de bebidas alcoólicas. Apenas neste caso se poderia utilizar a equação (â x t) + g/L1, em que: â: traduz o coeficiente de eliminação do etanol, referido na literatura científica1,2 como correspondendo a 0,15 g/litro/hora (homem). De referir, contudo, que o valor atribuído a este coeficiente não é consensual entre vários autores2, pelo que qualquer cálculo retrospectivo deve ser considerado como aproximado; t: tempo decorrido entre o sinistro (15.30 h) e a colheita da amostra de sangue (18:22 h), ou seja, aproximadamente 2,9 h; g/L: alcoolemia obtida na amostra de sangue (0,50 ± 0,06 g/L). 3- A alcoolemia é afectada por vários factores, que incluem, a quantidade de alimentos presente no estômago no momento da ingestão da bebida (a presença de alimentos atrasa a absorção do álcool), o tipo de bebida ingerida (e.g. uma bebida gasosa acelera o esvaziamento gástrico), o grau alcoólico da bebida (bebidas de maior teor alcoólico fazem chegar ao sangue, em menos tempo, uma maior quantidade de álcool), e, também, o número de ingestões. A literatura consultada2 refere que, no pressuposto de se tratar de uma única ingestão, com estômago vazio, ao fim de 1 hora todo o álcool terá sido absorvido pelo sangue. 4- Ver, por favor, no ponto 2, a consideração sobre o coeficiente de eliminação do álcool (0,15 g/litro/hora). 5- Ver também, por favor, o ponto 2. 6- Ver, por favor, no ponto 1, a consideração sobre a incerteza associada à determinação. 1 M. Repetto. Toxicología Avanzada. 1995. 2 J.A. Calabuig. Medicina Legal y Toxicología. 5ª Ed (Capítulo “Estudio toxicológico y médico-legal del alcohol etílico”.” As partes foram notificadas para produzirem as suas alegações de facto e de direito quanto aos esclarecimentos prestados pelo Serviço de Química e Toxicologia Forenses do INMLCF, tendo as partes exercido esse direito. A A. solicitou ainda esclarecimentos adicionais, o que foi indeferido por despacho proferido pelo Relator. Corridos os vistos, cumpre-nos agora decidir. Impugnação do ponto 10 do elenco de factos provados: Neste ponto, a sentença recorrida deu como provado o seguinte: “O referido atropelamento deveu-se por culpa exclusiva da imprudência e imprevidência do Réu que havia ingerido bebidas alcoólicas e estava assim sob a influência do álcool acusando uma taxa de 0,5 g/l, e assim falta de atenção e resposta mais lenta, pelo que não se apercebeu da presença do peão nem foi capaz de imobilizar o veículo antes do embate.” A sentença recorrida não especifica como considerou este ponto como provado, mas em parte da motivação afirma-se o seguinte: “…tendo o acidente ocorrido pelas 15H30, é de concluir que a essa data o teor de álcool poderia até ser superior, pois, entretanto, o organismo já eliminara parte do álcool ingerido. A TAS (taxa de álcool no sangue) apurada por análise sanguínea é fidedigna, não havendo que deduzir qualquer EMA (erro máximo admissível)…” O R. impugna este raciocínio, afirmando que essa margem deve ser valorada, de acordo com os métodos científicos utilizados pelo INMLCF, pelo que apenas se poderá considerar demonstrado que apresentava uma taxa de álcool no sangue de, pelo menos, 0,44 gramas/litro, por ser esse o valor que, com total segurança, resulta do exame pericial realizado. Com vista ao esclarecimento desta questão, e porque do relatório do exame pericial da colheita de sangue realizada ao sinistrado, às 18h22 do dia do acidente – logo, 2 horas e 52 minutos após a sua ocorrência – consta que a quantificação de etanol no sangue apresentava o resultado de 0,50 ± 0,06 g/L, entendeu-se solicitar esclarecimentos ao Serviço de Química e Toxicologia Forenses do INMLCF, nos termos que acima se deixaram transcritos. Dos esclarecimentos assim solicitados, deve concluir-se que existe efectivamente incerteza associada à análise do álcool presente no sangue colhido ao R., pelo que “um resultado expresso como 0,50 ± 0,06 g/L significa que foi analiticamente determinada uma alcoolémia de 0,50 g/L e que, tendo em consideração a incerteza estimada para o método em vigor, a mesma poderá variar entre 0,44 e 0,56 g/L.” Por outro lado, se é certo que o Serviço de Química e Toxicologia Forenses esclarece que o coeficiente de eliminação do etanol, referido na literatura científica, é cerca de 0,15 g/litro/hora (homem), tais valores são aproximados, pois não há consenso científico quanto a esta matéria. Ademais, o mesmo Serviço esclarece que “a alcoolemia é afectada por vários factores, que incluem, a quantidade de alimentos presente no estômago no momento da ingestão da bebida (a presença de alimentos atrasa a absorção do álcool), o tipo de bebida ingerida (e.g. uma bebida gasosa acelera o esvaziamento gástrico), o grau alcoólico da bebida (bebidas de maior teor alcoólico fazem chegar ao sangue, em menos tempo, uma maior quantidade de álcool), e, também, o número de ingestões. A literatura consultada refere que, no pressuposto de se tratar de uma única ingestão, com estômago vazio, ao fim de 1 hora todo o álcool terá sido absorvido pelo sangue.” Ora, apenas se sabe que o R. havia ingerido bebidas alcoólicas antes do acidente. Ignora-se, e tal também não foi alegado pela A. na sua petição inicial, com que antecedência o R. havia ingerido essas bebidas em relação ao momento do acidente, que tipo de bebidas havia ingerido, qual o grau alcoólico das bebidas ingeridas, qual o número de ingestões ou sequer se tal ingestão foi efectuada à refeição ou depois da refeição – de todo o modo, atenta a hora do acidente, pode-se presumir que teria ocorrido a ingestão à hora do almoço, embora se ignore a que horas o R. almoçou naquele dia e terminou a refeição, nem tal está alegado nos autos. Com base nestes elementos, nem sequer é possível concluir que, no momento do acidente, o R. já havia atingido o valor mais elevado após a última ingestão de bebidas alcoólicas – tanto mais que a absorção do álcool no sangue ocorre ao fim de uma hora, “no pressuposto de se tratar de uma única ingestão, com estômago vazio”, algo pouco provável, atenta a hora do acidente, subsequente ao período em que a maior parte da população almoça. Logo, ao contrário do que se decidiu na sentença recorrida, não se pode considerar provado que o R. conduzia no momento do acidente acusando uma taxa de 0,5g/l, sem qualquer outro esclarecimento, quer porque se ignoram factos essenciais à determinação do momento de total absorção do álcool ingerido no sangue, quer porque o exame analítico realizado ao sangue colhido ao R., 2 horas e 52 minutos após o acidente, revelou uma TAS de 0,50g/l, com uma margem de incerteza associada ao método de análise utilizado de 0,06g/l, podendo variar entre 0,44 e 0,56g/l. Há ainda a dizer que o ponto 10 do elenco fáctico contém duas afirmações de direito – o “atropelamento deveu-se por culpa exclusiva da imprudência e imprevidência do Réu” e “estava assim sob a influência do álcool” – conclusões estas que deveriam ser extraídas de factos concretos, devidamente alegados e sobre os quais fosse possível efectuar a prova, com o devido contraditório e a imediação do tribunal. Helena Cabrita ensina que “os factos conclusivos são aqueles que encerram um juízo ou conclusão, contendo desde logo em si mesmos a decisão da própria causa ou, visto de outro modo, se tais factos fossem considerados provados ou não provados toda a acção seria resolvida (em termos de procedência ou improcedência) com base nessa única resposta.”[1] Ora, do art. 607.º n.ºs 3 a 5 do Código de Processo Civil decorre o dever de o tribunal discriminar os factos que julga provados e os que julga não provados, e após interpretar e aplicar as normas jurídicas correspondentes, concluindo pela decisão final. Daí que a enunciação da matéria de facto deva ser expurgada de valorações jurídicas, de locuções metafóricas ou de excessos de adjectivação. A propósito, escreveu-se o seguinte, no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 12.01.2021 (Proc. 2999/08.0TBLLE.E2.S1)[2]: «(…) como é sabido, em sede de fundamentação de facto (traduzida na exposição descritivo-narrativa tanto da factualidade assente, quer por efeito legal da admissão por acordo, quer da eficácia probatória plena de confissão ou de documentos, como dos factos provados durante a instrução), a enunciação da matéria de facto deve ser expurgada de valorações jurídicas, de locuções metafóricas ou de excessos de adjectivação. Todavia, vem sendo entendido que tal enunciação pode conter referência: · Quer a situações jurídicas consolidadas, desde que não hajam sido postas em causa, isto é, desde que sejam usadas sem representar uma aplicação do direito à hipótese controvertida (quando se trate de elementos adquiridos sobre os quais não vai incidir um esforço de apreciação normativa); · Quer a termos jurídicos portadores de alcance semântico socialmente consensual (portadores de uma significação na linguagem corrente) desde que não sejam objecto de disputa entre as partes e não requeiram um esforço de interpretação jurídica, devendo ser tomados na sua acepção corrente ou mesmo jurídica, se for coincidente, ou estiver já consolidada como tal na linguagem comum.» No caso, as alegações do acidente se dever a “culpa exclusiva da imprudência e imprevidência do Réu” e este se encontrar “sob a influência do álcool”, contêm em si afirmações de direito, em matéria jurídica controvertida nos autos, nomeadamente a culpa que constitui um dos requisitos do instituto jurídico da responsabilidade civil por factos ilícitos, e a condução sob o efeito do álcool, conceito legal definido no art. 81.º n.º 2 do Código da Estrada. Tais afirmações, contendo em si a decisão jurídica da própria causa, dispensariam qualquer esforço ulterior de interpretação e aplicação do direito – a causa estaria decidida na própria redacção da matéria de facto, tornando absolutamente inútil a discussão jurídica da causa, como se a distinção entre matéria de facto e matéria de direito fosse completamente irrelevante. A questão da culpa na produção do acidente deverá ser apreciada pela análise dos factos concretos apurados quanto à sua dinâmica e pela interpretação e aplicação das normas e institutos jurídicos pertinentes, enquanto a questão da condução sob a influência do álcool deverá ser analisada pelo mesmo método – análise dos factos concretos apurados e interpretação e aplicação da norma pertinente. Assim, porque importa que o ponto 10 reflicta a margem de incerteza associada ao método de análise ao álcool presente no sangue colhido ao R. às 18h22 do dia do acidente, e também porque importa expurgar as afirmações de direito ali incluídas, decide-se alterar a sua redacção para os seguintes termos: “10. O Réu havia ingerido bebidas alcoólicas antes do atropelamento, tendo relevado na análise ao seu sangue, colhido às 18h22 do mesmo dia, uma TAS com resultado expresso como 0,50 ± 0,06g/l, pelo que tendo em consideração a incerteza estimada para o método em vigor, a mesma poderá variar entre 0,44 e 0,56g/l. O R. conduzia também com falta de atenção e resposta mais lenta, pelo que não se apercebeu da presença do peão nem foi capaz de imobilizar o veículo antes do embate.” Os factos provados fixam-se assim pelo seguinte modo: 1. A Autora é uma sociedade constituída sob a forma comercial que tem por objecto a actividade seguradora. 2. No exercício da sua actividade e por força do contrato de seguro celebrado com AA, titulado pela apólice n.º …, a Autora aceitou a transferência da responsabilidade civil por danos decorrentes da circulação do veículo automóvel ligeiro de passageiros marca Volkswagen, modelo Passat DIE, matrícula …, dentro dos limites legais e contratuais, em vigor à data do acidente em que o referido veículo esteve envolvido, ou seja, em 01 de Setembro de 2021, pelas 15:30h. 3. No dia 01 de Setembro de 2021, pelas 15:30h, na EN 124, ao Km 0,400, em Portimão, ocorreu um atropelamento na zona de passagem para peões, existente naquele local. 4. No âmbito do qual foi interveniente o veículo automóvel ligeiro de passageiros com a matrícula …, de marca Volkswagen, segurado pela Autora, propriedade do Réu, sendo por este também conduzido, na E.N. 124, sentido de marcha Malheiro-Portimão. 5. O local do sinistro corresponde a uma estrada com separador central de betão que separa as vias de trânsito em sentidos opostos e cujo limite de velocidade local se regista em 50 Km/h, ligeiramente ascendente, no sentido em que circulava o veículo automóvel. 6. No entanto, na zona da passagem para peões não existe separador, de forma a permitir a travessia de um lado ao outro. 7. As condições atmosféricas eram boas e o piso estava seco. 8. Circulava o Réu na supramencionada via, quando embateu com a zona dianteira da viatura que tripulava contra um peão que fazia a travessia na passagem para peões, vulgo passadeira, existente naquele local. 9. Com efeito, o peão BB, de nacionalidade inglesa e residente em Inglaterra, quando antes tinha ingerido canabinóides, atravessava a passagem para peões, segurando à mão um motociclo de matrícula …, quando, na segunda parte da travessia, foi surpreendido pelo condutor da viatura segura, aqui Réu, que não imobilizou a mesma e o atropelou, tendo sido arrastado cerca de 20 metros. 10. O Réu havia ingerido bebidas alcoólicas antes do atropelamento, tendo relevado na análise ao seu sangue, colhido às 18h22 do mesmo dia, uma TAS com resultado expresso como 0,50 ± 0,06g/l, pelo que tendo em consideração a incerteza estimada para o método em vigor, a mesma poderá variar entre 0,44 e 0,56g/l. O R. conduzia também com falta de atenção e resposta mais lenta, pelo que não se apercebeu da presença do peão nem foi capaz de imobilizar o veículo antes do embate. 11. Na sequência do sinistro em apreço, foi o peão transportado para o Centro Hospitalar Universitário do Algarve – unidade de Portimão, atenta a gravidade dos ferimentos sofridos. 12. Tendo, posteriormente, sido transferido de helicóptero para o Hospital de Santa Maria, em Lisboa. 13. O peão BB sofreu: - Fractura exposta dos ossos da perna esquerda, com consequente amputação transfemural alta; - Traumatismo da face com fracturas OPN e parede orbita esquerda; - Traumatismo D2 da mão esquerda com lesão do tendão extensor; - Fractura da apófise espinhosa de C7 e dos processos transversos de L5; - Fractura da bacia estável (asa sacro direita, ramos púbicos direitos); - Traumatismo do ombro esquerdo com eventual lesão coifa. 14. De facto, os danos sofridos pelo peão, na perna esquerda, foram de tal forma severos que culminaram em amputação da mesma. 15. O lesado esteve internado até ao dia 26 de Outubro de 2021, data em que teve alta hospitalar. 16. De seguida, foi o sinistrado transferido para o Centro de Convalescença de Loulé. 17. Em 31 de Outubro de 2021 deu nova entrada hospitalar, no Centro Hospitalar Universitário do Algarve – unidade de Faro, após uma queda, consequente das limitações que sofreu com o atropelamento, que resultou em dor no membro inferior direito e no membro superior esquerdo, de onde teve alta hospitalar em 24 de Novembro de 2021. 18. Actualmente, o lesado apresenta: - Rigidez de D2 da mão esquerda, não fazendo extensão nem flexão completa; - Dor fantasma no membro amputado; - Dor no ombro esquerdo com rigidez de 80˚ associada; - Sintomas urológicos persistentes, resultantes das fracturas da zona lombar e da zona pélvica; - Complicações do politraumatismo, incluindo enfartes do miocárdio que requerem angioplastia coronária, uma lesão renal aguda e uma lesão hepática aguda; - Danos psicológicos. 19. A dor no ombro esquerdo (braço dominante) é permanente e causa ao lesado perturbações no sono, mantendo-o acordado durante a noite. 20. Em consequência das lesões sofridas, o lesado sofre de alguns episódios de incontinência. 21. O lesado tornou-se depende de uma cadeira de rodas, para se conseguir deslocar. 22. Desde o sinistro, o lesado nunca mais pôde exercer a sua actividade profissional. 23. Desde o sinistro, o lesado nunca mais pôde usufruir das actividades de lazer que costumava praticar, nomeadamente a condução de motociclos, pesca, marcha e natação. 24. Depende diariamente da sua companheira para as mais básicas necessidades do dia-a-dia, como vestir-se, higiene pessoal, confecção de alimentos, tarefas domésticas e cuidados com a habitação na generalidade. 25. Tornou-se dependente de táxis para se deslocar de um local para outro. 26. Permanece maioritariamente dentro de casa, sendo que a mesma não apresenta as condições necessárias para se conseguir mover com a cadeira de rodas; a única casa-de-banho encontra-se no piso superior, o que implica a subida de escadas. 27. Encontra-se psicologicamente fragilizado, com constantes “flashbacks” do atropelamento e com perturbações no sono. 28. Em resultado das lesões supra-referidas e de todos os danos sofridos, prevê-se que o sinistrado venha ainda a necessitar de: - Consultas de ortopedia – anca, mão e ombro; - Consultas de Cirurgia maxilo-facial; - Consultas de urologia; - Consultas de psicologia/psiquiatria; - Consultas de Fisiatria e plano de fisioterapia com protetização; -Exames complementares de diagnóstico e/ou registos clínicos a solicitar: das consultas anteriormente referidas. 29. A aqui Autora, por via do contrato de seguro automóvel estabelecido, arcou com as despesas tidas em função do sinistro, que a seguir de discriminam: - € 902,44 (novecentos e dois euros e quarenta e quatro cêntimos), em despesas hospitalares; - € 2.186,96 (dois mil, cento e oitenta e seis euros e noventa e seis cêntimos), em despesas hospitalares; - € 4.705,00 (quatro mil e setecentos e cinco euros), em parecer jurídico solicitado a advogado domiciliado em Inglaterra; - € 1.082,15 (mil, oitenta e dois euros e quinze cêntimos), em imposto pagos à Autoridade Tributária e Aduaneira; - € 35.000,00 (trinta e cinco mil euros), de adiantamento ao sinistrado, por conta da indemnização final, de acordo com critérios razoáveis e de bondade; - € 34.863,18 (trinta e quatro mil, oitocentos e sessenta e três euros e dezoito cêntimos), em despesas hospitalares; 30. Prevê-se que a Autora tenha ainda de vir a suportar despesas médicas e hospitalares, em consequência das consultas, exames, fisioterapia, cirurgias, bem como os cuidados e assistência, próteses, materiais e equipamentos, acomodações com a habitação, tratamentos, perdas de rendimentos, transporte e deslocações e demais despesas relacionadas com os danos e lesões sofridas pelo sinistrado, até à sua recuperação ou estabilização. Aplicando o Direito. Do direito de regresso da seguradora por condução sob a influência do álcool Na linha da jurisprudência expressa nesta Relação de Évora – máxime, nos Acórdãos de 27.04.2017 (Proc. 2078/15.3T8EVR.E1) e de 14.09.2023 (Proc. 717/20.3T8BJA.E1) – e no Supremo Tribunal de Justiça, no seus Acórdãos de 03.11.2020 (Proc. 2490/18.6T8PNF.P2.S1), de 10.12.20202 (Proc. 3044/18.2T8PNF.P1.S1) e de 25.03.2021 (Proc. 313/17.2T8AVR.P1.S1), todos publicados em www.dgsi.pt, igualmente entendemos que o art. 27.º n.º 1 al. c) do DL 291/2007 deve ser interpretado no sentido de a seguradora gozar automaticamente do direito de regresso contra o condutor causador do acidente quando seja portador de uma TAS superior à legalmente admitida, não sendo assim exigível que alegue e prove a existência de um nexo de causalidade entre a alcoolemia e a produção do acidente. Pressupostos do exercício do direito de regresso são, pois, que o condutor tenha dado causa ao acidente e que seja portador de uma TAS superior à legalmente permitida, sendo que o art. 81.º n.º 2 do Código da Estrada estabelece um valor quantitativo para este efeito: “Considera-se sob influência de álcool o condutor que apresente uma taxa de álcool no sangue igual ou superior a 0,5 g/l ou que, após exame realizado nos termos previstos no presente Código e legislação complementar, seja como tal considerado em relatório médico.” No caso, o R. foi sujeito a colheita do seu sangue cerca de 2 horas e 52 minutos após o acidente, e a análise efectuada apresentou uma TAS com resultado expresso como 0,50 ± 0,06g/l, pelo que tendo em consideração a incerteza estimada para o método em vigor, a mesma poderá variar entre 0,44 e 0,56g/l. Ou seja, o exame efectuado ao sangue colhido ao R., revela um resultado igual ao mínimo legal, mas sujeito a uma margem de incerteza associada ao método de análise utilizado, de ± 0,06g/l, pelo que não há certeza acerca da efectiva presença de uma alcoolemia igual ou superior à legalmente quantificada. A seguradora argumenta que, atento o tempo decorrido entre o momento do acidente e o da colheita de sangue, deveria considerar-se o coeficiente de eliminação do álcool (0,15 g/litro/hora), pelo que se deveria concluir que, no momento do acidente, o R. conduzia com uma TAS de 0,935g/l, por aplicação da equação (0,15x2,9)+0,5, em que 0,15 representa o mencionado coeficiente e 2,9 as horas e minutos decorridos entre os dois momentos relevantes, do acidente e da colheita (2h52m=2,9). Porém, como o Serviço de Química e Toxicologia Forenses esclarece, “o cálculo retrospectivo da concentração de álcool no sangue tem, subjacente, a condição de se estar na fase de eliminação do etanol (álcool), ou seja, depois de ter sido atingido o valor mais elevado após a última ingestão de bebidas alcoólicas. Apenas neste caso se poderia utilizar a equação (â x t) + g/L1”; por outro lado, “a alcoolemia é afectada por vários factores, que incluem, a quantidade de alimentos presente no estômago no momento da ingestão da bebida (a presença de alimentos atrasa a absorção do álcool), o tipo de bebida ingerida (e.g. uma bebida gasosa acelera o esvaziamento gástrico), o grau alcoólico da bebida (bebidas de maior teor alcoólico fazem chegar ao sangue, em menos tempo, uma maior quantidade de álcool), e, também, o número de ingestões. A literatura consultada refere que, no pressuposto de se tratar de uma única ingestão, com estômago vazio, ao fim de 1 hora todo o álcool terá sido absorvido pelo sangue.” Ora, a A. apenas alegou – e fez essa prova – que o R. havia ingerido bebidas alcoólicas antes do acidente. Quando ocorreu tal ingestão, em que condições e qual o tipo de bebidas ingeridas, nada alegou e nada ficou demonstrado. Embora se possa presumir que a ingestão terá ocorrido durante o período de almoço – algo muito provável, atenta a hora do acidente – mesmo assim ignora-se a que horas o R. terminou essa refeição, havendo a notar, de todo o modo, que tal implica a presença de alimentos no estômago, factor que atrasa a absorção do álcool no sangue e, consequente, a sua influência sobre o sistema nervoso central. Nestas condições, não é possível determinar que, no momento do acidente, o R. já havia atingido o período de máxima absorção de álcool no sangue, ou sequer que a alcoolemia presente nesse momento era necessariamente superior aos 0,50g/l detectados na colheita de sangue efectuada às 18h22, com a margem de incerteza associada de ± 0,06g/l. Ou seja, não apenas se ignora qual a efectiva taxa de álcool absorvido no sangue no momento do acidente, como a análise efectuada, atenta a sua margem de incerteza, também não permite estabelecer com segurança que essa taxa era efectivamente igual ou superior ao valor de 0,50g/l previsto no art. 81.º n.º 2 do Código da Estrada. Em consequência, a seguradora deve decair na sua pretensão, por não ter demonstrado um dos requisitos do qual dependia a verificação do direito de regresso que pretendeu exercer. Decisão. Destarte, concede-se provimento ao recurso, revoga-se a sentença recorrida e julga-se a causa totalmente improcedente, com integral absolvição do pedido. Custas pela Seguradora. Évora, 16 de Janeiro de 2025 Mário Branco Coelho (relator) Ana Pessoa Manuel Bargado (vencido, conforme a seguinte declaração de voto) Vencido. Decorre dos factos provados que o acidente de viação em que o réu/recorrente foi interveniente ocorreu pelas 15h:30m, do dia 01.09.2021 e foi efetuada colheita de sangue ao recorrente com vista à realização de teste de pesquisa de álcool no sangue, pelas 18h:22m desse mesmo dia, no Centro Hospitalar do Algarve, EPE, sendo o resultado desse exame de 0,50 g/l. Escreveu-se no acórdão desta Relação de 06.06.2024[3]: «Relativamente ao momento temporal em que deve ser feita a recolha de sangue, com vista à realização de análise para a deteção e quantificação de álcool no sangue, dispõe o artigo 5º, n.º 1, da Lei nº 18/2007, de 17 de maio - Regulamento de Fiscalização da Condução sob Influência do Álcool ou de Substâncias Psicotrópicas - que «[a] colheita de sangue é efetuada no mais curto prazo possível, após o ato de fiscalização ou a ocorrência do acidente». A lei não estabelece qualquer limite temporal, para a colheita de sangue, com a descrita finalidade, preceituando apenas que «é efetuada no mais curto prazo possível». E quando o método de pesquisa e de quantificação de álcool no sangue usado, for a análise sanguínea, o valor da taxa de álcool no sangue (TAS), por esse meio apurado, é fidedigno, não havendo, nessa situação que deduzir o erro máximo admissível (EMA). A dedução desse erro apenas se impõe, quando o método de quantificação da TAS utilizado, tiver sido o do ar expirado e relativamente aos valores verificados nos alcoolímetros, conforme decorre da Portaria n.º 1556/2007, de 19 de dezembro[4]. De acordo com estudos científicos realizados neste domínio, o pico máximo da TAS é, por norma, atingido cerca de 1 hora após a ingestão das bebidas alcoólicas, tendendo a partir daí a haver a diminuição da TAS (o mesmo é dizer a eliminação do álcool pelo organismo), a qual, embora seja variável de pessoa para pessoa – estando dependente da velocidade de degradação do álcool no fígado e das caraterísticas de cada individuo[5] -, é, em média, 0,10 g/l de álcool no sangue, por hora[6].» In casu, no que se refere ao tempo que mediou entre a ocorrência do acidente e a colheita de sangue verificamos que o acidente teve lugar pelas 15h30m e que a colheita de sangue foi obtida pelas 18h22m, ou seja, entre uma situação e outra decorreram duas horas e cinquenta e dois minutos, sendo que nessa altura, como decorre do que acima se deixou dito, o organismo do recorrente já havia eliminado parte do álcool ingerido, forçoso será concluir que o valor da TAS que o mesmo apresentava, quando foi feita a colheita de sangue, é inferior à que apresentava no momento em que ocorreu o acidente. A esta conclusão, salvo o devido respeito, não obsta o teor do parecer do Instituto Nacional de Medicina Legal e Ciências Forenses, I.P. (INMLCF), designadamente do seu ponto 2, que não esclarece – nem o poderia fazer face às condicionantes que coloca[7] -, se à data da ocorrência do sinistro, ou seja, 2h:52m antes da colheita sanguínea para realização do teste de alcoolemia, a TAS do condutor era inferior a 0,50g/l. Não existe, assim, salvo o devido respeito, fundamento válido para que se suscite a dúvida quanto ao valor da TAS que o recorrente apresentava no momento em que, exercendo a condução de veículo automóvel se deu o acidente, poder ser inferior a 0,50 g/l. E, sendo assim, como se afigura ser, mostra-se correta a afirmação constante do ponto 10 dos factos provados da sentença recorrida, de que o recorrente conduzia o seu veículo no momento do acidente “acusando uma taxa de 0,5 g/l”. A causa mais provável que pode justificar a ocorrência do acidente dos autos é a TAS com que o réu conduzia, conjugada com a desatenção e falta de cuidado que imprimia à sua condução[8]. Dizemos mais provável porque não é possível - sejamos realistas - a demonstração direta do nexo causal entre a condução sob influência do álcool e o resultado danoso provocado pelo condutor alcoolizado, em casos do tipo em consideração. Mas tal impossibilidade não pode conduzir, sem mais, à não prova do nexo causal, porque isso equivaleria à completa desresponsabilização de quem conduz sobre a influência de uma TAS proibida. Numa área considerada de prova diabólica, a cuja dificuldade de demonstração direta o julgador não pode ser indiferente, o coeficiente de exigência probatória material tem que ser contido nos limites do razoável das circunstâncias concretas, do concreto tipo de nexo causal, onde as presunções judiciais, as regras da experiência científica, comum e da vida não podem deixar de ter uma intervenção significativa. Assim sendo, sempre que se conclua, com um elevado grau de probabilidade, que o resultado se ficou a dever a determinada causa, fica afastada a dúvida razoável. No caso concreto, esse elevado grau de probabilidade retira-se das referidas regras da experiência científica e comum. Por conseguinte, julgaria improcedente o recurso e confirmaria a sentença recorrida. Manuel Bargado __________________________________________________ [1] In A Fundamentação de Facto e de Direito da Decisão Cível, Coimbra Editora, 2015, págs. 106-107. [2] Publicado em www.dgsi.pt. [3] Proc. 2500/23.5T8FAR.E1, por mim relatado, disponível in www.dgsi.pt. [4] Cfr. Acórdão desta Relação de Évora de 27.09.2022, proc. 142/17.3GTSTB.E1, in www.dgsi.pt, que aqui seguimos de perto. [5] Cfr. Sónia Maria Marques Teixeira Mendonça Gouveia, Avaliação de efeitos do álcool no tempo de reacção, FEUP 2010, pág. 11, acessível in https://repositorio-aberto.up.pt. [6] Cfr. Álcool Verdades e Mitos, Ministério da Saúde, disponível in https://ucccb.pt/wp. Assim decidiram, inter alia, os acórdãos desta Relação de 24.01.2017, proc. 340/14.1GBPSR.E1 e de 23.03.2021, proc. 22/20.5GCLGS.E1, ambos disponíveis in www.dgsi.pt. [7] As quais não foram sequer alegadas pelo recorrente. [8] Vide pontos 8 e 9 dos factos provados. |