Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
60/23.6SULSB.E1
Relator: MOREIRA DAS NEVES
Descritores: ERRO NOTÓRIO NA APRECIAÇÃO DA PROVA
PROVA DOCUMENTAL
PROVA TESTEMUNHAL
AUTO DE VIGILÂNCIA
MEIO ATÍPICO DE PROVA
PROIBIÇÃO DE VALORAÇÃO
Data do Acordão: 04/09/2025
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: I. O erro notório na apreciação da prova é um vício respeitante à perfeição formal da decisão sobre a matéria de facto, cuja verificação há de necessariamente ser evidenciada pelo próprio texto da decisão recorrida, porquanto se trata de vício de lógica jurídica ao nível da matéria de facto, que torna impossível uma decisão logicamente correta e conforme à lei.

II. Ocorre lá quando o tribunal dá como provado ou não provado determinado facto (ou conjunto de factos), quando a conclusão lógica seria a contrária, por ofender princípios ou leis formulados cientificamente, nomeadamente das ciências da natureza e das ciências físicas ou contrariar princípios gerais da experiência comum das pessoas, ou por se ter violado ou postergado um princípio ou regra fundamental em matéria de prova.

III. Tendo esse erro ser tão clamoroso que não passa despercebido ao cidadão comum (a um homem médio), sendo apreensível pela mera leitura do respetivo texto, sem recurso a quaisquer elementos externos a ele. Sendo, nessas circunstâncias, tal vício (como os demais previstos no § 2.º do artigo 410.º CPP) impeditivo de bem se decidir tanto ao nível da matéria de facto como de direito.

IV. O «auto de vigilância» não constitui «prova documental». No processo penal «documento» é a «declaração corporizada em escrito, ou registada em disco, fita gravada ou qualquer outro meio técnico, inteligível para a generalidade das pessoas ou para um certo círculo de pessoas, que, permitindo reconhecer o emitente, é idónea para provar facto juridicamente relevante, quer tal destino lhe seja dado no momento da sua emissão, quer posteriormente; e bem assim o sinal materialmente feito, dado ou posto numa coisa ou animal para provar facto juridicamente relevante e que permite reconhecer à generalidade das pessoas ou a um certo círculo de pessoas o seu destino e a prova que dele resulta», conforme consta do artigo 255.º, al. a) CP, ex vi artigo 164.º, § 1.º CPP.

V. Os documentos são meios de prova que nascem fora do processo e que nele são incorporados, com finalidade exclusivamente probatória (artigo 164.º, § 2.º CPP). O que não é o caso dos relatórios de vigilância, que nascem no próprio processo, tratando-se estes de meros atos processuais documentados, constituídos por um relato de facto(s) que determinado(s) agente(s), no âmbito da investigação, testemunhou(ram).

VI. A documentação desse ato processual é útil à investigação, mas tal meio de prova está no mesmo exato patamar dos autos de declarações de testemunhas produzidas durante o inquérito, que igualmente se documentam no processo, mas que obviamente não constituem prova documental.

VII. É por essa singela razão que as testemunhas ouvidas no inquérito; e, de igual modo, os agentes policiais que realizam as vigilâncias e as documentam num auto (de vigilância); têm de ser arroladas como testemunhas e depois convocadas para comparecerem a audiência; para aí prestarem depoimento como testemunhas. E esta inquirição é que constitui a prova (testemunhal, claro).

VIII. É certo que durante a inquirição dessas testemunhas em audiência, poderão as mesmas ser eventualmente confrontados com o que documentaram no referido auto, nos termos previstos no 356.º, § 2.º, al. b) e 3.º CPP ou 356.º, § 5.º CPP. E podendo até o auto respetivo ali ser lido, nos termos previstos no artigo 356.º, § 4.º CPP (exatamente do mesmo modo que as demais testemunhas), mas as atas das sessões da audiência não evidenciam que essa leitura se tenha efetuado.

Decisão Texto Integral: ACÓRDÃO
I – Relatório

a. No ….º Juízo1 Central Criminal de … procedeu-se a julgamento em processo comum, com tribunal coletivo, de AA, nascido a …/1969; e de BB, nascido a …/1968, ambos com os demais sinais dos autos, acusados que estavam da prática, como coautores, de um crime de tráfico de substâncias estupefacientes, previstos no artigo 21.°, § 1.º, do Decreto-Lei n.º 15/93 de 22 de janeiro; e o referido AA, ainda, da prática, como autor, de um crime de falsificação de documento, previsto no artigo 256.º, § 1.º, als. d) e f) e § 3.º do Código Penal (CP).

A final o tribunal coletivo proferiu acórdão pelo qual condenou:

- AA, pela prática, como autor, de um crime de tráfico de substâncias estupefacientes, previsto no artigo 21.°, § 1.º, do Decreto-Lei n.º 15/93 de 22 de janeiro, na pena de 7 anos de prisão;

- e, também como autor, de um crime de falsificação de documento, previsto no artigo 256.º, § 1.º, als. d) e f) e § 3.º CP, na pena de 1 ano e 3 meses de prisão.

Operado o cúmulo jurídico das penas respeitantes ao concurso de crimes, o arguido foi condenado na pena única de 7 anos e 6 meses de prisão.

Tendo absolvido o arguido BB da coautoria do crime de tráfico de substâncias estupefacientes, de que fora acusado.

b. Inconformado com a absolvição do arguido BB o Ministério Público interpôs recurso, pelo qual pugna pela condenação deste arguido, pela prática, como coautor, do crime de tráfico de substâncias estupefacientes, de que fora acusado, de cuja motivação extraiu as seguintes conclusões:

1.ª – O presente recurso versa sobre o douto Acórdão proferido nos autos, o qual, ao invés do que decidiu, se tivesse apreciado e valorizado a prova produzida pautado por critérios da racionalidade e da lógica, conforme impõe o art.º 127º, do CPP, teria também condenado o arguido BB como coautor material da prática de um crime de tráfico de estupefacientes e outras atividades ilícitas, p. e p. pelo art.º 21º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22-01, por referência à tabela anexa I-B e I-C.

2.ª - Entendemos ainda que do próprio texto do Acórdão recorrido, por si só e conjugado com as regras do conhecimento e da experiência comum, resulta a verificação do vício de erro notório na apreciação da prova, nos termos estabelecidos no art.º 410º, n.ºs. 1 e 2, alínea c), do CPP.

3.ª - No segmento da decisão recorrida respeitante à Fundamentação da convicção do tribunal quanto aos factos provados e não provados, ali se refere ser evidente a existência de indícios sérios do envolvimento do arguido BB nos factos. Todavia, depois o Tribunal considerou que tais indícios não eram suficientes para incriminar este arguido.

4.ª – Entendeu o Tribunal, que por muito pouco credíveis que fossem as explicações dos arguidos não se podia extrai do facto do arguido BB acompanhar o arguido AA (arguido condenado) que soubesse tudo o que se estava a passar se não qualquer pessoa que tivesse sido convidada a fazer a viagem estaria também envolvida.

5.ª – É dito ainda na fundamentação que por motivos não concretamente apurados, o arguido AA (arguido condenado) decidiu alterar a sua versão dos factos para ilibar o seu coarguido BB, incluindo nas declarações finais que foi feita alusão, o que, no entendimento do tribunal constituiu contraindício de peso em termos de não se poder inferir dos demais indícios para a participação na atividade criminosa por parte do arguido BB.

6.ª – Diremos que se concorda que o simples facto de se convidar alguém para fazer uma viagem não pode implicar desde logo o seu envolvimento na prática dos factos.

7.ª – Contudo, no caso dos autos a situação não se limitou só a um convite, desde logo porque os arguidos eram amigos, e sendo amigos, não se entende como é que o arguido AA (condenado) não se inibiu de expor o arguido BB a uma situação como a dos autos, com graves consequências para este, o que, sublinhe-se, não pode encontrar qualquer suporte nas máximas da experiência.

8.ª – Também e não menos relevante, é o facto de ter sido só o arguido BB que foi convidado e não qualquer outra pessoa, sendo certo que estamos a referir-nos a uma viagem à localidade de …, em Espanha, junto a …. Portanto, a uma viagem cuja ida e volta corresponde a um percurso de 451 km, e que tem um tempo de duração médio, via A 23, de 4h52m.

9.ª - Ora, ninguém convida um amigo para uma viagem com tais características e duração, acrescida de um risco elevado face à natureza da ilícita da atividade a empreender, com graves consequências a nível inclusive da privação da liberdade, sem existir um acordo e conhecimento prévio dessa mesma atividade.

10.ª - As máximas da experiência e o recurso às regras da razão e da lógica não suportam uma versão dos factos em que se possa concluir, como a decisão recorrida fez, que não era possível incriminar o arguido BB relativamente aos factos em causa.

11.ª – Também correlacionado com esta matéria, se alega a existência do vício de erro notório na apreciação da prova, dado que o Tribunal a quo, não obstante ter dado como provado que o arguido AA auferia um vencimento total no montante de 1.800,00€, o qual suportava em termos económicos a subsistência do agregado familiar composto por quatro pessoas e com despesas fixas mensais no montante de 1.160,00€ (pontos 27, 34 e 35 do segmento dos factos dados como provados), não teve em conta nem valorou tais factos na apreciação da prova para concluir de forma lógica que a referida situação económica não permitia ao arguido AA, sem a ajuda e intervenção do coarguido BB, adquirir a quantidade de produto estupefaciente que veio a ser apreendida.

12.ª - Não foi, como deveria ter sido, valorado o facto de o coarguido BB na altura levar consigo a quantia de 3.165,00€, em numerário (ponto 4 dos factos provados), cuja explicação para a respetiva detenção foi o facto de ter que efetuar pagamentos, bem como o facto de este arguido auferir um rendimento liquido mensal de cerca de 2.000,00€ a 3.000,00€ (ponto 49 dos factos provados), e obter desde há cerca de 1 ano um rendimento liquido mensal de 1.000,00€ em média da atividade agrícola, sendo proprietário de terrenos agrícolas há cerca de 3 anos (pontos 48 e 51 dos factos provados).

13.ª – Assim, se algo de manifesto resulta dos factos provados, é que era o arguido BB quem tinha capacidade económica e financeira para adquirir o produto estupefaciente que foi apreendido, e não, ao invés, sem qualquer ajuda, o arguido AA.

14.ª - Todavia, o Tribunal a quo, desprezou esse facto e não o considerou na apreciação da prova, pelo que, deu como não provada a participação do arguido BB nos factos em causa, quando na apreciação do comum dos observadores, tal não poderia ter acontecido. Ou seja, a conclusão iria sempre no sentido de que este arguido tinha que ter tido conhecimento e participação nos factos dados como provados.

15.ª – Por isso, é fundada a conclusão que na apreciação da prova se verificou um vício de raciocínio, o qual se mostra, pelas razões indicadas, evidenciado na simples leitura do texto da decisão recorrida.

16.ª – Trata-se assim de um erro tão crasso que salta aos olhos de qualquer leitor médio que procedesse à leitura do Acórdão recorrido.

17.ª – É que face aos factos que foram dados como provados e que acima identificamos, o arguido AA (condenado) não possuía capacidade financeira para sozinho adquirir o produto estupefaciente que foi apreendido, e, ao invés, o arguido BB (absolvido) já a possuía.

18.ª – Logo, não considerar essa situação na apreciação da prova, integra, na nossa perspetiva, o vício de erro notório na apreciação da mesma.

19.ª - Faz-se ainda notar que o produto estupefaciente apreendido na viatura do arguido AA correspondia ao peso total de 3.014 gramas (peso líquido) de cocaína, que custaria consumidores, em média, a 20,00€, e, por isso mesmo, será razoável considerar como preço de aquisição metade desse valor.

20.ª –Assim, face à sua situação económica do arguido AA e que foi dada como provada, este sozinho nunca teria capacidade para adquirir o referido produto estupefaciente, sendo certo que tendo tal produto sido adquirido numa localidade situada em Espanha, não é verosímil que o mesmo tivesse sido cedido à consignação, nem em negócios de droga isso ocorre.

21.ª - Logicamente, o arguido BB, com mais recursos financeiros, tinha que estar necessariamente envolvido na aquisição do produto estupefaciente apreendido.

22.ª - Donde, quer o recurso às regras da experiência, da lógica e da razão na apreciação da prova, quer os factos dados como provados e quer ainda parte da fundamentação da matéria de facto que consta do respetivo segmento, conduzem-nos à participação do arguido BB nos factos, sendo que, ao arrepio disso, a decisão recorrida veio a extrair uma ilação contrária, que na apreciação do comum dos observadores, não faz sentido.

23.ª - Finalmente faz-se notar que do processo consta o Relatório de Vigilância (cf. Referência Citius …, de 2023-11-2024), onde é descrita a vigilância efetuada por agentes da PSP aos arguidos, tendo sido verificado que no dia 21-11-2023, portanto dois dias antes da data dos factos em causa, os arguidos, utilizando a mesma viatura automóvel, deslocaram-se igualmente de … a … e depois, pelas 12h30m, entram em território Espanhol. Após, pelas 13h30m, entraram novamente pela localidade de …, e depois seguiram no sentido da ….

24.ª – Se é verdade que o simples facto de se convidar alguém para fazer uma viagem não pode implicar desde logo o seu envolvimento na prática dos factos, certo é que, a ocorrência de duas situações idênticas no período de 3 dias, consolida ainda mais o sustentado acerca da participação e conhecimento do arguido BB nos factos.

25.ª – Logo, é fundada a conclusão que os factos descritos na decisão recorrida, considerados provados e não provados, se apresentam, aos olhos do referido observador, contraditórios ou de impossível verificação, pelo que parte da análise critica da prova que foi efetuada não obedeceu aos princípios da racionalidade e da lógica, verificando-se o vício de erro notório na apreciação da prova.

26.ª - Assim, por tudo o que se disse, o arguido BB deveria ter sido, a par do arguido AA, condenado como coautor material da prática de um crime de tráfico de estupefacientes e outras atividades ilícitas, p. e p. pelo art.º 21º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22-01, por referência à tabela anexa I-B e I-C.

27.ª - Ao não ter assim decidido, o Acórdão recorrido violou as disposições constantes dos artigos 127º e 410º, n.ºs. 1 e 2, alínea c), do CPP, e art.º 21º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22-01, por referência à tabela anexa I-B e I-C.

b.1 Também inconformado com as penas que lhe foram aplicadas, recorre o arguido AA, finalizando as respetivas motivações com as seguintes conclusões:

«(…)

3. Dos factos que resultaram provados inexistem dúvidas que o arguido desenvolveu uma atuação que preenche o tipo legal.

4. Ficou assim, de facto assente a intenção concretizada do arguido.

5. O recorrente era um “transportador”, ou seja, um elemento base na dinâmica da ação do crime por que foi condenado, não tendo os poderes de direção do negócio, limitou-se a cumprir ordens.

6. O recorrente deve ser punido, mas na medida da sua culpa, sendo notório que o recorrente não possuía a direção do negócio em causa, nem tinha a disponibilidade financeira para o concretizar.

7. Por outro lado o recorrente não teve qualquer remuneração pelos seus atos.

8. Assim, em termos de vertente objectiva do tipo, não existe qualquer dúvida de que o arguido realizou condutas subsumíveis ao crime de tráfico de estupefacientes, sendo certo que o crime de tráfico de estupefacientes, enquanto crime de perigo, prevê, em qualquer uma das suas modalidades, a protecção do bem jurídico recuada a momentos iniciais da acção, independentemente da produção de qualquer resultado.

9. No caso vertente resulta provado que o recorrente se encontra perfeitamente inserido social e familiarmente, veja-se a este propósito o teor do relatório social junto aos autos, e não corretamente valorado pelo tribunal recorrido, e cujo teor se oferece.

10. Confessou os crimes e mostrou arrependimento.

11. Não tem antecedentes criminais por crimes da mesma natureza.

12. As penas sofridas para o comportamento global do recorrente, são eventualmente desproporcionais e desconformes com a jurisprudência e pecam por excessivas.

13. Deveria ter sido optada pela aplicação ao recorrente de pena de prisão próxima do limite mínimo legalmente considerado e eventualmente suspensa na execução no que ao crime de tráfico de estupefacientes respeito, conforme sugerido no relatório social.

14. Deveria ter sido ao contrário do que sucedeu, condenado em pena de multa pela pratica em autoria do crime de falsificação de documentos.

15. Com a escolha e determinação das penas no sentido referido, estariam alcançadas as finalidades das penas ao caso em apreço, bem como a prevenção geral e especial aqui exigida.

16. Afixar-se um juízo de censura jurídico-legal haverá que ser ponderado o futuro do agente numa perspetiva de contribuição para a sua recuperação como individuo dentro dos cânones da sociedade.

17. O recorrente sempre cumpriu de forma exemplar as suas obrigações em meio prisional e em OPHVE, oque demonstra um respeito pela imposição de regras, e capacidade de as cumprir.

18. Assim, a ser considerada a matéria de facto apurada na sua globalidade, esta aponta para a presença de um cidadão com uma positiva inserção social e um percurso de vida com hábitos de trabalho e manifesto suporte familiar, sendo que a ilicitude da autoria do recorrente verificada nos eventualmente, poderá indicar para uma situação de alguma moderada diminuição da ilicitude.

19. No entanto, e no caso vertente resulta provado que o recorrente se encontra perfeitamente inserido social e familiarmente, e que as penas aplicadas terão um efeito inverso ao desejado pelas penas sancionatórias, uma vez que irá prejudicar a inserção social do recorrente.

20. É uma pena justa aquela que responda adequadamente às exigências preventivas e não exceda a medida da culpa.

21. O recorrente deveria ter sido condenado em pena de prisão próxima do limite mínimo legalmente considerado e eventualmente suspensa na sua execução, e ainda em pena de multa.

Normas Violadas: Artigo 127º do CPP; Artigo 21º, nº.1 do DL 15/93; artigo 40º, 50º, 51º, 70º, 71º todos do CP, visto as penas pecarem por exageradas e desproporcionais.»

c. Admitidos os recursos, o Ministério Público respondeu ao que foi interposto por AA, aduzindo, em síntese:

«1.ª - As necessidades de prevenção geral e especial são particularmente elevadas no caso em apreço, pelo que, em respeito pelas mesmas e ainda pelas finalidades da punição, afigura-se-nos correta e sem reparos a decisão do Tribunal a quo de aplicar ao ora recorrente a pena de prisão efetiva.

2.ª – Bem andou o Tribunal a quo ao não suspender a execução da pena de prisão aplicada ao arguido AA, porquanto a mesma não realizaria de forma adequada e suficiente as finalidades da punição previstas no artigo 40.º do Código Penal, o que contrariaria expressamente os pressupostos decorrentes do artigo 50.º do Código Penal e afrontaria as finalidades da pena e as necessidades de prevenção que o caso requer.

3.ª – O Acórdão recorrido fez uma determinação justa, ponderada e adequada da pena de sete anos de prisão pela prática de um crime de tráfico de estupefacientes e outras atividades ilícitas e da pena de um ano e três meses de prisão pela prática de um crime de falsificação ou contrafação de documento, aplicadas ao ora recorrente, as quais depois de efetuado o cúmulo jurídico, se converteram na pena única de sete anos e seis meses de prisão, pelo que não violou qualquer norma legal invocada pelo recorrente.»

c.1 Por sua vez, o arguido BB respondeu ao recurso interposto pelo Ministério Público, no qual se pugna pela sua condenação como autor de um crime de tráfico de substâncias estupefacientes, sumariando a respetiva motivação dizendo que:

«1.º In casu, não se verifica, de forma alguma, tal qual invocado pelo M.P., o vício previsto na al. c), do n.º 2, do art.º 410.º, do C.P.P., ou seja, qualquer “erro notório na apreciação da prova”, nem, tampouco, qualquer um dos vícios previstos nas als. a) e b), do n.º 2, desse, mesmo, normativo legal, correspondendo, aliás, e, na verdade, a sua invocação, por parte do M.P., da verificação de tal vício, a uma mera – mas, quer-se crer, sempre, inócua – tentativa de, através de tal via, impugnar, encapotada e enviesadamente, a matéria fáctica fixada pelo Tribunal a quo, que, de todo o modo, certamente por não ser, à luz da prova produzida, de forma alguma e, de modo algum, impugnável, optou, razoável e, compreensivelmente, por não impugnar.

2.º O M.P., na verdade, limita-se, pura e simplesmente, a manifestar sua discordância relativamente àquilo que, à luz do disposto no art.º 127.º, do C.P.P., o Tribunal a quo deu, mui bem, como provado e como não provado (o que, na verdade, se enquadra, não no domínio de tal vício, mas, sim, no domínio da livre apreciação da prova, que, de resto, incumbe, não ao M.P., mas, sim, ao Tribunal a quo), procurando impor aquilo que, na sua mui singular e subjectiva perspectiva, deveria ter sido dado, pelo Tribunal a quo, como provado, não concretizando o, ainda que minimamente, ou, pelo menos, de forma suficiente, qualquer incompatibilidade lógica resultante do texto do Acórdão recorrido.

3.º A versão factual a que o Tribunal a quo chegou, mostra-se, de todo em todo, no que ao seu percurso lógico-racional concerne, claramente, fundamentada, não se apresentando, tal factualidade, de forma alguma, logicamente inaceitável, notória e manifestamente errada, impossível de ter acontecido ou violadora das regras da experiência comum.

4.º O arguido/recorrido mantém interesse no Recurso, por ele, apresentado, a 03/01/2024 (ref.ªs citius …, … e …), e através do qual impugnou o Despacho proferido, na 24/11/2023, pelo Meritíssimo J.I.C.»

d. Subidos os autos, o Ministério Público junto deste Tribunal da Relação secundou a posição apresentada junto do Juízo recorrido.

e. Os autos foram com vista aos adjuntos e depois à conferência.

Cumprindo agora apreciar e decidir.

II – Fundamentação

A. Sem prejuízo do dever de conhecimento oficioso de certos vícios, designadamente os indicados no artigo 410.º, § 2.º do CPP e nulidades, o âmbito dos recursos delimita-se pelas conclusões extraídas das respetivas motivações, visando permitir e habilitar o Tribunal ad quem a conhecer as razões de discordância face à decisão recorrida.2

Neste enquadramento constatamos o recurso do Ministério Público coloca uma única questão:

i) vício do erro notório na apreciação da prova.

E relativamente ao recurso de AA, vem colocada também apenas uma questão: i’) espécie e medida das penas (e eventual suspensão da execução da pena de prisão).

B. A decisão recorrida

B.1 O Tribunal a quo julgou provados os seguintes factos:

«Da acusação.

1.- Em data não concretamente apurada, mas anterior às 15 horas do dia 23/11/2023, o arguido AA participou e aderiu a um plano gizado pelo qual seria adquirido, detido, transportado e preparado produto estupefaciente que tinha como destino a cedência a terceiros mediante contrapartida monetária.

2.- No dia 23 de Novembro, pelas 15 horas, o arguido AA conduzida a viatura automóvel de marca “…”, modelo “…”, com a matrícula “…”, tendo como único passageiro o arguido BB na autoestrada …, sentido Norte/Sul, quando ao quilómetro …, foram fiscalizados pela Polícia de Segurança Pública.

3.- Em tais circunstâncias o Arguido AA guardava no forro da zona da coluna central da viatura automóvel, cinco embalagens envoltas em plástico contendo cocaína (cloridrato), uma com o peso de 1004,000 gramas (peso líquido) com um grau de pureza de 69,6%, duas embalagens com o peso de 2010,000 gramas (peso líquido) com um grau de pureza de 63,1% e duas embalagens com o peso de 2011,000 gramas (peso líquido) com um grau de pureza de 63,3%.

4.- No mesmo momento, o arguido BB detinha € 3 165, 00 em numerário.

5.- O arguido AA detinha € 215,00 em numerário e uma folha com as anotações “ketamina – filamento”; “estasis - rosa”, “enfetamina – cristalizada”.

6.- O arguido AA detinha um documento com o título “Pasaporte – Mexico”, um documento denominado “Licencia para conducir” e um documento denominado “permisso internacional para conducir”, todos contendo dizeres com menção de terem sido emitidos pelo Estado do México e todos titulados por CC, nascido a … de 1969, mas com as fotografias do arguido AA apostas nos mesmos por si fornecidas.

7.- Os documentos detidos pelo arguido AA são falsos, por terem sido obtidos por impressão de jacto de tinta policromática.

8.- No interior da viatura automóvel de marca “…” com a matrícula “…” foi encontrada uma chave pertencente ao automóvel de matrícula “…”, de marca “…”, modelo “…” que tinha sido alugado pelo arguido AA à empresa de aluguer de veículo “…”.

9.- No dia 23 de Novembro de 2023, pelas 17 hora e 5 minutos, no interior da mencionada viatura automóvel de matrícula “…” alugada pelo arguido AA, foi encontrado e apreendido um saco de plástico guardado no banco do passageiro da frente que continha:

- Cinco embalagens em vácuo de cocaína (cloridrato) com peso de 199,337 gramas (peso líquido) com grau de pureza de 74,7% correspondente a 744 doses diárias individuais;

- Duas embalagens contendo dez placas de canábis resina com peso de 941,384 gramas (peso líquido) com THC de 9,8% correspondente a 1845 doses diárias individuais.

10.- No dia 23 de Novembro de 2023, pelas 18 horas e 36 minutos, estava guardada no interior de um quarto da sua habitação, sita na Rua …, n.º …, …, uma espingarda de calibre 12 de marca “…”, com o n.º ….

11.- No dia 23 de Novembro de 2023, pelas 19 horas e 35 minutos, estava guardada no interior de um armazém agrícola sito numa quinta na …, …, …, do arguido BB:- balança de precisão de marca “…”; - um rolo de papel celofane; - uma máquina de vácuo de marca “…”; - um conjunto de sacos para embalamento a vácuo.

12.- A cocaína apreendida na viatura “…”, modelo “…”, com a matrícula “…” corresponde a 16198 doses diárias individuais.

13.- O arguido BB não é titular de licença de uso e porte de arma de qualquer classe.

14.- O veículo apreendido “…”, modelo “…”, com a matrícula “…” servia para transportar a droga que o Arguido AA transacionava e para as deslocações deste junto dos seus fornecedores para se reabastecer e junto de eventuais compradores e revendedores para entregar o estupefaciente.

15.- O Arguido AA agiu sempre de forma livre, deliberada e conscientemente.

16.- O Arguido BB tem capacidade para entender as proibições legais e de se determinar de acordo com as mesmas.

17.- O Arguido AA agiu ciente da quantidade, composição, características e natureza estupefaciente das substâncias que transportava, detinha e que destinava à cedência e venda a terceiros.

18.- Estando o Arguido AA ciente que a sua detenção para oferta, partilha e venda a terceiros, é proibida por lei, sendo certo que, para tanto, não era, nem é, titular de qualquer autorização legal.

19.- O arguido AA detinha três documentos denominados como passaporte, licença de condução e permissão internacional para conduzir, com a menção de emitidos pelo México, todos com a sua fotografia, mas titulados por CC, bem sabendo que tais documentos atestam um nome e uma nacionalidade que não correspondem aos seus.

20.- Ao deter tais documentos o arguido AA agiu com o propósito de, mediante engano dos serviços competentes sobre a sua identidade, utilizando dados que sabia serem falsos, com o objetivo de usar os referidos documentos, bem sabendo que os mesmos não foram emitidos pelas autoridades dos Estados Unidos do México a seu favor.

21.- O arguido AA atuou da forma descrita visando obter vantagens que sabia não lhe serem devidas, designadamente a de poder vir a identificar-se como cidadão mexicano, assim colocando em crise a veracidade, credibilidade e a fé pública que deve merecer tais documentos e as declarações neles constantes, por não serem verdadeiras.

22.- O arguido BB conhecia as características e potencialidades da arma supra referida em 10.-, sem que tivesse licença de uso e porte daquela arma ou registo e manifesto da mesma.

23.- O arguido BB sabia que não podia deter na sua posse a arma de fogo referida sem possuir qualquer licença, manifesto ou registo.

24.- O Arguido AA sabia que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei.

Das condenações registadas.

25.- O Arguido AA foi condenado por decisão proferida em 9/11/2022, transitada em julgado em 30/11/2023, por Tribunal Francês, pela prática em 5/11/2022, de um crime de infrações aduaneiras e de um crime de branqueamento de produtos do crime, em um ano de prisão.

26.- O certificado de registo criminal do Arguido BB datado de 14/10/2024, não insere qualquer condenação sua.

Da situação pessoal social familiar económica e familiar do Arguidos.

Do Arguido AA.

27.- AA integra atualmente, como na altura dos factos supra referidos em 1.- a 24.-, o agregado familiar composto pelo próprio, pela esposa DD, atualmente com 58 anos de idade, doméstica, e os dois filhos do casal, EE, de 26 anos de idade, … e FF, com 29 anos de idade, exerce funções na ….

28.- A relação intrafamiliar caracteriza-se por laços de afeto e de interajuda entre todos os elementos do agregado familiar.

29.-Residem numa moradia, que adquiriram através de empréstimo bancário, na cidade de …, de tipologia 3, que dispõe de boas condições de habitabilidade.

30.-O Arguido AA iniciou os estudos em idade normal e frequentou a escola até ao 8.º ano de escolaridade.

31.-Começou a sua atividade profissional com 18 anos de idade, efetuando trabalhos na área das vendas, aos 27 anos de idade integrou a equipa de vendas da empresa … que comercializava produtos de ….

32.- No ano 2018 abriu o seu próprio negócio, …., onde possuía um restaurante tipo tradicional e take away, uma pastelaria e casa de chá, além de comercializar, por grosso e a retalho, produtos alimentares incluindo produtos regionais.

33.- Em 2021 abriu uma nova empresa, …, de comércio de produtos alimentares, onde mantém funções como gerente.

34.-Em termos económicos a subsistência do agregado é suportada pelo vencimento do arguido, no valor total de 1800€/mês.

35.- Como despesas fixas mensais mais relevantes foram referidas as respeitantes à prestação da casa no valor de 420€, prestação do carro no valor de 540€, eletricidade, água e, gás e operadora de televisão no valor total de cerca de € 200,00 mensais.

36.-Nos tempos livres, segundo mencionou AA, privilegia o convívio com a família e amigos.

37.-Socialmente as informações disponíveis apontam para uma interação cordial com os elementos da comunidade da área de residência.

Do Arguido BB.

38.-Há cerca de 7 anos iniciou novo relacionamento afetivo com a atual companheira, que esta e o arguido consideram estável e gratificante.

39.-Não foram sinalizados episódios de desadequação comportamental do arguido em contexto familiar, nem a existência de dinâmicas relacionais conflituosas entre os seus elementos.

40.-Reporta uma relação afetiva significativa com uma companheira anterior, tendo nascido dois filhos fruto dessa união, atualmente com 19 e 18 anos.

41.- A separação dessa companheira decorreu sem incidentes, mantendo uma relação sem conflitos até ao presente.

42.- Mantém uma relação próxima com os filhos, os quais integram o seu agregado.

43.-Integra uma fratria de 3 irmãos, tendo residido com os pais ou nas proximidades destes em habitação propriedade da família, não referenciando qualquer problema relacional no contexto do agregado de origem.

44.-As suas habilitações literárias consistem no 7.º ano de escolaridade.

45 -Abandonou a frequência escolar aos 14 anos.

46.-Iniciou atividade profissional ainda na adolescência, como serralheiro civil, atividade que viria a desenvolver por conta própria.

47.-Desde há cerca de 10 anos, iniciou a atividade de manufatura e venda de réplicas de veículos motorizados em barro, e mais recentemente aufere rendimento por via de uma atividade regular de apostas desportivas através da internet.

48.-É proprietário de terrenos agrícolas há cerca de 3 anos, nas proximidades de …, ocupando-se também com a exploração dos mesmos.

49.-O arguido refere obter um rendimento líquido de cerca de 2000 a 3000 euros mensais por via da sua atividade de apostas desportivas.

50.- A companheira detém um negócio de alojamento local num imóvel de que é proprietária e explora um salão de cabeleireiro, indicando auferir um rendimento líquido médio na ordem dos 1200 a 1500 euros mensais.

51.- Fruto da atividade agrícola, obtém desde há cerca de 1 ano um rendimento líquido mensal de 1000 euros em média.

52.-As despesas da habitação são asseguradas pelo arguido, e dizem respeito aos consumos de energia elétrica, água, gás e serviço de televisão, internet e telefone, totalizando cerca de 280 euros mensais.

53.-O arguido reside numa habitação propriedade dos progenitores, que resulta da requalificação recente de uma antiga construção.

54.- É uma vivenda de tipologia T3 e proporciona condições de habitabilidade muito favoráveis.

55.-A sua imagem social está associada a comportamentos desajustados de natureza delituosa.

B.2 E julgou não provados os seguintes:

«Não se provou de entre os factos constantes da acusação:

1.- Que o arguido BB participou e aderiu ao plano supra referido em II. A ) 1.- ;

2.- Que o arguido BB soubesse que o Arguido AA nas circunstancias supra referidas em II. A ) 2.- e 3.- transportava e guardava o produto estupefaciente aí referido;

3.- Que o Arguido BB soubesse que o Arguido AA nas circunstâncias supra referidas em II. A ) 9.- transportava e guardava o produto estupefaciente aí referido;

4.- Que os arguidos detinham as quantias monetárias acima especificadas em II. A ) 4.- e 5.- em consequência da compra e venda de estupefaciente que já haviam levado a cabo anteriormente;

5.- Que o veículo apreendido servia também para que o arguido BB transportar produto, supra referido em III A) 14.-, que transacionava e para as deslocações deste junto do seus fornecedores para se reabastecer e junto de eventuais compradores e revendedores para entregar o estupefaciente;

6.- Que o arguido BB agiu sempre de forma livre, deliberada e conscientemente.

7.- Que o arguido BB agiu em comunhão de esforços e intentos e em execução do referido plano conjunto, ciente da quantidade, composição, características e natureza estupefaciente das substâncias que transportava, detinha e que destinavam à cedência e venda a terceiros;

8.- Que o arguido BB detinha a espingarda acima descrita, em II. A ) 10.-;

9.- Que o arguido BB atuou relativamente a referida arma de forma livre, deliberada;

10.- Que o arguido BB sabia que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei.»

B.3 Tendo motivado deste modo a sua decisão

«O tribunal fundou a sua convicção quanto aos factos provados na análise crítica do conjunto da prova produzida em audiência de julgamento, à luz das regras da experiência comum e de acordo com o princípio da livre apreciação da prova (artigo 127.º, do Código de Processo Penal) e bem assim como o acervo documental junto aos autos.

Importa referir que se segue o entendimento segundo o qual se deve apreciar os factos dados como provados e como não provados que relevância para a boa decisão da causa, sejam carreados para o processo pela defesa em sede de audiência de julgamento, importando a sua consignação e motivação expressa, na esteira dos acórdãos do Tribunal da Relação de Coimbra de 18.01.2012 com o n.º de processo 392/10.3PCCBR.C1 e de 24.04.2019 com o n.º de processo 708/15.6T9CBR.C1, disponíveis em http://www.dgsi.pt/

Quanto à prova documental, o Tribunal valorou os documentos constantes dos autos, nos termos consagrados no Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 87/99, de 09/02/1998, ou seja, tenham ou não sido expressa e formalmente debatidos em audiência de julgamento, porquanto o seu teor sempre poderia ter sido questionado e apreciado naquela sede, ficando assegurado o exercício do princípio do contraditório.

Efetivamente não basta a indicação dos meios de prova pré-constituídos e produzidos audiência de julgamento que serviram para fundamentar a sentença.

É ainda necessário um exame crítico desses meios, que servirá para convencer os interessados e a comunidade em geral da correta aplicação da justiça no caso concreto. Trata-se de significativa alteração do regime do Código de Processo Penal de 1929, e mesmo do que, segundo alguma doutrina, anteriormente, vigorava por alterações introduzidas no C.P.P.

Estes motivos de facto que fundamentam a decisão não são nem os factos provados (thema decidendum), nem os meios de prova (thema probandum), mas os elementos que em razão das regras da experiência ou de critérios lógicos constituem o substrato racional que conduziu a que a convicção do tribunal se formasse em determinado sentido ou valorasse de determinada forma os diversos meios de prova apresentados em audiência.

A fundamentação ou motivação deve ser tal que, intraprocessualmente permita aos sujeitos processuais o exame do processo lógico ou racional que lhe subjaz, conforme impõe o art. 410°, n.º 2. Do C. P. P..

E extraprocessualmente a fundamentação deve assegurar, pelo conteúdo, um respeito efetivo pelo princípio da legalidade na sentença e a própria independência e imparcialidade dos juízes, uma vez que os destinatários da decisão não são apenas os sujeitos processuais, mas a própria sociedade. A valoração da prova há-de traduzir-se numa análise «racional», «crítica» e «lógica» (cf., Paulo Pinto de Albuquerque, in Comentário do Código de Processo Penal à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, 2ª Ed., UCE, pág. 329), que permita aos sujeitos processuais e à sociedade apreender o motivo de se considerar de determinada forma os meios de prova.

O Tribunal formou a sua convicção através da conjugação da prova produzida em audiência de julgamento, declarações do arguido BB, declarações que o arguido AA prestou perante JIC em sede de 1º interrogatório judicial (fls. 85 com CD a fls. 98) e no dia 02/05/2024 perante Magistrado do MP (fls. 519 a 520 gravadas no sistema) e em sede instrução , nos depoimentos das testemunhas- GG, agente da PSP, HH, agente da PSP , II, agente da PSP, JJ, agente da PSP, KK, agente da PSP, LL, MM, NN, OO e PP.

Pericial:- Relatório exame pericial área físico-documental, fls. 624 a 626 - Relatório exame pericial toxicologia, fls. 628 e 630; Documental: - Auto notícia por detenção, fls. 2 a 6 - Relatório de vigilância, fls. 16 a 19 ;- Auto de busca e apreensão, fls. 20 a 21, 40 a 41, 45 a 47, 50 a 51; - Auto de exame, fls. 23, 26, 29, 49, 52;- Auto de apreensão, fls. 24 e 25, 27 e 28;- Escrito, fls. 32;- Teste rápido, fls. 34 e 35, 43;- Folha suporte, fls. 36 a 38;- Termo autorização de busca, fls. 39;- Contrato de aluguer, fls. 44;- Informação da PSP-NAE, fls. 75 e 76.; Relatórios sociais para julgamento elaborados pela DGRSP com as referências citius n.º … e … e certificados de registo criminal com as referência citius n.ºs …, e …).

Concretizando.

O tribunal fundou a sua convicção quanto ao facto provado 1.- nas declarações do Arguido AA que o confirma nas declarações que prestou perante JIC em sede de 1º interrogatório judicial (fls. 85 com CD a fls. 98) e no dia 02/05/2024 perante Magistrado do M.º P.º, (fls. 519 a 520 gravadas no sistema), e nas declarações que prestou antes da audiência de julgamento já na fase de instrução, cfr., folhas 56 a 57 dos autos.

Relativamente ao facto provado 2.-os Arguidos confirmam a sua veracidade, o Arguido AA confirma nas declarações que prestou antes da audiência de julgamento, no âmbito do primeiro interrogatório judicial de arguido detido (fls. 79 ss.), nas declarações posteriores perante o M.º P.º folhas 43 e v., e também já na fase de instrução folhas 56 a 57 e testemunha GG, chefe da P. S. P., HH, agente da P. S. P., JJ, agente da P. S. P., e testemunha II, agente da P. S. P., e KK agente da P. S. P., que embora não participando da interceção dos Arguidos os acompanhou já detidos na esquadra de … da P. S. P., também confirmam este facto de que tem conhecimento direto.

O facto 3.- foi dado como provado com base nas declarações do Arguido AA que o confirma, nas declarações que prestou antes da audiência de julgamento, no âmbito do primeiro interrogatório judicial de arguido detido (fls. 79 ss.), nas declarações posteriores perante o Mº Pº folhas 43 e v., e também já na fase de instrução folhas 56 a 57 e nos depoimentos das testemunhas GG, chefe da P. S. P., e HH, agente da P. S. P., que o confirmam e ainda na análise do auto de busca e apreensão, fls. 20 a 21, teste rápido, fls. 34 e 35, e Relatório exame pericial toxicologia, fls. 628 e 630, que confirma as caraterísticas estupefacientes dos produtos apreendidos.

O tribunal fundou a sua convicção quanto ao facto provado 4.- nas declarações do Arguido BB que o confirma prestadas em audiência em julgamento e na análise do auto de apreensão, fls. 24 e 25.

O tribunal fundou a sua convicção quanto ao facto provado 5.- na análise do auto de apreensão de folhas 27 a 32 dos autos e depoimento da testemunha HH, agente da P. S. P., que o confirma.

Os factos 6 e 7 foram dados como provados com base nas declarações Arguido AA que confirma nas declarações que prestou antes da audiência de julgamento, no âmbito do primeiro interrogatório judicial de arguido detido (fls. 79 ss.) em que confirma a posse destes documentos, no auto de apreensão de folhas 27 a 32 dos autos e no depoimento da testemunha HH, agente da P. S. P., que confirma a detenção pelo Arguido AA e a apreensão ao mesmo dos elementos em questão e na análise do relatório de exame pericial área físico-documental, fls. 624 a 626, que confirma tratarem-se de documentos falsos.

O facto provado 8.- foi dado como provado com base nos depoimentos das testemunhas HH, agente da P. S. P., JJ, agente da P.S.P., que o confirmam, conjugado com a análise do documento contrato de aluguer, junto a fls. 44.

O facto provado 9.- foi dado como provado com base nos depoimentos das testemunhas JJ, agente da PSP e KK, agente da PSP, que o confirmam, tendo participado na busca e apreensão destes produtos estupefaciente, na análise do auto de busca e apreensão, fls. 40 a 41, teste rápido, fls. 43, termo autorização de busca, fls. 39 e Relatório exame pericial toxicologia, fls. 628 e 630, que confirma as caraterísticas estupefacientes do produto apreendido.

O facto 10.- foi dado como provado com base nas declarações do Arguido BB, prestadas em audiência e nos depoimentos das testemunhas II agente da P. S. P., NN, mãe do Arguido BB, OO, irmão do Arguido BB que o confirmam e auto de busca e apreensão de folhas 45 a 47, auto de exame e avaliação de folhas 49.

O tribunal fundou a sua convicção quanto ao facto provado 11.- nas declarações do Arguido BB que o confirmou e deu explicação para a posse de tais objetos, destinados a serem usados em atividade de cura de árvores e plantas da propriedade e na guarda de alimentos sobrantes dos convívios organizados aos Sábados, GG, agente da P.S.P., - HH, agente da P.S.P.,- II, agente da P.S.P.,- JJ, agente da P.S.P.,- KK, agente da P.S.P., que confirmaram este facto, LL, trabalhador agrícola na quinta do Arguido BB, MM, trabalhador independente que presta serviços na quinta do Arguido BB, estes últimos dois confirmaram a presença da balança, segundo eles usada para pesar e preparar produtos químicos usados na cura das árvores e plantas existentes na quinta em questão, conjugados estes elementos de prova com a análise do auto de busca e apreensão, fls. 50 a 51 e do auto de exame, fls. 52.

O facto provado 12.- deu-se como provado com base na análise do relatório exame pericial toxicologia, fls. 630, que o confirma.

O facto provado 13.- deu-se como provado com base nas declarações do arguido BB que o confirma e na informação da PSP-NAE, fls. 75 e 76 que o confirma igualmente.

O facto provado 14.- deu-se como provado com base nas declarações do Arguido AA prestadas perante JIC em sede de 1º interrogatório judicial (fls. 85 com CD a fls. 98) e no dia 02/05/2024 perante Magistrado do MP (fls. 519 a 520 gravadas no sistema) e perante o juiz de instrução em sede de instrução e ainda com base na interceção feita pelos agentes da P. S. P., do veículo em questão constante do facto provado 2.- e produto estupefaciente aprendido na sequência de tal interceção facto provado 3.-.

O facto provado 16.- decorre e infere-se das declarações do Arguido BB em que este demostra ter capacidade para entender as proibições legais e de se determinar de acordo com as mesmas de acordo com as regras da experiência comum e da normalidade.

Facto provado 19.- tal como os factos 6 e 7 deu-se como provado com base nas declarações arguido AA confirma nas declarações que prestou antes da audiência de julgamento nas declarações do coarguido AA, no âmbito do primeiro interrogatório judicial de arguido detido (fls. 79 ss.) em que confirma a posse destes documentos, no auto de apreensão de folhas 27 a 32 dos autos, no depoimento da testemunha HH, agente da P. S. P., que confirma a detenção pelo Arguido AA e a apreensão ao mesmo e Relatório exame pericial área físico-documental, fls. 624 a 626 que confirma tratarem-se de documentos falsos, sendo inverosímil e contrariada pelas regras da experiência comum e da normalidade a explicação que este Arguido adianta de que foi um ato de brincadeira pedir que fossem tais documentos feitos para os quais deu uma foto sua.

Os factos provados 22.- e 23.- decorrem das declarações do arguido BB que os confirmou.

A prova dos factos provados 15.-, 17.-, 18.-, 20.-, 21.- e 24.-, enquanto factos do foro intimo do arguido AA, resulta e infere-se da conjugação dos factos objetivos que se provaram relativamente a este Arguido com as regras da experiência comum e da normalidade.

O Tribunal fundou a sua convicção quanto aos factos provados 25.- e 26.- na análise dos certificados de registo criminal dos arguidos juntos com as referência citius n.ºs …, e …)

Quanto aos factos provados 27. a 55.- dos autos relativos à situação social económica familiar pessoal e profissional dos arguidos o tribunal fundou-se na análise dos relatórios sociais para julgamento dos arguidos elaborados pela DGRSP juntos aos autos com as referencias citius juntos as referências citius n.º … e ….

Quanto a fundamentação da convicção do tribunal quanto aos factos não provados.

Quanto ao facto não provado 4.- nenhuma prova se fez e daí necessariamente a resposta negativa de o dar como não provado.

Relativamente aos factos não provados 8.- e 9.- é certo que a testemunha II, agente da P. S. P., disse ter detetado no quarto do arguido BB a arma em questão, invocando que o arguido disse qual era o quarto dele, o que não é confirmado por mais ninguém, ao invés as testemunhas NN, mãe do arguido BB, OO, irmão do Arguido BB referem que a arma em questão estava na posse de OO, irmão do arguido BB e não no quarto do arguido, e a testemunha PP, companheira do arguido afirmou que nunca viu a arma em questão no quarto do arguido BB, pelo que o tribunal ficou em dúvida sobre a veracidade destes factos e assim de acordo com o principio “in dubio pro reo” deu-os como não provados.

Relativamente aos restantes factos não provados importa começar por reconhecer que a prova circunstancial dos mesmos é muito forte, porém não decisiva a nosso ver para os dar como provados

Como se escreve no douto acórdão da Relação de Lisboa de 3/3/2020, disponível em jurisprudência.pt., “A prova indireta ou indiciária é um meio válido de aquisição de prova sempre que, de acordo com as regras de experiência comum, se verifique que o facto base é indício seguro para concluir pelo facto acusado, porque do primeiro se retira a conclusão, firme, segura e sólida sobre a ocorrência do segundo e os demais factos provados são consonantes com a conclusão alcançada. Essa conclusão é legitima, ao abrigo do princípio da livre apreciação da prova (artigo 127º/CPP), sempre que seja admissível e seguro, segundo as regras de experiência e da vida, estabelecer, entre um e outro, um nexo preciso e direto porque, segundo essas mesmas regras, e considerados os demais factos que intervêm no mesmo “pedaço de vida” relativos às circunstâncias da ocorrência, o facto acusado se prova e não pode ser atribuído a outrem. É evidente que esta conclusão implica que não ocorra qualquer dúvida sobre o facto probando, pelo que estará sempre arredada a possibilidade de violação do princípio do in dubio pro reo. Como se refere no Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 4/07/2012, disponível em www.dgsi.pt, que aqui se reproduz: «A lei processual penal não regula os pressupostos específicos para o funcionamento ou procedimento da prova indiciária ou por “presunção probatória", mas a jurisprudência e a doutrina coincidem nos seguintes conceitos: 1.° - Os indícios são os factos-base, alcançados a partir de provas diretas (testemunhais, periciais, documentais, etc.) e sob plena observância dos requisitos de validade do procedimento probatório. 2.° - A partir desses factos-base e mediante um raciocínio lógico e dedutivo, deve poder estabelecer-se um juízo de inferência razoável com o facto ou factos a provar. Este juízo de inferência deve revelar-se conforme com as regras de vida e de experiência comum — ou seja de normas de comportamento humano extraídas a partir da generalização de casos semelhantes - ou com base em conhecimentos técnicos ou científicos, comummente aceites. Apesar de se basear em critérios generalizantes, esse juízo de inferência deverá ter em consideração o concreto contexto histórico em que se inserem os factos individualizados, com a concorrência de todas as especificas circunstâncias aí relevantes. (…).3º A eficácia probatória da prova indiciária depende da existência de uma ligação precisa entre a afirmação base e a afirmação consequência, por forma a permitir uma conclusão segura e sólida da probabilidade de ocorrência do facto histórico probando; 4.° - Embora se admita a eventualidade da existência de apenas um indício, desde que veemente e categórico, entende-se necessário que os factos indiciadores sejam plurais, independentes, contemporâneos do facto a provar, concordantes, conjugando-se entre si e conduzindo a inferências convergentes; 5. ° - A capacidade demonstrativa da prova indicaria não pode ser determinada pela análise isolada de cada indício ou facto base, nem de uma forma meramente formal. Com efeito, os indícios recolhidos devem ser todos apreciados e valorados em conjunto, de um modo crítico e inseridos no concreto contexto histórico de onde surgem. Nessa análise crítica global, não podem deixar de ser tidos em conta, a par das circunstâncias indiciadoras da responsabilidade criminal do arguido, também, quer os indícios da própria inocência, ou seja os factos que impedem ou dificultam seriamente a ligação entre o acusado e o crime, quer os "contra indícios", ou seja os indícios de teor negativo que a partir de máximas de experiência, enfraquecem ou eliminam a conclusão de responsabilização criminal extraída do indício positivo. Com efeito, "só após o sopesar das provas em sentido contrário e da respectiva valoração judicial se converterá o conhecimento provável em conhecimento certo ou pleno e só este convencimento alicerçado numa sólida estrutura de presunção indicaria - quando é este tipo de prava que está em causa - pode alicerçar a convicção do julgador ". (Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 09-02-20 12, no proc. 233/ 08.1PB GDM. P3. S1)»”. Importa ainda referir que as declarações incriminatórias proferidas pelo arguido AA em relação ao arguido BB nas declarações que prestou declarações perante JIC em sede de 1º interrogatório judicial (fls. 85 com CD a fls. 98), (depois desmentidas no dia 02/05/2024 perante Magistrado do MP (fls. 519 a 520 gravadas no sistema) e nas declarações que prestou antes da audiência de julgamento declarações do coarguido já na fase de instrução em que continuou a dizer que o arguido BB nada tem a ver com os factos) não podem ser utilizadas contra o arguido BB para o incriminar dado que em audiência não foram sujeitas a contraditório porque o arguido AA se remeteu ao silêncio com exceção de ter afirmado no fim do julgamento apenas “que estou muito arrependido envolvi o meu amigo sem culpa nenhuma dele”, ( cfr., neste sentido por todos douto acórdão do S. T. J., de 12/2008, e jurisprudência ai citada incluído do Tribunal constitucional e artigo 345.º, n.º 4, do C. P. P.).

Volvendo ao caso concreto é evidente que existem indícios sérios do envolvimento do Arguido BB. Efetivamente o arguido AA na segunda versão que apresenta é vago quanto a saber quem de facto lhe solicitou que efetuasse o transporte de cocaína, referindo que era alguém “que conheceu na Bélgica”, não adiantando pormenores quanto à forma de contacto ou qualquer outro pormenor que pudesse dar credibilidade à versão de que o seu coarguido não era o mandante dos factos.

Os arguidos afirmam manter uma relação de amizade, sendo que o arguido AA é presença regular em almoços ou “patuscadas” que o coarguido dá na propriedade referida no facto provado 11.-, e que ocorrem ao sábado, normalmente com frequência semanal ou ocasionalmente de duas em duas semanas.

Tal indicia uma relação de forte amizade.

Assim sendo, não vemos (nem os arguidos adiantam) que motivo teria o Arguido AA para convidar o seu amigo, como refere o Arguido BB, numa viagem onde vai transportar produto estupefaciente, sem o conhecimento deste, tratando-se de uma atividade inerentemente perigosa (este tipo de negócios pode correr mal e as pessoas que se prestam a adquirir ou transportar droga, em especial nestas quantidades podem ser alvo de violência por quem queira ilicitamente apropriar-se do produto que transportam) e que legalmente poderia trazer complicações ao seu amigo inocente.

De resto, até quanto ao facto de transportar estupefacientes o arguido AA não apresenta declarações consistentes, ora dizendo que apenas sabia que transportava algo ilegal, ora dizendo que lhe foi dito que transportava estupefacientes, ora dizendo que apenas suspeitava que se tratavam de estupefacientes, sem que tal lhe tivesse sido dito.

De igual modo, mesmo que o arguido AA tivesse decidido convidar o seu amigo inocente BB para o acompanhar num negócio de droga, então com a abordagem da GNR e com a sua submissão a primeiro interrogatório, o normal seria que este se sentisse culpado por ter exposto o seu amigo a esta situação e tivesse deste logo afirmado a inocência deste.

O arguido AA faz exatamente o oposto, e não só pela sua conduta causa sérios problemas a um amigo como, em interrogatório decide incrimina-lo falsamente, sem que se veja que benefício possa obter que justificasse tamanha traição a uma pessoa com quem tem relações de amizade, até porque a sua responsabilidade criminal nunca seria excluída.

Mais notamos que, segundo os arguidos, o “passeio” planeado entre ambos seria apenas até …, não tendo de antemão acordado que iriam a Espanha, que segundo o arguido AA terá sido onde recolheu o produto estupefaciente.

Este último apenas terá sugerido este “desvio” até à localidade de … em Espanha já em ….

Tal não faz qualquer sentido, pois que … seria o verdadeiro destino do arguido. Que faria então o arguido AA se o arguido BB lhe tivesse dito “não posso ir a Espanha porque tenho de voltar para …”, até porque este arguido, segundo afirma, ainda iria fazer pagamentos em …, com o dinheiro que lhe foi apreendido.

Por outro lado, os arguidos afirmam que, por mera casualidade, quando chegaram a … o arguido BB foi ver uma casa de animais (incluindo aves exóticas) nas quais estava interessado e foi durante esse interregno (de cerca de meia hora) que os arguidos se afastaram um do outro, que o arguido AA aproveitou para receber o estupefaciente das pessoas que o contactaram (pois conheciam o carro onde este se faria transportar) e para o esconder na coluna central do veículo.

Mais uma vez este “plano” do arguido AA não faz qualquer sentido, pois se este quisesse de facto manter o arguido BB ignorante da transação ilícita que fazia, então deveria previamente ter um plano para se afastar dele durante o tempo necessário à conclusão destas operações.

Segundo os arguidos tal não sucedeu, e foi apenas por mera casualidade que o arguido BB encontrou uma casa de animais exóticos onde permaneceu 30 minutos, saindo após sem nada comprar.

Que faria o arguido AA se o seu coarguido não tivesse encontrado essa loja e tivesse permanecido junto dele? O arguido não apresenta resposta a esta pergunta.

De igual modo, que faria o arguido AA se o seu coarguido se despachasse mais cedo da loja de animais, voltasse para junto do veículo do primeiro e observasse a transação ou a ocultação do estupefaciente?

Toda esta “nova versão” do arguido AA é totalmente desprovida de credibilidade à luz das mais elementares regras da experiência comum.

Porém serão suficientes estes indicios para incriminar o Arguido BB?.

Entendemos que não por si só não garantem que o Arguido BB esteja envolvido.

Efetivamente por muito pouco credível que sejam as explicações dos Arguidos não se pode extrair do facto de o Arguido BB acompanhar o Arguido AA que soubesse tudo o que se estava a passar se não qualquer outra pessoa que tivesse sido convidada a fazer a viagem estaria também envolvida e note-se que o convite para viajar a outras pessoas por parte do Arguido AA também pode significar que esta seria uma forma de camuflar o objetivo da viagem.

Acresce que posteriormente, por motivos não concretamente apurados, (e não podemos especular sobre tais motivos), o Arguido AA decidiu alterar a sua versão dos factos para ilibar o seu coarguido incluindo nas declarações finais a que se fez alusão, o que constitui um contra indicio de peso em termos de não se poder fazer a inferência dos demais indícios para a participação na atividade criminosa do Arguido BB, porque tal contenderia com o principio “in dubio pro reo”.

Em face do exposto deram-se como não provados os factos 1.- a 3.-, 5.- a 7.- e 10- constantes do elenco dos factos não provados.»

C) Apreciando

C.1 Recurso do Ministério Público

i. Do erro notório na apreciação da prova

O recorrente afirma que a decisão recorrida padece do vício de erro notório na apreciação da prova, indicando que tal assim considera, no essencial, porque:

- «sendo [os arguidos] amigos, não se entende como é que o arguido AA não se inibiu de expor o arguido BB a uma situação como a dos autos…»;

- «ninguém convida um amigo para uma viagem com tais características e duração, acrescida de um risco elevado face à natureza da ilícita da atividade a empreender, com graves consequências a nível inclusive da privação da liberdade, sem existir um acordo e conhecimento prévio dessa mesma atividade»;

- «as máximas da experiência e o recurso às regras da razão e da lógica não suportam uma versão dos factos em que se possa concluir, como a decisão recorrida fez, que não era possível incriminar o arguido BB relativamente aos factos em causa»;

- «não foi, como deveria ter sido, valorado o facto de o coarguido BB na altura levar consigo a quantia de 3 165€, em numerário»;

- sendo «fundada a conclusão que os factos descritos na decisão recorrida, considerados provados e não provados, se apresentam, aos olhos do referido observador, contraditórios ou de impossível verificação, pelo que parte da análise crítica da prova que foi efetuada não obedeceu aos princípios da racionalidade e da lógica, verificando-se o vício de erro notório na apreciação da prova.»

Por sua vez o arguido BB, respondendo ao recurso do Ministério Público, refere que este por não ter argumentos bastantes para impugnar a matéria fáctica, o que verdadeiramente giza por esta via (da alegação do vício da decisão) é deveras alterar aquela. A argumentação recursiva evidencia a divergência relativamente ao juízo feito pelo tribunal recorrido quanto aos factos julgados não provados. O que se demonstra pelo facto de o recorrente não concretizar, minimamente, onde mora afinal, no texto do acórdão recorrido, a incompatibilidade lógica que alega!

Vejamos.

A matéria de facto pode ser sindicada por duas vias:

a) no âmbito dos vícios previstos no artigo 410.º, § 2.º CPP, no que se denomina «revista alargada», cuja indagação tem que resultar da decisão recorrida, por si mesma ou conjugada com as regras da experiência comum, não sendo por isso admissível o recurso a elementos àquela estranhos para a fundamentar, como, por exemplo, quaisquer dados existentes nos autos, mesmo que provenientes do próprio julgamento3;

b) ou através da impugnação ampla da matéria de facto, a que se reporta o artigo 412.º, § 3., 4.º e 6.º, do mesmo código.

Ainda que em ambos os casos estejamos no domínio da sindicância da matéria de facto, trata-se de meios impugnatórios muito diferentes na sua estrutura, alcance e consequências.

Aqueles (os vícios da decisão - como o erro notório na apreciação da prova) indagam-se e examinam-se através da análise do texto; já esta (a errada apreciação e valoração das provas) constitutiva de erro de julgamento da matéria de facto, verifica-se em momento anterior à elaboração do texto, na ponderação conjugada e exame crítico das provas produzidas, donde resulta a formulação de um juízo que conduz à fixação de uma determinada verdade histórica que é vertida no texto.

Vejamos como dispõe o § 2.º do artigo 410.º CPP::

«2 - Mesmo nos casos em que a lei restrinja a cognição do tribunal de recurso a matéria de direito, o recurso pode ter como fundamentos, desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum:

a) A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada;

b) A contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão;

c) Erro notório na apreciação da prova.»

Se bem virmos (como também assinala o recorrido) logo constatamos que o recorrente utiliza a expressão «erro notório», para na verdade querer significar «erro de julgamento». Como se tratassem de espécies do mesmo género. Mas não são. O erro notório na apreciação da prova é um vício respeitante à perfeição formal da decisão sobre a matéria de facto, cuja verificação há de necessariamente ser evidenciada pelo próprio texto da decisão recorrida, porquanto se trata de vício de lógica jurídica ao nível da matéria de facto, que torna impossível uma decisão logicamente correta e conforme à lei.

Ocorre lá quando o tribunal dá como provado ou não provado determinado facto (ou conjunto de factos), quando a conclusão lógica seria a contrária, por ofender princípios ou leis formulados cientificamente, nomeadamente das ciências da natureza e das ciências físicas ou contrariar princípios gerais da experiência comum das pessoas, ou por se ter violado ou postergado um princípio ou regra fundamental em matéria de prova.4

Tendo esse erro ser tão clamoroso que não passa despercebido ao cidadão comum (a um homem médio), que é apreensível na leitura do respetivo texto, sem recurso a quaisquer elementos externos a ela. Sendo, nessas circunstâncias, tal vício (como os demais previstos no § 2.º do artigo 410.º CPP) impeditivo de bem se decidir tanto ao nível da matéria de facto como de direito. Nos casos em que tal se verifique o tribunal de recurso prescinde da análise da prova concretamente produzida, atendo-se somente à conexão lógica do texto da decisão, por si só, ou conjugada com as regras da experiência comum.

Como nos parece óbvio, do acórdão recorrido não emerge falta de lógica à conexão do texto da decisão, por si só, ou conjugada com as regras da experiência comum. Nem ainda ofensa a quaisquer princípios ou leis formuladas cientificamente ou, sequer, contraria os princípios gerais da experiência comum das pessoas, nem evidencia qualquer violação ou postergação de um qualquer princípio ou regra fundamental em matéria de prova.

O recorrente afirma não compreender como é que sendo os dois arguidos amigos um do outro, como é que AA, a dado passo, não se inibiu de expor o seu amigo BB (isto porque numa das ocasiões em que foi interrogado nas fases preliminares do processo, apontou-o como sendo seu parceiro no negócio da cocaína que lhe apreendida)!

Mas na vida, sobretudo nesta área da criminalidade (no tráfico de substâncias estupefacientes), isso não é assim tão incomum!

Afirma também que ninguém convida um amigo («inocente») para o acompanhar numa viagem com riscos tão elevados! O que também carece de ser demonstrado, porquanto a jurisprudência dá basta nota de situações em que para aparentar uma certa «normalidade», deveras inexistente, isso por vezes acontece.

O caso concreto tem as suas peculiaridades e suscita algumas interrogações. É certo. A mais das referidas, são disso exemplo também o facto de os arguidos terem ido a … duas vezes (e não apenas no dia da detenção). E ser estranha a detenção pelo arguido BB da quantia que lhe foi apreendida!

O tribunal coletivo ponderou todas as que vêm indicadas pelo recorrente. E perscrutou toda a prova indicada pela acusação e aquela que foi produzida na audiência (audição das declarações gravadas que haviam sido anteriormente prestadas por AA - nos termos permitidos por lei), em demanda de prova que permitisse sustentar uma convicção segura sobre o envolvimento de BB nos factos relativos à atividade ilícita em causa. E não deixou de ponderar as declarações prestadas na audiência pelos agentes da PSP que realizaram as vigilâncias (cujas circunstâncias verteram em auto que consta no processo).

Neste passo não deixaremos de assinalar, esclarecendo, que contrariamente ao que entende o recorrente (e pelo visto também o tribunal recorrido!), o «auto de vigilância» não constitui «prova documental»! No processo penal «documento» é a «declaração corporizada em escrito, ou registada em disco, fita gravada ou qualquer outro meio técnico, inteligível para a generalidade das pessoas ou para um certo círculo de pessoas, que, permitindo reconhecer o emitente, é idónea para provar facto juridicamente relevante, quer tal destino lhe seja dado no momento da sua emissão, quer posteriormente; e bem assim o sinal materialmente feito, dado ou posto numa coisa ou animal para provar facto juridicamente relevante e que permite reconhecer à generalidade das pessoas ou a um certo círculo de pessoas o seu destino e a prova que dele resulta», conforme consta do artigo 255.º, al. a) CP, ex vi artigo 164.º, § 1.º CPP.

Os documentos são meios de prova que nascem fora do processo e que nele são incorporados com finalidade exclusivamente probatória (artigo 164.º, § 2.º CPP). O que não é o caso dos relatórios de vigilância, que nascem no próprio processo, tratando-se de meros atos processuais documentados, constituídos por um relato de facto(s) que determinado(s) agente(s), no âmbito da investigação, testemunhou(ram).

A documentação desse ato processual é útil à investigação, mas este meio de prova está no mesmo exato patamar dos autos de declarações de testemunhas produzidas durante o inquérito, que também se documentam no processo, mas que obviamente não constituem prova documental.5

É por essa singela razão que as testemunhas ouvidas no inquérito e, de igual modo, os agentes policiais que realizam as vigilâncias e as documentam num auto (de vigilância), têm de ser arroladas como testemunhas e depois convocadas para comparecerem a audiência, para aí prestarem depoimento como testemunhas. E esta inquirição é que constitui a prova (testemunhal, claro). Como neste caso sucedeu.

É certo que durante a inquirição dessas testemunhas em audiência, poderão as mesmas ser eventualmente confrontados com o que documentaram no referido auto, nos termos previstos no 356.º, § 2.º, al. b) e 3.º CPP ou 356.º, § 5.º CPP. E podendo até o auto respetivo ali ser lido, nos termos previstos no artigo 356.º, § 4.º CPP (exatamente do mesmo modo que as demais testemunhas), mas as atas das sessões da audiência não evidenciam que essa leitura se tenha efetuado.

Mas volvamos à decisão recorrida.

Na ponderação que efetuou do conjunto das provas, o tribunal a quo confrontou-se com a divergência das declarações prestadas anteriormente no processo pelo arguido AA, bem assim como com todas as circunstâncias que podiam relacionar o arguido BB com os factos indubitavelmente praticados por AA, que culminaram com as apreensões feitas no dia 23/11/2023, tendo ponderado esse comportamento com todas as outras provas disponíveis (incluindo todas as referidas pelo recorrente).

E concluiu haver «indícios sérios do envolvimento do arguido BB» na operação ilícita de importação de mais de 5 kg de cocaína, não logrando, porém, obter a segurança necessária para um veredito positivo acerca da imputação (também) a esse arguido, dos factos concernentes. Sobretudo (percebe-se) em razão das hesitações (da falta de coerência) emergentes das declarações prestadas nas fases preliminares pelo arguido AA.

Explicando tanto quanto lhe foi possível a fonte das dúvidas que não logrou superar, sem nenhuma falha de lógica.

Pode discordar-se da decisão recorrida, isto é, da conclusão tirada do termo do processo de avaliação e ponderação pelo tribunal coletivo. O que se não pode é, em recurso, quedar-se com a mera indicação de que se discorda da decisão, apenas porque se fosse o recorrente a julgar teria decidido de modo diferente! Como que pretendendo sobrepor a sua convicção à do tribunal coletivo!

É que é ao tribunal que a Constituição e a lei atribuem o poder de apreciar livre e imparcialmente as provas, segundo parâmetros racionais controláveis, conforme decorre do disposto no artigo 127.º CPP. Sendo a liberdade de apreciação da prova «uma liberdade de acordo com um dever – o dever de perseguir a verdade material – de tal sorte que a apreciação há de ser, em concreto, recondutível a critérios objetivos e portanto, em geral, suscetível de motivação e controlo. (…) A livre ou íntima convicção do juiz não poderá ser uma convicção puramente subjetiva, emocional e, portanto, imotivável. (…) Se a verdade que se procura é uma verdade prático-jurídica e se, por outro lado, uma das funções primaciais de toda a sentença é a de convencer os interessados do bom fundamento da decisão, a convicção do juiz há de ser, é certo, uma convicção pessoal, mas, em todo o caso, também ela uma convicção objetivável e motivável, portanto, capaz de impor-se aos outros».6

Ora, conforme decorre da decisão recorrida, no termo do escrutínio das provas, após ponderação crítica e conjugada das mesmas, delas se não logrou extrair uma convicção que o tribunal tivesse por segura, id est, alcançar o estádio de certeza judicial (de proof beyond a reasonable doubt) exigível para uma condenação penal, sobre se BB era efetivamente participante interessado no negócio realizado por AA em Espanha e no transporte da cocaína para Portugal. Ou se teria sido apenas um «apêndice» de conforto que o arguido AA levou consigo, para lhe fazer companhia (como por vezes sucede entre amigos); ou para camuflar qualquer suspeita que recaísse sobre si.

A decisão recorrida expõe com notória lealdade e meridiana clareza o modo como se chegou a esse non liquet, a esse estado de dúvida, que considerou inultrapassável. Sendo essa a razão que determinou o tribunal coletivo a, no julgamento dos factos críticos, decidir em sentido favorável a esse arguido (em decorrência do direito fundamental da presunção de inocência - artigo 32.º, § 2.º da Constituição), através da sua referida dimensão processual in dubio pro reo. Daí que a haver uma verdadeira questão, ela só poderá morar no julgamento efetuado sobre os factos concernentes ao acontecido. Num erro de julgamento na avaliação das provas e no juízo respetivo relativamente aos factos concernentes (desde logo relativamente aos julgados não provados). Mas não na conformação da decisão escrita de que se recorre (num vício da decisão)! Sucede que o recorrente não impugnou nenhum segmento da decisão sobre os factos (provados e/ou não provados), nos termos previstos no artigo 412.º, § 3.º e 4.º CPP! Pelo que este Tribunal da Relação não pode conhecer do eventual erro de julgamento relativamente aos factos.

E por assim ser resta-nos concluir que do ponto de vista da lógica formal do acórdão recorrido não emerge qualquer vício, designadamente o que lhe foi apontado pelo recorrente. Razão pela qual o recurso do Ministério Público se não mostra merecedor de provimento.

C.2 Recurso do arguido AA

i’. Da medida da pena

O recorrente considera que as penas parcelares de 7 anos de prisão pela prática do crime de tráfico de substâncias estupefacientes e de 1 amo e 3 meses de prisão pela prática do crime de falsificação de documento são desproporcionadas. O mesmo sucedendo com a pena única de 7 anos e 6 meses de prisão, que concretamente lhe foi aplicada pelo tribunal a quo. Para tanto considera, relativamente ao crime de tráfico de substâncias estupefacientes, que era um mero «transportador» e que não tinha «os poderes de direção do negócio». Que não obteve nenhuma «remuneração» pelo ato; e que se encontra bem inserido social, profissional e familiarmente. Devendo por isso a pena de prisão ser suspensa na sua execução. Não havendo razão para o sancionamento pelo crime de falsificação não ser a pena de multa, que a lei prevê como alternativa.

O Ministério Público, por seu turno, entende que a determinação das penas concretas (parcelares e única) são as ajustadas aos ilícitos cometidos e às circunstâncias dos mesmos, bem assim como à pessoa do arguido/recorrente, uma vez que são elevadas as necessidades de prevenção geral e especial. Pois bem.

A aplicação de penas giza a proteção dos bens jurídicos (finalidade comunitária) e a reinserção do agente do crime na normalidade social. Isto é, serve finalidades exclusivamente preventivas, de prevenção geral e de prevenção especial. Devendo a escolha da pena e a medida desta ser perspetivada em função da sua adequação, proporção e potencialidade para atingir os objetivos referidos, nos termos previstos no artigo 40.º CP.

Na demanda do enquadramento punitivo ajustado não pode naturalmente prescindir-se das circunstâncias concretas do caso e das que respeitam às condições pessoais do arguido.

O tribunal a quo considerou neste segmento da sua decisão o seguinte:

«Ao crime de trafico de produtos estupefacientes praticado pelo Arguido AA corresponde uma moldura penal abstrata de prisão de quatro anos a doze anos de prisão.

Por sua vez relativamente ao crime de falsificação de documentos praticado pelo Arguido AA corresponde uma moldura penal abstrata de um a cinco anos de prisão ou com pena de multa até 600 dias.

A defesa da ordem jurídico-penal, tal como é interiorizada pela consciência colectiva (prevenção geral) é a finalidade primeira que se prossegue, no quadro da moldura penal abstracta, entre o mínimo, em concreto, imprescindível à estabilização das expectativas da comunidade na validade da norma violada e o máximo que a culpa do agente consente; entre esses limites, satisfazem-se, as necessidades de prevenção especial de ressocialização.

Isto é, devendo as penas terem um sentido eminentemente pedagógico e ressocializador, elas são aplicadas com a finalidade primordial de restabelecer a confiança colectiva na validade da norma violada, posta em crise pela prática do crime e em última análise, na eficácia do próprio sistema jurídico-penal. - Figueiredo Dias, Direito Penal Português, As consequências Jurídicas do Crime, pág. 55 e seguintes e Ac. STJ 29.4.98 CJ, T. II, pág. 194.

Os critérios de determinação das medidas concretas das penas a aplicar ao Arguido encontram-se previstos no artigo 71.º do código penal.

Tendo em conta que, este último crime pelo qual o arguido AA vai condenado é punido, em alternativa, com pena de prisão ou multa previstas a título principal, impõe-se proceder, desde logo, à escolha da pena que concretamente irá ser aplicada a esse crime.

Nesta operação iremos necessariamente orientar-nos pelo princípio politico-criminal da preferência pelas reações penais não detentivas, ínsito no artigo 70º do Cód. Penal, de acordo com o qual, “se ao crime forem aplicáveis, em alternativa, pena privativa e pena não privativa da liberdade, o tribunal dá preferência à segunda sempre que esta realizar de forma adequada e suficiente as finalidades da punição”.

Nesta perspetiva importará, pois, determinar se a reposição da confiança dos cidadãos nas normas violadas pelo arguido - e por aí a tutela retrospetiva dos bens jurídicos protegidos -, bem assim como a ressocialização daquele, poderão ser plenamente alcançadas com a aplicação da medida não detentiva que no tipo alternativamente se coloca.

No caso concreto, considerando que apesar do arguido estar socio profissionalmente inserido e não ter antecedentes criminais registados da mesma natureza, as finalidades que ao sistema sancionatório são apontadas não se realizam integralmente e de forma plena com a aplicação de uma pena de multa, atenta a gravidade dos factos que praticou apreciados em conjunto de onde ressaltam as elevadas razões de prevenção geral e especial presentes.

Na concretização das penas a aplicar ao arguido AA, dentro das molduras previstas, a respetiva individualização deve fazer-se de acordo com as necessidades de prevenção geral e especial, e sempre no respeito pelo limite do que for a sua culpa, conforme comanda o artigo 71.º, n.º 1, do Código Penal.

Assim, a proteção de bens jurídicos faz-se, essencialmente, através da aplicação ao arguido AA de uma pena tal que, sempre respeitando o limiar da culpa do mesmo, permita a reposição da confiança do seu concidadão nas normas que foram violadas: é o que se chama a prevenção geral positiva ou de integração.

Nessa tarefa, deve o tribunal atender a tudo quanto não fazendo parte do tipo deponha a favor ou contra o agente, guiando-se, entre outros critérios, pelos elencados no artigo 71.º, n.º 2, do Código Penal.

No caso vertente, militam em desfavor do arguido:

- As exigências de prevenção geral são muito elevadas neste caso, quanto a todos os crimes praticados pelo arguido atendendo aos bens jurídicos protegidos, impondo-se uma forte ação no sentido de reprimir este tipo de ilícitos e assim evitar um clima de impunidade que induza à proliferação deste tipo de crime.

- O elevado grau de ilicitude da conduta do arguido quanto ao crime de tráfico de estupefaciente, expresso nas circunstâncias concretas da sua atuação, uma vez que os factos apontam, de forma manifesta, para um tráfico de expressão significativa, responsável por uma disseminação de substâncias de elevada nocividade, mostrando com tal comportamento uma atitude de total desprezo e desrespeito pelo dever ser jurídico e pelas normas que norteiam o Estado de Direito;

- O mediano/alto grau de ilicitude da conduta do arguido quanto ao crime de falsificação de documento, face a natureza e características dos documentos falsos que tinha na sua posse, para cuja falsificação contribuiu;

- A culpa com que o mesmo atuou, agindo na modalidade mais intensa do dolo, o dolo direto, quanto aos dois crimes praticados.

Milita em favor do arguido:

- A circunstância de o mesmo não possuir antecedentes criminais registados e se mostrar inserido profissionalmente aquando da prática dos factos;

Atentas as considerações supra expendidas e tendo em conta as molduras abstratas dos crimes, em análise, entende-se como adequado e proporcional à culpa do arguido, fixar as seguintes penas:

- Pela prática do crime de tráfico de estupefaciente, previsto e punido pelo artigo 21º, nº 1, do DL 15/93, de 22 de Janeiro, a pena de 7 (sete) anos de prisão;

-Pela prática do crime de falsificação de documentos, p. e p. pelo artigo 256º, n.º 1 al. d) e f) e n.º 3 do Código Penal, a pena de 1 (ano) e 3 (três) meses de prisão.

Nos termos do art.º 77.º, n.º 1 do CP, quando alguém tiver praticado vários crimes antes de transitar em julgado a condenação por qualquer deles é condenado numa única pena, sendo nesta considerados, em conjunto, os factos e a personalidade do agente (n.º 1).

Como decorre com clareza do artigo 77.º, n.º 3, do Código Penal, para se proceder ao cúmulo jurídico de penas é necessário que estas, além de estarem em concurso, sejam da mesma espécie como é o caso.

Assim sendo, atenta considerados, em conjunto, os factos e a personalidade do agente as elevadas exigências de prevenção geral e também especial, entendemos dever o cumulo de penas situar-se abaixo da mediania da moldura penal abstrata do cúmulo que é de 7 anos e 7 meses e 15 dias de prisão, concretamente em a pena única de 7 (sete) anos e 6 (seis), meses de prisão, pelo que procedendo ao cumulo jurídico das penas aplicadas, fixa-se a pena única do Arguido de 7 (sete) anos e 6 (seis), meses de prisão.»

As questões suscitadas no recurso do arguido AA relativas à medida da pena não implicam que este Tribunal da Relação realize todo um novo julgamento sobre essa matéria. E assim porquanto, o recurso – também nesta matéria da escolha e medida da pena - é (e é apenas) um remédio jurídico, vocacionado para colmatar erro de julgamento, que tem de ser demonstrado. Daí que a intervenção deste Tribunal sirva apenas para despistar ou corrigir, cirurgicamente, eventuais erros in judicando - por violação de normas de direito substantivo ou in procedendo (por violação de normas de direito processual).7

Para tanto impondo-se neste passo enunciar os princípios e regras fixadas na lei, norteadoras da escolha e determinação da medida concreta da pena, os quais, matricialmente, são os seguintes:

- A finalidade das penas é a de proteger bens jurídicos e reintegrar o agente na sociedade, não podendo a pena exceder a medida da culpa do infrator (artigo 40.º CP); - A determinação da medida da pena, dentro dos limites definidos na lei, faz-se em função da culpa do agente e das exigências de prevenção (artigo 71.º do CP). A culpa aqui em referência reporta-se à censura dirigida ao agente por referência à prática do facto ilícito, que consiste na desaprovação da sua atitude interna face às exigências do dever ser sociocomunitário.

E as exigências de prevenção geral e especial traduzem, aquela a necessidade de tutela da confiança e das expectativas da comunidade na manutenção da vigência da norma violada (sendo por isso uma razoável forma de expressão afirmar como finalidade primária da pena o restabelecimento da paz jurídica comunitária abalada pelo crime); e esta, numa vertente positiva ou de socialização, traduz-se na oferta ao arguido das condições para prevenir a reincidência8. Breve: dentre os limites fixados pela medida da culpa (máximo de pena) e pela prevenção geral (mínimo da pena), a prevenção especial virá a determinar o quantum concreto da pena.

Depois destas breves considerações, importará assinalar que a qualidade de mero «transportador» e não ter «os poderes de direção do negócio» ou que se não obteve nenhuma «remuneração» - a que o recorrente se arroga com referência ao crime de tráfico de substâncias estupefacientes - não emergem da factualidade provada, nem correspondem sequer a posição que o arguido se tenha arrogado no julgamento. Pelo que tais afirmações não podem senão ser descartadas.

Ademais, os parâmetros dentro dos quais o tribunal coletivo a quo balizou e avaliou o quadro fáctico e o resultado a que chegou no processo de determinação das penas concretas relativamente a cada um dos ilícitos praticados, são os devidos. E também vemos que na concretização da medida das penas se valorizaram as exigências de prevenção geral (que correspondem ao mínimo de pena exigido pela comunidade para os factos ilícitos em causa) e as necessidades de prevenção especial (ponderando nomeadamente as circunstâncias que envolveram a prática dos ilícitos e, bem assim, a envolvente pessoal e familiar do arguido e ausência de antecedentes criminais), valorando-se igualmente o grau da ilicitude da atuação e da culpa do arguido. Tendo em consideração a moldura legal relativa ao crime de tráfico de substâncias estupefacientes (prisão de 4 a 12 anos) e do crime de falsificação de documento (prisão de 1 a 5 anos ou multa até 600 dias) e as circunstâncias do caso (nomeadamente a dupla deslocação a Espanha; e a detenção, nas circunstâncias descritas nos factos provados, de mais de 5 kg de cocaína e de quase 1 kg de canábis – repartidas por dois veículos – … e …), não podemos considerar exageradas as medidas das penas de prisão fixadas a cada um dos ilícitos cometidos, tendo em mira as respetivas medidas abstratas e as circunstâncias do caso (envolvimento de duas viaturas, duas pessoas e duas deslocações a Espanha). E no respeitante ao documento falsificado não pode deixar de se ter em consideração a sua espécie e natureza (o documento em causa permitia ao arguido identificar-se como se fora outra pessoa). Não se evidenciando, ademais, ter havido arrependimento sincero ou colaboração relevante. Factos que poderiam alavancar um prognóstico favorável em termos de ressocialização do recorrente. Com o que evidentemente se inviabilizou a opção pela pena de multa relativamente à punição da falsificação de documento (artigo 70.º CP), como também impediu que as penas concretas se quedassem em medida mais branda; o mesmo sucedendo relativamente ao juízo relativo à pena única. Não se deixando sem nota poderem as circunstâncias relativas às quantidades de substâncias detidas e ao modus operandi ser pelo menos questionável não haver uma tangente ao crime agravado (artigo 24.º, al. c) Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de janeiro). Com o que se evidencia não ser também este recurso merecedor de provimento.

III – Dispositivo

Destarte e por todo o exposto acordam, em conferência, os juízes que constituem a Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:

a) Negar provimento ao recurso do Ministério Público;

b) Negar provimento ao recurso do arguido AA;

c) Custas apenas pelo recorrente AA, que se fixam em 4 UCs (artigo 513.º, § 1.º e 3.º do CPP e artigo 8.º Reg. Custas Processuais e sua Tabela III); estando o Ministério Público delas isento (artigo 522.º CPP).

Évora, 9 de abril de 2025

J. F. Moreira das Neves (relator)

Artur Vargues

Laura Maurício

..............................................................................................................

1 A utilização da expressão ordinal (1.º Juízo, 2.º Juízo, etc.) por referência ao nomen juris do Juízo tem o condão de não desrespeitar a lei nem gerar qualquer confusão, mantendo uma terminologia «amigável», conhecida (estabelecida) e sobretudo ajustada à saudável distinção entre o órgão e o seu titular, sendo por isso preferível (artigos 81.º LOSJ e 12.º RLOSJ).

2 Conforme ao preconizado no Acórdão do Plenário da Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça n.º 7/95, de 19/10/95, publicado no DR I-A de 28dez1995.

3 Cf. neste sentido, por todos, acórdão do STJ de 5jun2008, proc. 06P3649; e acórdão STJ de 14mai2009, proc. 1182/06.3PAALM.S1

4 Neste sentido, cf. acórdão STJ, de 29out2015, proc. nº 230/10.7JAAVR.P1.S1, disponível em www.dgsi.pt,

5 Neste sentido, por todos, cf. Tiago Caiado Milheiro, 2024, Comentário Judiciário do Código de Processo Penal, tomo II, 4.ª ed., Almedina, pp. 532 a 539.

6 Jorge de Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, vol. I, Coimbra Editora (reimpressão 2004), pp. 202 ss.

7 DSum. TRE, 20/2/2019, Ana Brito, proc. 1862/17.8PAPTM.E1 e também Ac. TRÉvora, de 16jun2015, proc. 25/14.9GAAVS.E1, rel. Clemente Lima; e Ac. TRCoimbra, de 5abr2017, proc. 47/5.2IDLRA.

8 «Por reforço dos standards de comportamento e de interação na vida comunitária (condução da vida “de forma socialmente responsável”)» - Jorge de Figueiredo Dias, Direito Penal Português – As Consequências Jurídicas do Crime, pp. 74, 110 e 238 ss., Aequitas – Editorial Notícias, 1993. Também Maria João Antunes, Consequências Jurídicas do Crime, Lições aos alunos de Direito Penal III, da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, 2010-2011, pp. 31 e ss.