Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
2763/22.3T8PTM.E1
Relator: SÓNIA MOURA
Descritores: INTERESSE EM AGIR
PRESSUPOSTOS
NECESSIDADE
Data do Acordão: 06/05/2025
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: 1. O interesse em agir tem sido qualificado como um pressuposto processual inominado, que se reconduz à afirmação da necessidade do processo judicial para alcançar a tutela de uma posição jurídica.
2. A ideia subjacente ao interesse em agir é a da utilidade do meio judicial, circunstância de onde decorre que se o objeto do conflito for inconsequente daquele ponto de vista de tutela de uma posição jurídica, então, não haverá interesse em agir.
3. Se o objeto da ação constitui pressuposto de uma pretensão que pode ser afirmada numa futura ação, com a vantagem da presente decisão se impor nessa ação por força do caso julgado material, então, a ação é útil e existe, consequentemente, interesse em agir.
(Sumário da Relatora
Decisão Texto Integral: Apelação n.º 2763/22.3T8PTM.E1
(1ª Secção)

Sumário: (…)

(Sumário da responsabilidade da Relatora, nos termos do artigo 663.º, n.º 7, do Código de Processo Civil)


***

Acordam na 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora:

I – Relatório

1. (…) instaurou a presente ação declarativa de condenação, tramitada sob a forma de processo comum, contra (…), e marido, (…), pedindo que seja reconhecida:

A) a titularidade da situação de composse entre a A. e a R., ao nível da comunhão sucessória, por força do artigo 1406.º do Código Civil;

B) a manifestação de oposição por parte da A. nos autos quanto ao uso, fruição e gozo em benefício próprio da R., sobre o prédio instituído sob a verba número um;

C) a declaração de uso ilícito do dito prédio instituído sob a verba número um, por parte da cabeça de casal, R. nos autos,

D) a obrigação de pagamento de uma indemnização compensatória pelos prejuízos daí advenientes por parte da R. à A., nos termos gerais de responsabilidade civil,

E) o pagamento de um valor mensal a título de renda pela R. à A., no caso da R. decidir continuar a residir no dito prédio com a sua família.

Para fundamentar tal pedido, alegou que A. e R. são herdeiras de (…) e que a herança aberta por óbito desta permanece indivisa, sem prejuízo de já ter sido instaurado o competente processo de inventário.

Mais alegou que integram o acervo hereditário da referida herança, entre outros bens e direitos, o prédio urbano sito no (…), n.ºs 47 e 49, freguesia de (…), concelho de Lagos, descrito na Conservatória do Registo Predial de Lagos sob o n.º (…) e inscrito na matriz predial urbana sob o n.º (…), imóvel esse que a R. e cabeça de casal decidiu, desde o ano de 2020, ocupar e onde reside com o seu núcleo familiar até à presente data, sendo que é a A. quem suporta os encargos fiscais e as obras de conservação, isto num contexto em que em circunstância alguma a A. deu a sua concordância a tal ocupação e, pelo contrário, se manifestou ostensivamente contra o referido uso.

2. A R. apresentou contestação por impugnação e deduziu reconvenção, peticionando que a A. seja condenada:

1) a reconhecer da titularidade da situação de composse entre ambas, ao nível da comunhão sucessória, por força do 1406.º do CC;

2) seja declarado o uso ilícito dos fogos destinados à habitação identificados como R/C-E e 1º andar do n.º 47 do (…);

3) seja a reconvinda condenada no pagamento do valor, na proporção da quota hereditária, das rendas recebidas, de 2010 a 2020, do 1º andar do n.º 47 e

4) que seja ainda a reconvinda condenada no pagamento de uma compensação indemnizatória pelos prejuízos causados nos fogos, por falta de conservação e consequente desvalorização imobiliária e

5) por fim, seja condenada no pagamento das benfeitorias realizadas no R/C do n.º 49, na proporção da quota hereditária.

Para fundamentar a reconvenção alegou que também a A. usufrui, e tem o gozo, de dois fogos do imóvel em causa: R/C-E e 1º andar do n.º 47, o que sucede desde o dia 5 de maio de 2020, tendo entre o ano de 2010 e novembro de 2020 recebido as rendas referentes ao 1.º andar. Acresce que o uso dos referidos espaços como armazém de depósito, não só impede que as habitações estejam no mercado de arrendamento, como afeta a sua conservação, com os consequentes prejuízos causados no imóvel e a sua consequente desvalorização no mercado imobiliário.

3. A A. replicou.

4. Em audiência prévia realizada a 26.04.2024, com a presença de ambas as partes, foi proferido despacho saneador, onde se decidiu declarar a ilegitimidade da A. com respeito aos pedidos d) e e) formulados na petição inicial, absolvendo-se a R. da instância quanto aos mesmos, e ordenando-se o prosseguimento dos autos para apreciação dos pedidos a) a c); bem como se decidiu declarar a ilegitimidade da R. com respeito aos pedidos reconvencionais formulados sob 3), 4) e 5), absolvendo-se a A. da instância quanto aos mesmos, e ordenando-se o prosseguimento dos autos para apreciação dos pedidos 1) e 2).

A seguir, fixaram-se o objeto do litígio e os temas da prova nos seguintes termos:

Objeto do Litígio:

De seguida, ao abrigo do disposto no artigo 596.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, passa-se a identificar o objeto do litígio:

1 - Saber se o uso que a Ré faz do imóvel melhor identificado no artigo nº 4 da petição inicial (prédio urbano, destinado a habitação, composto de rés-do-chão e 1º andar, sito no (…), nºs 47 e 49, da freguesia de (…), concelho de Lagos, descrito na conservatória do registo Predial de Lagos sob o n.º (…) e inscrito na matriz predial urbana sob o n.º (…), com o valor patrimonial de € 75.413,46 uma comunhão hereditária), é ilícito.

2 – Saber se o uso que é feito pela Autora dos Rés do chão-E e primeiro andar do n.º 47, é também legitimo ou não.(…)


*

Temas da Prova:

Nos termos do artigo 596.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, constitui tema da prova apurar o seguinte:

1 - Se a Ré se introduziu sem qualquer autorização no imóvel referido em 1 do objeto do litígio, em 2020, e o tem usado em proveito próprio.

2 – Se a Ré inversamente ali vive desde 1962.

3 – Quem tem suportado os encargos fiscais dos imoveis acima referidos.

4 – Se a Ré tem tratado da conservação do imóvel que ocupa.

5 – Se é a Autora que usufrui dos dois fogos existentes no rés do chão e 1º andar-E do prédio n.º 47 desde 05 maio de 2020, nos termos descritos nos artigos 30º a 35º da contestação.”

Por último, foi agendada a audiência de julgamento para o dia 25.09.2024.

5. Dias antes da data agendada para a audiência de julgamento, foram as partes notificadas para, querendo, se pronunciarem quanto à sua falta de interesse em agir em juízo no que se reporta às pretensões subsistentes e ou quanto à natureza não autónoma de tais pedidos, nos seguintes termos:

Tendo em consideração que não se logra perspetivar qual é a utilidade que autora e ou reconvinte retirarão das pretensões que (restaram), as quais não evidenciam ter qualquer autonomia quando desassociadas da dedução das pretensões de cariz indemnizatório que complementavam e quanto às quais os autos não seguirão os seus termos face ao já decidido, notifique as partes para se pronunciarem, quanto à sua falta de interesse em agir em juízo no que se reporta às pretensões subsistentes e ou quanto à natureza não autónoma de tais pedidos.

Prazo: 5 (cinco) dias.


*

Importando fazer operar o contraditório para efeitos de conhecimento da referida matéria de exceção, fica sem efeito a data que foi designada para realização da audiência de julgamento.”

6. Só a A. respondeu, manifestando a sua divergência quanto a tal entendimento, após o que foi proferido despacho com o seguinte dispositivo:

“Em face do exposto julgo procedentes as excepções inominadas de falta de interesse em agir e de falta de autonomia dos pedidos subsistentes e, em consequência, absolvo quer a ré quer reconvinda da instância, referente à ação e à reconvenção, quanto às concretas pretensões subsistentes supra elencadas de) 1 a 4) – cfr. artigos 278.º, alínea e), 576.º, n.º 2, 577.º, alínea i), 578.º, 579.º, 580.º, 581.º, todos do Código de Processo Civil”.

7. Inconformada, veio a A., em 05.12.2024, interpor recurso de apelação, concluindo as suas alegações com as seguintes conclusões:

I- Neste suporte material, contêm-se dois recursos em cumulação objectiva: o do despacho saneador e o da sentença de preceito.

II- A. e R. são co-herdeiras de um determinado imóvel, acima melhor identificado.

III- Após a abertura da herança, em 2020, sem dar disso qualquer prévia ou posterior informação à A., ocupou aquele imóvel, fazendo dele o seu lar, impedindo, dessa forma, o acesso desta ao mesmo, sendo-lhe por isso defeso, quer a sua usufruição, quer a obtenção de um qualquer rendimento.

IV- A A. manifestou-lhe reiteradamente, mas sempre em vão, que se opunha a tão abusivo uso, discordando daquela ocupação e instando-a a abrir mão do imóvel em causa, sustando dessa forma, e prontamente, na dita ocupação.

V- Por isso, a A, nas alíneas D) e E) do seu pedido, impetrou que se tirasse decisão a determinar que os RR. fossem condenados a pagar-lhe uma indemnização compensatória pelos prejuízos causados com essa ocupação, bem como a pagar-lhe um valor mensal, a título de renda, caso continuassem a ali residir.

VI- Antes de ir adiante, mister é enfatizar que, pese embora a A. não ignore que o vertente caso seja de comunhão e não de compropriedade/composse, para o dirimir vai seguir de muito perto o decidido no Ac. do STJ de 21/4/22, tirado no proc. n.º 2691/16.1T8CSC.L1.S1, relatado por João Cura Mariano, visto nele se entender que, aqui, e com vista justamente à solução deste caso, se têm de aplicar subsidiariamente as normas da compropriedade.

255. VII- Isto dito, e entrando agora no âmbito do recurso sobre o despacho saneador (que é intentado agora, em concomitância com a apelação da sentença, ao abrigo do decidido no Ac. do STJ de 7/3/23, tirado no proc. n.º 995/20.8T8PNF.P1.S1, relatado por Sousa Pinto), importa dizer que, aqui, o sr. Juiz a quo claudicou quando indeferiu, os pedidos D) e E) da A., absolvendo do RR. da instância (artigo. 278.º/1-d), do CPC), por ilegitimidade de parte da A. (violação do artigo 30.º do CPC), por no seu entendimento estarem direitos da herança que, “como tal, apenas podem conduzir a pedidos formulados pela herança ou pela cabeça-de-casal em representação da herança, mas já não, como é o caso por algum herdeiro (mesmo que, coincidentemente, ocupe essas funções) em nome próprio”.

VIII- E claudicou, desde logo porque se trata de uma decisão-surpresa (artigo 3.º/3, do NCPC), ferida, por isso, de nulidade por excesso de pronúncia (artigo 615.º/1-d), do CPC),

IX- E, depois, por se tratar de uma decisão precoce, que, por isso, enferma de nulidade processual, em decurso dessa mesma precocidade (artigo 195.º/1 e 2, do CPC).

X- É decisão-surpresa (por falta de contraditório prévio – artigo 30º/3, do NCPC) ferida de nulidade por excesso de pronúncia (artigo 615.º/1-d), do CPC), por em causa estar, como se lê no sumário do Ac. do TCAN, tirado no proc. n.º 0821/20.8BEPNF, relatado por Helena Ribeiro, uma nova abordagem jurídica da questão, não perspetivada pela A., mesmo usando da diligência devida, XI- Enfim, uma abordagem com sentido de novidade relativamente às questões que a mesma A. suscitou, seguindo os ensinamentos colhidos no aludido Ac. do STJ de 21/4/22, tirado no proc. n.º 2691/16.1T8CSC.L1.S1, relatado por João Cura Mariano, e com a qual que se viu de súbito confrontada, abordagem essa que não poderia prever ou antecipar face ao conjunto do sistema jurídico na parte aplicável,

XII- E sobre a qual o Tribunal, antes de tirar a decisão de indeferimento dos ditos pedidos D) e E) da A., não a ouviu, como lhe competia, atento o previsto no artigo 3.º/3, do CPC sobre o princípio do contraditório,

XIII- Sendo que, como se disse ut supra, esta violação do princípio do contraditório do artigo 3.º, n.º 3, do CPC dá origem a uma nulidade da própria decisão, por excesso de pronúncia, nos termos dos artigos 615.º, n.º 1, alínea d), 666.º, n.º 1 e 685.º do CPC, como ensina Miguel Teixeira de Sousa, e se retira, entre outros, da leitura, seja daquele Acórdão do TCAN, seja do Ac. da RP de 2/12/19, tirado no processo n.º 14227/19.8T8PRT.P1, relatado por Eugénia Cunha.

XIV- Por via disto, requer-se que V. Exas., Mmos. Juízes Desembargadores, não só reconheçam acharmo-nos, aqui, diante de uma decisão surpresa, como, declararem, de seguida, com todos os legais efeitos, a nulidade dessa decisão, por excesso de pronúncia (artigo 615.º/1-d), do CPC), determinando, em consequência, a baixa dos autos à 1ª Instância, para aí ser tirado novo saneador, dando prévio cumprimento ao contraditório em falta, se a sra. Juiz da causa mantiver a intenção do anterior magistrado, de anular os pedidos D) e E) da A.!

XV- E que dizer do indeferimento dos pedidos D) e E) da A. a se, efectuado pelo sr. Juiz do a quo em sede de saneador, com o fundamento lacónico, acima transcrito, de se estar diante de um caso de ilegitimidade de parte (artigo 30.º do NCPC), tendo, em consequência, absolvido os RR. da instância (artigo 278.º/1-d), do NCPC)?

XVI- Encurtando argumentos, e como se lê no Ac. RL de 19/2/2015, proc. 143148/13.OYIPRT.L1-2. que: “as partes são consideradas dotadas de legitimidade processual até que se analise e aprecie a sua legitimidade substantiva”!

XVII- Ou seja, e como se retira da leitura das súmulas I e II do Ac. da RP de 4/10/21, tirado no proc. n.º 1910/20.4T8PNF.P1, relatado por Eugénia Cunha: a ilegitimidade de parte, leva à absolvição da instância, já que é uma excepção dilatória, e, a ilegitimidade ad actum ou substantiva, leva à absolvição do pedido, uma vez que se trata de uma excepção peremptória,

XVIII- E, a ilegitimidade de parte só pode ser decretada, depois de apreciada a legitimidade substancial, sendo que, até esse momento, se tem de considerar que as partes são dotadas de legitimidade ad causam.

XIX- Ora, o sr. Juiz da 1ª Instância, no saneador, chamou à colação a ilegitimidade ad causam da A., no que tange aos seus pedidos D) e E), e ignorou, de todo, a legitimidade ad actum, e a necessidade de previamente a apreciar, o que lhe estava, como vimos, vedado.

XXI- Tirou, por isso, e também, além de uma decisão-surpresa, uma decisão fora do tempo adequado, ferindo-a, por isso, de nulidade processual (artigo 195.º, n.º 1, do CPC), nulidade que se pede seja agora conhecida e declarada por V. Exas., Mmos. Juízes Desembargadores, com todos os legais efeitos, mormente os previstos no nº2 deste mesmo dispositivo legal: “anulação de tudo quanto se processou depois deste despacho saneador”, por, aqui, “tudo” depender deveras deste despacho em absoluto, já que, a sentença, tirada, como veremos abaixo, de preceito, assentou exclusivamente na validade desta decisão de indeferimento dos pedidos D) e E), tirada no saneador!

XXII- Ainda em sede de recurso do despacho saneador, mister é enfatizar que, nada obstava a que a A. deduzisse os pedidos D) e E), aí indeferidos pelo sr. Juiz da 1ª Instância, como se retira da leitura da fundamentação do supra aludido Ac. do STJ de 21/4/22, tirado no proc. n.º 2691/16.1T8CSC,L1.S1, relatado por João Cura Mariano!

XXIII- Aí se lê nomeadamente que, para tirar uma tal decisão, o sr. Juiz do a quo partiu do equívoco de que, a utilização, pela Ré, daqueles imóvel da herança, se traduz num exercício dos poderes de administração da herança que são atribuídos pelo artigo 2079.º do Código Civil ao cabeça de casal.

XXIV- Mas a verdade é que, a competência do cabeça de casal para administrar os bens da herança atribui-lhe os poderes necessários para a prática de atos e de negócios jurídicos de conservação e frutificação normal dos bens administrados, neles não se incluindo, seguramente, a utilização dos bens da herança para seu exclusivo proveito, designadamente a utilização de um imóvel da herança para nele habitar com a sua família. Nesta situação, o cabeça de casal não administra (bem ou mal) aquele imóvel, mas serve-se dele em seu exclusivo benefício.

XXV- “A utilização de um bem da herança pelo cabeça de casal não se traduz em qualquer receita ou despesa para a herança, mas sim numa poupança do cabeça de casal e, portanto, numa receita indireta para ele próprio”.

XXVI- “Estamos, pois, perante uma situação de uso de bens de uma herança, em proveito próprio, por um dos herdeiros que, irrelevantemente para o desfecho desta ação, era o cabeça de casal”.

XXVII- “Esta realidade, que na vida corrente sucede com alguma frequência, não se mostra especificamente prevista e regulada pelas regras do direito sucessório, dispondo, contudo, o artigo 1406.º do Código Civil, inserido no capítulo da compropriedade, que, na falta de acordo sobre o uso da coisa comum, a qualquer dos comproprietários é lícito servir-se dela, contanto que a não empregue para fim diferente daquele a que a coisa se destina e não prive os outros consortes do uso a que igualmente têm direito”.

XXIX- “O facto de ser entendimento, algo consolidado na nossa doutrina e jurisprudência, que, nas situações habitualmente apontadas como de comunhão em mão comum, designadamente na comunhão sucessória, os direitos dos contitulares não incidem sobre cada um dos elementos que constituem o património coletivo, mas sim sobre todo ele, como um todo unitário, não é um obstáculo à aplicação subsidiária daquela regra à utilização dos bens da herança pelos herdeiros, em situações alheias à sua administração pelo cabeça de casal, nos termos permitidos e até induzidos pelo artigo 1404.º do Código Civil”.

XXX- “Daí que seja compreensível e adequada a aplicação subsidiária, com as necessárias adaptações, do disposto no artigo 1406.º do Código Civil à utilização pelos herdeiros dos bens da herança em proveito próprio, nos casos em que o cabeça de casal não exerça os seus poderes de administração sobre os bens da herança, face à ausência de uma previsão específica no direito sucessório deste tipo de situações”,

XXXI- Eis porque a A. tinha, e tem, toda a legitimidade para formular aqueles pedidos D) e E), como a detém para deduzir os pedidos A) a C)!

XXXII- Assim, requer-se que V. Exas., Mmos. Juízes Desembargadores, também por isto, mantenham incólumes aqueles pedidos D) e E) da A., anulando, para tal o despacho saneador, ao abrigo do disposto no n.º 1 do artigo 195.º do NCPC, bem como os termos subsequentes que dele dependem absolutamente (artigo 195.º/2, CPC), ou seja, tudo quanto se seguiu ao saneador, tanto mais que a sentença assentou numa única premissa: a validade da anulação dos pedidos D) e E) decretada no saneador, e determinando, ou a repetição do saneador, ou, então, que o processo prossiga para julgamento da totalidade dos cinco pedidos formulados pela Autora / recorrente na PI.

XXXIII- Entrando agora de apreciar o recurso de apelação da sentença de preceito, temos que: a Senhora Juiz do a quo, disse, nesta sede, que afinal também ia liminarmente indeferir os pedidos A) a C) da Autora/apelante, porquanto, indeferidos que foram, no saneador, os pedidos E) e E), esta não detém interesse em agir quanto àqueles!

XXXIV- Disse, para tanto, e concretamente, que: “Ora, quer a presente acção, quer a reconvenção prosseguiam finalidades condenatórias que, visam o arbitramento de montantes de natureza indemnizatória, sendo que tais propósitos ficaram inutilizados em consequência do que foi anteriormente decidido quanto à falta de legitimidade processual da autora (...) para formulação de tais pretensões.

Sendo certo, que em face daquelas que foram as causas de pedir alegadas, e a já referida finalidade que era visada com a instauração destes autos, a afirmação do uso ilícito do imóvel por parte da ré (…), consubstanciaria um mero pressuposto da responsabilidade civil, que apenas faria sentido e ou teria qualquer utilidade declarar, no âmbito destes mesmos autos, caso fosse ainda possível concluir pela existência do dever de indemnizar a cargo de qualquer uma das partes em benefício da contraparte, O que contudo já não é possível ajuizar no âmbito desta mesma ação em consequência da ilegitimidade anteriormente declarada.

Sendo ainda certo que declarar uma ilicitude, só por declarar, sem daí retirar uma qualquer consequência jurídica e ou de ordem prática, traduz-se num exercício judicativo inútil ou estéril. Já quanto ao reconhecimento da situação de comunhão hereditária e da composse do imóvel pela autora e pela ré, ambas na qualidade de herdeiras de (…), essa matéria nem sequer é litigiosa, não tendo as partes qualquer interesse em agir em juízo quanto a tal questão e como tal também nenhuma utilidade tem a emissão de uma qualquer pronúncia judicial quanto a essa mesma temática.

Pois que, “o interesse processual ou interesse em agir, embora não autonomizado em geral constitui um pressuposto processual relativo às partes, e a sua falta integra excepção dilatória inominada, de conhecimento oficioso, a conduzir à absolvição da instância, (cfr. a alínea e) do n.º 1 do artigo 278.º, n.º 2 do artigo 576.º, artigo 677.º e artigo 578.º, todos do CPC) exprimindo a necessidade do processo, pela essencialidade da tutela judicial, a adequação entre o direito que se pretende exercer e o caminho escolhido pelo autor” – cfr. Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de Proc. n.º 129/21.1T8VGS.P1, disponível em www.dgsi.pt.

Pelo que (…) impõe-se pois tratar esse mesmo circunstancialismo – (…) – como verdadeiras excepções dilatórias inominadas e, em consequência, absolver, quer a ré, quer a reconvinda da instância (…). (…).

Decisão: em face do exposto julgo procedentes as excepções inominadas de falta de interesse em agir e de falta de autonomia dos pedidos subsistentes e, em consequência, absolvo, que a ré quer a reconvinda da instância, referente à ação e à reconvenção, quanto às concretas pretensões subsistentes supra elencadas de 1 a 4 (cfr. artigos 278.º, alínea e), 576.º, n.º 2, 577.º, alínea i), 578.º, 579.º, 580.º, 581.º, todos do Código de Processo Civil”.

XXXV- Ora, repetindo quanto já se disse acima, em sede de alegações do recurso do despacho saneado, a decisão vinda de transcrever, da sra. Juiz da causa, é uma decisão-surpresa, que se acha ferida de nulidade por excesso de pronúncia (artigo 615.º/1-d), do NCPC), por em causa estar, como se lê no sumário do Ac. do TCAN, tirado no proc. n.º 0821/20.8BEPNF, relatado por Helena Ribeiro, uma nova abordagem jurídica da questão, não perspetivada pela A., mesmo usando da diligência devida,

XXXVI- Enfim, uma abordagem com sentido de novidade relativamente às questões que a mesma A. suscitou, seguindo os ensinamentos colhidos no aludido Ac. do STJ de 21/4/22, tirado no proc. n.º 2691/16.1T8CSC.L1.S1, relatado por João Cura Mariano, com a qual que se viu de súbito confrontada, abordagem essa que não poderia prever ou antecipar face ao conjunto do sistema jurídico na parte aplicável,

XXXVII- E sobre a qual o Tribunal, antes de tirar a decisão de indeferimento dos ditos pedidos A) a C) da A., não a ouviu, como lhe competia, atento o previsto no artigo 3.º/3, do CPC sobre o princípio do contraditório,

XXXVIII- Sendo que, como se disse ut supra, esta violação do princípio do contraditório do artigo 3.º, n.º 3, do CPC dá origem a uma nulidade da própria decisão, por excesso de pronúncia, nos termos dos artigos 615.º, n.º 1, alínea d), 666.º, n.º 1 e 685.º do CPC, como ensina Miguel Teixeira de Sousa, e se retira, entre outros, da leitura, seja daquele Acórdão do TCAN, seja do Ac. da RP de 2/12/19, tirado no processo n.º 14227/19.8T8PRT.P1, relatado por Eugénia Cunha.

XXXIX- Por via disto, requer-se que V. Exas., Mmos. Juízes Desembargadores, não só reconheçam acharmo-nos, aqui, diante de uma decisão surpresa, como que declarem, de seguida, com todos os legais efeitos, a nulidade dessa decisão, por excesso de pronúncia (artigo 615.º/1-d), do CPC), determinando, em consequência, a baixa dos autos à 1ª Instância, para aí ser tirada decisão de fundo, cumprindo-se, se necessário, o contraditório em falta!

XL- Em todo o caso sempre se dirá que, é convicção, da A., que se não perfila, in casu, qualquer situação passível de se identificar com a falta de interesse em agir.

XLI- Para além de quanto fica dito, mister é enfatizar que é convicção, da A., que se não perfila, in casu, qualquer situação passível de se identificar com a falta de interesse em agir.

XLII- Como se diz na fundamentação do Ac. RP de 4/5/22, tirado no proc. n.º 5005/21.5T8PRT.P1 relatado por Eugénia Cunha: “O interesse em agir consiste em “o requerente mostrar interesse, já não no objeto do processo, mas no próprio processo em si. O requerente tem de invocar um direito, ou interesse juridicamente protegido, mas teria de invocar, ainda, achar-se o seu direito em situação tal, que necessita do processo para a sua tutela. O requerente deveria mostrar interesse no objeto do processo e interesse no próprio processo”, é a manifestação da concreta e objetiva necessidade de tutela pelo autor!

XLIII- Foi, como se viu, o que deveras aqui fez a A, sendo ponto assente que, esta alegou direitos seus, bem como a necessidade da sua tutela pelo tribunal!

XLIV- Acresce que:” a verificação da existência ou inexistência do interesse em agir, é apreciada por referência ao momento em que a ação é proposta. Tem de se aferir se, nesse momento, o direito que o demandante pretende exercer na ação se encontrava ou não carecido de tutela judiciária e, por conseguinte, se existe ou não uma situação razoável, fundada que justifique o recurso à via judiciária para fazer valer o direito invocado” (cfr. ainda, a este propósito, as súmulas II e IV do Ac. do STA de 17/12/14, tirado no proc. n.º 01348/14, relatado por Fonseca Carvalho),

XLV- E neste particular há que enfatizar que, a apreciação, feita pela sra. Juiz do a quo, se reporta, apenas e exclusivamente, ao status quo existente após o despacho saneador, e não ao momento do aforamento da acção, como vimos de ver que teria de ser.

XLVI- Não se perfila por isso aqui, a exceção dilatória inominada, de conhecimento oficioso “falta de interesse em agir”, chamada à colação pela sra. Juiz do a quo, para determinar a absolvição da instância dos RR. (cfr. alínea e) do n.º 1 do artigo 278.º, n.º 2 do artigo 576.º, artigo 577.º e artigo 578.º, todos do CPC), facto que se requer seja agora conhecido e decidido a favor da A., por V. Exas., Mmos. Juízes Desembargadores, com todos os legais efeitos.

XLVII- A pergunta que se segue, é esta: afinal os pedidos A) a C) da A., sem os pedidos D) e E) soçobram? Só por si não consubstanciam direitos da A.? E, se sim, não são a se dignos da tutela judicial?

XLVIII- Como resulta da leitura do Ac. do STJ de 21/4/22, no proc. 2691/16.1T8CSC.L1.S1, relatado por João Cura Mariano, concatenado com este caso concreto, resulta que, a A. tem nesta sede direitos, direitos que estão a ser diariamente lesionados pelos RR., e que, por isso, reclamam a tutela judicial.

XLIX- No caso do pedido A), está em causa uma declaração de ciência relativa a uma situação concreta da A., que se pede ao tribunal para apreciar, não se estando por isso a solicitar, do tribunal, a prolação uma qualquer declaração de interpretação abstracta da lei, sendo que, só se a resposta do tribunal a este pedido for positiva, é que a mesma A. poderá fazer valer os direitos pressupostos pelos pedidos subsequentes, acolhidos e rejeitados no saneador.

L- O pedido formulado na al. B), só ficou clarificado, depois de a Ré o confessar, no artigo 10 da contestação, o que não teria acontecido, se a vertente acção não tivesse podido ir adiante, o que reforça a acima alegada necessidade da tutela judicial, para um direito da A. violado pelos RR., devendo, agora, a dita confissão, ser sufragada e valorada por sentença que conheça de fundo. LI- A “declaração do uso ilícito da fracção habitada pela Ré”, pedida na alínea C), é outro desiderato que só por sentença pode ser alcançado.

LII- Atingida, por foi, por confissão da Ré, a convicção de que a mesma ocupa deveras o imóvel aqui em causa, há agora que apurar, em sede desse Tribunal, se essa ocupação é lícita ou ilícita, sendo esse o desiderato visado com o pedido C) da A.!

LIII- O que se pede nas als. A) a C) tem pois autonomia, em relação ao pedido nas als. D) e E), e só poder ser resolvido por sentença! se

LIV- Tem por isso, a A., interesse em agir, mão havendo como manter a decisão de forma, tirada pela sra. Juiz do a quo.

LV- Face ao exposto, devem, V. Exas., Mmos. Juízes Desembargadores, acolher e deferir o pedido de apreciação dos pedidos A) a C) da A., seja porque a decisão ora sub judicio diz respeito a uma excepção que foi apreciada, apenas e só, em função do decidido no despacho saneador, e não, como devia ter sido, em função da realidade que se perfilava no momento do aforamento desta acção, seja por em causa estar, aqui, mesmo após a amputação dos pedido D) e E) no saneador, a “efetiva lesão de um seu direito” litigioso, a reclamar a tutela efectiva desse Tribunal, determinando, face ao agora exposto, que os autos prossigam para julgamento.”

8. Não foram apresentadas contra-alegações.

9. O Tribunal a quo, aquando da admissão do recurso, julgou improcedentes as nulidades arguidas no recurso.

10. Foi proferido despacho liminar, neste Tribunal da Relação, onde foi rejeitado o recurso do despacho saneador, com fundamento em extemporaneidade.

11. Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.

II – Questões a Decidir

O objeto do recurso está delimitado pelas conclusões da apelação, não sendo objeto de apreciação questões novas suscitadas em alegações, exceção feita para as questões de conhecimento oficioso (artigos 608.º, n.º 2, 635.º, n.º 4 e 639.º, n.º 1, do Código de Processo Civil).

Não se encontra também o Tribunal ad quem obrigado a apreciar todos os argumentos apresentados pelas partes, sendo livre na interpretação e aplicação do direito (artigo 5.º, n.º 3, do Código de Processo Civil).

No caso em apreço importa apreciar as seguintes questões:

a) se a sentença é nula;

c) se deve ser revogada a sentença.

III – Fundamentação

A) Da nulidade

Advoga a A. que a sentença proferida nos autos é nula, por violação do princípio do contraditório, constituindo uma decisão surpresa.

Sustenta o Tribunal a quo que ouviu as partes antes da tomada de decisão, pelo que não ocorre o alegado vício.

Escrevemos já a propósito deste tema que «O contraditório é um princípio estruturante do processo civil, integrante da noção de processo equitativo, consagrado nos artigos 20.º, n.º 4, da Constituição, 6.º, n.º 1, da Convenção Europeia dos Direitos Humanos, e 47.º, § 2º, da Carta Europeia dos Direitos Fundamentais.

Afirma-se no n.º 3 do artigo 3.º do Código de Processo Civil que “o juiz deve observar e fazer cumprir, ao longo de todo o processo, o princípio do contraditório, não lhe sendo lícito, salvo caso de manifesta desnecessidade, decidir questões de direito ou de facto, mesmo que de conhecimento oficioso, sem que as partes tenham tido a possibilidade de sobre elas se pronunciarem.”

Numa moderna conceção ampla deste princípio visa-se não só assegurar que não sejam tomadas providências contra uma pessoa sem que esta seja previamente ouvida, como garantir que ao longo de todo o processo as partes tenham a possibilidade de nele intervir de forma produtiva, como acentuam Lebre de Freitas e Isabel Alexandre (Código de Processo Civil Anotado, vol. 1º, 3ª ed., Coimbra Editora, 2014, pág. 7): “este direito à fiscalização recíproca das partes ao longo do processo é hoje entendido como corolário duma conceção mais geral da contraditoriedade, como garantia da participação efetiva das partes no desenvolvimento de todo o litígio, em termos de, em plena igualdade, poderem influenciar todos os elementos (factos, provas, questões de direito) que se encontrem em ligação, direta ou indireta, com o objeto da causa e em qualquer fase do processo apareçam como potencialmente relevantes para a decisão”.» (Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 16.12.2024, Processo n.º 1946/19.8T8SLV-D.E1, in http://www.dgsi.pt/).

E concluímos, então, que “3. A violação do princípio do contraditório tem sido apreciada sob distintas perspetivas na doutrina e na jurisprudência:

- como nulidade procedimental, enquanto omissão do ato legalmente devido de audição das partes previamente à tomada de decisão sobre aspetos adjetivos ou substantivos, seja no plano dos factos, seja no plano da aplicação do direito, nos termos do n.º 1 do artigo 195.º do Código de Processo Civil;

- como nulidade de sentença, enquanto excesso de pronúncia, por conhecimento de questão que o tribunal não podia apreciar, em virtude de não ter previamente auscultado as partes sobre a mesma, nos termos do artigo 615.º, n.º 1, alínea d), do Código de Processo Civil;

- sob as duas vestes de nulidade procedimental e de nulidade de sentença, em concurso;

- como nulidade extraformal geneticamente derivada das garantias constitucionais.

4. Compatibilizando as duas nulidades evidenciadas, pode dizer-se que:

- a inobservância do princípio do contraditório começa por constituir uma nulidade procedimental, que se subsume ao disposto no artigo 195.º, n.º 1, do Código de Processo Civil;

- se a parte arguir a nulidade e a mesma for indeferida, assiste-lhe a faculdade de recorrer dessa decisão de indeferimento, ao abrigo do disposto no artigo 630.º, n.º 2, do Código de Processo Civil;

- se a parte não arguir a nulidade, pode recorrer da decisão proferida com inobservância do contraditório, invocando a nulidade prevista na alínea d) do n.º 1 do artigo 615.º do Código de Processo Civil.” (ibidem).

Ora, revertendo ao caso dos autos verificamos que previamente à prolação da sentença o Tribunal a quo notificou as partes para se pronunciarem sobre a “falta de interesse em agir em juízo no que se reporta às pretensões subsistentes e ou quanto à natureza não autónoma de tais pedidos”.

A A. respondeu a esse convite e pronunciou-se desfavoravelmente à decisão aí proposta.

Por outro lado, compulsada a sentença, constata-se que o seu conteúdo corresponde exatamente àquele que havia sido anunciado às partes, isto é, o Tribunal a quo não abordou questões suscitadas oficiosamente ou sobre as quais não tenha ouvido as partes.

Ou seja, não há violação do princípio do contraditório, porque as partes foram previamente ouvidas sobre o objeto e sentido da decisão do Tribunal a quo e, também por esse motivo, a decisão não foi uma surpresa, antes era essa a decisão previsível no que tange às questões nela versadas.

Sublinha-se ainda que a discordância da parte quanto ao sentido da decisão não permite qualificá-la como uma decisão surpresa.

Assim, improcede a nulidade arguida pela Autora.

B) Do mérito do recurso

1. Os factos relevantes são os que constam do relatório.

2. A sentença proferida pelo Tribunal a quo mostra-se fundada na exceção dilatória inominada da falta de interesse em agir e na falta de autonomia dos pedidos remanescentes, com alicerce essencialmente nos seguintes argumentos:

- a presente lide foi estruturada como uma ação de condenação e não como uma ação de mera apreciação;

- assim, o apuramento das circunstâncias da ocupação do imóvel só interessa por constituir um pressuposto da responsabilidade civil;

- logo, tendo sido extinta a instância quanto aos pedidos indemnizatórios, é inútil o prosseguimento da ação.

3. O interesse em agir tem sido qualificado como um pressuposto processual inominado, que se reconduz à afirmação da necessidade do processo judicial para alcançar a tutela de uma posição jurídica.

Para Montalvão Machado e Paulo Pimenta (O Novo Processo Civil, 9ª ed., Coimbra, 2007, pág. 80), esta necessidade advém da circunstância do autor não dispor de quaisquer outros meios extrajudiciais para realizar aquela finalidade, porque não existem de todo ou porque, tendo o autor lançado mão dos mesmos, se revelaram infrutíferos (no mesmo sentido, Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, Código de Processo Civil Anotado, vol. I, Coimbra, 2024, pág. 708).

Está subjacente a este princípio a consideração de que uma ação inútil causa prejuízos e incómodos a quem é obrigado a defender-se nessa causa e, adicionalmente, pondera-se que dessa forma se está a fazer uma utilização ineficiente dos meios estaduais, o que tudo deve ser evitado (Montalvão Machado e Paulo Pimenta, ob. cit., pág. 81).

O tema tem sido mais intensamente debatido com respeito às ações de simples apreciação, como se sublinhou no muito recente Acórdão desta Relação de Évora de 22.05.2025 (António Marques da Silva) (Proc. 1281/23.7T8TNV.E1, ainda inédito):

“(…) a natureza da tutela, meramente declarativa, que se visa alcançar, desligada de uma pretendida imposição judicial de efeitos derivados da violação concreta de direitos (acção de condenação) ou da necessidade prevista pela lei de recurso ao tribunal para ver produzido certo efeito (acção constitutiva), atribui especial relevo à determinação da «necessidade do processo» e simultaneamente torna mais difusa a definição concreta dessa necessidade. Como ponto de partida valem as referidas ideias de que tal interesse tem que derivar de uma «situação de incerteza ou de dúvida grave e objectiva», corporizadora de uma necessidade efectiva de tutela através dos tribunais, por aquela situação, por necessitar de clarificação, ser apta a justificar a obtenção de uma afirmação do direito ou estado jurídico pelo tribunal. Nessa medida, a existência de litígio constitui critério em princípio seguro da existência do interesse em agir, por corresponder àquela situação de incerteza. Já a inexistência do litígio constitui apenas indício da falta de interesse em agir, e não critério seguro dessa falta, porquanto as circunstâncias concretas podem, ainda que sem litígio, caracterizar uma situação de carência do processo (necessidade) para acautelar certa posição jurídica que se mostra num estado de dúvida ou incerteza relevante.”

A falta de interesse em agir constitui, no reverso, um pressuposto processual inominado, determinante da absolvição do réu da instância, nos termos do artigo 577.º do Código de Processo Civil, atenta a circunstância da enunciação de exceções dilatórias daí constante não ser taxativa (ibidem).

4. Ora, compulsada a petição inicial e lidos os pedidos formulados pela A., inexistem dúvidas de que o escopo da A. era, efetivamente, obter a condenação da R. no pagamento de uma indemnização por ocupação ilícita de imóvel pertencente à herança.

Por outro lado, na sua contestação a R. aceita que são ambas herdeiras da falecida (…), que se encontra a correr termos um processo de inventário, que a R. é a cabeça-de-casal, que o bem objeto desta ação integra o património hereditário e que está a ser por si ocupado.

Todavia, refuta a alegação da A. de que tal ocupação é ilícita e nega, de igual modo, que seja a A. a suportar os encargos fiscais com o imóvel, bem como as despesas com a sua conservação e manutenção, como resulta dos seguintes artigos da contestação:

10º A Ré sempre demonstrou interesse em realizar a partilha, por se encontrar a viver num dos três fogos que constituem o prédio urbano destinado à habitação, com o artigo matricial (…), mais especificamente no R/C do n.º 49.

11º Porém, a Autora após a morte de (…), do qual foi herdeira testamentária, começou a agir como se fosse herdeira universal deste bem comum, dizendo à Ré e ameaçando-a, através de mensagens, para que esta saísse da sua habitação e que queria vê-la a dormir debaixo de uma ponte.

12º A Ré sempre desejou fazer esta partilha, pois desde 2020 até à presente data, tem sofrido, constantemente, humilhações e ameaças por parte da Autora.

13º Toda esta situação tem perturbado a vida e o estado de saúde da Ré.

14º Dada a sua idade bastante avançada, vê-se, no fim da sua vida constrangida e ameaçada na casa onde sempre viveu.

15º Quanto ao facto descrito no artigo 5º da douta p.i é totalmente falsa a alegação de que a Ré decidiu ocupar o imóvel desde o ano de 2020.

16º Ora, a Ré reside nesta habitação desde o ano de 1962, há mais de 60 anos.

17º Durante, praticamente, toda a sua vida viveu nesta habitação.

18º É totalmente falso que a Autora suporte os encargos fiscais, como afirma no artigo 6º. A Ré como cabeça de casal da herança tem suportado sempre os encargos fiscais, como se prova pelo doc. 1 que se junta.

19º A Ré suporta o pagamento de água, luz e gás do fogo onde vive, ou seja, do R/C, n.º 49.(…)

21º A Ré ao longo dos anos realizou obras de conservação e manutenção do imóvel, nomeadamente pinturas e benfeitorias. (…)

28º Assim como, não pode a Autora dizer no artigo 18º da douta p.i. que a Ré fez uma ocupação ilícita, porque a Ré sempre viveu nesta habitação e vive num bem comum do qual tem composse, fazendo uso para o fim à qual a mesma se destina.”

E conclui:

DO PEDIDO

Devendo, assim, o pedido formulado ser julgado improcedente e a Ré absolvida do pedido, com as legais consequências.”

Assim, atento o teor da defesa deduzida na contestação cumpre julgar assente por acordo que em 2020 a R. habitava o imóvel objeto da ação e que desde essa data a A. se tem oposto a semelhante ocupação, estando em discussão saber em que termos se iniciou a ocupação e em que moldes a mesma se desenvolve, concretamente, saber quem tem assumido os encargos fiscais e as obras de conservação e manutenção do imóvel.

É ainda claro que existe um litígio, no sentido em que as partes têm posições divergentes e inconciliáveis sobre a questão trazida a juízo, pretendendo a A. que seja declarada ilícita a ocupação do imóvel pela R., e afirmando a R., ex adverso, que essa ocupação é legítima.

5. Mas a ideia subjacente ao interesse em agir, como se disse acima, é a da utilidade do meio judicial, circunstância de onde decorre que se o objeto do conflito for inconsequente daquele ponto de vista da tutela de uma posição jurídica, então, não haverá interesse em agir.

Ora, é certo que os factos acima expostos se enquadram nos pressupostos da responsabilidade civil, instituto que presidiu aos pedidos indemnizatórios formulados na causa pela A. e que, em consequência da ilegitimidade ativa declarada no despacho saneador, não serão aqui apreciados.

No entanto, em virtude de ter sido proferida uma decisão que não conheceu do mérito da causa quanto aos pedidos indemnizatórios, semelhante decisão não produziu efeitos de caso julgado material, mas apenas de caso julgado formal.

Efetivamente, nos termos do artigo 619.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, adquire força de caso julgado material a sentença que “decida do mérito da causa”.

Excluem-se, portanto, desta eficácia as decisões que recaiam “sobre a relação processual”, as quais têm mera eficácia de caso julgado formal, isto é, têm força obrigatória apenas dentro do processo (artigo 620.º, n.º 1, do Código Processo Civil).

Nestes casos nada obsta, pois, a que seja instaurada nova ação com o mesmo objeto.

Adicionalmente, como aponta a A. nas suas alegações de recurso, reiterando o que havia já vertido na petição inicial, foi adotada no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 21.04.2022 (Cura Mariano) (Processo n.º 2691/16.1T8CSC.L1.S1, in http://ww.dgsi.pt/) uma orientação sobre esta temática que é distinta daquela que foi seguida no despacho saneador, pois entendeu-se ali que:

“I. A utilização de um imóvel da herança pelo cabeça de casal para sua habitação não integra um ato de administração da herança.

II. A utilização por qualquer herdeiro dos bens da herança em proveito próprio, nas situações em que o cabeça de casal não exerça os seus poderes de administração sobre os bens da herança, deve considerar-se sujeita ao regime do artigo 1406.º do Código Civil, face à ausência de uma previsão específica no direito sucessório deste tipo de situações.

III. A utilização de um determinado bem da herança por um dos herdeiros só determina uma privação do uso pelos outros consortes, para os efeitos do artigo 1406.º do Código Civil, se ela contrariar a vontade manifestada de algum deles lhe dar outra utilização.

IV. Ocorrendo uma ocupação por um herdeiro de um imóvel pertencente a uma herança, impeditiva do seu uso por outro herdeiro, o prejuízo causado a este último corresponde à parte do valor locativo daquela unidade predial no mercado de arrendamento, durante todo o período em que se verificar tal ocupação, correspondendo essa parcela à quota desse herdeiro na herança.”

A esta luz, assistiria à A. legitimidade para, na mera qualidade de herdeira, demandar a outra herdeira, a R., pretendendo ser indemnizada pelos prejuízos decorrentes da privação do uso da coisa comum, com fundamento na dedução de oposição a essa utilização exclusiva.

Nestas circunstâncias, numa eventual futura ação de indemnização instaurada pela A., a prévia decisão, com força de caso julgado material, sobre a eventual existência de uma ocupação ilícita por parte da R., impediria que na nova ação voltasse a ser discutida esta matéria, ficando este pressuposto de responsabilidade civil assente e as partes vinculadas ao mesmo por força da autoridade do caso julgado material.

Ou seja, sob esta perspetiva, a prolação de decisão sobre os pedidos remanescentes não seria inútil para as pretensões da Autora.

Contudo, do citado Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça decorre ainda que o prejuízo indemnizável não resulta da simples privação do uso, antes está cumulativamente assente na intenção do herdeiro demandante de “dar outra utilização” ao bem ocupado pelo herdeiro demandado, como se explica na respetiva fundamentação:

“A utilização de uma fração predial destinada à habitação, atenta a privacidade inerente a tal uso, não permite que a mesma possa ser utilizada, em simultâneo, por herdeiros com diferentes agregados familiares. No entanto, a sua utilização por um dos herdeiros só determina uma privação do uso pelos outros consortes, para os efeitos do artigo 1406.º do Código Civil, se ela contrariar a vontade manifestada de algum deles lhe dar outra utilização (Cfr. Manuel Henrique Mesquita, Direitos Reais – Sumários das Lições ao Curso de 1966-1967, Coimbra, 1967, pág. 89).

Enquanto não se manifestar uma vontade de utilização do bem incompatível com o uso exclusivo que vem sendo feita pelo co-herdeiro em seu proveito não é possível concluir que esse uso tenha sido excludente do direito de uso dos demais herdeiros (In: Colectânea de Jurisprudência, 2008, n.º 211, Tomo III.). A privação só ocorre com a existência de uma vontade não satisfeita.”

Esta mesma apreciação foi feita no Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 16.05.2013 (Ana de Azeredo Coelho) (Processo n.º 7244/04.4TBCSC.L1-6, in http://www.dgsi.pt/), onde se decidiu que:

“VI) A compropriedade tem a natureza de um direito único com pluralidade de titulares, qualitativamente idêntico, mesmo quando quantitativamente distinto.

VII) Na ausência de qualquer acordo, qualquer consorte pode utilizar a coisa, dentro dos fins a que se destina e sem privar os demais dessa utilização.

VIII) Essa utilização pode ser exercida quanto á totalidade da coisa, independentemente da dimensão quantitativa que a quota traduz.

IX) A privação da utilização pelos demais consortes tem de ser apreciada em concreto e não em abstracto pela mera consideração da natureza ou fins a que a coisa se destina; quando assim não fosse, ficaria derrogado o regime do artigo 1406.º, n.º 1, quanto às coisas que apenas permitam o uso exclusivo, impossibilitando o gozo directo por qualquer dos comproprietários.

X) A restrição a que a norma alude, deve ser apreciada em concreto, cabendo ao consorte não utilizador alegar e demonstrar a privação do uso concreto da coisa.

XI) Caso contrário, a mera falta de estipulação consensual poderia privar todos os consortes do uso da coisa em benefício de nenhum deles, pois até o uso indirecto poderia estar vedado; o que, do ponto de vista socioeconómico seria absurdo, podendo até constituir abuso de direito.”

É, contudo, controversa na jurisprudência a questão da ressarcibilidade do dano da privação do uso, relativamente à qual se têm apresentado três orientações distintas (todos os arestos citados, in http://www.dgsi.pt/):

- aquela que exige a demonstração de danos concretos sofridos pelo lesado em consequência da privação do uso (Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 03.10.2013 (Orlando Afonso) (Processo n.º 9074/09.8T2SNT.L1.S1);

- aquela que considera suficiente a demonstração de que o lesado teria dado um uso específico à coisa, caso esta não estivesse ocupada, o que corresponde à posição maioritariamente defendida na jurisprudência, e que ecoa nas decisões acima citadas;

- aquela que entende que a privação do uso da coisa, ainda que desacompanhada da prova de que o lesado a teria efetivamente usado, constitui dano autónomo indemnizável (Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 17.11.2021 (António Barateiro Martins), Processo n.º 6686/18.2T8GMR.G1.S1).

Ora, quando se lê a petição inicial, constata-se que o motivo invocado pela A. para a peticionada indemnização é a mera oposição à ocupação do imóvel pela R., sem que a A. alegue que essa ocupação impede algum uso concreto que a mesma desejasse fazer do imóvel.

Mas perante a aludida controvérsia jurisprudencial, aquela factualidade poderá ser considerada suficiente para o deferimento das pretensões indemnizatórias da A..

Em face do exposto, cumpre concluir que os pedidos indemnizatórios formulados pela A. não são, em abstrato, manifestamente inviáveis, sob a perspetiva de que é juridicamente defensável que a A. possa ser titular do direito indemnizatório que invoca, o mesmo é dizer, numa eventual futura ação instaurada pela A. com este objeto existe a possibilidade da A. ver reconhecida a sua pretensão.

Colocada a questão nestes termos concluímos, então, que a presente ação, ainda que reduzida aos primeiros três pedidos, não é inútil.

Daqui decorre, de igual modo, que não se verifica, no caso em apreço, a falta de autonomia dos pedidos remanescentes, a que alude o Tribunal a quo na sentença.

Com efeito, é inquestionável que a presente ação foi gizada como uma ação de condenação, mas como salientam Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa (ob. cit., págs. 42-43), em anotação ao artigo 10.º do Código de Processo Civil, onde se elencam as “Espécies de ações, consoante o seu fim”: ”(…) muito raramente a classificação surge com toda esta pureza, pois que, ao menos de modo implícito, as ações de condenação impõem sempre a prévia apreciação do direito e são, também por isso, ações de simples apreciação”.

Estas ações, atento o disposto na alínea a) do n.º 3 do referido artigo 10.º visam “obter unicamente a declaração da existência ou inexistência de um direito ou de um facto”.

Assim, “a enunciação de um pedido de reconhecimento da existência de um direito ou de um facto, supondo a alegação prévia dos respetivos fundamentos, faz impender sobre o autor o correspondente ónus da prova: o resultado da ação ser-lhe-á favorável ou desfavorável consoante se provem ou não tais factos.” (ibidem).

Consequentemente, extirpados da ação os pedidos que lhe conferiam a feição condenatória, remanesce um núcleo de pedidos suscetível de recondução à sua classificação como ação de simples apreciação positiva.

Acresce ainda que apesar do acervo fáctico controvertido que subsiste ser reduzido, o mesmo é relevante para a definição do direito de que a A. se arroga titular e para as consequências que futuramente se pretendam daqui extrair.

Com efeito, a afirmação da A. de que a R. se introduziu ilegitimamente no imóvel em 2020 e que todos os encargos fiscais e despesas com a sua conservação e manutenção são suportados pela A. (artigos 5º a 7º da p.i.) representa um quadro muito diferente da afirmação da R. de que habita no imóvel há mais de 60 anos e que suporta todos os encargos fiscais e despesas de conservação e manutenção com o mesmo.

Deve, consequentemente, ser revogada a sentença, ordenando-se o prosseguimento dos autos.

6. Tendo a A. visto a sua pretensão merecer acolhimento, as custas são suportadas pela R., que resulta vencida (artigo 527.º, n.ºs 1 e 2, do Código de Processo Civil).

IV – Dispositivo

Pelo exposto, acordam os Juízes da Secção Cível deste Tribunal da Relação em julgar procedente o recurso, revogando a sentença e ordenando o prosseguimento dos autos.

Custas pela R..

Notifique e registe.

Sónia Moura (Relatora)

António Marques da Silva (1º Adjunto)

Filipe Aveiro Marques (2º Adjunto)