Acórdão do Tribunal da Relação de Évora | |||
Processo: |
| ||
Relator: | RENATO BARROSO | ||
Descritores: | PORNOGRAFIA DE MENORES | ||
![]() | ![]() | ||
Data do Acordão: | 07/14/2020 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
![]() | ![]() | ||
![]() | ![]() | ||
Sumário: | O que se estatui, literalmente, na al. c) do nº1 do Artº 176 do C. Penal, é a produção, distribuição, importação, exportação, divulgação, exibição ou cedência, a qualquer título ou por qualquer meio, de materiais pornográficos, aí não se estabelecendo qualquer diferenciação relativamente ao número de pessoas com quem o agente partilha tais materiais, importando-os ou exportando-os, ou relativamente ao número de pessoas a quem o agente os distribui, divulga ou cede, bastando-se a incriminação que a cedência ou divulgação, seja feita a uma só pessoa, como sucedeu in casu. | ||
![]() | ![]() | ||
![]() | ![]() | ||
Decisão Texto Integral: | ACORDAM OS JUÍZES, EM CONFERÊNCIA, NA SECÇÃO CRIMINAL DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE ÉVORA 1. RELATÓRIO A – Decisão Recorrida No processo de inquérito nº 649/19.8TELSB, que corre termos no Tribunal da Comarca do Setúbal, Juízo de Instrução Criminal, Juiz 2, após primeiro interrogatório judicial de arguido detido, realizado em 19/02/20, foi determinada a aplicação da medida de coacção de obrigação de apresentação periódica, cinco vezes por semana, no OPC da área de sua residência a (...), pela imputação, indiciária, de um crime de pornografia de menores, p.p., pelos Artsº 176 nº5 e 177 nº7, ambos do C. Penal. B – Recurso Inconformado com o assim decidido, recorreu o MP, concluindo as suas motivações da seguinte forma (transcrição): 1 - Nos presentes autos, na perspectiva do Ministério Público, investiga-se a prática de um crime de pornografia de menores agravado, previsto e punível nos termos conjugados dos artigos 176.º, n.º 1, al. c) e 177.º, n.º 7 e de um crime de pornografia de menores agravado, previsto e punível nos termos conjugados dos artigos 176.º, n.º 1, al. d) e 177.º, n.º 7, todos do Código Penal. 2 - Por despacho judicial datado de 19.02.2020, o tribunal ora recorrido indeferiu a promoção do Ministério Público, efectuada nos termos dos artigos 191.º, 193.º, 202.º, n.º 1, al. a) e 204.º, als. a), b) e c), todos do CPP, de aplicação ao arguido da medida de coacção de prisão preventiva. 3 - Apesar de o tribunal considerar como fortemente indiciados os factos carreados para os autos pelo ora recorrente, considerou, sumariamente, que parte da conduta do arguido não se subsumia ao crime de pornografia de menores, previsto e punível nos termos da al. c) do artigo e diploma supra citados, mas sim à conduta prevista e punível nos termos do n.º 5, mais considerando não estar suficientemente indiciada factualidade que permite integrar restante conduta na al. d). 4 - Ora, da subsunção jurídica alcançada pelo tribunal, quanto à al. c) do artigo 176.º, n.º 1 do Código Penal e da não verificação, na perspectiva da Mma. Juiz, da indiciação da factualidade passível de integrar a al. d) do mesmo artigo e número, ambos do Código Penal resultou que qualquer uma das penas em abstracto aplicáveis ao arguido, que nesta fase determinam quais as medidas de coacção passíveis de serem aplicadas, é inferior a cinco anos estando vedado, por isso, o recurso à medida de coacção de prisão preventiva, algo com que o Ministério Público não pode concordar. 5 – Na sua decisão a Mma. Juiz deu fortemente indiciado que o arguido partilhou dois ficheiros pedo pornográficos, através do Facebook, no dia 06.10.2018, pelas 22h14m17s, com utilizador com o nome (…); 6 –Assim como deu como fortemente indiciado que o arguido possuía onze outros ficheiros pedo pornográficos em suporte digital e diversos equipamentos informáticos, incluindo dois computadores portáteis, um disco rígido e três dispositivos de armazenamento digital portáteis, incluindo um disco externo da marca Western Digital, com o número de série (…); 7 – E deu como demonstrado que dois dos dispositivos de armazenamento externo tinham sido alvo de formatação no dia 16 e 18 do corrente mês e ano, o que resultou na eliminação de todos os ficheiros neles incluídos e que o O arguido tem ao seu dispor um programa informático específico considerado anti-forensic com o nome Wise Disk Cleaner o qual permite uma formatação mais extensa, para além da simples eliminação através do sistema operativo instalado no computador, programa informático que se detectou estar instalado no hardware apreendido ao arguido e que tem instalado no seu computador o navegador de anonimização denominado TOR, que lhe permite navegar em todos os sites da internet sem revelar o seu IP real, ocultando assim a identidade do seu computador e consequentemente a sua, ademais permitindo-lhe, quando navega na internet através de tal programa, partilhar ficheiros com conteúdo similar ao supra descrito sem ser detectado, assim como tem instalado no seu computador o programa informático UTorrent que lhe permite ceder e adquirir ficheiros informáticos, numa lógica de partilha com os diferentes utilizadores, à escala mundial, que estejam conectados à internet e que estejam a utilizar o mesmo programa. 8 – Mais dando como preenchidos os elementos subjectivos que ao caso importam e que [o]arguido vive em frente a um parque infantil, sito no (…). 9 – Foi ainda decidido que foi condenado por sentença transitada em julgado em 07.09.2015, proferida no processo (…), onde foi condenado na pena de 2 anos e 9 meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período e na pena acessória, pelo período de 10 anos, de suspensão de exercício de qualquer actividade que implique ter menores sob a sua responsabilidade, educação tratamento ou vigilância, pela prática de 2 crimes de pornografia de menores, um deles na forma agravada e um crime de abuso sexual de criança agravado e que foi condenado por sentença transitada em julgado em 02.12.2015, proferida no processo (…), onde foi condenado na pena de 1 anos e 6 meses de prisão, suspensa na sua execução por igual tempo, pela prática de um crime de abuso sexual de crianças tendo-se posteriormente operado o cúmulo jurídico das penas daí resultando que aplicada ao arguido uma pena única de 3 anos de prisão, suspensa na sua execução por igual período de tempo, subordinada à condição de acompanhamento/tratamento em consulta da especialidade de psiquiatria e ou psicologia para seguimento de perturbações como a apresentada e ainda pena acessória do exercício de funções pelo prazo de 10 anos, pena extinta ao abrigo do artigo 57º do CP por decisão proferida a 25-01-2020 tendo ocorrido a extinção a 30-09-2019. 10 – Porém o Tribunal a quo afastou a subsunção jurídica da factualidade praticada pelo arguido no artigo 176.º, n.º 1, al. c) do Código Penal, imputado pelo Ministério Público, argumentando que a partilha dos dois ficheiros que deu como demonstrada não constitui distribuição, exportação ou divulgação de material pedo-pornográfico uma vez que tais conceitos exigem que se verifique lógica de disseminação desse material ou através de circuitos comerciais ou através de outro tipos de circuitos, mas que pressupõem uma universalidade de destinatários e uma potencialidade de lesão de determinados bens, o que não parece poder aplicar-se à aludida conduta de partilha de material, a uma única pessoa certa e determinada. 11 - A norma sub judice foi introduzida aquando da reforma penal de 2007, decorrendo a tipificação penal das condutas em causa no nosso ordenamento jurídico, já desde momento anterior, da transposição para o direito interno nacional das convenções e instrumentos de direito comunitário e internacional que Portugal se obrigou a implementar, devidamente explicitados na motivação, que aqui se dão como reproduzidos e que devem ser imterpretados à luz do art.º 8.º da Constituição da República Portuguesa. 12 - Ao consultarmos os diplomas suprarreferidos facilmente constatamos que o alargamento da punibilidade das condutas previstas no artigo do Código Penal em referência, tem directamente que ver com facilidade e rapidez de acesso a materiais de pornografia de menores e de difusão dos mesmos na internet. 13 - A evolução tecnológica incrementou exponencialmente a aquisição, distribuição, divulgação, exibição e cedência de materiais pedo pornográficos. É assim e desde logo pela amplitude da rede que, pela sua extensão, dificulta a perseguição e investigação de condutas ilícitas; pelo anonimato que propicia ao consumidor deste tipo de materiais pornográficos; e, ainda, de um terceiro ponto de vista, pelas vantagens proporcionadas e inerentes à própria rede, como o aumento da oferta e da troca de materiais pedo pornográficos e a facilidade e a rapidez em aceder a eles sem quaisquer custos. Quer no plano das comunidades europeia e internacional quer no domínio da ordem jurídica interna, a resposta a esta nova forma de acesso e de difusão de material pornográfico de menores passou por uma estratégia de alargamento da proibição e, em alguns casos, pelo endurecimento da sanção por recurso ao direito penal. 14 - Consciente de que produção e disseminação de material pedopornográfico estão intimamente ligadas ao tráfico de crianças para fins de exploração sexual, o legislador português optou por uma perspectiva mais actuante de criminalização ao escolher, para além da Decisão-Quadro que supra se referiu, criminalizar as condutas que utilizem ou recorram à representação realítica de menor enquanto material pedo-pornográfico, assim como, agora no que diz respeito à Convenção sobre o Cibercrime, não deixou de classificar como infracções penais as condutas que consistam na obtenção para si ou para outra pessoa de pornografia infantil através de um sistema informático ou na posse de pornografia infantil ou num dispositivo de armazenamento de ficheiros informáticos, quando mediante declaração de reserva, o poderia ter feito, optando desta forma por criminalizar, para além da partilha/cedência/divulgação material pedo pornográfico, condutas de consumo de tal material. 15 – Nesta perspectiva, com a alteração do Código Penal, pela Lei n.º 103/2015, de 24.09.2015, pese embora tenha sido mantida intocada a redacção do art. 176.º, n.º 1, alínea c), que como já afirmámos na perspectiva do Ministério Público é aplicável ao caso dos autos, foi aditado o n.º 6, cujo teor aqui damos por reproduzido e que apenas tem relevo para o caso dos autos para enfatizar o endurecimento da criminalização de uso de material pedopornográfico, passando o anterior n.º 4 para o n.º 5, com alterações ao texto já que onde se lia “Quem adquirir ou detiver os materiais previstos na alínea b) do n.º 1 é punido com pena de prisão até um ano ou com pena de multa.”, passou a ler-se ”Quem, intencionalmente, adquirir, detiver, aceder, obtiver ou facilitar o acesso, através de sistema informático ou qualquer outro meio aos materiais referidos na alínea b) do n.º 1 é punido com pena de prisão até 2 anos.” Tal alteração, produzida no quadro no endurecimento da criminalização de condutas envolvendo material pedo pornográfico, teve por mote a dificuldade que se vinha sentindo na jurisprudência quando no caso em concreto se estava perante visualização de material pedo pornográfico na internet, sem que o mesmo fosse descarregado para o computador, o que poderia suceder, v.g., se o utilizador acedesse a um site com tais conteúdos e visualizasse um vídeo deste teor, sem o importar (download) para o seu computador (visualização em streaming), conduta esta que se considerou não merecer menos censura penal do que a de quem visualiza adquirindo previamente. 16 - Tendo em conta o progressivo agravamento das normas contidas no artigo 176.º, passando até a criminalizar-se de forma expressa, a partir de 2015, quem aceder a materiais de pornografia infantil, não tem cabimento legal, doutrinal ou jurisprudencial, nem tão pouco ao caso dos autos, o afirmado pela Mma. Juiz a quo quando pugna pelo enquadramento da factualidade que deu como fortemente indiciada, especialmente aquela descrita nos artigos 1 a 4 e 12, no n.º 5, do artigo 176.º, nem quando escreve que “Em face do alargamento da incriminação operada pela alteração legislativa de 2015, questionou-se se a partilha, estaria ou não abrangida no novo segmento de conduta típica “facilitar o acesso2, o que tem merecido resposta positiva. Neste sentido. Os”Trabalhos Temáticos de Direito e Processo Criminal – Crimes contra a autoderminação sexual do CEJ”, em que se suscita tal dúvida e tal questão, respondendo-se a ela de forma positiva, aludindo-se à conduta de partilha de ficheiros em programas como o “E-Mule”. De igual modo, o acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 16-03-2017 relatado por António Condeço, reportado a uma situação de instalação de programa de partilha de ficheiros denominado “ares” que funciona em sistema de rede Torrent “Peer to Peer”, servindo-se o arguido desse programa que possibilitava a partilha automático de ficheiros, que confirmou a decisão de condenação do arguido pelo artigo 176º, nº 4 do CP antes da Lei 103/215 de 23 de Agosto (hoje nº 5).” 17 - Isto porque, ademais do que supra se disse e atendendo ao teor literal da norma constante do artigo 176.º, n.º 1, al. c), o que se estatui é que quando determinado agente produz, distribui, importa, exporta, divulga, exibe ou cede, a qualquer título ou por qualquer meio, os materiais [pornográficos] previstos na alínea anterior é punido com pena de prisão de um a cinco anos, não estabelecendo o legislador, também pelos motivos supra consignados, qualquer diferenciação relativamente ao número de pessoas relativamente com quem o agente partilha tais materiais, importando-os ou exportando-os, ou relativamente ao número de pessoas a quem o agente distribui, divulga ou cede os mesmos materiais, bastando por isso que tal cedência ou divulgação, ocorrida nos autos conforme o afirma a Mma. Juiz, seja feita com apenas uma pessoa para que a conduta caia no âmbito da incriminação. Aliás, a não ser assim, qual é o critério para determinar que, usando as palavras da Juiz a quo, a partilha foi feita numa lógica de disseminação desse material ou através de circuitos comerciais ou através de outro tipos de circuitos, mas que pressupõem uma universalidade de destinatários e uma potencialidade de lesão de determinados bens, o que não parece poder aplicar-se à aludida conduta de partilha de material, a uma única pessoa certa e determinada. Quando se partilha com duas ou três pessoas? Ou com mais pessoas? Aquela asserção além de conforme ao evoluir legislativo que descrevemos e ao teor da norma em causa, é a única que respeita também o princípio basilar do direito Ubi Lex Non Distinguit, Nec Nos Distinguere Debemus, pelo que, dando como suficientemente demonstrados os factos constantes de 1 a 4 e 12, não poderia a Mma. Juiz a quo, subsumir tal factualidade na norma constante do artigo 176.º, n.º 5 do Código Penal. 18 - Acresce ao que se vem dizendo que a jurisprudência e doutrina citadas pelo tribunal a quo para defender a sua interpretação não tem qualquer aplicação a este segmento da decisão já que no Acordão citado o que se discute é se determinada conduta, subsumível, essa sim no, à data, n.º 4 do artigo aqui em causa deveria ser tratada à luz do conceito de trato sucessivo, sendo que a conduta em apreciação naqueles autos passível de subsunção na alínea d) [e não c) como no caso dos presentes autos] foi dada como não provada porque não se demonstrou qualquer partilha de ficheiros pornográficos e nem tão pouco a intenção do arguido em partilhar os ficheiros, também pornográficos que detinha. Por outro lado, no artigo citado pela Mma. Juiz, o que se questiona é se tendo em conta a alteração do agora n.º 5 do mesmo artigo, a partilha de ficheiros através de um programa distinto daquele que está em causa nos autos não poderá estar incluída no segmento “facilitar o acesso”, não se aduzindo porém qualquer argumentação que favoreça tal perspectiva, apenas se colocando a questão, sem a resolver. 19 - Isto dito, resta concluir que a conduta de disseminação de ficheiros pornográficos a terceiro é a conduta que o legislador pretendeu criminalizar com a norma contida no artigo 176.º, n.º 1, al. c), integrando tal conduta, de forma perfeita, o tipo objectivo da norma, não cabendo ao aplicador da norma distinguir aquilo que o legislador não distinguiu. 20 - A prática do crime consubstancia-se com a partilha de ficheiros com terceiros e foi isso que o agente fez, pelo que deve ser à luz da norma em causa que a sua conduta deve ser apreciada, já que, à luz das normas nacionais e internacionais a que o intérprete está vinculado, o que se quer punir é a distribuição/divulgação/cedência de ficheiros de pronografia infantil, uma vez que o legislador português aceitou e transpôs para a lei nacional a perspectiva internacional de que a disseminação de pornografia infantil está directamente ligada ao tráfico e exploração sexual de crianças, importando combatê-la sem olhar ao número de pessoas a quem se cede ou quem se partilham materiais pedopornográficos, ou ao meio através do qual tal partilha se realiza, sendo relevante realçar que a alteração do n.º 5 do artigo 176.º do Código Penal, que criminalizou as condutas de aceder e facilitar o acesso não permite a interpretação que dela retira a Mma Juiz, já que o legislador o que quis foi agravar a punibilidade de condutas de consumo e facilitação de tal consumo de material pedo pornográfico, continuando caminho legal anterior que ao criar um crime de mera detenção, antecipou a tutela do bem jurídico em causa, resolvendo querela jurisprudencial e doutrinal que vinha surgindo em torna da visualização em streaming de tais materiais, não pretendendo desagravar condutas de partilha, cedência ou distribuição de tal material entre produtores/utilizadores e utilizadores/utilizadores, o que, aliás, não fez. 21 - Nestes termos a factualidade ora em apreço apenas poderá ser subsumida no art. 176.º, n.º 1, al. c), do Código Penal, do que resultará que tendo a Mma. Juiz considerado como fortemente verificado o perigo de continuação da actividade criminosa e, bem assim, o de perturbação da tranquilidade pública, deverá a medida de coacção aplicada ao arguido ser substiuída pela medida de coacção de prisão preventiva, não podendo ser justificação para a sua não aplicação aquela consignada na decisão, a saber, que não é possível aplicação de medidas de coacção privativas da liberdade uma vez que todas elas pressupõem, pelo menos, pena de prisão de limite superior a três anos, sendo que no caso presente esse limite é igual a três anos. 22 – Ao arguido foi também imputada factualidade que o Ministério Público entende subsumível ao artigo 176.º, n.º 1, al. d) do Código Penal e que a MM. Juiz entendeu, mais uma vez, subsumir-se ao art. 176.º, n.º 5 do mesmo diploma, dizendo que Neste momento, a mera constatação da instalação no hardware que lhe foi apreendido, de ferramentas informáticas que permitem a formatação, a não detecção do IP ou a partilha automática de ficheiros, não constitui a confirmação dessa efectiva partilha ou de download, de detenção ou acesso a material pedopornográfico para efeitos diversos do autoconsumo e, nomeadamente, para efeitos de disseminação intencional de tal material. O arguido, sabedor que a simples detenção, para além de outras conduta, de material pedopornográfico constitui ilícito criminal, de que já foi condenado, terá certamente adoptado as inerentes cautelas para não ser detectado na sua actividade de procura de tal material para o seu consumo próprio, pelo que não se estranha, dada a sua formação de base-operador técnico-, a existência de tais ferramentas informáticas. Apesar das potencialidades inerentes ao programa informático Utorrent a verdade é que a sua mera existência, não comprova essa efectiva partilha ou utilização. 23 – Isto apesar de ter dado como fortemente indiciados os factos constantes dos pontos 6 e 7 das presentes conclusões. 24 - Também aqui não podemos concordar com a decisão alcançada pelo tribunal a quo, mormente tendo em conta a factualidade dada como fortemente indiciada, particularmente aquela constante dos pontos 5 a 9 do despacho judicial e as declarações prestadas pelo arguido durante o interrogatório judicial. 25 - O arguido tinha na sua posse diverso material informático, nele se incluindo dois computadores e vários suportes de armazenamento de ficheiros informáticos, tendo-se detectado mediante pesquisa inicial e preliminar a tais artigos, não só que o arguido tinha recentemente, com ferramenta informática específica e cuja particularidade é apagar de forma profunda e difícil de reverter ficheiros informáticos, formatado tais suportes de armazenamento, mas também que o arguido possuía dois programas informáticos que permitem a partilha universal e em larga escala de ficheiros e a navegação por qualquer sítio da internet de forma anonimizada e (quase) impossível de rastrear. 26 - Ora juntando a estes elementos o facto de terem sido encontrados 11 ficheiros pedo pornográficos na posse do arguido, obtidos através da internet, a circunstância de se ter detectado partilha de ficheiros deste tipo com terceiros (…) e o teor das declarações do arguido que analisadas à luz das regras da experiência comum revelam uma versão que diríamos estranha – o arguido admite visualizar e aceder a ficheiros pedo pornográficos mas afirma que os programas em causa de partilha e navegação na internet servem apenas para a procura de ficheiros a que atribui a designação de normais (filmes) – já que é muito pouco provável que alguém que conhece as potencialidades dos programas referidos supra e que admite ter uma compulsão sexual que só se satisfaz com a interacção, ainda que virtual, com crianças, não utilize tais programas para obter e partilhar em larga escala, dissimulando a sua localização, de ficheiros pedo pornográficos, o Ministério Público entende que a Mma. Juiz deveria ter subsumido a factualidade ora em causa ao crime previsto no artigo 176.º, n.º 1, al. d), dando-se como provado, pela conjugação dos elementos de prova carreados para os autos que o arguido detinha os materiais pornográficos que lhe foram apreendidos com o propósito de os distribuir, importar, exportar, divulgar, exibir ou ceder. 27 - Isto também porque há que atender às características específicas do programa de partilha de ficheiros que o arguido tinha no seu computador. O programa informático em causa baseia- se no princípio da partilha-cedência. O utilizador de tal programa ao fazer o download/importação de um ficheiro está simultaneamente, pelo menos enquanto o ficheiro está a ser descarregado, a exportá-lo/upload com outros utilizadores que tenham o mesmo programa instalado, ou seja a cedê-lo a outros. Se o ficheiro, depois de ser descarregado não for retirado da pasta onde, por escolha do utilizador, foi guardado, a partilha, enquanto o computador estiver ligado à internet, continuará, não sendo despiciendo acrescentar que a lógica de funcionamento deste tipo de programas é “quanto mais exportares/upload mais velocidade de download/importação te será atribuída”. 28 – Pelo que se deverá concluir que o arguido, na presente fase dos autos e para efeito de aplicação de medidas de coacção, cometeu factualidade susceptível de subsunção jurídica no artigo 176.º, n.º 1, al. d), do Código Penal: 29 - O Código de processo Penal prevê, como medidas de coacção, o termo de identidade e residência (art. 196°); a caução (art°197°); a obrigação de apresentação periódica (art° 198°); a suspensão do exercício de profissão, de função, de actividade e de direitos (art. 199°); proibição e imposição de contactos (art. 200°); obrigação de permanência na habitação (art°201°); e prisão preventiva (art° 202°). 30 - Caso se considere inadequadas ou insuficientes, no caso, as restantes medidas de coacção, o juiz pode impor ao arguido a medida de coacção de prisão preventiva quando se verifique alguma das circunstâncias referidas nas alíneas a) a f) do artigo 202º, nº. 1 do C.P.P. 31 - Determina o artigo 204º, al. a) a c) do CPP que nenhuma medida de coacção, à excepção do Termo de Identidade e Residência, pode ser aplicada se, em concreto se não verificar: fuga ou perigo de fuga; perigo de perturbação do decurso do inquérito ou da instrução do processo e, nomeadamente, perigo para a aquisição, conservação e veracidade da prova, ou perigo, em razão da natureza e das circunstâncias do crime ou da personalidade do arguido, de que este continue a actividade criminosa ou perturbe gravemente a ordem e a tranquilidade públicas. 32 - A ponderação a fazer para aplicação de qualquer medida de coacção tem por base um juízo sobre os elementos que os autos fornecem e que indiciem de modo suficiente uma actuação do arguido que integre a prática de crime. A análise a efectuar da prova indiciária é efectuada de acordo com as regras da experiência comum e da livre convicção (art. 127º do C.P.P.). 33 - No caso concreto a Mma. Juiz considerou como fortemente verificado o perigo de continuação da actividade criminosa e, bem assim, o de perturbação da tranquilidade pública, apenas não sujeitando o arguido a medida coactiva privativa da liberdade porque considerou que não é possível aplicação de medidas de coacção privativas da liberdade uma vez que todas elas pressupõem, pelo menos, pena de prisão de limite superior a três anos, sendo que no caso presente esse limite é igual a três anos. 34 - Uma vez que tal asserção, como procurámos demonstrar não é conforme à Lei há que considerar que o arguido admitiu em primeiro interrogatório ter uma compulsão sexual que não consegue controlar e que é ofensica dos bens jurídicos tutelados pela norma penal, o que ressalta também das recentes condenaçõe anteriores pela prática do mesmo tipo de crime e pela prática do crime de abuso sexual de crianças. 35 - Acresce ainda, como disse o Ministério Público em sede de primeiro interrogatório judicial que resulta também face à natureza e as circunstâncias do crime que os factos são causadores de grande alarme social e perturbadores da ordem e tranquilidade públicas, já que ferem de forma intensa os valores ético-sociais dominantes na sociedade em que nos inserimos, no tocante à problemática do sexo, da sexualidade e da liberdade sexual. Por outro lado, o arguido, que neste momento não tem residência fixa, não lhe sendo conhecidos meios de provento ou subsistência há mais de cinco anos, sabendo que beneficiou de um juízo de prognose favorável em duas anteriores condenações em penas de prisão, poderá, confrontado e ao tomar consciência das consequências penais dos factos que praticou, colocar-se em fuga para se subtrair à actuação da justiça. Pelo que, também nestes termos, entendemos por verificado o perigo elencado na al. a) do artigo supra citado. 36 - A factualidade em causa nos autos é grave, atendendo também aos antecedentes criminais do arguido que revelam que este não interiorizou o carácter muito censurável da sua conduta, prolongada no tempo, revelando absoluta indiferença quer pelos bens jurídicos protegidos pelo tipo de crimes cometidos, quer pelas solenes advertências de que foi alvo nas condenações anteriores. Aliás não deixa de ser sintomático o facto de, até à data da presente detenção, o arguido ter escolhido como local para viver uma casa situada defronte a um parque infantil. Há que acrescentar que, face às características da personalidade do arguido, demonstrada nos factos que praticou, o sério perigo de continuação da actividade criminosa é verdadeiro para todos os crimes que bulem com a liberdade e autodeterminação sexual de crianças e não apenas para aqueles, até à data, em investigação nos autos. 37 – Assim, atendendo aos factos praticados pelo arguido, à sua correcta subsunção jurídica e ao normativos legais que determinam e balizam a aplicação das medidas de coacção, deverá o arguido (…) aguardar os ulteriores termos do processo sujeito além do TIR, à medida de coacção de prisão preventiva, nos termos do disposto nos artigos 191, 193.º, 202, n.º 1, al a) e 204, alíneas. a) b) e c), todos do CPP. C – Resposta ao Recurso O arguido respondeu ao recurso, concluindo da seguinte forma (transcrição): 1ª-Os factos não configuram qualquer actividade de divulgação ou disseminação do material pedopornográfico que se encontrava em posse do arguido, 2ª-Antes denotam que esse material se destinava a autoconsumo, e Por isso, 3ª- A factualidade em causa não está subsumida na alínea d) do nº1 do artigo 176º e nº 7 do 177º do CP, mas sim no nº5 do artigo 176º do CP. 4ª -Daí que, contrariamente ao sustentado pelo Digno Magistrado do Ministério Público, ao arguido não pode ser aplicada prisão preventiva, 5ª-Devendo manter-se o seu estatuto processual e respectivas medidas de coacção já aplicadas. 6ª-Motivos pelos quais o arguido, discordando do doutamente discorrido pelo Digno Magistrado do Ministério Público, 7ª-Considera dever manter-se a decisão recorrida para que seja feita a costuma Justiça. D – Tramitação subsequente Aqui recebidos, foram os autos com vista ao Exmº Procurador-Geral Adjunto, que militou pela procedência do recurso. Observado o disposto no Artº 417 nº2 do CPP, não foi apresentada resposta. Efectuado o exame preliminar, determinou-se que o recurso fosse julgado em conferência. Colhidos os vistos legais e tendo o processo ido à conferência, cumpre apreciar e decidir. 2. FUNDAMENTAÇÃO A – Objecto do recurso De acordo com o disposto no Artº 412 do CPP e com a Jurisprudência fixada pelo Acórdão do Plenário da Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça n.º 7/95, de 19/10/95, publicado no D.R. I-A de 28/12/95 (neste sentido, que constitui jurisprudência dominante, podem consultar-se, entre outros, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 12 de Setembro de 2007, proferido no processo n.º 07P2583, acessível em HYPERLINK "http://www.dgsi.pt/" HYPERLINK "http://www.dgsi.pt/"www.dgsi.pt, que se indica pela exposição da evolução legislativa, doutrinária e jurisprudencial nesta matéria), o objecto do recurso define-se pelas conclusões que o recorrente extraiu da respectiva motivação, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, que aqui e pela própria natureza do recurso, não têm aplicação, pois o recorrente solicita a revogação do despacho proferido na 1ª instância, devendo ser aplicada ao arguido a medida de coacção de prisão preventiva. B – Apreciação Definida a questão a tratar, importa, desde já, atentar no despacho recorrido. É este o seu teor (transcrição): “O Tribunal valida a detenção do arguido, porque realizada em flagrante delito, por entidade policial e por prática de ilícito punível com pena de prisão, frisando-se que a detenção de material pedopornográfico consubstancia a prática de natureza permanente, tudo ao abrigo do artigo 254º, nº 1, al. a) 255º, nº 1, al. a), 256º, nº 1, 259º e 260º do CPP. O Tribunal considera indicados os seguintes factos: 1 – O arguido é titular da conta de Facebok, com a identificação (…) conta de rede social através da qual, no dia 06.10.2018, pelas 22h14m17s, enviou para o utilizador da conta do Facebook com a identificação (…) um ficheiro de vídeo com 5:26 minutos, onde é possível visualizar duas crianças, cujas características físicas permitem concluir que são menores de 14 anos, desnudadas, expondo o seu pénis, friccionando-os e praticando sexo oral um com o outro. Neste vídeo é ainda possível observar, pelo menos, 3 outras crianças, completamente desnudadas, expondo o pénis e o ânus. 3 – E na mesma data, hora e para o mesmo utilizador um vídeo com 1:28 minutos onde é possível visualizar, um adulto do sexo masculino a sujeitar uma criança desnudada, cujas características físicas, permitem concluir que é menor de 14 anos, à prática de sexo anal, ao mesmo tempo que lhe manipula os órgãos genitais, friccionando-os. 4 – Em momento imediatamente anterior à partilha dos vídeos supra referidos, também através do Facebook, o arguido recebeu uma mensagem do utilizador (…), à qual respondeu. 5 – Na sequência de busca domiciliária realizada à residência do arguido foram apreendidos diversos equipamentos informáticos, incluindo dois computadores portáteis, um disco rígido e três dispositivos de armazenamento digital portáteis, incluindo um disco externo da marca Western Digital, com o número de série (…); 6 - No qual, depois de elaborada perícia, foram localizados e extraídos 11 ficheiros de imagens de menores e de órgãos sexuais de menores do sexo masculino, cujas características físicas permitem concluir que se trata de crianças com menos de 14 anos de idade, expondo os seus órgãos genitais e o ânus. 7 - Ainda através da supra referida perícia aos materiais informáticos em causa detectou-se que dois dos dispositivos de armazenamento externo tinham sido alvo de formatação no dia 16 e 18 do corrente mês e ano, o que resultou na eliminação de todos os ficheiros neles incluídos. 8- O arguido tem ao seu dispor um programa informático específico considerado anti-forensic com o nome Wise Disk Cleaner o qual permite uma formatação mais extensa, para além da simples eliminação através do sistema operativo instalado no computador, programa informático que se detectou estar instalado no hardware apreendido ao arguido. 9 - Através da mesma perícia, detectou-se que o arguido tem instalado no seu computador o navegador de anonimização denominado TOR, que lhe permite navegar em todos os sites da internet sem revelar o seu IP real, ocultando assim a identidade do seu computador e consequentemente a sua, ademais permitindo-lhe, quando navega na internet através de tal programa, partilhar ficheiros com conteúdo similar ao supra descrito sem ser detectado, assim como tem instalado no seu computador o programa informático UTorrent que lhe permite ceder e adquirir ficheiros informáticos, numa lógica de partilha com os diferentes utilizadores, à escala mundial, que estejam conectados à internet e que estejam a utilizar o mesmo programa. 10 – O arguido sabia que os ficheiros de vídeo que enviou através do Facebook, nos termos supra descritos, representavam menores de 14 anos, na prática de actos sexuais, nomeadamente coito oral e anal e que a actividade de distribuição, exportação, divulgação e cedência a terceiros lhe estava vedada; 11 – Assim como sabia que os ficheiros já referidos e contidos no disco externo supra identificado representavam menores de 14 anos expondo os seus órgão genitais e o ânus, de forma sugestiva à prática de actos sexuais. 12 – Agindo deliberada, voluntária e conscientemente, o arguido, para a satisfação da sua líbido e da sua vontade sexual e bem assim da pessoa com quem partilhou os identificados dois vídeos decidiu adquirir, deter, armazenar os referidos vídeos e fotografias, contendo pornografia de menores e partilhar os referidos dois vídeos contendo pornografia de menores. 13 – O arguido sabia que as suas condutas eram proibidas e punidas por Lei Penal. 14 – O arguido vive em frente a um parque infantil, sito no (…). 15 – Ao arguido não é conhecida qualquer actividade profissional ou forma de obter rendimentos, desde Outubro de 2014, sendo que, recebeu em tempo, rendimento social de reinserção, recebe ajuda financeira do seu progenitor e foi, até há pouco tempo, titular de uma bolsa de formação. 16 – Na sequência da execução dos mandados de busca constantes dos autos, o arguido foi expulso da habitação onde residia. 17 – O arguido foi condenado por sentença transitada em julgado em 07.09.2015, proferida no processo (…), onde foi condenado na pena de 2 anos e 9 meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período e na pena acessória, pelo período de 10 anos, de suspensão de exercício de qualquer actividade que implique ter menores sob a sua responsabilidade, educação tratamento ou vigilância, pela prática de 2 crimes de pornografia de menores, um deles na forma agravada e um crime de abuso sexual de criança agravado. 18 – O arguido foi condenado por sentença transitada em julgado em 02.12.2015, proferida no processo (…), onde foi condenado na pena de 1 anos e 6 meses de prisão, suspensa na sua execução por igual tempo, pela prática de um crime de abuso sexual de crianças. 19- Por decisão transitada a 30-09-2016 foi realizado cúmulo jurídico entre as penas supra referenciadas no âmbito dos autos (…), tendo sido aplicada ao arguido uma pena única de 3 anos de prisão, suspensa na sua execução por igual período de tempo, subordinada à condição de acompanhamento/tratamento em consulta da especialidade de psiquiatria e ou psicologia para seguimento de perturbações como a apresentada e ainda pena acessória do exercício de funções pelo prazo de 10 anos, pena extinta ao abrigo do artigo 57º do CP por decisão proferida a 25-01-2020 tendo ocorrido a extinção a 30-09-2019. Tais factos fundam-se nos elementos do processo em que os mesmos se fundam: Pericial: - Perícia forense de fls. 75 a 90 (incluindo relatório fotográfico); - Documental: - Relatório do Nacional Center for Missing and Exploited Children, de fls. 7 a 10; - Identificação fornecida por operadora de telecomunicações, de fls. 20 a 22; - DVD e respectivo conteúdo digital de fls. 28; - Fotograma de fls. 40; - Auto de busca e apreensão de fls. 71 e 72; - Certificado de registo criminal de fls. 105 a 109. - Testemunhal: - (…), Inspectora da Polícia Judiciária, melhor id. a fls. 71; - (…), Especialista- adjunto da Polícia Judiciária, melhor id. a fls. 71. Objectivamente, o que os presentes autos indiciam, no presente momento é, por um lado, uma conduta típica de download de dois ficheiros vídeo, conduta esta, aliás, omitida dos factos comunicados ao arguido e considerados fortemente indiciados (relatório de fls. 8 e seguintes) e, bem assim, uma conduta, subsequente, de partilha de tais dois vídeos com terceira pessoa, o que constitui a matéria do ponto dois e três supra elencada, para além de uma conduta típica de detenção de material pedo-pornográfico, que integra os pontos cinco e seis supra referenciados. As declarações do arguido ora prestadas, por muito ou pouco inverosímeis que possam parecer, só permitem considerar que o arguido praticou o acto supra de partilha com (…) ,e bem assim, condutas de detenção e de aquisição/obtenção de material pedo-pornográfico para seu consumo próprio, uma vez que admitiu ser consumidor de tal material e, mais ainda, admitiu ter uma compulsividade, medicamente patenteada, a esse respeito. Neste momento, a mera constatação da instalação no hardware que lhe foi apreendido, de ferramentas informáticas que permitem a formatação, a não detecção do IP ou a partilha automática de ficheiros, não constitui a confirmação dessa efectiva partilha ou de download, de detenção ou acesso a material pedopornográfico para efeitos diversos do autoconsumo e, nomeadamente, para efeitos de disseminação intencional de tal material. O arguido, sabedor que a simples detenção, para além de outras conduta, de material pedopornográfico constitui ilícito criminal, de que já foi condenado, terá certamente adoptado as inerentes cautelas para não ser detectado na sua actividade de procura de tal material para o seu consumo próprio, pelo que não se estranha, dada a sua formação debase-operador técnico-, a existência de tais ferramentas informáticas. Apesar das potencialidades inerentes ao programa informático Utorrent a verdade é que a sua mera existência, não comprova essa efectiva partilha ou utilização. Nestes termos, portanto, consideramos que se mostram fortemente os factos supra, não considerando que as condutas do arguido ora fortemente indiciadas possam consubstanciar os conceitos de distribuição, exportação ou divulgação de material pedo-pornográfico, que têm subjacentes uma lógica de disseminação desse material ou através de circuitos comerciais ou através de outro tipos de circuitos, mas que pressupõem uma universalidade de destinatários e uma potencialidade de lesão de determinados bens, o que não parece poder aplicar-se à aludida conduta de partilha de material, a uma única pessoa certa e determinada. Em face do alargamento da incriminação operada pela alteração legislativa de 2015, questionou-se se a partilha, estaria ou não abrangida no novo segmento de conduta típica “facilitar o acesso2, o que tem merecido resposta positiva. Neste sentido. Os”Trabalhos Temáticos de Direito e Processo Criminal – Crimes contra a autoderminação sexual do CEJ”, em que se suscita tal dúvida e tal questão, respondendo-se a ela de forma positiva, aludindo-se à conduta de partilha de ficheiros em programas como o “E-Mule”. De igual modo, o acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 16-03-2017 relatado por António Condeço, reportado a uma situação de instalação de programa de partilha de ficheiro,s denominado “ares”que funciona em sistema de rede Torrent “Peer to Peer”, servindo-se o arguido desse programa que possibilitava a partilha automático de ficheiros, que confirmou a decisão de condenação do arguido pelo artigo 176º, nº 4 do C,P antes da Lei 103/215 de 23 de Agosto (hoje nº 5). Assim sendo, a nosso ve,r os factos supra fortemente indiciados, permitem concluir que o arguido incorreu na prática de um crime previsto no artigo 176º, nº 5 do Código Pena, porquanto praticou diversas condutas típicas, todas integradas em tal número, só devendo ser punido por um único crime, por se tratar de ilícito de trato sucessiv,o o qual é punido com pena de prisão até dois anos, agravado pelo artigo 177º, nº 7, ambos do CP, de metade nos seus limites mínimo e máximo. Deste modo, não consideramos que as condutas do arguido indiciariamente praticados possam enquadrar-se na al. d), do nº 1 do artigo 176º, por ausência de indiciação do dolo específico ou, na al. c) do nº 1 do mesmo artigo, por não se considerar que a partilha de ficheiro a uma pessoa concreta e determinada, sem possibilidade de disseminação através de tal e mesmo acto de partilha, a uma universalidade de indivíduos. De igual modo, face à redacção de 2015, não é de considerar “download” acto equivalente a “importação”, o que igualmente se deixa consignado. O arguido, embora pessoa inserida, que no essencial admitiu os factos que ora foram dados como fortemente indiciados, é técnico informático, admite ter uma compulsão correlacionado com pedo-pornografia, de que está sujeito a tratamento e já foi por duas vezes condenado, quer por crimes de pornografia infantil, quer por crimes de abuso sexual de menor, sempre em penas de prisão suspensas na sua execução, sendo que os factos ora em apreço foram praticados em pleno período de pena suspensa. Nesta medida, consideramos fortemente verificado o perigo de continuação da actividade criminosa e, bem assim, o de perturbação da tranquilidade pública, no que será um eventual comportamento futuro do arguido, dado que tal perigo tem de ser assim perspectivado (artigo 204º, al. c) do CPP). Não obstante, não consideramos que a medida de coacção de prisão preventiva seja adequada ou proporcional, ao caso presente, porquanto não mais do que faria do que temporariamente privar o arguido da liberdade, ainda que controlando-lhe de forma eficaz, é certo, o acesso a material informático e similar, mas deixando incólume a génese do problema aqui em apreço. O arguido encontra-se a ser seguido em consulta de psiquiatria de Sta. Maria, encontra-se medicado, aguarda diligências no sentido de se iniciar consulta de psicologia, tratamento que teria de interromper se privado da liberdade. Por outro lado, todo o material informático e electrónico foi-lhe apreendido, actualmente não pode residir na casa onde habitava e não tem meios de aquisição de novo material. Ainda que em abstracto seja possível o recurso a material informático e ou electrónico de terceiros, nomeadamente cibercafés e outras instituições, regra geral, tal material não permite o acesso público e perceptível a qualquer pessoa de material pedo-pornográfco, tratando-se aliás de locais públicos. Deste modo, apesar do aludido perigo, não se deixa de consignar que tal perigo se mostra, de alguma maneira, mitigado. Acresce que o arguido, de forma aparente, demostrou na presente diligência, vontade em deixar tal material, a conselho médico, que terá seguido ou, pelo menos a limitar-se no acesso ao mesmo, tudo o que, igualmente, permite considerar-se também mitigado o aludido perigo. Nestes termos, não sendo possível aplicação de medidas de coacção privativas da liberdade ou até as elencadas no artigo 200º do CPP uma vez que todas elas pressupõem, pelo menos, pena de prisão de limite máximo superior a três anos, sendo que no caso presente esse limite é igual a três anos, o Tribunal determina aplicar ao arguido a medida de coacção de apresentação de apresentação periódica, cinco vezes por semana, nos OPC´s da área da sua residência, atendendo, por ora, à morada que é do pai do arguido, em horário mais conveniente para o arguido, tudo ao abrigo do disposto nos artigos 191º, 193º, 198º e 204º, al. c), todos do CPP. * Cumpra o disposto no artigo 194º, nº 9 do CPP. * Comunique aos OPC, a aplicação da medida supra, que deverá ter início a sua execução a partir do dia de amanhã, solicitando que informem o incumprimento da medida de coacção agora imposta. * Proceda à libertação do arguido, fazendo constar a hora da sua libertação em cota. * Oportunamente, remeta aos Serviços do Ministério Público. O recorrente discorda da qualificação jurídica acolhida pelo despacho recorrido, considerando que a factualidade em causa se reporta a dois crimes de pornografia de menores, ambos agravados, um, previsto nos Artsº 176 nº 1 al. c) e 177 nº7, ambos do C. Penal e outro, nos Artsº 176 nº1 al. c) e 177 nº 7, do mesmo diploma legal, pugnando, consequentemente, pela aplicação ao arguido da medida de coacção de prisão preventiva. No que toca à primeira das questões suscitadas – a da qualificação jurídica – entendeu a decisão recorrida, em síntese apertada, que a factualidade indiciariamente assente, apenas permite considerar que o arguido havia praticado actos de partilha de ficheiros pedo pornográficos com outro utilizador informático (…) e ainda, condutas de detenção e de aquisição/obtenção desse material para seu consumo próprio. Recuperando a essencialidade do que, a este propósito, se disse na decisão do tribunal a quo, ali se afirmou “…não ser possível considerar “que as condutas do arguido ora fortemente indiciadas possam consubstanciar os conceitos de distribuição, exportação ou divulgação de material pedo-pornográfico, que têm subjacentes uma lógica de disseminação desse material ou através de circuitos comerciais ou através de outro tipos de circuitos, mas que pressupõem uma universalidade de destinatários e uma potencialidade de lesão de determinados bens, o que não parece poder aplicar-se à aludida conduta de partilha de material, a uma única pessoa certa e determinada”. Ou seja, como bem sublinha o recorrente, “o Tribunal afastou a aplicação da norma identificada na presente epígrafe dizendo, de forma resumida, que como a partilha que deu como fortemente indiciada, de dois ficheiros pedo pornográficos ocorreu apenas com uma pessoa, tal não constitui distribuição, exportação ou divulgação de material pedo-pornográfico uma vez que tais conceitos exigem que se verifique lógica de disseminação desse material ou através de circuitos comerciais ou através de outro tipos de circuitos, mas que pressupõem uma universalidade de destinatários e uma potencialidade de lesão de determinados bens, o que não parece poder aplicar-se à aludida conduta de partilha de material, a uma única pessoa certa e determinada.” Todavia, como bem explica o recorrente – no âmbito de um recurso cujo entendimento jurídico se subscreve por inteiro – a intenção do legislador, aquando da alteração ao C. Penal reportada a esta matéria e introduzida pela Lei 59/2007, de 4/09, não foi, seguramente, estabelecer “qualquer diferenciação relativamente ao número de pessoas com quem o agente partilha tais materiais, importando-os ou exportando-os, ou relativamente ao número de pessoas a quem o agente distribui, divulga ou cede1 os mesmos materiais, bastando por isso que tal cedência ou divulgação, ocorrida nos autos conforme o afirma a Mma. Juiz, seja feita com apenas uma pessoa para que a conduta caia no âmbito da incriminação. Aliás, a não ser assim, qual é o critério para determinar que, usando sando as palavras da Juiz a quo, a partilha foi feita numa lógica de disseminação desse material ou através de circuitos comerciais ou através de outro tipos de circuitos, mas que pressupõem uma universalidade de destinatários e uma potencialidade de lesão de determinados bens, o que não parece poder aplicar-se à aludida conduta de partilha de material, a uma única pessoa certa e determinada. Quando se partilha com duas ou três pessoas? Ou com mais pessoas?” Ora, o que se estatui, literalmente, na al. c) do nº1 do Artº 176 do C. Penal, é a produção, distribuição, importação, exportação, divulgação, exibição ou cedência, a qualquer titulo ou por qualquer meio, de materiais pornográficos, aí não se estabelecendo qualquer diferenciação relativamente ao número de pessoas com quem o agente partilha tais materiais, importando-os ou exportando-os, ou relativamente ao número de pessoas a quem o agente os distribui, divulga o cede, bastando-se a incriminação, ao contrário do afirmado pelo tribunal recorrido, que a cedência ou divulgação, seja feita a uma só pessoa, como sucedeu in casu. A orientação legislativa que presidiu à alteração penal da norma em causa, na esteira, aliás, de vários diplomas internacionais e instrumentos de direito comunitário e internacional que Portugal acolheu e se obrigou a implementar, tinha, na génese, a necessidade de alargar a punibilidade dos comportamentos, em consequência da facilidade e rapidez de acesso a materiais de pornografia e à sua difusão via internet. Como bem refere o recorrente, “A evolução tecnológica incrementou exponencialmente a aquisição, distribuição, divulgação, exibição e cedência de materiais pedo pornográficos. É assim e desde logo pela amplitude da rede que, pela sua extensão, dificulta a perseguição e investigação de condutas ilícitas; pelo anonimato que propicia ao consumidor deste tipo de materiais pornográficos; e, ainda, de um terceiro ponto de vista, pelas vantagens proporcionadas e inerentes à própria rede, como o aumento da oferta e da troca de materiais pedo pornográficos e a facilidade e a rapidez em aceder a eles sem quaisquer custos. Quer no plano das comunidades europeia e internacional, quer no domínio da ordem jurídica interna, a resposta a esta nova forma de acesso e de difusão de material pornográfico de menores passou por uma estratégia de alargamento da proibição e, em alguns casos, pelo endurecimento da sanção por recurso ao direito penal. Consciente de que produção e disseminação de material pedopornográfico estão intimamente ligadas ao tráfico de crianças para fins de exploração sexual, o legislador português optou por uma perspectiva mais actuante de criminalização ao escolher, para além da Decisão-Quadro que supra se referiu, criminalizar as condutas que utilizem ou recorram à representação realística de menor enquanto material pedo-pornográfico, assim como, agora no que diz respeito à Convenção sobre o Cibercrime, não deixou de classificar como infracções penais as condutas que consistam na obtenção para si ou para outra pessoa de pornografia infantil através de um sistema informático ou na posse de pornografia infantil ou num dispositivo de armazenamento de ficheiros informáticos, quando mediante declaração de reserva, o poderia ter feito, optando desta forma por criminalizar, para além da partilha/cedência/divulgação material pedo pornográfico, condutas de consumo de tal material.” Sendo este o fim do alargamento da punição, não deve haver lugar a qualquer distinção do intérprete perante um normativo que não parece admitir tais distinções – em relação ao número de pessoas exigido para que se desse como comprovada a disseminação dos materiais para efeitos da incriminação – até porque toda a diferenciação seria sempre subjectiva e descricionária, logo, abusiva e arbitrária, por não estar apoiada em critério legal. Ora, nos presentes autos, deu-se como suficientemente demonstrado que o arguido distribuiu/divulgou/cedeu/ através da plataforma facebook-messenger dois ficheiros pedo pornográficos, a terceira pessoa, com quem, momentos antes, tinha conversado online. Reproduzindo o que, muito acertadamente, se afirma no recurso, “A prática do crime consubstancia-se com a partilha de ficheiros com terceiros e foi isso que o agente fez, pelo que deve ser à luz da norma em causa que a sua conduta deve ser apreciada, já que, à luz das normas nacionais e internacionais a que o intérprete está vinculado, o que se quer punir é a distribuição/divulgação/cedência de ficheiros de pronografia infantil, uma vez que o legislador português aceitou e transpôs para a lei nacional a perspectiva internacional de que a disseminação de pornografia infantil está directamente ligada ao tráfico e exploração sexual de crianças, importando combatê-la sem olhar ao número de pessoas a quem se cede ou com quem se partilham materiais pedo pornográficos, ou ao meio através do qual tal partilha se realiza, sendo relevante realçar que a alteração do n.º 5 do artigo 176.º do Código Penal, que criminalizou as condutas de aceder e facilitar o acesso não permite a interpretação que dela retira a Mma Juiz, já que o legislador o que quis foi agravar a punibilidade de condutas de consumo e facilitação de tal consumo de material pedo pornográfico”. Com o devido respeito por opinião contrária, não se vê razão bastante para acompanhar o despacho recorrido, quando parece sustentar que a prática de um só acto comprovado de cedência a terceiro de materiais pedo pornográficos, seja insusceptível de configurar o crime de pornografia de menores, previsto na al. c) do nº1 do Artº 176 do C. Penal. Assim sendo, ter-se-á de concluir,, como o recorrente, que, nesta parte, o arguido deve ser indiciado pela prática de um crime de pornografia de menores, previsto na al. c) do nº1 do Artº 176 do C. Penal e não, como decidido pelo tribnal a quo, no nº5 desse comando legal. Ora, importa ter em conta que da subsunção jurídica alcançada pelo tribunal recorrido – aliada ao facto de não considerar a demais factualidade passível de integrar a al. d) do citado normativo - resultou que nenhuma das penas em abstracto, por serem inferiores a cinco anos de prisão, admitiam a possibilidade de aplicação da medida de coacção de prisão preventiva. Em consequência do que acima se disse, a conduta do arguido é, desde logo, punida com uma moldura penal abstracta aplicável entre 1 ano e 6 meses a 7 anos e 6 meses de prisão, consentindo, por isso, a possibilidade de aplicação da prisão preventiva. A este nível, apenas uma palavra para dizer que a questão da indiciação relativa à al. d) do nº1 do Artº 176 do C. Penal – e reportada à factualidade alusiva à posse, pelo arguido, de material informático, que, no entender do recorrente, era destinado, não só ao seu consumo, mas também, à partilha com terceiros – se trata de matéria intrínsecamente relacionada com a anterior, a exigir uma maior investigação e que os autos, por ora, pelo menos pelos elementos constantes da presente certidão, não conseguem delucidar, por completo. Ainda que se perceba a argumentação do recorrente, quando afirma que “O programa informático em causa baseia- se no princípio da partilha-cedência. O utilizador de tal programa ao fazer o download/importação de um ficheiro está simultaneamente, pelo menos enquanto o ficheiro está a ser descarregado, a exportá-lo/upload com outros utilizadores que tenham o mesmo programa instalado, ou seja a cedê-lo a outros. Se o ficheiro, depois de ser descarregado não for retirado da pasta onde, por escolha do utilizador, foi guardado, a partilha, enquanto o computador estiver ligado à internet, continuará, não sendo despiciendo acrescentar que a lógica de funcionamento deste tipo de programas é “quanto mais partilhares/upload mais velocidade de download/importação te será atribuída”, a verdade é que se poderá colocar a questão de as condutas do arguido se reconduzirem, eventualmente, a um único crime, ainda que cristalizadas nas als. c) e d) do nº1 do Artº 176 do C. Penal ou, como pretende o MP, a dois crimes de pornografia de menores, ambos agravados, por força no nº7 do Artº 177 do mesmo diploma legal. Trata-se, contudo, de matéria que melhor se apurará no decurso da investigação e que, com o devido respeito, pouco interessa à sorte do presente recurso. A verdade, é que a alteração da qualificação jurídica supra efectuada conduze, necessariamente, ao sucesso do recurso, na medida em que, parece decorrer do despacho recorrido – que julgou fortemente verificados os perigos de continuação da actividade criminosa e de perturbação da ordem e tranquilidade públicas – que a prisão preventiva só não foi decretada por a mesma não ser admitida, tendo em conta a moldura penal do crime imputado ao arguido. Desaparecido este obstáculo legal, torna-se evidente que outra decisão não pode ser proferida nos autos, que não seja, submeter o arguido à medida de coacção de prisão preventiva. A liberdade é o estado natural de todo o ser humano, sendo a liberdade individual, a seguir à vida, um dos mais relevantes bens do Homem, razão pela qual, o direito à liberdade vem consagrado como um direito fundamental no Artº 27 nº1 da Constituição da República Portuguesa, definindo logo o texto constitucional as excepções a esse direito, entre as quais se inclui, como resulta da al. b) do nº3 do citado preceito, a possibilidade de prisão preventiva por fortes indícios da prática de crime doloso a que corresponda pena de prisão cujo limite máximo seja superior a três anos, pelo tempo e nas condições que a lei determinar. Para que ficasse bem vincada a excepcionalidade da prisão preventiva, o Artº 28 nº2 da CRP assim o consagra expressamente, mais estipulando que não pode ser decretada nem mantida, sempre que possa ser aplicada caução, ou outra medida mais favorável prevista na lei. Assim sendo, logo da Constituição resultam os princípios fundamentais a observar em matéria de aplicação de medidas de coacção e, particularmente, no que concerne à privação da liberdade, a sua natureza excepcional e, portanto, residual e subsidiária, relativamente a outras medidas de coacção. No desenvolvimento do texto constitucional, a lei processual penal estabelece diversos requisitos substantivos de cuja verificação depende a aplicação de medidas de coacção, alguns deles, traduzidos em princípios que directamente derivam daquele texto. Assim, o Artº 191 nº1, do Código de Processo Penal, estipula que « A liberdade das pessoas só pode ser limitada, total ou parcialmente, em função de exigências processuais de natureza cautelar, pelas medidas de coacção e de garantia patrimonial previstas na lei », assim se plasmando o princípio da legalidade das medidas de coacção, que consiste em só poder ser aplicada medida de coacção ou de garantia patrimonial prevista na lei e para os fins de natureza cautelar, na mesma estatuídos. O Artº 192 nº2 do mesmo diploma legal, exara que « Nenhuma medida de coacção (…) é aplicada quando houver fundados motivos para crer na existência de causas de isenção da responsabilidade ou de extinção do procedimento criminal », o mesmo é dizer, o princípio da necessidade na aplicação de medidas de coacção, que se traduz em que o fim visado pela concreta medida de coacção decretada não possa ser obtido por outro meio menos oneroso para os direitos do arguido. O Artº 193 nº1 do citado diploma, preceitua que « As medidas de coacção e de garantia patrimonial a aplicar em concreto devem ser necessárias e adequadas às exigências cautelares que o caso requerer e proporcionais à gravidade do crime e às sanções que previsivelmente venham a ser aplicadas », desta forma se estabelecendo os princípios da adequação e proporcionalidade na aplicação das medidas de coacção, dos quais resulta, por um lado, que as medidas de coacção e de garantia patrimonial devem ser adequadas às exigências cautelares que o caso requerer e, por outro, que devem ser proporcionais à gravidade do crime e às sanções que previsivelmente venham a ser aplicadas ao arguido. O nº2 do mesmo preceito, importando o próprio texto constitucional, determina que a prisão preventiva, bem como, a permanência na habitação, só possam ser decretadas quando as outras medidas de coacção se revelarem inadequadas ou insuficientes, assim se consagrando o princípio da subsidiariedade na aplicação da medida de coacção privativa da liberdade, a que alguns autores se referem como critério de última ratio. O Artº 202 nº1 do CPP, reforçando os mencionados princípios da adequação e subsidiariedade, estipula novos requisitos substantivos para a aplicação da medida de coacção de prisão preventiva, agora relativos ao crime imputado e grau de indiciação da sua prática, ponto de partida para a possibilidade da aplicação deste tipo de privação da liberdade. E para que tal possa ser equacionado, à luz dos princípios antes referidos, necessário é que, prima regra, existam fortes indícios da prática de crime doloso punível com pena de prisão de máximo superior a cinco anos ( cfr. alínea a) do citado preceito ) Acresce, para além destas particulares demandas, que ainda se exige, num juízo de prognose, que a prisão preventiva a determinar seja proporcional à sanção que previsivelmente venha a ser aplicada, o que deve impedir a sua aplicação, quando seja previsível a aplicação de uma pena de multa cominada alternativamente na norma incriminadora, a aplicação de uma pena de prisão substituível por multa ou por outra pena não privativa da liberdade, a cumprir por dias livres ou em regime de sedimentação, de duração previsivelmente inferior à da privação da liberdade ou, ainda, cuja execução venha a ser suspensa. Por último, a lei processual penal ( Artº 204 ) fornece-nos o quadro das exigências cautelares que justificam a aplicação de medidas de coacção - exceptuando o termo de identidade e residência - sob a designação de requisitos gerais da aplicação das medidas de coacção, preceituando que : «Nenhuma medida de coacção à excepção da prevista no artigo 196º, pode ser aplicada se em concreto se não verificar, no momento da aplicação da medida: a) Fuga ou perigo de fuga; b) Perigo de perturbação do decurso do inquérito ou da instrução do processo e, nomeadamente, perigo para a aquisição, conservação ou veracidade da prova; ou c) Perigo, em razão da natureza e das circunstâncias do crime ou da perturbe gravemente a ordem e a tranquilidade públicas» Ou seja, relativamente a medidas privativas da liberdade, as referidas exigências cautelares terão de ser de tal modo intensas que se possa concluir que não podem ser devidamente acauteladas com a aplicação de qualquer outra medida de coacção não privativa da liberdade, isolada ou cumulativamente, nos casos em que a cumulação é permitida. Concluindo, a prisão preventiva constitui a medida de natureza cautelar mais gravosa, pelo que a sua imposição tem de obedecer a determinados pressupostos legais, uns de carácter geral (Artº 204 do CPP), outros de carácter específico (Artº 202 nº1, alínea a. do mesmo Código). São pressupostos de carácter geral, não cumulativos: - Fuga ou perigo de fuga; - Perigo de perturbação da investigação; - Perigo de perturbação da ordem e da tranquilidade públicas ou de continuação da actividade criminosa. São pressupostos de carácter específico, cumulativos: - A existência de fortes indícios da prática de crime; - Que o crime indiciado seja doloso; - Que o crime indiciado seja punível com pena de prisão de máximo superior a 5 anos, ou, tratando-se de crime de terrorismo, criminalidade violenta ou altamente organizada, de máximo superior a 3 anos. Para além destes pressupostos, a lei faz depender a aplicação desta medida de coacção da verificação das seguintes condições: - A inadequação ou insuficiência das outras medidas de coacção - Artº 202 nº1 do CPP; - A necessidade, adequação e proporcionalidade da medida – Artº 193 nº1, parte final, do mesmo CPP. In casu, como resulta do que se mencionou, não se discute a forte indiciação dos perigos de continuação da actividade criminosa e de perturbação da ordem e tranquilidade públicas. Estamos na presença de um crime que gera forte sentimento de repugnância aos padrões comunitários, particularmente grave, sendo evidente pelos antecedentes criminais do arguido – por ilícitos de pornografia de menores ou abuso sexual de crianças – que o mesmo não interiorizou o desvalor social da sua conduta e o carácter, muito censurável, do seu comportamento, o que gera profunda insegurança e alarme social, reforçados pela circunstância de o arguido residir numa casa situada defronte a um parque infantil. Como bem afirma o recorrente, face às características da personalidade do arguido, demonstrada nos factos que praticou, o sério perigo de continuação da actividade criminosa existe para todos os crimes que bulem com a liberdade e autodeterminação sexual de crianças e não apenas, para os que estão em investigação nos autos. O próprio arguido assume padecer de uma pulsão sexual ao nível da pedofilia, pelo que da colocação do arguido em liberdade se desenha, em concreto, uma fortíssima probabilidade de continuar a acção criminosa, pela qual, se mostra indiciado e já foi, aliás, condenado em outro processo. Atenta a natureza do crime em apreço e a facilidade de acesso aos materiais respectivos, a medida de coacção de obrigação de permanência na habitação seria absolutamente insusceptível de colmatar, pelo menos, o perigo de continuação da actividade criminosa, quer pela circunstância de inexistir possibilidade de fiscalização e controlo sobre a utilização de meio informáticos pelo arguido, quer pelo facto, seguro, de que a consumação do crime pelo qual foi indiciado ocorreu, justamente, no respectivo domicílio. É assim evidente que a prisão preventiva é a única que se configura com a eficácia necessária para evitar os referidos perigos, sendo que qualquer outra medida, ainda que detentiva, como a de obrigação de permanência na habitação com vigilância electrónica, não se mostra adequada e proporcional à extrema gravidade dos factos, à profunda danosidade social do crime indiciariamente cometido, ao intensíssimo juízo de censura susceptivel de ser formulado, e à sanção que, previsivelmente, virá a ser aplicada. Por fim, da sujeição do arguido a esta medida, não resulta que o arguido se veja impedido de continuar o acompanhamento médico ou psicológico adequado a realizar através da DGRSP. Daqui se desenha, inevitavelmente, o sucesso do presente recurso, quer no que toda à qualificação jurídica dos factos pelos quais o arguido está indiciado, quer pela necessidade de o submeter à medida de coacção de prisão preventiva, a única capaz de satisfazer as exigências cautelares demandadas pelo circunstancialismo concreto da situação em análise, designadamente, os perigos de perturbação do inquérito e da ordem e tranquilidade públicas. Em consequência, o recurso terá de proceder, devendo o recorrente aguardar os ulteriores termos do processo sujeito à medida de coação de prisão preventiva. 3. DECISÃO Nestes termos, decide-se conceder provimento ao recurso e em consequência, considerando-se o arguido indiciado pela prática, de pelo menos, um crime de pornografia de menores, p.p., pelos Artsº 176 nº1 al. c) e 177 nº7, ambos do C. Penal, revoga-se o despacho recorrido, determinando-se que o arguido aguarde os ulteriores termos processuais em situação de prisão preventiva, devendo a 1ª instância, para tanto, emitir os competentes mandados de condução ao estabelecimento prisional. Sem custas. xxx Consigna-se, nos termos e para os efeitos do disposto no Artº 94 nº2 do CPP, que o presente acórdão foi elaborado pelo relator e integralmente revisto pelos signatários. xxx Évora, 14 de Julho de 2020 Renato Barroso (Relator) Maria Fátima Bernardes (Adjunta) (Assinaturas digitais) |