Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
2004/21.0PBFAR.E1
Relator: JORGE ANTUNES
Descritores: PRINCÍPIO DA CONTINUIDADE DA AUDIÊNCIA
PROVA PERICIAL
PROVA VINCULADA
Data do Acordão: 02/11/2025
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: I - É excecional a possibilidade de excesso do prazo de trinta dias entre as várias sessões da audiência de julgamento – tal excecionalidade resulta da ressalva dos casos previstos no nº 7 do artigo 328º do CPP e, por outro lado, das exigências previstas na segunda parte do nº 6, relativas à demonstração dos motivos de impedimento da observância do referido prazo de trinta dias, devidamente explicitados no processo, devendo ficar objetivados em ata (“Se não for possível retomar a audiência neste prazo, por impedimento do tribunal ou por impedimento dos defensores constituídos em consequência de outro serviço judicial já marcado de natureza urgente e com prioridade sobre a audiência em curso, deve o respetivo motivo ficar consignado em ata, identificando-se expressamente a diligência e o processo a que respeita”).
A regra continua a ser a da continuidade da audiência de discussão e julgamento que apenas poderá ser adiada por mais de 30 dias, nas circunstâncias previstas na 2ª parte do nº6 e com as ressalvas decorrentes do nº7 do artigo 328º.

Porque a continuidade da audiência visa a realização da justiça em tempo razoável, a alteração de 2015 quis, precisamente, afastar a necessidade de repetição da produção de provas, designadamente gravadas, quando circunstâncias justificadas determinassem a interrupção da audiência por mais de 30 dias.

II - A regra do artigo 163.º do CPP é compatível com a livre apreciação probatória, apenas se erigindo como norma que qualifica essa apreciação probatória, na medida em que permite ao juiz divergir com argumentos qualificados na área técnica, científica ou artística em causa. Para que se constate uma divergência da convicção do julgador relativamente ao resultado da prova pericial é necessário que esse resultado não seja inconclusivo e, por outro lado, que o juízo do Tribunal e o juízo pericial incidam sobre o mesmo facto.

O preceituado no artigo 163º impõe que o Juiz não se desvie do juízo pericial com mero apelo a «regras de experiência comum», à sua convicção pessoal ou a qualquer outro critério que não o uso de conhecimentos e argumentos inerentes à área artística, técnica ou científica da perícia. Emitido um juízo pericial conclusivo sobre determinado facto, o Juiz só dele se poderá desviar se apresentar fundamentação qualificada.

Se na decisão se constata um desvio do juízo pericial sem adequada fundamentação que o suporte, estará configurado o vício do erro notório na apreciação da prova.

Como sempre, também numa tal hipótese, o vício prende-se com os limites a que está sujeito o princípio da livre apreciação da prova, previsto no artigo 127º do CPP.

Decisão Texto Integral: Acordam em conferência na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora
I – RELATÓRIO

1. No Juízo Local Criminal de … – Juiz …, o arguido AA, com os demais sinais dos autos, foi submetido a julgamento em processo comum com a intervenção do tribunal singular, após acusação do Ministério Público que lhe imputou a prática, em autoria material, de um crime de violência doméstica, previsto e punível pelo artigo 152.º, n.º 1, alínea b) e 2, alínea a), do Código Penal.

2. Após comunicação de alteração não substancial dos factos e da qualificação jurídica, por sentença de 26 de setembro de 2024, foi decidido:

“Em face do exposto e em conformidade, o Tribunal decide:

a) Declarar que os factos apurados sob os pontos 3. a 6., 67. e 70. não integram o mesmo pedaço de vida dos demais, pelo que não se subsumem à prática do crime de violência doméstica, p. e p. pelo art. pelo art. 152.º, 1, b) e 2, a), do Código Penal, na redação conferida pela Lei n.º 57/2021, de 16/08, conforme vinha imputado, mas sim, a prática, em autoria material, sob a forma consumada, de um crime de ofensa à integridade física simples, p. e p. pelo art 143.º, 1, do Código Penal;

b) Julgar extinto o procedimento criminal no que tange ao ilícito p. e p. pelo art. 143.º, 1, do Código Penal, aludido em a), por falta de uma condição de procedibilidade (legitimidade do Ministério Público, ante a ausência de apresentação tempestiva de queixa pela titular do correspondente direito) - arts. 143.º, 2, do Código Penal e 49.º do Código de Processo Penal;

c) Condenar o arguido, AA, pela prática, em autoria material, sob a forma consumada, de um crime de violência doméstica, p. e p. pelo art. 152.º, 1, b) e 2, a), do Código Penal, na pena de 2 (dois) anos e 4 (quatro) meses de prisão;

d) Suspender a execução da pena de prisão aplicada ao arguido pelo período de 2 (dois) anos e 4 (quatro) meses de prisão, suspensão que:

d.1.) Será acompanhada de regime de prova assente num plano de reinserção social a elaborar pela Direção-Geral de Reinserção e Serviços Prisionais, o qual deverá, necessariamente, prever a frequência obrigatória do arguido do Programa para Agressores de Violência Doméstica; e

d.2.) Ficará condicionada ao cumprimento (também sob fiscalização da Direção-Geral de Reinserção e Serviços Prisionais), pelo arguido, durante todo o período da suspensão, da seguinte regra de conduta:

- Não contactar com a assistente BB, por qualquer meio, escrito, falado, presencial e/ou à distância, gestual, por meios de telecomunicação, incluindo redes sociais ou quaisquer outros, exceto se os contactos forem destinados, em exclusivo, a tratar de assuntos relacionados com o exercício das responsabilidades parentais a favor dos menores CC e DD;

e) Julgar parcialmente procedente o pedido de indemnização civil formulado por BB contra o arguido/demandado AA e, em consequência, condenar este a pagar àquela o quantitativo de 4000,00€ (quatro mil euros) a título de compensação por danos não patrimoniais, valor que se considera reportado à data da presente decisão e ao qual acrescerão os juros de mora, vincendos, calculados, às taxas legais sucessivamente em vigor para os juros civis, sobre aquele, desde a data da presente decisão, até efetivo e integral pagamento;

f) Absolver, no mais, o arguido/demandado do contra ele peticionado;

g) Declarar que a medida de coação de Termo de Identidade e Residência imposta ao arguido apenas se extinguirá com a extinção da pena principal – art. 214.º, 1, e), do Código de Processo Penal;

h) Determinar que seja dado pagamento à fatura referente à elaboração do relatório social, caso ainda não haja sido efetivado;

i) Condenar AA no pagamento das custas criminais, fixando-se em 3 UC a taxa de justiça por ela devida [art. 513.º, 1, do Código de Processo Penal, em conjugação com o art. 8.º, 9, e tabela III do Regulamento das Custas Processuais], acrescida dos encargos a que a atividade do mesmo houver dado lugar, nomeadamente, o pagamento da fatura emitida pela Direção-Geral de Reinserção e Serviços Prisionais pela elaboração do relatório social e das perícias efetuadas [arts. 514.º, 1, do Código de Processo Penal e 16.º, 1, d), do Regulamento das Custas Processuais];

j) Condenar demandante e demandado no pagamento das custas cíveis na medida do respetivo decaimento, sem prejuízo do apoio judiciário de que, eventualmente, beneficiem;

k) Determinar que, após trânsito, se proceda:

a. À remessa de boletim ao registo criminal – art. 374.º, 3, d), do Código de Processo Penal;

b. Ao envio de ofício ao Laboratório de Polícia Científica da Polícia Judiciária para que, mediante funcionário ou agente de polícia criminal certificado [art. 4.º, 1 e 17.º, ambos da Lei n.º 67/2017, de 09/08], proceda à recolha de impressões lofoscópicas ao arguido, com a finalidade de investigação criminal [art. 3.º, 1, b) e 4.º, 1, da aludida Lei], devendo o mesmo ser informado da finalidade da recolha e de que deve consentir na mesma [art. 4.º, 2, da mesma Lei] e advertido de que, em caso de recusa ilegítima, será compelido a sujeitar-se a tal recolha [art. 172.º, 1, do Código de Processo Penal, aplicável ex vi do art. 4.º, 3, da Lei n.º 67/2017, de 09/08];

c. À liquidação das custas, de acordo com o determinado;

d. À remessa de cópia do presente acórdão à Direção-Geral de Reinserção e Serviços Prisionais, solicitando a elaboração de plano de reinserção social.

x

Valor do enxerto cível: 11500,00€ (onze mil e quinhentos euros).

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Notifique.

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Proceda, de imediato, ao depósito do acórdão, nos termos do art. 372.º, 5, ex vi do art. 373.º, 3, ambos do Código de Processo Penal..”.

3. Inconformado com a decisão final, dela interpôs recurso o arguido, pedindo:

i. Que se modifique a decisão do Tribunal a quo quanto à matéria de facto dada como provada e que, consequentemente, se absolva o arguido do crime de que foi acusado e do pedido de indemnização civil;

ii. Subsidiariamente, que se absolva o arguido da prática do crime de violência doméstica, por não se poder considerar que a conduta integra o crime p. e p. pelo artigo 152º do Código Penal, absolvendo-o do pedido de indemnização civil ou reduzindo o montante indemnizatório fixado.

Extraiu o recorrente da sua motivação de recurso as seguintes conclusões:

“1. In casu, ocorreu violação manifesta do princípio da continuidade da audiência plasmado no nº 1 art. 328º do C.P.Penal, onde que acarreta nulidade que expressamente se argui.

2. Visando o princípio da continuidade da audiência garantir na sua plenitude os princípios da concentração da audiência e da imediação de forma a assegurar que a prova seja apreciada e discutida o mais próximo possível do momento em que é produzida e assim garantir que a mesma se mantenha viva na memória de todos os intervenientes processuais e do julgador.

3. Não foi isso o sucedido, in casu, arrastando-se a realização deste julgamento – note-se que o arguido vinha acusado da prática do crime de violência doméstica p.p. pelo art. 152º, 1b) e 2a) do Código Penal – ao longo de 12sessões de julgamento que tiveram o seu início em 27deAbril de 2023 e termo a 05-09-2024, tendo a sentença sido proferida a 26 de Setembro de 2024 o que acarretou , manifestamente, consequências ao nível da discussão e apreciação da prova , nomeadamente dando origem a erros de julgamento na apreciação da matéria de facto como se passa a demonstrar.

4. Nos termos do disposto no art. 412º nº 3 do C.P.Penal, o recorrente considera incorrectamente julgados os seguintes pontos da matéria de facto dada como provada: 15, 16, 17, 21, 22, 23, 24, 30, 33, 36, 46, 47, 50, 51, 54, 57, 64, 68, 69, 71, 72 e 73. Desde logo,

5. Andou mal o Tribunal a quo na apreciação dos Relatórios das perícias médico legais psiquiátricas/personalidade por si determinadas e ordenadas o que fez em manifesta violação do princípio da prova vinculada (artigo 163 nº. 2, do C.P.P.) - Vide teor do despacho contido na Ata da 10ª Sessão de julgamento (cfr. Ata refª 129463686 datada de 15.09.2023)

6. As perícias, foram realizadas por entidades distintas, sendo a perícia realizada na pessoa da Assistente, uma perícia médico-legal de Psicologia, e do arguido, esse sim, sujeito a perícia psiquiátrica médico-legal, respondendo aos quesitos formulados pelo Tribunal, (cfr. Respectivamente consta refª Citius … - 23.01.2024 - e refª citius … – 01-03.2024).

7. Obtidos os resultados das mesmas , refere a Mma Juiz a quo, em sede de fundamentação da sentença, que as perícias ordenadas o foram não porque o Tribunal estava “perdido” ou “às escuras” mas apenas pretendia “certificar-se de que inexistiam razões objectivas e objectiváveis , devidamente verificadas e relatadas por pessoa com conhecimentos científicos bastantes, para colocar em crise a credibilidade que as declarações prestadas por BB, mereceram (...).

8. Ora, salvo o devido respeito, não foi, claramente, esse o fundamento ínsito no despacho que determinou as perícias médico-legais, mas sim o reconhecimento claro da existência dúvidas que o Tribunal a quo não conseguiu colmatar, tanto mais que tais perícias foram ordenadas após a produção de toda a prova!

9. A verdade é que, obtidos os resultados das perícias médico-legais, e quanto á perícia médico legal a que a Assistente foi sujeita, resulta em sede de conclusão ao quesito 2 ( Os factos verbalizados pela ofendida e imputados ao arguido aparentam ter sido vivenciados?) resulta a resposta: existe concordância entre os factos relatados e as emoções demonstradas o que não nos permite afirmar se foram vivenciados ou não.

10.A Mma Juiz a quo, em sede de sentença, tresleu tal conclusão ao referir o seguinte “É que, diz-nos a literatura que, no âmbito das perícias psicológicas, a discordância entre os factos relatados pelo examinado e as emoções por ele demonstradas é fator decisivo na consideração, pelo perito, de que tais factos não terão sido, com elevada probabilidade vivenciados. In casu, o que temos, é precisamente o inverso.”(...) (!!)

11.Ou seja a Mma Senhora Juiz a quo substitui-se ao Senhor Perito retirando de uma conclusão, outra que aí não está espelhada, aludindo a uma “literatura” que nem sequer identifica!

12.Obliterou ainda Mma Juiz a quo, a avaliação da personalidade efectuada na pessoa da assistente, onde se refere que a assistente mostra elevada desejabilidade social, ou seja, marcada tendência a apresentar-se de modo favorável, bem como baixa desvalorização(...) evidencia traços de personalidade histriónica1 e compulsivo, perfil que remete para antecipar a critica, promovendo um comportamento socialmente adaptável, disposta a ser deferente para os outros e determinada a modificar comportamento, de modo a ganhar atenção e aprovação. Procura ser encantadora e controlada, podendo esconder sentimentos de insegurança, com tendência de valorizar os outros positivamente, prestando atenção excessiva aos desejos dos outros, enfatizando a conformidade com as regras dos outros. Existente tendência para perfeccionismo e preocupação excessiva com as aparências, embora o seu estilo correto e controlado possa esconder ressentimento reprimido.”

13.Mais a mais, surge injustificada a intenção de “certificar-se de que inexistiam razões objectivas e objectiváveis, devidamente verificadas e relatadas por pessoa com conhecimentos científicos bastantes , para colocar em crise a credibilidade que as declarações prestadas por BB, mereceram (...), uma vez que a Mma Juiz a quo entendeu dar como provado , no ponto 83 da matéria de facto, a existência, em contemporaneidade com os factos indiciados, de que foi ativado um processo na Comissão de Protecção de Crianças e Jovens em Perigo , - infelizmente pouco referido em sede de julgamento - que permitiu que a assistente se ausentasse da casa de morada de família e se deslocasse para … ( numa distância de mais de 300 Kms) acompanhada dos filhos do casal, antevendo-se as consequências, em sede de processo de regulação de responsabilidade parental, poderia(à) ter a absolvição do arguido no presente processo, o que constitui razão objectiva.

14. Já quanto ao Relatório da Perícia Psiquiátrica médico-Legal que conclui pela inexistência , na pessoa do arguido, de quaisquer traços de personalidade ou patologia que potenciem atos de natureza controladora, manipuladora, persecutória/e ou impulsiva, a inexistência de quaisquer traços de personalidade ou patologia que potenciem vitimização, efabulação ou invenção dos factos ou atos de heteroagressividade, bem como a resposta negativa sobre se os factos verbalizados pelo arguido aparentam ter sido imaginados /efabulados, a Mma Juiz a quo afasta as aludidas conclusões, colocando em crise o juízo científico postulado pelo relatório da perícia efectuada ao arguido, o que faz (!) tendo por base mensagens, todas elas descontextualizadas ,um relatório de perícia de avaliação de dano corporal datado de 16.11.2021 e num auto de denúncia (fls 191) datado de 14.11.2021 onde se escreveu “por apresentar indícios, foi a vítima notificada para ser presente a exame directo”.

15.Ao fazê-lo, violou a Mma Juiz a quo o disposto no art. 163º do C.P.Penal.

16.A prova pericial representa , assim, em processo penal um desvio ao princípio da livre apreciação da prova contido no art. 127º do C.P.P.

17. O Tribunal não só interpretou erradamente o resultado do exame pericial, como não o valorou em conformidade com o disposto na norma aplicável do artigo 163, no seu nº. 2, do C.P.P., violando assim o princípio da prova vinculada, prova que só pode ser afastada por outro meio de prova idêntico.

18.Caso o Tribunal concluísse que as respostas contidas nas perícias por si ordenadas, tendo em vista a obtenção de respostas aos quesitos por si formulados e realizadas pelas entidades oficiais devidos não foram no sentido de afastar as dúvidas que o motivaram, apenas lhe restaria, em obediência ao princípio in dubio pro reo, valorar a favor do arguido.

19. Não o tendo feito, incorreu, outrossim, na violação do aludido princípio. Continuando,

20. Resulta da fundamentação da sentença que os Pontos 15 a 17 da matéria de facto dada como provada, tiveram por base as declarações da assistente , entendendo-se que as mesmas foram corroboradas pelas as declarações para memória futura prestadas em 20.01.2022, pelo filho menor CC, as quais se encontram gravadas e transcritas a fls 464 v a 471 v dos autos.

21.Relidas as mesmas, nomeadamente do minutos 9:30 ao minuto 12:16 naõ se pode concluir que as corroborem as declarações prestadas pela assistente quanto ao sucedido na casa de banho “em data não concretamente apurada do verão de 2021”. Com efeito, o menino acaba só por referir que a mãe chorou , tudo o resto foi a mãe quem explicou.

22. Obliterou-se ainda que o CC foi ouvido a 20.01.2022, tendo à data … (…) anos de idade – nasceu a …2014 - e encontrava-se a viver com a Mãe (assistente) desde Novembro de 2021 apenas tendo visitado o Pai (arguido) 3 ou 4 vezes sob supervisão da Comissão de Protecção de Crianças e Jovens( cfr. Transcrição 00:08:50 a 00:09:08 - pág. 9 e ponto 83 da matéria de facto dada como provada ).

23.Aliás, ao longo de todo o depoimento (transcrito na íntegra e constante dos autos a fls 464 v a 471 v) a criança apenas faz referência a discussões entre os progenitores.

24. Inexiste , assim, qualquer prova - incorrendo o Tribunal a quo em erro - que corrobore as declarações da assistente, nomeadamente que o alegado ligeiro edema na fronte (testa) - cuja prova de existência também não foi produzida - tenha sido criada de modo intencional nomeadamente pelo arguido ou, sendo-o por este, possa ter sido de forma negligente ao entrar ou a sair da casa de banho, no meio de uma discussão acesa, uma vez que resultam das fotografias juntas aos autos que ao abrir a porta, a mesma abria “para cima” da sanita local onde se encontrava sentada a assistente. - Vide fotos juntas com o pedido de indemnização civil - Refª Citius … de 16.01.2023.

25. Incorreu, outrossim, o Tribunal em erro na apreciação da prova quanto Pontos 21 a 24 de matéria de facto dada como provada tendo formado a sua convicção nas declarações prestadas pela assistente conjugadas com as mensagens trocadas entre a assistente e o arguido e em concreto na mensagem enviada pelo arguido á assistente no dia 01.09.2021 do seguinte teor :“ Eu sei que sou agressivo e não devia. Mas o meu saco também enche. Não sou de ferro. Desculpa (...) - vide mensagens anexas req. De 02.05.2023 - Refª Citius … e …

26. Jamais dessas mensagens – trocadas no referido dia 1 de Setembro de 2021 - se extrai que o arguido apertou o pescoço da assistente no dia anterior ou se pontapeou seja o que for , nem se extrai das mesmas que a assistente tenha ficado amedrontada ou pretendesse deslocar-se para casa dos pais com os filhos. - cfr. Doc. 1

27. Andou mal o Tribunal a quo, também quanto aos Pontos 33,34 e 36 resultando, desde logo, dos lotes de mensagens juntas (sms e whatsapp) - reqs. 02.05.2023 (assistente), ref.a Citius … e …, e req. (arguido) 29.06.2023 Refª Citius … - que após o alegado evento do dia 31 de Agosto, o casal se reconciliou, tratando-se carinhosamente.

28.Com efeito, extrai-se do conteúdo das mensagens trocadas nos dias seguintes e acima transcritas, que o casal discutiu a propósito dos horários e turnos da assistente na respectiva actividade profissional os quais, na opinião do arguido, não permitiam um acompanhamento da vida familiar e dos filhos do casal ,em particular. No meio dessa discussão resultou - conforme consta do ponto 31 e 32 dos factos dados como provados – que a assistente disse ao arguido que não ia deixar o seu emprego e que não queria mais conversas com ele tendo se deslocado para a casa de banho para tomar duche, tendo o arguido insistido em querer conversar sobre o assunto dizendo-lhe que ela estava a optar pelo trabalho em detrimento da família.

29.Não se pode concluir - por inexistência de prova que o corrobore - que os factos ocorreram de acordo com a narração contida nos pontos 33. Aliás, tal posição é contraditada pelos factos não provados sob k) a n) não se almejando, uma vez mais, porque razão a Mma Juiz a quo concede dar uns como provados e outros não, tendo formado a sua convicção no depoimento da assistente.

30.Por outro lado, a violência da alegada atuação constante nos aludidos pontos da matéria de facto dada como provada – que se impugnam -implicaria, á luz das mais basilares regras da experiência , que a terem ocorrido dessa forma, a assistente ao sair de casa - como o fez - se tivesse dirigido de imediato a um posto da GNR ou da PSP e apresentasse queixa e pedisse auxílio, ainda por cima após alegadamente vivenciar aquele tipo de agressão (o arguido ter-lhe-á apertado o pescoço ao ponto de faltar o ar).

31.Obliterou-se nomeadamente sms que a assistente ao arguido as 23:29 do dia 29 “ Eu vou para casa, mas não quero falar nada agora logo falamos amanhã vou para o quarto de cima”. - vide reqs. 02.05.2023 (assistente), ref.a Citius … e …, e req. (arguido) 29.06.2023 Refª Citius …

32. Bem como toda a troca de mensagens que se seguiu , entre o casal, após o regresso a casa da assistente, em que em momento algum se referem agressões físicas - vide sms do dia, 2021/09/30 entre as H 00:18:43 e as H 01:04:37.”

33. Também a testemunha EE, ouvida na 10ª sessão de julgamento, que teve lugar a 15.09.2023, cujo depoimento se encontrava gravado tendo tido o seu início as 10:04 e fim as 12:40 minutos, com uma duração total de 02:35:37, referiu que a assistente apenas lhe referiu ser vítima de violência doméstica, nunca tendo concretizado quaisquer tipo de agressões físicas ou verbais, nem se queixado de nada em concreto, tendo a testemunha tido oportunidade de, confortando-a, lhe retirar o cabelo da face não tendo visualizado quaisquer marcas no corpo da assistente.( Vide gravação do depoimento minuto 19:58 a 31:00).

34.Bem como decorre do depoimento prestado pela testemunha FF, prima da assistente, que ocorreu na 6ª Sessão de julgamento que teve lugar no dia 27/06/2023 com início ás 9:50 e termo as 10:54 - Refª Citius …, nomeadamente a partir do minuto 3’00 ao minuto 6’00 que a assistente , em Setembro de 2021, só lhe falou nas discussões que tinha com o arguido, nunca tendo mencionado a existência de quaisquer agressões.

35.Nos dias seguintes, o casal continuou a trocar várias mensagens, via sms e whatsapp, conforme resulta dos documentos já supra mencionados, sendo notório que refizeram, entretanto a sua relação, (vide ponto 42 dos factos dados como provados) conforme flui das mensagens trocadas entre arguido e assistente logo no início da manhã do dia 11.10.2021: H 09:32;

36. Quanto aos Pontos 46,47 e 54 dos factos dados como provados - factualidade alegadamente ocorrida nos dias 11 e 14 de Novembro, resulta da fundamentação, que tais factos foram considerados provados tendo por base as declarações prestadas pela assistente, o teor das mensagens trocadas por ela com o arguido e o teor do Auto de denúncia de fls 191 – datado de 14.11.2021 - Refª Citius … de 19.11.2021 - e Perícia de Avaliação do Dano Corporal em Direito Penal datada de 16.11.2021 - Refª Citius … de 17.12.2021 -

37. Desde logo não se descortina a que mensagens se refere a Mma Juiz a quo a fls 18 e 19 da sentença , uma vez que as anteriormente aí transcritas se referem a períodos anteriores aos dias 11 e 14 de Novembro.

38. Com efeito, das mensagens trocadas entre o arguido e a Assistente naqueles referidos dias 11 e 14 de Novembro, em nenhum momento resulta qualquer menção quanto àqueles pretensos factos. – Vide Requerimento com junção de transcrição de mensagens datado de 29.06.2023 - Refª Citius … – doc 1 e 2.

39. É inverosímil que tendo alegadamente ocorrido agressões perpetradas pelo arguido na pessoa da assistente após as 23:36 H do referido dia 11, agressões essas em que o arguido alegadamente terá ferido a assistente com as unhas , puxões nos pulsos não se descortina, de acordo com as mais elementares regras da experiência, que a assistente , no início da manhã do dia 12 de Novembro às 09:54, dirija um sms ou whatsapp ao arguido do teor que dirigiu, bem como no dia subsequente a partir das H18:48; - Vide Requerimento com junção de transcrição de mensagens datado de 29.06.2023 - Refª Citius … – doc 2. Acresce que,

40.Existem contradições entre o referido pela assistente em sede com de auto de denúncia : Auto de denúncia de fls 191 – datado de 14.11.2021 -Refª Citius … de 19.11.2021 e o por si mencionado no Relatório médico Legal do exame efectuado no dia 16 de Novembro - Perícia de Avaliação do Dano Corporal em Direito Penal datada de 16.11.2021 - Refª Citius … de 17.12.2021 -

41. Não resulta do auto de denúncia a exibição de qualquer telemóvel danificado nem ao longo de todo o processo, nem sequer em sede de pedido de indemnização civil é imputado ou apresentado qualquer dano ou reparação do dito telemóvel - Vide pedido de indemnização civil - Refª Citius … de 16.01.2023.

42.Com efeito, não se almeja o raciocínio que afasta o facto das ditas lesões não pudessem, nomeadamente, ter sido provocadas por um terceiro a pedido da própria assistente, ou mesmo por ela auto-infligidas.

43.Mais, resulta do depoimento prestado pela Mãe da assistente, a testemunha GG, ouvida na 4º Sessão de julgamento que teve lugar no dia 22.06.2023, cujo depoimento se encontra gravado, tendo tido o seu início as 11 horas e 50 minutos e seu termo 11 :52 (erro manifesto constante da referida Ata Refª Citius … – uma vez que o depoimento durou 50’ e 33 s -) nomeadamente a partir do minuto 21’ que a Mãe da assistente no dia que chegou - dia 14 de Novembro - não viu quaisquer marcas no corpo da filha, nunca referindo quaisquer marcas na cara ou no pescoço , nos braços ou nos pulsos. Apenas os menciona por os ter visto no dia do exame (corpus delitus (1) - expressão usada pela testemunha).E ainda

44.Decorre do depoimento prestado pela testemunha FF, prima da assistente, que ocorreu na 6ª Sessão de julgamento que teve lugar no dia 27 / 06/2023 com início ás 9:50 e termo as 10:54 - Refª Citius …, nomeadamente a partir do minuto 6’00 ao minuto 10’34 que apesar de ter estado com a assistente no dia 16 de Novembro á noite, apenas visualizou as ditas alegadas agressões (mero arranhão na cara) no referido dia por fotografia .

45.Também, resulta da sentença que a Mma Juiz a quo conclui a falsidade (!) dos depoimentos dos Militares da Guarda Nacional Republicana que compareceram na residência partilhada a pedido da assistente no dia 16 de Novembro, os guardas HH e II, “asseveraram que a assistente não tinha lesões visíveis e/ou que as não evidenciava aquando da sua deslocação á residência” e nem sequer a assistente as referiu - vide depoimento prestado por HH - Ata de audiência 27.06.2023 7º Sessão - refª Citius… – depoimento que teve início pelas 15:30 e termo pelas 16:42 , e concretamente do minuto 15’ ao minuto 19’ , e depoimento prestado por II -Ata da audiência de 06-07-2023 - 8ª sessão refª … – depoimento que teve início pelas 10:36’ e termo pelas 11:01’, nomeadamente do minuto 3’ ao minuto 7’.

46. Não se pode concluir da mera existência em Auto de denúncia ter sido a denunciante notificada para comparecer em exame médico-legal que as eventuais lesões tenham sido provocadas pelos factos denunciados- cfr. Auto de denúncia de fls 191 – datado de 14.11.2021 - Refª Citius … de 19.11.2021

47. Quanto aos factos constantes sob o ponto 57, não se pode aceitar que a prova dos mesmos tenham resultado das declarações prestadas pela assistente, conjugado com o depoimento prestado pela Mãe a testemunhas GG, aliado ainda ao teor da mensagem enviada á assistente pelo arguido as 22.39 do referido dia.- Vide Requerimento com junção de transcrição de mensagens datado de 29.06.2023 - Refª Citius … – doc 2. Com efeito,

48. Desde logo, por tal não resulta depoimento da mãe da Assistente - a testemunha GG, ouvida na 4º Sessão de julgamento que teve lugar no dia 22.06.2023, cujo depoimento se encontra gravado , tendo tido o seu início as 11 horas e 50 minutos e seu termo 11 :52 (erro manifesto constante da referida Ata – uma vez que o depoimento durou 50’ e 33 s -) nomeadamente a partir do minuto 17’ ao minuto 24’,

49.Quanto á factualidade constante no ponto 64. resulta, desde logo inverosímil, que o arguido tivesse conhecimento da existência da referida queixa apresentada na ante-véspera, não resultando qualquer prova que corrobore as declarações da assistente.

50. Nomeadamente nem da análise das mensagens trocadas entre a assistente e a prima FF –juntas por email emanado do Tribunal de … datado de 27/06/2023 - refª Citius … – doc. 1 a 6 .

51. Aliás, a Mma Juiz a quo não atentou devidamente ao teor das conversas estabelecidas entre a assistente e a sua prima nomeadamente, a mensagem daquela às 23:16 do dia 16 “ (doc.1) e ás 2:44 do dia 17 (doc.4)como não deixa , outrossim, de ser curioso o ficheiro audio - doc. 1- remetido pelo Tribunal de … a 27.06.2023 - refª Citius … –

52. Os Pontos 68 e 70 da matéria de facto, resultam impugnados por força da impugnação dos factos anteriormente descritos.

53. Também o Ponto 71 da matéria de facto resulta de toda a matéria de facto, aliada aquela agora impugnada, que as discussões entre o casal ocorriam em ambiente familiar –como acontece na maioria das situações de milhares de casais -, normalmente após as crianças se deitarem, com o contributo de ambos (assistente e arguido).

54. Finalmente quanto ao pontos 72 e 73 da matéria de facto, entende o recorrente que foi incorrectamente apreciado tendo em conta o teor do Relatório Médico Legal em Psicologia efectuado na pessoa da Assistente -refª Citius … - 23.01.2024 - nomeadamente a resposta dada pela Exmª Senhora Perita ao quesito 4) e 5) donde resulta a ausência de qualquer sintomatologia clínica associadas ás situações por ela relatadas , bem como não existir impacto na vida pessoal, familiar, social e profissional da assistente, aliada ainda à manifesta a contradição entre o aí referido e o constante no ponto 74 .

55. Concluindo, analisada de forma concatenada e crítica e à luz dos critérios objectivos do senso, da lógica e da experiência comum, ao abrigo do princípio da livre apreciação plasmado no artigo 127 do C.P.P. e ainda da prova pericial, subtraída àquele princípio geral e antes submetida ao normativo do artigo 163 do C.P.P., não se pode concluir , como se expôs, que o arguido tenha praticado os factos supra impugnados e consequentemente tenha cometido o crime pelo qual foi condenado. Sem prescindir,

56. para que integrar o crime de violência doméstica, importa saber se a conduta do agente, pelo seu carácter violento ou pela sua configuração global de desrespeito pela pessoa da vítima ou de desejo de prevalência de dominação sobre a mesma, é suscetível de ser classsificada como maus tratos, sendo que o conceito de maus tratos exige o desprezo, humilhação, especial desconsideração pela vítima e a gravidade destas manifestações.

57.E assim, não se pode considerar que a conduta do arguido espelhe uma situação de maus tratos da qual resulte ou seja susceptível de resultar sérios riscos para a integridade física e psíquica da assistente.

58.Em primeiro lugar, ressalta demasiado evidente que após momentos de discussão mais acesa, arguido e assistente reataram a sua relação e fazendo-o sempre de um modo carinhoso, bem como resulta, outrossim, de todas as mensagens trocadas entre ambos, sentimentos de profundo respeito demonstrado pelo arguido à assistente.

59. Acresce que resulta da perícia médico legal – Psicologia – efectuada na pessoa da Assistente que os factos por ela narrados não afectaram psiquica e mentalmente a ofendida não afectando a sua personalidade.

60. Razão pela qual, os episódios não revestem a gravidade suficiente para serem taxados de violência doméstica, uma vez que não possuem aquele plu s em termos de perversidade ou crueldade que a sua tutela já não possa ser assegurada, eventualmente, por outro tipo de ilícito parcelar.

61. Fica assim arredada a punição da conduta do arguido como integrante de um crime de violência doméstica p.p. pelo art. 152º do C.Penal, norma que resultou violada pelo Tribunal a quo. Finalmente,

62. a condenação do demandado ao pagamento á demandante, a título de indemnização pelos danos não patrimoniais da quantia de 4.000,00 € (quatro mil euros) revela-se manifestamente exagerado por ofender o disposto no art. 494º do Código Civil - norma que resultou violada.”.

4. O recurso foi admitido, por ser tempestivo e legal.

5. O Ministério Público apresentou resposta ao recurso interposto pelo arguido, pugnando pela sua improcedência.

Formulou as seguintes conclusões:

“A.- O recorrente veio interpor recurso da douta sentença que o que o condenou pela prática de crime de violência doméstica, p. e p. pelo artigo 152.º n.º 1 alínea b) e n.º 2 alínea a), do Código Penal, na pena de 2 (dois)anos e 4 (quatro) meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período, sujeita a regime de prova.

B.- O recorrente alega existir:

i–nulidade do julgamento por violação do princípio da continuidade da audiência, nos termos do disposto no artigo 328.º n.º 1 e 6, do Código de Processo Penal;

ii – terem sido incorretamente julgados os pontos 15 a 17, 21 a 24, 30, 33, 34, 36, 46, 47, 50, 51, 54, 57, 64 e 68 a 73, da matéria de facto dada como provada pelo Tribunal a quo;

iii – violação do princípio da prova vinculada, nos termos do disposto no artigo 163.º, do Código de Processo Penal;

iv – os factos dados como provados não integram o tipo de ilícito previsto no artigo 152.º do Código Penal;

C.- Quanto ao mérito do recurso, somos de nos pronunciar pela sua total improcedência, pelas seguintes razões:

i) – Inexiste qualquer violação do artigo 328.º do Código de Processo Penal, porquanto os motivos de adiamento, remarcações das audiências e outras vicissitudes, encontram-se plenamente justificados no processo, ora por doença da Ilustre Mandatária da Assistente (devidamente documentada), ora pela realização das perícias determinadas, ora pela junção de documentos, ora pela indisponibilidade dos Ilustres Advogados das partes nas datas sugeridas para continuação da audiência de julgamento.

ii) - Mas ainda que isso ocorresse, não sendo cominada como nulidade absoluta (artigo 119.º do Código de Processo Penal), nem estando cominado no artigo 328.º que a sua violação integra uma nulidade (artigo 120.º do Código de Processo Penal), que ainda assim teria de ter sido arguida em tempo, seria mera irregularidade a arguir no ato, e não o foi.

iii) – Todas as provas e meios de prova foram analisadas e devidamente apreciadas pelo Tribunal a quo na sua decisão;

iv) – Inexiste quaisquer razões, factos ou provas, que imponham decisão diversa da proferida pelo Tribunal a quo, que efetuou análise crítica de todas as provas que lhe foram apresentadas e fez uma valoração lógica e racional.

v) – inexiste violação do princípio in dubio pro reo porquanto o Tribunal a quo não teve quaisquer dúvidas nos factos dados como provados;

vi) – os factos dados como provados integram o tipo de ilícito de violência doméstica.

D.- A douta Sentença ora recorrida fundamentou de forma clara e adequada a matéria de facto dada como provada, analisando todos os meios de prova que sustentaram a apreciação feita pelo Tribunal a quo, fazendo uma apreciação, interpretação e valoração dos mesmos, cuja razoabilidade e plausibilidade é, em nosso entender, inatacável.

E.- O recorrente transcreve as declarações da assistente, de testemunhas, indicando ainda documentos junto aos autos, pretendendo retirar deles conclusões e factos que não estão de acordo com a demais prova e com as mais elementares regras da experiência comum.

F.- Das alegações de recurso apresentadas pelo recorrente, não se vê quais são as concretas provas que impunham decisão diversa da proferida e que evidenciem uma apreciação contrária a logica e experiência comum.

G.-Por outro lado, o recorrente lavra em erro ao considerar que o Tribunal a quo só pode dar como provado um facto, se esse facto for corroborado por mais prova, uma vez que nos termos do disposto no artigo 127.º do Código de Processo Penal, a prova é apreciada segundo as regras da experiência comum e livre convicção da entidade competente, não exige, nem o poderia, que a prova fosse corroborada por demais prova.

H.- Da motivação da matéria de facto feita pelo Tribunal a quo, pela sua clareza e assertividade, consideramos despiciendo reproduzir os argumentos e raciocínio ali explanado, ainda que por diferentes palavras, para concluir que inexiste, por um lado insuficiência de prova para a decisão da matéria de facto dada como provada e, por outro lado, erro notório na apreciação da prova quanto aos pontos invocados nas alegações de recurso.

I.- Ou seja, o recorrente pretende é que a sua versão dos factos tivesse prevalecido, não se conformando com a livre apreciação da prova feita pelo Tribunal a quo.

J.- Versão que até é contrariada pelas próprias mensagens que pelo recorrente foram juntas e constantes na referência CITIUS …, de 29/6/2023, onde se refere que a vítima foi agredida, apertada pelo pescoço, e o recorrente diz que não agrediu, apenas a apertou! (“Apertei te para ver se acordas pá vida tens dois filhos não tens vinte e poucos anos” ou “O que te fiz não é agredir. Apertei te apenas”)

K.- Quanto à violação da prova vinculada, não se vislumbra que factos concretos é que o tribunal a quo deu como provados ou não provados com base nas perícias efetuadas e que levassem à violação da prova vinculada.

L.- A situação também não se reconduz a uma situação de aplicação do princípio in dubio pro reo, porquanto para a sua verificação exige-se que o Tribunal tenha exprimido, com um mínimo de clareza, que se encontrou num estado de dúvida quanto aos factos que devia dar por provados ou não provados.

M.- Ora, na fundamentação da matéria de facto dada como provada, o Tribunal a quo não invocou qualquer dúvida insanável, antes tomou uma posição clara e inequívoca relativamente aos factos constantes da acusação, com indicação clara, coerente e abundante das razões que fundaram a convicção do tribunal.

N.- Finalmente, ao contrário do alegado pelo recorrente, as mensagens enviadas pela vítima revelam de forma muito expressiva o que ela foi vivenciando e sentindo devido aos atos e comportamentos do recorrente, tais como (referência CITIUS …, de 29/6/2023):

- “Tu destruiste o amor incondicional que tinha por ti no primeiro dia que me apertaste o pescoço e vi a raiva no teu olhar como se eu fosse uma coisa desprezível para ti. ",2021/10/04 10:12:25

- “(…) mas não consigo mais perante a forma como me tratas continuar a permitir as tuas faltas de respeito. Só Deus sabe o que tenho aguentado por amor a ti e aos nossos filhos, estou a morrer por dentro pk não sinto da tua parte amor algum por mim. (…) Sinto-me abandonada maltratada, vejo no teu olhar uma raiva um desprezo sem igual. Nunca pensei que chegaríamos a este ponto da nossa vida nunca quis nada disto”. 2021/10/06 16:05:24.

"Alguma vez achas que isto vai passar? Desculpa mas este tipo de coisas deixa marcas para o resto da vida. E o sentimento jamais será o mesmo.” 2021/10/06 17:27:24

- Eu não quero falar ctg assim sozinhos tenho medo das tuas atitudes e sabes bem que não consegues manter a calma eu não quero discutir por favor ",2021/10/09 20:27:13

- "Eu não consigo mais falar ctg pessoalmente tenho medo já te disse",2021/10/09 20:51.

- "É melhor falar noutro dia e num sítio público se não te importas",2021/10/09 21:39:44.

O.- Pelo que a factualidade dada como provada pelo Tribunal a quo integra o tipo legal de crime de violência doméstica.

P- Termos em que, deve ser rejeitado o recurso apresentado pelo recorrente e, consequentemente, ser mantida a douta sentença nos seus precisos termos.”.

6. Neste Tribunal, o Sr. Procurador-Geral Adjunto apresentou parecer em que manifesta concordância com a argumentação já expendida pelo Ministério Público junto da 1ª Instância, assim pugnando também pela improcedência do recurso.

Cumprido o contraditório, não foi apresentada qualquer resposta ao parecer.

7. Colhidos os vistos e realizada a Conferência, cumpre decidir.

*

II – QUESTÕES A DECIDIR.

Como é pacificamente entendido, o âmbito dos recursos é definido pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respectiva motivação, que delimitam as questões que o tribunal ad quem tem de apreciar, sem prejuízo das que forem de conhecimento oficioso (cfr. Germano Marques da Silva in Curso de Processo Penal, vol. III, 2ª ed., pág. 335, Simas Santos e Leal Henriques, in Recursos em Processo Penal, 6ª ed., 2007, pág. 103, e, entre muitos outros, o Ac. do S.T.J. de 05.12.2007, Procº 3178/07, 3ª Secção, disponível in Sumários do STJ, www.stj.pt, no qual se lê: «O objecto do recurso é definido e balizado pelas conclusões extraídas da respectiva motivação, ou seja, pelas questões que o recorrente entende sujeitar ao conhecimento do tribunal de recurso aquando da apresentação da impugnação - art. 412.°, n.° 1, do CPP -, sendo que o tribunal superior, tal qual a 1.ª instância, só pode conhecer das questões que lhe são submetidas a apreciação pelos sujeitos processuais, ressalvada a possibilidade de apreciação das questões de conhecimento oficioso, razão pela qual nas alegações só devem ser abordadas e, por isso, só assumem relevância, no sentido de que só podem ser atendidas e objecto de apreciação e de decisão, as questões suscitadas nas conclusões da motivação de recurso, (...), a significar que todas as questões incluídas nas alegações que extravasem o objecto do recurso terão de ser consideradas irrelevantes.»).

Atentas as conclusões apresentadas, que traduzem as razões de divergência do recurso com a decisão impugnada – a decisão final condenatória proferida nos autos – as questões a examinar e decidir prendem-se com o seguinte:

- nulidade decorrente da alegada violação do princípio da continuidade da audiência de julgamento;

- vício de erro notório na apreciação da prova, por alegado afastamento do tribunal, sem fundamento, dos juízos dos peritos e, consequente violação dos princípios da livre apreciação da prova e do in dubio pro reo.

- erro de julgamento em matéria de facto (impugnação ampla da matéria de facto);

- enquadramento jurídico-penal dos factos;

- determinação do quantum indemnizatório.

*

III – TRANSCRIÇÃO DOS SEGMENTOS DA DECISÃO RECORRIDA RELEVANTES PARA APRECIAÇÃO DO RECURSO INTERPOSTO.

Da decisão recorrida, com interesse para as questões em apreciação em sede de recurso, consta o seguinte:

“(…)

Produzida a prova e discutida a causa resultaram os seguintes

FACTOS PROVADOS

1. Em 2009, o arguido, AA, e a assistente, BB, iniciaram entre si um relacionamento de namoro, tendo passado a viver em comunhão de leito, mesa e habitação, como se de marido e mulher se tratassem, em data não concretamente apurada, entre os anos de 2011 e 2012.

2. Têm em comum dois filhos, CC, nascido a … de 2014, e DD, nascida a … de 2018.

3. Em data não concretamente apurada do ano de 2013, no decurso de uma discussão mantida entre o casal da assistente e do arguido, relacionada com ciúmes manifestados por aquela, este desferiu um empurrão sobre o corpo dela, determinando a queda da mesma ao solo no exterior da residência que então partilhavam, sita no ….

4. Nessa sequência, BB levantou-se e desferiu uma bofetada na face do arguido.

5. Ato contínuo, o arguido desferiu uma bofetada na face da assistente, segurou-a pelos cabelos e puxou-a para o interior da habitação, local onde a empurrou para cima do sofá, desferindo nova bofetada sobre a face da mesma.

6. Como consequência direta e necessária da conduta do arguido, descrita em 5., a assistente sentiu dores nas regiões corporais atingidas.

7. Entre data não concretamente apurada do ano de 2012 e fevereiro de 2020, a assistente exerceu as funções de … no estabelecimento comercial denominado “…”, sito no centro comercial “…”, em …, fazendo o atendimento ao público e trabalhando por turnos, rotativos, inclusive aos fins de semana.

8. Após o nascimento de DD e o gozo, pela assistente, da respetiva licença de maternidade, decorrido, ainda, o ano em que esta beneficiou da redução de horário de trabalho, o arguido e a mãe deste manifestaram, perante BB, que não mantinham a sua anterior disponibilidade para assegurarem os cuidados aos menores DD e CC após a hora limite da permanência deles na creche e na escola, respetivamente.

9. Nessa sequência, em fevereiro de 2020, BB decidiu fazer cessar o seu contrato de trabalho, o que concretizou com o desiderato de assegurar a sua disponibilidade para cuidar dos dois descendentes findas as atividades letivas.

10. No período situado entre fevereiro de 2020 e setembro de 2021, em datas e em número de vezes não concretamente apurados, o arguido, no contexto de discussões – mormente, associadas a críticas que fazia à assistente, relacionadas com a invocada falta de brio da mesma na realização das tarefas domésticas no interior da residência comum –, disse a BB que a mesma devia estar a passar o tempo, em casa, a falar, nas redes sociais, com outros homens.

11. Em data não concretamente apurada do verão de 2021, no final de junho ou em julho, à noite, a assistente e o arguido encontravam-se na sala da residência comum, então sita no …, em …, a assistir a um filme.

12. A dado momento, o telemóvel de BB rececionou uma notificação, que esta não leu de imediato, o que foi percecionado pelo arguido.

13. Seguidamente, BB deslocou-se à casa de banho, levando consigo o seu telemóvel, com a intenção de ler tal notificação.

14. Ato contínuo, o arguido AA entrou na casa de banho e questionou a assistente sobre o facto de a mesma não ter aberto a notificação na sua presença.

15. Sentada na sanita, BB disse ao arguido que podia consultar o seu telemóvel, o que o mesmo recusou fazer, tendo gritado com ela, apodando-a de “mentirosa”, dizendo-lhe que estava a enganá-lo, mas que ele “não era parvo nenhum”.

16. Ao sair da casa de banho, o arguido segurou a porta dessa divisão assoalhada pelo respetivo perfil e empurrou-a no sentido do corpo da assistente – que se mantinha sentada na sanita –, fazendo tal objeto embater na cabeça dela, sobre a fronte (testa).

17. Como consequência direta e necessária da conduta do arguido, descrita em 16., a assistente sofreu edema ligeiro na região corporal atingida.

18. Devido ao barulho inerente à discussão referida, CC – que se encontrava a dormir no respetivo quarto –, acordou, tendo ouvido a assistente chorar.

19. No dia 31 de agosto de 2021, após terem jantado num estabelecimento de restaurante e quando se dirigiam para o automóvel em que se haviam feito transportar, a assistente perguntou ao arguido: “- Então e agora, onde é que vamos beber um copo?!”, tendo-lhe este manifestado a sua indisponibilidade para irem a um bar.

20. BB questionou o arguido sobre o motivo de não querer prolongar a saída consigo e confrontou-o com o facto de, na noite anterior, o mesmo ter saído, até de madrugada, com amigos dele.

21. Nessa sequência, o arguido iniciou a marcha do automóvel e imprimiu-lhe velocidade não concretamente apurada, mas determinante de desconforto e de receio à assistente pela sua integridade física, ao mesmo tempo que discutia com esta, dizendo-lhe que estava “a ser irónica”, a “ser ciumenta” e “a fazer filmes”.

22. Chegados à residência comum, no interior do quarto do, então, casal, o arguido agarrou a assistente pelo pescoço com uma mão e exerceu alguma pressão, dizendo a esta que não sabia valorizar o homem que ele era nem a qualidade de vida que o mesmo lhe proporcionava e que “tinha de abrir os olhos”.

23. Após, o arguido saiu da residência comum e BB, amedrontada pela conduta deste, começou a guardar alguns pertences numa mala, determinada a sair de casa e a deslocar-se para a residência dos seus pais – onde então se encontravam CC e DD, em gozo de férias –, sita em ….

24. Todavia, AA regressou à residência comum e, ao percecionar o descrito em 23., desferiu pontapés sobre a mencionada mala e disse à assistente que ela não saía de casa, pois o menor CC teria treino de futebol no dia a seguir, pelo que o mesmo deveria regressar ao … com os avós maternos, conforme estava previsto.

25. Após, mormente, a partir das 08:44 horas do dia 01 de setembro de 2021, a assistente e o arguido trocaram várias mensagens escritas (SMS), nas quais a primeira manifestou ao segundo a sua vontade de terminar o relacionamento que mantinham.

26. No decurso dessa troca de mensagens, a assistente (com o contacto telefónico …) escreveu, dirigindo-se ao arguido, designadamente: “Não há justificação para as tuas atitudes cmg, eu não posso dizer nada que tu ages como um animal para me provocar medo e insegurança. Eu não aceito mais isso na minha vida. Desculpa por tudo de mal que te tenha provocado mas está mais que visto que as nossas vidas vão seguir rumos diferentes. (…)” e “Não quero mais discutir ctg não suporto a tua agressividade temos que resolver as coisas a bem pelos nossos filhos está bem? As relações kd já não dão não precisam de ser terminadas da pior forma com guerras. Eu gostava que ressolvessemos tudo a bem. (…)”.

27. Nessa sequência, o arguido (com o contacto telefónico n.º …) escreveu, dirigindo-se à assistente, designadamente: “Eu sei que sou agressivo e não devia. Mas o meu saco também enche. Não sou de ferro. Desculpa. (…)”.

28. Não obstante o descrito em 22., o relacionamento entre o casal do arguido e da assistente manteve-se e, no dia 20 de setembro de 2021, esta voltou a exercer funções de … no estabelecimento comercial denominado “…”, sito no centro comercial “…”, em …, fazendo atendimento ao público e trabalhando por turnos, rotativos, inclusive aos fins de semana.

29. No dia 29 de setembro de 2021, BB trabalhou no mencionado estabelecimento comercial até às 21:00 horas, após o que se deslocou para a residência que partilhava com o arguido.

30. Aí chegada, entre as 21:30 horas e as 22:00 horas, o arguido AA, desagradado pelo facto de a assistente não estar em casa com ele e com os filhos sempre que assegurava o último turno da loja, disse-lhe que, ou ela deixava aquele emprego, ou a relação entre ambos não iria durar.

31. BB disse ao arguido que não ia deixar o seu emprego e que não queria mais conversas com ele; todavia, AA insistiu em querer conversar sobre o assunto e disse-lhe que ela estava a optar pelo trabalho, em detrimento da família.

32. A assistente, determinada a não ter a conversa desejada pelo arguido, deslocou-se para a casa de banho a fim de tomar um duche, tendo aberto a torneira e entrado no compartimento respetivo.

33. Em seguida, o arguido entrou no compartimento do chuveiro, vestido, e, fazendo uso das duas mãos, agarrou BB pelo pescoço, exercendo pressão, ao mesmo tempo que dizia, em voz alta, que a mesma não tinha o direito de lhe responder, tendo ainda proferido a seguinte expressão: “- Tu já viste o que tu me obrigas a fazer-te? A culpa disto tudo é tua!”.

34. Como consequência direta e necessária da conduta do arguido, descrita em 33., a assistente sentiu dor no pescoço e falta de ar, bem como sentimentos de pânico, tendo receado pela sua vida e, sofrido, ainda, uma escoriação no pescoço, determinada pela abrasão do fecho de um fio metálico que usava.

35. O arguido cessou, entretanto, a sua conduta e deslocou-se para a sala da residência, na sequência do que a assistente – que não chegou a tomar o duche –, após ter-se vestido, foi ao encontro daquele e disse-lhe, a chorar, que iria a casa da mãe dele, a fim de pedir ajuda.

36. Depois de a assistente ter entrado no respetivo automóvel, o arguido, que a seguira até ao logradouro da residência, desferiu pelo menos dois socos no vidro da porta dianteira esquerda; não obstante, BB logrou tripular o veículo, ausentando-se do local na direção das residências da mãe e da irmã do arguido.

37. Entre as 22:38 horas e as 22:59 horas, o arguido escreveu e remeteu à assistente três mensagens de texto (SMS), com o seguinte teor: “Dou te 10 minutos para tar aqui. Se não vou me embora”, “O relógio tá a contar” e “Fui me embora”.

38. A assistente esteve na residência da irmã do arguido, EE, com quem falou, tendo igualmente interagido com JJ, mãe de AA, que lhe disse para ir para casa e para tratar dos assuntos do casal com o companheiro.

39. Nessa sequência, sentindo-se abalada, a assistente disse a JJ que iria apresentar queixa contra o ora arguido e regressou ao seu automóvel tendo, no trajeto entre as residências da mãe e da irmã do arguido e a sua própria residência, imobilizado o veículo e permanecido no respetivo interior, altura em que leu as mensagens de texto mencionadas em 37., que lhe determinaram receio de que o arguido saísse de casa deixando aí sozinhos CC e DD, que se encontravam a dormir.

40. Nessa altura, EE, na sequência da interação que tivera com BB, deslocou-se à residência do, então, casal, a fim de falar com AA, facto que foi percecionado pela assistente, que viu aquela passar na mesma estrada.

41. Subsequentemente, a assistente e EE entabularam uma comunicação, tendo esta dito àquela que o arguido estava calmo e que podia regressar à habitação, o que BB fez, tendo dormido num quarto separada de AA.

42. Não obstante o descrito em 30. a 41., o casal do arguido e da assistente não se separou, tendo-se reaproximado no decurso do mês de outubro de 2021.

43. No dia 11 de novembro de 2021, durante a hora de almoço, antes das 14:28 horas, o arguido e a ofendida encontravam-se no interior da residência comum, tendo BB recebido, no seu telemóvel e através da aplicação Whatsapp, uma mensagem do pai de um colega do menor CC, de nome KK.

44. AA, apercebendo-se, através da fotografia associada ao perfil do remetente, de que a mensagem fora enviada por um homem, disse à assistente que abrisse a mesma e lhe mostrasse o respetivo conteúdo, o que a mesma recusou fazer.

45. Posteriormente, nesse dia 11 de novembro de 2021, depois das 23:36 horas, a assistente encontrava-se deitada no quarto do casal quando o arguido a interpelou novamente, dizendo que queria que a mesma lhe mostrasse o conteúdo das mensagens trocadas com o aludido indivíduo, na sequência do que BB, segurando o telemóvel, que previamente desbloqueou, numa das mãos, estendeu o correspondente braço na direção de AA, para que este recebesse o aparelho.

46. Ato contínuo, o arguido, fazendo uso das duas mãos, segurou a assistente pelos pulsos e exerceu força, dando-lhe puxões, tendo ainda atingido, com as unhas, a região malar da face lateral esquerda e a face lateral esquerda da raiz do pescoço da assistente.

47. Ao mesmo tempo, o arguido, em tom de voz elevado e dirigindo-se à assistente, disse: “- Deves querer enfiar-me um dedo no rabo, por teres uma racha não te posso bater, mas a minha vontade é meter-te os dentes para dentro. Não mereces ser mãe dos teus filhos. Estás fodida comigo”.

48. Com o barulho, pelo menos o menor CC acordou e começou a chorar, tendo o arguido ido buscá-lo ao respetivo quarto.

49. Já no quarto do arguido e da assistente, AA disse ao menor que a mãe era “uma mentirosa”.

50. Como consequência direta e necessária da conduta do arguido, descrita em 46., resultaram para a assistente, para além de dores nas regiões corporais atingidas, equimoses com 3 cm no pulso direito, equimoses com 2 cm no pulso esquerdo, uma escoriação na face lateral esquerda com 3 cm, na região malar e uma escoriação na face lateral esquerda da raiz do pescoço com 3 cm, lesões que lhe determinaram 7 dias de doença, sem afetação do trabalho geral e/ou profissional.

51. Ainda como consequência direta e necessária da conduta do arguido, descrita em 46. e 47., resultaram para a assistente sentimentos de medo, determinantes de que a mesma tivesse pedido desculpa, sucessivas vezes, durante o episódio, a AA, com o propósito de o mesmo cessar a sua conduta.

52. No dia 14 de novembro de 2021, a hora não concretamente apurada, mas seguramente antes das 09:30 horas, o arguido questionou a assistente sobre a razão de esta ter o seu telemóvel em modo silencioso.

53. Em ato contínuo, o arguido AA, usando um tom de voz elevado, acusou a BB de lhe estar a esconder algo e a mentir.

54. Alertada pelo ruído, a menor DD deslocou-se para o quarto dos pais e correu na direção da assistente; concomitantemente, o arguido AA, agarrou no telemóvel de BB e atirou-o contra a parede do quarto, na sequência do que o ecrã do aparelho se partiu, o que determinou prejuízo patrimonial à sua dona.

55. No mesmo dia 14 de novembro de 2021, pelas 19:30 horas, o arguido e a assistente regressaram a casa após terem conversado num local público; nesse circunstancialismo, AA iniciou uma discussão com aquela, na presença da mãe de BB, que se deslocara ao … a pedido da filha e ali se encontrava, nesse momento, a tomar conta de CC e de DD.

56. Mais tarde, antes das 22:39 horas, o arguido deu início a uma nova discussão pela circunstância de BB pretender ficar a dormir no quarto dos filhos.

57. A fim de fazer cessar a discussão, a assistente decidiu ir para outro quarto, tendo sido seguida por AA que, já no interior dessa divisão, cuspiu para a face de BB, apodando-a, pelo menos, de “nojenta” e de “puta”, após o que saiu do quarto, batendo com a porta.

58. Alertada pelo ruído, a mãe da assistente foi em auxílio dela, na sequência do que o arguido se lhe dirigiu dizendo que “não tinha nada de estar ali”.

59. Na noite de 15 para 16 de novembro de 2021, o arguido AA não permitiu que a mãe da assistente dormisse no interior da habitação, ficando a mesma a pernoitar no interior de um automóvel.

60. Na noite de 16 de novembro de 2021, antes das 22:55 horas, no interior da residência comum, o arguido disse à assistente que a mesma já tinha “abandonado o lar”; nesse mesmo circunstancialismo de tempo e de lugar, AA pegou nas chaves do automóvel de BB e foi procurar os cartões de cidadão dos dois filhos do, então, casal.

61. Percecionando que as chaves do seu automóvel não se encontravam no local onde as deixara, a assistente interpelou o arguido, que estava deitado na cama, mas vestido com a roupa do dia.

62. O arguido devolveu as chaves à assistente e disse-lhe que apenas queria aceder aos cartões de cidadão dos filhos, na sequência do que a mesma lhos exibiu para que o mesmo os fotografasse, o que ele fez.

63. Subsequentemente, a assistente ouviu o arguido a remexer em objetos, bem como se apercebeu de que o mesmo ligara o respetivo automóvel, na sequência do que temeu que ele estivesse a reunir objetos para se ausentar da residência comum com CC e DD, que se encontravam a dormir no respetivo quarto.

64. De seguida, o arguido instou a ofendida acerca da queixa que a mesma apresentara contra ele no dia 14 de novembro de 2021 e disse-lhe: “Não tens provas, não tens poder económico para lutar comigo, tu vais-te foder”.

65. Ato contínuo, BB acionou a Guarda Nacional Republicana para o local, tendo aguardado a chegada dos Militares no exterior da residência, trancada no interior do respetivo veículo.

66. No dia seguinte, 17 de novembro de 2021, a assistente mudou a residência, juntamente com os filhos, tendo ido para a casa dos seus progenitores, em …, após ter recebido aconselhamento, nesse sentido, pela APAV, tratando-se, ainda, da concretização do projeto que já formulara, pelo menos, desde a chegada da sua progenitora ao …, no dia 14 de novembro de 2021.

67. O arguido, ao atuar do modo acima descrito em 3. e 5., agiu livre, deliberada e conscientemente, com o propósito concretizado de molestar o corpo de BB e de lhe produzir as dores verificadas, resultados que o mesmo representou e quis.

68. O arguido, ao atuar do modo supra descrito em 10., 15., 49. e 57. e em 16., 22., 33. e 46., agiu livre, deliberada e conscientemente, com o propósito concretizado de maltratar BB através da moléstia da honra e consideração da mesma e do corpo e da saúde dela, e de lhe produzir as dores e as lesões verificadas, resultados que o mesmo representou e quis, tendo ainda representado que, ao assim agir, bem como ao atuar conforme descrito em 21. e 47., cercearia a assistente na sua autodeterminação, incutindo-lhe receio pela sua vida e integridade física, o que quis e conseguiu.

69. Mais agiu o arguido ciente de que cometia parte dos factos na presença dos filhos de ambos, CC e DD, nascidos em … de 2014 e em … de 2018, respetivamente, e no interior da residência da assistente, o que quis.

70. O arguido sabia que as suas condutas eram proibidas e punidas por Lei Penal.

71. Como consequência direta e necessária das condutas do arguido, a assistente sentiu-se humilhada e diminuída, tendo visto afetada a sua autoestima e o seu equilíbrio emocional.

72. Como consequência direta e necessária da conduta do arguido, a assistente sentiu-se constrangida na sua vida, tendendo a analisar os comportamentos de terceiros, com receio de que a situação vivenciada com AA se repita com outras pessoas.

73. Como consequência direta e necessária da conduta do arguido, após ter ido residir para …, a assistente sentiu, durante um período de tempo não concretamente apurado, mas seguramente anterior a abril de 2023, medo do arguido.

74. A assistente voltou a integrar-se no mercado de trabalho e refez a sua vida amorosa.

75. O arguido nasceu em … de 1983.

76. AA é o primeiro descendente de uma fratria de dois elementos, de um agregado familiar comum estrato socioeconómico mediano e com uma dinâmica relacional que o mesmo caracterizou, perante os serviços de reinserção social, como gratificante em termos psicoafectivos.

77. O arguido tem como habilitações literárias o 9.º ano de escolaridade e fez um percurso de prática desportiva de … desde a infância, com desempenho profissional (federado) até cerca dos 24/25 anos de idade.

78. Exerceu a profissão de … a partir dos 19 anos e gere, em nome individual, desde 2021, o …, sito em …, ministrando também aulas de … e participando em competições … [antes da abertura do …, já se dedicava, desde há alguns anos, a estas atividades, as quais exercia no terreno adjacente à residência da sua progenitora].

79. O arguido reside, com a atual companheira [com quem já namorara durante vários anos e com quem viveu maritalmente um ano antes do estabelecimento de relação marital com a assistente], na morada mencionada em 11., correspondente a uma moradia de tipologia V2, com adequadas condições de habitabilidade e de sua pertença, prédio que adquiriu com recurso a um empréstimo bancário, cuja amortização mensal ascende a cerca de 400,00€.

80. O arguido aufere mensalmente cerca de 1000,00€ e tem dívidas (cujo montante não foi apurado) a fornecedores relacionadas com a construção do …, movimentando-se num quadro económico de contenção de despesas.

81. O arguido mantém relação de proximidade com os elementos do agregado de origem (mãe e irmã), residentes na mesma área.

82. O arguido manifesta sentimentos de penosidade pelo facto de não poder acompanhar de forma próxima o quotidiano dos dois descendentes, cuja residência se encontra fixada junto da mãe. Atualmente, nos períodos letivos, as visitas entre o arguido e os filhos assumem caráter quinzenal, aos fins de semana, tendo o direito de estar juntos, também, em períodos de férias.

83. Inicialmente, após a separação do casal do arguido e da assistente e até novembro de 2022, o arguido visitava os descendentes, semanalmente, em …, mediante supervisão da Comissão de Proteção de Crianças e Jovens; em novembro de 2022, concluiu-se o processo de regulação do exercício das responsabilidades parentais dos menores e os contactos entre o arguido e os filhos decorreram, na globalidade, normativamente.

84. O arguido possui hábitos de trabalho e é muito dedicado ao projeto …, sendo detetadas referências sociais estigmatizantes.

85. Pese embora AA denote adequada atitude crítica relativamente ao bem jurídico em causa, o mesmo focaliza o seu discurso nas responsabilidades (ou intenções materialistas) da assistente, bem como na penosidade emocional vivenciada pelos descendentes e/ou por si próprio, causadas pela distância física que a separação do casal determinou.

86. Após a separação do casal do arguido e da assistente, a existência de tensão relacional entre ambos manteve-se apenas no âmbito de questões relacionadas com os descendentes.

87. O arguido não possui averbamentos no seu Certificado do Registo Criminal.

*

FACTOS NÃO PROVADOS

Com relevância para a decisão a proferir, não se provaram outros factos, designadamente, que:

a. O arguido e a assistente tenham passado a viver em viver em comunhão de cama, mesa e habitação, como se de marido e mulher se tratassem, apenas no ano de 2013;

b. O descrito no ponto 3. dos factos julgados provados tenha ocorrido apenas depois da discussão e após a assistente diligenciar por serenar tal diferendo;

c. Em cada um dos dois momentos descritos no ponto 5. dos factos julgados demonstrados, o arguido tenha desferido concretamente duas chapadas na face da assistente;

d. O arguido não aceitasse que a assistente trabalhasse e contactasse com público, por sentir ciúmes;

e. A assistente se haja despedido em fevereiro de 2020 porque AA a convenceu;

f. O descrito nos pontos 11. a 18. dos factos julgados provados tenha concretamente ocorrido no final de junho de 2021 (excluindo o mês de julho do mesmo ano) e que fossem cerca das 00h00 quando a assistente se deslocou para a casa de banho;

g. Aquando do descrito no ponto 22. dos factos julgados demonstrados, o arguido tenha encostado a assistente ao armário do quarto e que haja dito a esta que não valia a pena fazer jogo psicológico com ele em relação aos filhos;

h. Na situação descrita nos pontos 19. a 24. dos factos julgados provados, o arguido tenha pontapeado objetos logo que chegou à residência, acompanhado da assistente;

i. Na mesma situação, o arguido apenas haja procedido conforme descrito no ponto 22. dos factos julgados demonstrados depois de ver BB a fazer uma mala para sair da habitação onde ambos viviam;

j. Na sequência da manifestação de vontade mencionada no ponto 25. dos factos julgados provados, o arguido rejeitou tal hipótese, dizendo-lhe que eram uma família, culpando a ofendida BB de todos os males ocorridos na relação;

k. Aquando do descrito no ponto 33. dos factos julgados demonstrados, o arguido tenha encostado a assistente à parede e levantado a mesma, estrangulando-a;

l. Nessa ocasião, o arguido haja dirigido à assistente, concretamente, a expressão: “tu não és ninguém para me dar uma ordem, tu é que me provocas por isso é que eu sou agressivo”;

m. O arguido apenas tenha cessado a conduta descrita no ponto 33. dos factos julgados provados quando a ofendida já estava a entrar em asfixia;

n. Que o arguido tenha dito à assistente que se saísse para pedir ajuda, sairia atrás dela, deixando os filhos sozinhos no interior da residência logo aquando do descrito no ponto 35. dos factos julgados demonstrados;

o. A situação descrita nos pontos 45. a 51. dos factos julgados provados se haja iniciado entre as 23:30 horas e as 23:36 horas, que o arguido não haja encontrado no telemóvel da assistente o que procurava e que aquele haja atirado esta para a cama, bem como que também a menor DD haja acordado e começado a chorar;

p. O descrito no ponto 52. dos factos julgados demonstrados tenha ocorrido, concretamente, pelas 08:30 horas e que, em ato contínuo, o arguido haja dirigido à assistente as seguintes expressões: “Tu vais-te foder, vou-te infernizar até ao final dos teus dias, vais ter uma vida de merda, não tens poder económico para lutar comigo”;

q. O descrito no ponto 56. dos factos julgados provados tenha ocorrido, concretamente, pelas 21:30 horas;

r. Aquando do descrito no ponto 57. dos factos julgados demonstrados, o arguido tenha dirigido à assistente, concretamente, as seguintes palavras: “vais-te foder, puta de merda”;

s. O descrito no ponto 27. dos factos julgados demonstrados tenha ocorrido no dia 15 de novembro de 2021;

t. O arguido tivesse ciúmes da assistente por ela ter um curso superior;

u. A assistente só se sinta segura se o arguido for preso;

v. A assistente tenha constantemente na sua cabeça a imagem de ver as mãos do arguido na sua direção, acordando de noite com pesadelos;

w. A assistente tenha sentido vergonha e/ou de pedir ajuda;

x. A assistente se tenha sentido culpada pelas condutas empreendidas pelo arguido, apuradas.

*

MOTIVAÇÃO DA DECISÃO DE FACTO

A convicção do Tribunal, no que respeita aos factos provados, estribou-se, concreta e globalmente, na análise crítica e conjugada do conjunto da prova produzida e examinada em audiência de julgamento, a qual foi apreciada segundo as regras da experiência, da livre convicção do julgador (art. 127.º do Código de Processo Penal) e da normalidade do acontecer.

Estribou-se igualmente a convicção do Tribunal na prova pericial produzida, a qual foi valorada com respeito do disposto no art. 163.º, 1 e 2, do Código de Processo Penal, conforme infra melhor se expenderá.

Começar-se-á por dizer que, produzida que foi a prova por declarações (do arguido e da assistente/demandante) bem como testemunhal, evidenciaram-se claras e manifestas contradições, sendo, por um lado, inequívoco que o arguido e a assistente veicularam versões dos factos discrepantes e inconciliáveis entre si e, por outro, que as testemunhas inquiridas em julgamento não só não corroboraram, de forma precisa, concordante, nenhuma daquelas versões, como revelaram estar, de modo geral, amplamente comprometidas com aqueles que julgam ser os interesses, ora de AA, ora de BB.

Neste circunstancialismo, decidiu o Tribunal que o afastamento das dúvidas suscitadas, em ordem à sempre almejada cabal descoberta da verdade e boa decisão da causa, apenas poderia fazer-se mediante a submissão do arguido e da assistente a perícia psiquiátrica/sobre a personalidade, perícias que foram efetivadas.

Não se pode deixar de expressar (o que nunca poderia, porém, antecipar-se, estando ainda a decorrer a audiência de julgamento) que, contrariamente ao que viria a ser aventado pela defesa do arguido, aquando da prolação do despacho em causa, o Tribunal não estava, dizendo-o de uma forma muito prosaica, “perdido”, “às escuras”, relativamente à integralidade do objeto processual, mormente, tendo em vista a prova documental que foi junta no decurso da audiência de julgamento, à qual infra faremos referência.

Quis o Tribunal, outrossim – até, atenta a postura assumida pelo arguido, que se apresentou como sendo vítima de um plano urdido pela assistente, tendente a, por via do presente processo, conseguir locupletar-se com quantias a que não lograra aceder anteriormente, por nunca terem chegado a consumar o casamento outrora prometido e inexistirem bens a partilhar na sequência da separação –, certificar-se de que inexistiam razões, objetivas e objetiváveis, devidamente verificadas e relatadas por pessoa com conhecimentos científicos bastantes, para colocar em crise a credibilidade que as declarações prestadas por BB mereceram (atenta a postura calma, serena, que apresentou e a forma, que se nos afigurou, globalmente, sincera, como relatou as situações que disse ter vivenciado, sendo marcada a espontaneidade das suas respostas, a coerência e pormenorização do discurso que empregou, a emoção exteriorizada e a consistência do seu relato, pela compatibilidade com a prova documental, por declarações para memória futura prestadas pelo menor CC e pericial, produzida em sede de inquérito).

E, realizado que foi o exame de perícia à personalidade da assistente, foi junto aos autos o respetivo relatório [referência …, de 23.01.2024], do qual resulta, entre o demais, que:

- O relatório baseou-se no estudo e análise integrada dos elementos do processo, que foram facultados à Exma. Perita Psicóloga sua subscritora e na avaliação psicológica da assistente, tendo sido utilizada, como metodologia, a entrevista clínico-forense e avaliação instrumental;

- Essa avaliação instrumental foi efetuada com recurso aos seguintes instrumentos de avaliação psicológica: Symptom Checklist 90- Revised (SCL-90-R), Impact of Event Scale-Revised (IES-R), Inventário da Violência Conjugal (IVC) e Escala de Crenças de Violência Conjugal (ECVC) – todos para avaliação de sintomatologia – e Inventário Multiaxial de Millon III (MCMI-III) – para avaliação de personalidade;

- Do relatório consta o relato dos factos que foi efetuado pela examinanda perante a Exma. Perita, sendo o mesmo condizente, em todos os aspetos essenciais, com a descrição efetivada em sede de audiência de julgamento, evidenciando-se, assim, que a assistente não produz alterações no seu relato das situações consoante a entidade que a questiona;

- A ofendida relata ter sido vítima de maus-tratos físicos e psíquicos perpetrados pelo arguido, a referir maus-tratos emocionais (referido mais do que uma vez, impedir o contacto com outras pessoas, insultar, difamar, humilhar, gritar, ameaçar para meter medo, danificar objetos pessoais para meter medo), bem como atos de maus-tratos físicos (referido mais do que uma vez, apertar o pescoço, atirar com objetos à própria, empurrões violentos e referido uma vez, puxar o cabelo e dar uma sova). Ao longo do seu discurso, demonstra afetos congruentes com o discurso [resposta ao quesito 1) A ofendida relata e demonstra comportamentos que denunciem ter sido vítima de maus tratos físicos e/ou psíquicos perpetrados pelo arguido? - na afirmativa, quais?];

- Existe concordância entre os factos relatados e as emoções demonstradas pela examinanda, o que não nos permite afirmar se foram vivenciados ou não [resposta ao quesito 2) Os factos verbalizados pela ofendida e imputados ao arguido aparentam ter sido vivenciados?];

- Não denotam ter sido induzidos ou imaginados, dado que a mesma apresenta juízo critico pleno [resposta ao quesito 3) Ou denotam ter sido induzidos/ imaginados?];

- Apesar do descrito no passado, considera-se que não existe sintomatologia clínica associada às situações relatadas, sugerindo que os seus fatores protetores, como familiares, sociais e de personalidade, permitiram uma adaptação à situação, não existindo atualmente impacto na vida pessoal, familiar, social e profissional [resposta ao quesito 4) Tais factos afetaram psíquica e mentalmente a ofendida?];

- A ofendida apresenta capacidade para testemunhar com verdade sobre os factos em apreço [resposta ao quesito 6), pois o 5) não foi respondido, por não aplicável].

Resulta, pois, da perícia psicológica que existe concordância entre os factos relatados e as emoções demonstradas pela examinanda – obviamente, a Exma. Perita, não sendo testemunha presencial dos factos integradores do objeto do processo nem lhe sendo legítimo usurpar as funções do julgador, não pode atestar que os factos ocorreram –, o que é de molde a afastar a existência das ditas razões, objetivas e objetiváveis, que fossem aptas a colocar em crise o juízo positivo que as declarações prestadas por BB, atentas as suas características, nos mereceram. É que, diz-nos a literatura que, no âmbito das perícias psicológicas, a discordância entre os factos relatados pelo examinando e as emoções por ele demonstradas é fator decisivo na consideração, pelo perito, de que tais factos não terão sido, com elevada probabilidade, efetivamente vivenciados. In casu, o que temos, é precisamente o inverso.

Centrando-nos, por outro lado, no teor do relatório da perícia psiquiátrica/psicológica efetuada à pessoa do arguido [referência …, de 01.03.2024], temos que ali se refere, entre o demais, que “O examinado refere os eventuais factos ocorridos e descritos no processo de modo coerente e conexo” (não sendo dado ao Tribunal acesso ao que relatou ao Exmo. Perito subscritor), concluindo-se que:

- O examinado não apresenta sintomatologia do foro mental que permita realizar qualquer diagnóstico de patologia mental, codificável na International Classification of Diseases and Related Health Problems, Tenth Revision (ICD-10);

- Da avaliação do seu estado mental no momento resulta apresentar capacidade de distinguir o bem/mal, lícito/ilícito, querer/poder, e de se conseguir autodeterminar segundo essa avaliação, sendo que seria essa a sua condição clínica na altura da ocorrência dos factos de que está indiciado;

- O arguido não apresenta traços de personalidade ou patologia que potenciem atos de natureza controladora, manipuladora, persecutória e /ou impulsiva;

- O arguido não apresenta traços de personalidade ou patologia que potenciem, vitimização, efabulação ou invenção de factos;

- O arguido não apresenta traços de personalidade ou patologia que potenciem atos de heteroagressividade;

- Os factos verbalizados pelo arguido (a versão por este apresentada) não aparenta ter sido imaginada/efabulada, pois que refere os eventuais factos ocorridos e descritos no processo de modo coerente e conexo.

Ora, as conclusões a que o Exmo. Perito chegou quanto a traços de personalidade que potenciem atos de heteroagressividade são postas em crise, desde logo, pelo próprio arguido nas mensagens que enviou à assistente, juntas aos autos, em que o próprio se reconhece como sendo agressivo e admite ter tido comportamentos que não devia ter tido, entre os quais se incluem apertões, em duas ocasiões, no corpo da assistente; neste sentido, basta atentar no teor das seguintes mensagens: “Eu sei que sou agressivo e não devia. Mas o meu saco também enche. Não sou de ferro. Desculpa. (…)” (01.09.2021); “Sabes BB. Eu assume e não há nada que justifique. Mas não te fiz o que o meu pai fazia nem pretendo fazê lo. Há muita coisa que me leva a ser assim. (…) Mas olha eu quero colocar a cabeça no sitio. Que não falte nada ao CC e à DD e o resto não vale apena sermos repetitivos. Não te pedi desculpa mas demonstrei te é disse te que perco razão e nada justifica o que fiz” (04.10.2021, quando confrontado pela assistente nos seguintes termos: “Sabes antes punha as minhas mãos no fogo por ti e jamais pensei que te tornasses na pessoa que sempre disseste que não serias (igual ao teu pai kd agredia a tua mãe) não te reconheço kd tens estas atitudes agressivas cmg e nem sequer consegues fazer um pedido de desculpa (não é que seja perdoavel) assumir que estiveste errado tu assumes mas não és capaz de me pedir desculpa a olhar nos meus olhos. Qd dizes que ainda me amas não percebo esse tipo de amor, e se já não amas não sei pk não consegues assumir. Tu destruiste o amor incondicional que tinha por ti no primeiro dia que me apertaste o pescoço e vi a raiva no teu olhar como se eu fosse uma coisa desprezível para ti.”; “Não te vou fazer mais mal por causa das tuas opções. Faço o que posso e pronto.” (05.10.2021); “Fiz algo que não se faz Sim. Mas não te tratei mal durante 12 anos. Sempre te demonstrei o que queria fazer no futuro enfim. (…) Eu agi mal mas tenho continuado a ser a mesma pessoa. (…)” (06.10.2021); “Eu fiz mal Sim não devia te lo feito (…)” (06.10.2021, quando confrontado pela assistente nos seguintes termos: “(…) Eu sempre estive ao teu lado és um ingrato ao dizeres isso eu sempre estive aqui e jamais me recusei a abdicar do que quer k fosse em prol da nossa família, apenas comecei a mudar há 1 mês atrás quando me apertaste o pescoço pela primeira vez e me fizeste ter medo de ti. agora com a segunda vez pões em questão eu continuar aqui e aceitar a tua violência para cmg a mãe dos teus filhos já nem falo em tua mulher... Achas que é humano continuares a pensar que o amor consegue suportar tudo isto? Se fossem só palavras mas não... Como queres que consiga superar isto e ainda por cima com a tua frieza perante tudo parece que não consegues cair em ti e ver as coisas”); “(…) Eu procedi mal sim e peço desculpa por isso mas tu também me dizes coisas e tens tido atitudes que não merecia. (…) Eu procedi mal mas não te bati (…)” (09.10.2021); “Não te bati e sim falo alto. Também me agredis te mas de formas diferentes” (09.10.2021); “Se queres continuar a pensar no que te fiz então também vais ter de pensar o que me fizes te disses te (…) Não te bati. Muito ao contrário do que fizes te nos … (…) Apertei te para ver se acordas pá vida tens dois filhos não tens vinte e poucos anos. Agora se queres começar tudo de novo tudo bem” (09.10.2021); “O que te fiz não é agredir. Apertei te apenas. Agressão é o que tu me fizes te há uns anos (…)” (09.10.2021, quando confrontado pela assistente nos seguintes termos: “Eu decidi voltar para aqui pk? Pk tu me agrediste a primeira vez e eu senti-me humilhada maltratada despresada como mulher e não queria continuar como se nada me tivesses feito ali a abdicar de ter um trabalho um dia kker te dar na cabeça em me mandares um pontapé no cu e dp que era feito de mim sem trabalho e sem nada? Nos últimos meses não me procuras sais até às 4 da manhã não queres dar justificação de nada e vens me falar de planos do futuro? Claro que tens de viver assim como sempre o fizeste e nunca abdicas te de nada para ficar com os filhos em casa pois eu sempre estive lá ou a tua mãe…”).

Por outra lado, manifesto é que o arguido, contrariamente ao afirmado no relatório pericial em análise, relata factos falsos, designadamente, quando afirma que entre os dias 14 e 17 de outubro de 2024, a assistente não evidenciava quaisquer lesões físicas visíveis (e que não fora ele quem as produzira, conforme por ela relatado, no dia 14 de novembro). Para assim concluir, basta atentar no teor do Auto de Denúncia de fls. 191 e seguintes, datado de 14.11.2021, pelas 14:17 horas, do qual consta expressamente que “por apresentar indícios, foi a vítima notificada para ser presente a exame direto”, para comparecer no dia 16.11.2021, pelas 14:00 horas no Gabinete Médico-Legal do Centro Hospitalar ….; e, vista a notificação que está a fls. 202, constata-se que o Militar Autuante LL percecionou lesões no lado esquerdo da face e no pescoço da assistente, o que aí fez constar expressamente; de modo concordante, temos o Relatório da Perícia de Avaliação do Dano Corporal em Direito Penal de fls. 170 a 171-verso, datado de 16.11.2024, do qual flui a existência de lesões observadas, concluindo-se, aí, que terão resultado de traumatismo de natureza corto contundente que é compatível com a informação prestada pela examinanda (de que teriam sido efetivadas em 11.11.2021, por agressão com apertão, bofetadas, murros e unhadas infligidas pelo companheiro).

O juízo científico postulado pelo relatório da perícia efetuada ao arguido, no que tange à veracidade do relato factual efetivado por ele em sede de audiência de julgamento está, pois, para este Tribunal, radical e inexoravelmente afastado, quer pela demais prova pericial produzida, quer pela prova documental constante dos autos, nos termos e com os fundamentos mencionados, não sendo, por isso, apto a colocar em crise a credibilidade que as declarações prestadas pela assistente nos mereceram [sendo certo que esta também relatou os factos “de modo coerente e conexo”].

Não é de estranhar, todavia, que se conclua, naquele relatório, que o arguido não revela traços de personalidade ou patologia que potenciem vitimização, efabulação ou invenção de factos, posto que do contacto direto com a pessoa de AA, bem como da leitura atenta de todas as mensagens por ele escritas e enviadas à assistente, constantes dos autos, flui que o mesmo, de acordo com a sua particular mundividência, está realmente convicto de que “apertar” o corpo da assistente é, muito mais do que uma sevícia corporal, uma forma de “acordá-la”, de fazê-la ver que a sua própria (a de BB) mundividência não é a mais acertada e de que não tem razões para se queixar do companheiro e da vida que este lhe proporciona, nem devia ter vontade de manter um emprego com horários que prejudicam o convívio com a família e que a afastam dos objetivos que foram traçados por ele, sobretudo relacionados com o seu próprio crescimento profissional, enquanto … e empresário em nome individual.

Isto posto.

A convicção sobre a materialidade vertida no ponto 1. dos factos julgados demonstrados fluiu, desde logo, das declarações prestadas pelo arguido e pela assistente, em conformidade.

O vertido no ponto 2. fluiu do teor dos assentos de nascimento juntos a fls. 104 e 105.

Para consignação do vertido nos pontos 3. a 6., valoraram-se as declarações prestadas pela assistente, com as características mencionadas, nessa conformidade, não tendo merecido um juízo positivo acerca da respetiva credibilidade as declarações do arguido, na medida em que referiu ter sido apenas BB quem desferiu uma bofetada sobre o seu rosto.

A convicção sobre os factos vertidos nos pontos 7. a 9. e 28. (2.ª parte) flui, igualmente, declarações prestadas pela assistente, com as características referidas, nessa conformidade, declarações que foram igualmente confirmadas pelo arguido e pela testemunha MM (gerente do estabelecimento comercial em causa, a qual esclareceu os períodos em que BB aí trabalhou).

Para consignação da factualidade constante do ponto 10., valoraram-se igualmente as declarações prestadas pela assistente nessa mesma conformidade, tendo a mesma contextualizado o seu relato, explicando que o arguido se revelava insatisfeito com a prestação dela na limpeza da residência comum (o que está, aliás, também espelhado nas mensagens trocadas entre ambos, juntas aos autos) e que atribuía o facto de não ser suficientemente briosa nesse conspecto àquele outro facto, de passar os dias em casa a “falar”, nas redes sociais, com outros homens.

A convicção quanto à materialidade descrita sob os pontos 11. a 18. flui, por seu turno, da conjugação das declarações prestadas pela assistente, com as características referidas, nessa mesma conformidade, conjugadas, ainda, com o teor das declarações para memória futura prestadas, em 20.01.2022, pelo menor CC (as quais estão gravadas e transcritas a fls. 464-verso a 471-verso dos autos). Com efeito, BB descreveu, com assertividade e de modo escorreito, tal factualidade; o menor, veiculou ter acordado com o barulho de uma discussão e ter ouvido a sua mãe a chorar; e ter observado, posteriormente, que a mãe tinha o edema na testa. As declarações, negatórias dos factos, prestadas pelo arguido, acompanhadas das fotografias juntas aos autos – que pretendem demonstrar a impossibilidade da verificação do relatado pela assistente –, não colhem nem colocam em crise a convicção estribada naqueloutros meios de prova, bastando, para concluir pela inutilidade do documentado pelas fotografias que, para ser atingida pela porta na testa, a assistente apenas teria de ter a cabeça numa posição avançada face às mãos e aos pés, o que a mesma disse ter sucedido.

No que concerne aos factos descritos sob os pontos 19. a 24., estribou-se a convicção nas declarações prestadas pela assistente nessa mesma conformidade, conjugadas com o teor das mensagens trocadas entre BB e o arguido, juntas aos autos, entre as quais se contam as acima transcritas; delas, flui, à saciedade, que o arguido “apertou” a então companheira, o que o mesmo por várias vezes admite, quando confrontado.

Também o vertido nos pontos 25. a 27. flui, precisamente, do teor dessas mensagens, juntas aos autos. Quanto à data da receção, pela assistente, da mensagem mencionada em 27., valorou-se também a análise que se fez, em sede de audiência de julgamento, do conteúdo do telemóvel de BB, que a mesma exibiu.

No que tange ao constante da 1.ª parte do ponto 28. e nos pontos 29. a 41., a convicção estribou-se na análise crítica e conjugada, à luz das regras da experiência comum, do teor das mensagens trocadas entre a assistente e o arguido, juntas aos autos (e já acima transcritas), com as declarações prestadas por BB, em conformidade; quanto a estas, especificar-se-á que apenas não foram consideradas na formação da convicção – que não pode deixar de ser isenta de dúvida razoável – na medida em que a assistente relatou ter ficado suspensa pelo pescoço, por alguns segundos (que disse não saber precisar mas que não excederiam os 10) e que o arguido apenas a pousou quando percecionou que a mesma estava a entrar em asfixia. Não cremos que BB haja, deliberadamente, faltado à verdade, nesta parte, nas declarações que prestou (nada inculca essa conclusão, posto que prestou, invariavelmente e quanto ao demais, declarações isentas de exageros); estamos, outrossim, convictos de que, atento o inusitado da situação, o pânico e a dificuldade em respirar que a conduta do arguido lhe determinou, ter-se-á convencido de que chegara a levantar os pés do chão; mas a probabilidade de assim ter sido é, efetivamente diminuta, sabendo-se que, caso tivesse sido suspensa pelo pescoço, teria, muitíssimo provavelmente, sofrido lesões associadas à constrição dos vasos do pescoço que não sofreu, conforme disse; bem como teria, com elevada probabilidade, perdido os sentidos, o que também não ocorreu. Termos em que, neste preciso conspecto, não ficou o Tribunal convicto do declarado pela assistente [tendo-se consignado tal materialidade, adianta-se, como não demonstrada sob as als. k. e m.].

Dir-se-á que a versão veiculada pelo arguido não nos mereceu acolhimento, posto que se revela, em si mesma considerada, totalmente inverosímil, à luz das regras da lógica e da experiência. Com efeito, reportou AA que, na data em referência, quis efetivamente conversar com BB, para sensibilizá-la a encontrar uma ocupação profissional que lhe não impusesse laborar por turnos rotativos, o que a mesma recusou fazer, deslocando-se para a casa de banho; mais disse o arguido que, tendo ido no encalço dela, com vista a assegurar que a conversa era mantida, foi molhado, pela então companheira, num dos lados da face e de um braço, com a água do chuveiro, o que determinou que, para sua proteção, lhe tivesse “tocado”. Ora, a versão do arguido (infirmada pelas mensagens que o mesmo escreveu à assistente, nomeadamente, quando confrontado com um primeiro e um segundo apertão no pescoço, nas quais apenas nega ter “batido” e diz saber que procedeu incorretamente) nenhum sentido, como é bom de ver, faz! Nem justificaria que a assistente saísse da sua casa e fosse procurar ajuda a casa da mãe dele, conforme fez.

Nessa parte, releva igualmente dizer que os depoimentos prestados pelas testemunhas JJ e EE, mãe e irmã do arguido, respetivamente – as quais relataram que a assistente não revelou qualquer lesão no pescoço, apenas disse ser “vítima de violência doméstica” sem especificar qualquer atuação empreendida pelo arguido, e fingia chorar, sem que vertesse lágrimas, tendo ainda a segunda declarado ter-se deslocado a casa do irmão não obstante não tivesse acreditado que o mesmo podia não estar calmo – não mereceram credibilidade [evidenciando-se absolutamente tendenciosos e comprometidos com a defesa da posição e dos interesses de AA], tendo sido, desde logo, contraditados pelas mensagens que aquele trocou com a então companheira, nos termos expostos.

Impôs-se, pois, julgar conforme se fez.

A convicção acerca do descrito no ponto 42. fluiu, desde logo, do teor das mensagens mantidas entre o arguido e a assistente (SMS e através da plataforma Whatsapp), constantes dos autos, referentes ao período que antecedeu o dia 11 de novembro de 2021, resultando manifesto, delas, que AA e BB registaram uma aproximação física e sentimental nessa altura.

Para consignação da materialidade descrita sob os pontos 43. a 51., valoraram-se, conjuntamente, as declarações prestadas, em conformidade, pela assistente, o teor das mensagens trocadas por ela com AA (SMS e através da plataforma Whatsapp), acabadas de mencionar, o teor do Auto de Denúncia de fls. 191 e seguintes, datado de 14.11.2021, no qual é referido que “por apresentar indícios, foi a vítima notificada para ser presente a exame direto”, para comparecer no dia 16.11.2021, pelas 14:00 horas no Gabinete Médico-Legal do Centro Hospitalar …, o teor da notificação de fls. 202 e o teor do Relatório da Perícia de Avaliação do Dano Corporal em Direito Penal de fls. 170 a 171-verso, datado de 16.11.2024, do qual flui que o Exmo. Perito Médico seu subscritor observou as lesões ali descritas, concluindo que terão resultado de traumatismo de natureza corto contundente que é compatível com a informação (de que teriam sido efetivadas em 11.11.2021, por agressão com apertão, bofetadas, murros e unhadas infligidas pelo companheiro).

Neste conspecto, releva assinalar que nada permite sequer colocar a hipótese de que um terceiro, que não o arguido – a pessoa que estava em conflito com a assistente porque a mesma se negara a revelar-lhe o teor de mensagens que teria trocado com outro indivíduo – pudesse ter provocado tais lesões no corpo da assistente; nem a prova produzida o sugere e muito menos consente. Certo é que as lesões não foram autoinfligidas, contrariamente ao sugerido pela defesa do arguido, pois que tal não deixaria de ser percecionado pelo Exmo. Perito Médico que observou a assistente no dia 16.11.2021.

Temos, pois, como segura a verificação dos factos em análise, não colhendo credibilidade a versão veiculada pelo arguido, de que não seviciou, corporal ou psicologicamente, BB (posto que apenas admitiu o vertido nos pontos 48. e 49.].

Para consignação da materialidade inserta nos pontos 52. a 54., valoraram-se as declarações prestadas, em conformidade e com as características mencionadas, pela assistente. O arguido, por seu turno, não deixou de admitir os factos, exceto no que tange ao modo como o telemóvel se quebrou, posto que disse – sem que a sua afirmação haja sido merecedora de credibilidade – que BB quis entregar-lhe o telemóvel e ele recusou, tendo quase inadvertidamente dado uma ligeira pancada na mão da, então, companheira, determinante da queda do aparelho ao solo.

No que tange aos factos vertidos nos pontos 56. a 58. (que o arguido negou apenas na parte em que assumem relevo criminal), conjugaram-se as declarações prestadas, em conformidade, pela assistente, com o depoimento prestado, nessa parte, pela testemunha GG, mãe de BB e, bem assim, com o teor da mensagem enviada à assistente, pelo arguido, através da plataforma Whatsapp, às 22:39 horas desse dia 14.11.2021 [com o seguinte teor: “[14/11/2021, 22:39] : “…Conseguis te BB. Fazer perante um erro teu que pedis te apenas desculpa no sofá. Não me procuras te para me dar uma explicação. Fui eu que dia após dia errando na forma de falar por me sentir atraiçoado enganado que procurei saber do que se passou. Metes te quase toda gente dentro do assunto para te explicares primeiro e livrar os outros de pensarem ou julgarem te. Em troca o que se vai ganhar é separação por falta de tua consciência perante este assunto. Tu eras te mas no fim sou eu o culpado. Tudo bem é assim que queres é assim que vais ter, nqo foste capaz de ser mulher ao ponto de assumir também os teus erros.”.].

A convicção quanto ao vertido no ponto 59. radicou-se nas próprias declarações do arguido, que a aceitou.

No que tange ao descrito sob os pontos 60. a 66., radicou-se a convicção na análise crítica e conjugada das declarações prestadas, em conformidade, pela assistente, com o teor das mensagens trocadas por BB com a testemunha FF no dia 16.11.2024, documentadas nos autos [as quais foram transcritas, a partir do aparelho detido por esta testemunha, por Exmo. Funcionário Judicial em exercício de funções no Juízo Local Criminal de .., onde a testemunha se apresentou a fim de ser inquirida através de videoconferência] e com o teor do Aditamento ao Auto de Notícia de fls. 92 e seguintes, datado de 17.11.2021, 00:10 horas [este, apenas na medida em que atesta a deslocação dos Militares HH e II à residência então partilhada pelo arguido e pela assistente.

Os factos constantes dos pontos 67. a 70. correspondem aos elementos típicos subjetivos dos ilícitos de ofensa à integridade física simples e de violência doméstica agravado e, no que respeita à prova da intenção com que o arguido atuou, dir-se-á que a mesma flui da materialidade objetiva demonstrada, analisada à luz das regras da lógica e da experiência, impondo-se concluir que o arguido agiu, sempre, conforme quis, isento de qualquer coação ou outro tolhimento da sua vontade, tendo representado e querido o resultado das condutas que livremente empreendeu, ciente de que, com elas, colocava em crise a dignidade da pessoa de BB, sua companheira, conhecedor, ainda, de que parte dos factos foram por si praticados na presença dos descendentes menores e, sempre, no interior da residência comum; inequívoco é, ainda, que AA conhecia, como não podia deixar de conhecer, o carácter proibido das suas condutas, podendo e devendo ter atuado em conformidade com a Lei.

A convicção sobre o vertido nos pontos 71. a 74. fluiu das declarações prestadas pela assistente, nessa conformidade.

Para consignação da materialidade constante dos pontos 75. A 86., valoraram-se, conjugadamente, o teor do assento de nascimento do arguido constante de fls. 331, do relatório social elaborado pela Direção-Geral de Reinserção e Serviços Prisionais de fls. 513-verso a 515, em articulação, ainda, com as declarações prestadas pelo arguido nesta sede.

Por fim, a ausência de antecedentes criminais do arguido fluiu da análise do teor do Certificado do Registo Criminal, constante dos autos.

Revertamos, agora, à materialidade julgada não demonstrada.

No que tange ao inserto nas alíneas a., b., d., e., h., i., l., n., o. e s., da prova produzida em sede de audiência de julgamento resultou coisa diversa, nos termos acima expostos.

Quanto ao vertido nas als. c. e f., a prova não consente afirmá-lo com segurança, posto que, nas declarações que prestou, a assistente referiu terem sido “uma ou duas” chapadas – não tendo certeza –, bem como, quanto aos factos ocorridos no início do verão de 2021, não poder asseverar se ocorreram ainda no mês de junho ou já em julho. Nenhuns outros subsídios probatórios foram recolhidos nestas matérias.

Quanto ao julgado não demonstrado sob as alíneas g., j., p., q. r., t., u., w., v. e x., nenhuma prova se fez.

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Consigna-se, em aditamento ao que acima se deixou consignado que, atenta a contraditoriedade da prova testemunhal produzida, a convicção do Tribunal não se radicou, por si só, em qualquer depoimento prestado.

E, a convicção formada em qualquer sentido, acima explicitada, também não foi infirmada por qualquer dos depoimentos prestados pelas testemunhas inquiridas, identificadas nas atas das várias sessões da audiência de julgamento, ademais, tendo em conta a natureza da factualidade integradora do objeto do processo, cujo (correto) conhecimento é muitas vezes reservado às pessoas que diretamente a vivenciaram.

Reitera-se que, de um modo geral, as testemunhas inquiridas, ou revelaram dificuldades na descrição e circunstanciação (mormente, temporal) dos factos de que disseram ter tomado conhecimento ou, revelaram-se absolutamente comprometidas com a posição de um ou de outro dos sujeitos processuais, arguido e assistente. Assinala-se e particulariza-se, neste conspecto, ter sido manifesto que as testemunhas HH e II, Militares da Guarda Nacional Republicana, faltaram à verdade quando asseveraram que a assistente não tinha lesões visíveis e/ou que as não evidenciava aquando da sua deslocação à residência em referência nos autos; com efeito, conforme se disse, as lesões foram verificadas pelo Exmo. Perito Médico do GML na tarde do próprio dia 16.11.2021 e consideradas compatíveis com a descrição da sua etiologia; pelo menos a lesão provocada pela unhada na zona malar esquerda da assistente não podia deixar de ser visível, sendo, pois, manifesta a inutilidade dos depoimentos em referência.

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Relativamente ao demais vertido no libelo acusatório e/ou no pedido de indemnização civil, que se não julgou como provado, nem como não demonstrado, estão em causa, em nosso entendimento, factos irrelevantes para a decisão, juízos de valor, conclusões ou meros conceitos jurídicos.

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III - ENQUADRAMENTO JURÍDICO DOS FACTOS

Assentes que estão os factos, cumpre, agora, aferir se, dos mesmos, emerge qualquer responsabilidade jurídico-penal para o arguido.

Ao arguido foi imputada, na acusação pública (acompanhada pela assistente) a prática, em autoria material, sob a forma consumada, de um crime de violência doméstica, p. e p. pelo art. 152.º, 1, b), 2, a), do Código Penal, na redação conferida pela Lei n.º 57/2021, de 16/08, vigente à data da prática dos factos.

Dispõe o n.º 1 do art. 152.º do Código Penal, na aludida redação, que:

“Quem, de modo reiterado ou não, infligir maus tratos físicos ou psíquicos, incluindo castigos corporais, privações da liberdade, ofensas sexuais ou impedir o acesso ou fruição aos recursos económicos e patrimoniais próprios ou comuns:

a) (…);

b) A pessoa de outro ou do mesmo sexo com quem o agente mantenha ou tenha mantido uma relação de namoro ou uma relação análoga à dos cônjuges, ainda que sem coabitação;

c) (…); ou

d) (…);

e) (…);

é punido com pena de prisão de um a cinco anos, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal.

Por sua vez, dispõe o n.º 2 do mesmo preceito legal, que:

“No caso previsto no número anterior, se o agente:

a) Praticar o facto contra menor, na presença de menor, no domicílio comum ou no domicílio da vítima; ou

b) Difundir através da Internet ou de outros meios de difusão pública generalizada, dados pessoais, designadamente imagem ou som, relativos à intimidade da vida privada de uma das vítimas sem o seu consentimento;

é punido com pena de prisão de dois a cinco anos”.

De harmonia com o estatuído pelos n.ºs 4 e 5 do mesmo preceito – que o Ministério Público, na acusação que deduziu, não invocou na qualificação jurídica dos factos que descreveu –, “Nos casos previstos nos números anteriores, incluindo aqueles em que couber pena mais grave por força de outra disposição legal, podem ser aplicadas ao arguido as penas acessórias de proibição de contacto com a vítima e de proibição de uso e porte de armas, pelo período de seis meses a cinco anos, e de obrigação de frequência de programas específicos de prevenção da violência doméstica”, sendo que “A pena acessória de proibição de contacto com a vítima deve incluir o afastamento da residência ou do local de trabalho desta e o seu cumprimento deve ser fiscalizado por meios técnicos de controlo à distância”.

Explicitados que estão os números e alíneas do art. 152.º do Código Penal com aplicação abstrata ao caso concreto, analisemos o ilícito em causa, principiando pela identificação do bem jurídico tutelado pela presente incriminação.

Afirma Plácido Conde Fernandes (in Violência Doméstica, Novo Quadro Penal e Processual Penal, Jornadas sobre a Revisão do Código Penal, Revista do CEJ, 1.º semestre de 2008, n.º 8, p. 305) que não se vê “razão para alterar o entendimento, já sedimentado, sobre a natureza do bem jurídico protegido, como sendo a saúde, enquanto manifestação da dignidade da pessoa humana e da garantia da integridade pessoal contra os tratos cruéis, degradantes ou desumanos, num bem jurídico complexo que abrange a tutela da sua saúde física, psíquica, emocional e moral. A dimensão de garantia que é corolário da dignidade da pessoa humana fundamenta a pena reforçada e a natureza pública, não bastando qualquer ofensa à saúde física, psíquica, emocional ou moral da vítima, para preenchimento do tipo legal. O bem jurídico, enquanto materialização directa da tutela da dignidade da pessoa humana, implica que a norma incriminadora apenas preveja as condutas efectivamente maltratantes, ou seja, que coloquem em causa a dignidade da pessoa humana, conduzindo à sua degradação pelos maus-tratos”.

Segundo Paulo Pinto e Albuquerque (in Comentário ao Código Penal, Universidade Católica, p. 464), “os bens jurídicos protegidos pela incriminação são a integridade física e psíquica, a liberdade pessoal, a liberdade e autodeterminação sexual e até a honra”.

A grande diversidade das condutas que podem integrar este crime é muitas vezes apontada como um fator que obsta à correta identificação do bem jurídico tutelado neste tipo criminal. Contudo, o facto que unifica estas condutas traduz-se justamente na inflição de um tratamento ofensivo da integridade e dignidade pessoal, com a consequente impossibilidade de desenvolvimento da personalidade, direito fundamental igualmente reconhecido na Constituição da República – art. 26.°, 1, da Lei Fundamental.

Assim, a ilicitude dos factos em causa radica no exercício desmedido de um poder de facto que atenta contra a integridade, a dignidade pessoal e o livre desenvolvimento da personalidade, violando a regra da igualdade de todos os seres humanos.

Alguma jurisprudência vem entendendo que o crime é de dano (quanto ao bem jurídico) e de resultado (quanto ao objeto da ação), com ressalva dos maus tratos na modalidade de ofensas sexuais, situação em que estamos perante um crime de mera atividade não lhe sendo, portanto, aplicável a teoria de adequação do resultado à conduta. Tal conceção assentará no entendimento de que o bem jurídico é a saúde. Todavia, pelo contrário, se entender que o bem jurídico é a integridade pessoal e o correlativo livre desenvolvimento da personalidade, a consumação do crime ocorre logo que, e desde que, exista um ato, uma conduta, um facto que a coloque em perigo, independentemente do dano efetivamente produzido.

O sujeito ativo, neste tipo de crime, deve encontrar-se numa determinada relação para com o sujeito passivo: ambos manterão ou terão mantido, entre si, uma relação de namoro ou uma relação análoga à dos cônjuges, ainda que sem coabitação.

Como tal, o crime em análise é um crime específico, isto é, um delito que só pode ser levado a cabo por certas e determinadas categorias de pessoas - cfr. Leal-Henriques e Simas Santos, in Código Penal Anotado, 2.ª ed., 2.º vol., p. 181 (por reporte ao crime de maus tratos, mas com plena aplicação ao crime de violência doméstica após a publicação e entrada em vigor da Lei n.º 59/2007, de 04/09).

M. Miguez Garcia e J. M. Castela Rio (in Código Penal – Parte geral e especial, Com notas e comentários, 2015, 2.ª Edição, Almedina, p. 647) dão nota dessa característica associada a este tipo de ilícito – crime de relação – em que releva, dizem, «mais exactamente, um certo grau de proximidade ao lado de uma estreita comunidade de vida, realidades que instituem normas de conduta cuja violação fundamenta ou agrava a ilicitude do facto – a especial relação que intercede entre os sujeitos activo e passivo da conduta criminosa. Estará em causa a protecção da dignidade e da integridade da pessoa enquanto membro de uma relação conjugal, ou enquanto participante de uma realidade familiar ou “análoga”».

Conforme salienta Ana Maria Barata de Brito (in O crime de violência doméstica: notas sobre a prática judiciária, texto correspondente a uma conferência proferida em 01 de Dezembro de 2014, disponível em www.tre.mj.pt/docs/ESTUDOS), identifica-se aqui «uma especial relação entre agente e ofendido, relação que “é sempre de proximidade, se não física, ao menos existencial, ou seja, de partilha (actual ou anterior) de afectos e de confiança em um comportamento não apenas de respeito e abstenção de lesão da esfera jurídica da vítima, mas de atitude pro-activa, porquanto em várias hipóteses do art. 152.º são divisáveis deveres legais de garante” [Cita-se Lamas Leite, in A violência relacional íntima, Revista Julgar, n.º 12, Set.-Dez. 2010]. Essa especial relação – actual ou passada – fundamenta a ilicitude e justifica a punição do agente». A ratio do tipo não reside, pois, prossegue a autora, na protecção da família, da comunidade familiar ou conjugal, mas na protecção da pessoa individual na família, da pessoa que integra a comunidade familiar ou conjugal, na tutela da integridade humana - vide, por todos, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 12 de julho de 2018, disponível em texto integral em www.dgsi.pt, processo n.º 172/17.5S7LSB.L1.S1.

A conduta objeto de incriminação cobre todos comportamentos que se traduzam na sujeição a maus-tratos físicos ou psíquicos, incluindo castigos corporais, privações da liberdade e ofensas sexuais.

A conduta do agente pode assumir as seguintes modalidades:

- Maus tratos físicos, que correspondem ao crime de ofensa à integridade física simples, e maus tratos psíquicos, que encontram correspondência nos crimes de ameaça simples ou agravada, coação simples, difamação e injúrias, simples ou qualificadas;

- Privações da liberdade, que incluem o sequestro simples (o emprego de formas mais graves de sequestro e de escravidão é punível pelas respetivas incriminações).

- Ofensas sexuais, que incluem a coação sexual prevista no art. 163.º, 2, do Código Penal, a violação prevista nos termos do art. 164.º, 2, do mesmo código, a importunação sexual (art. 170.º) e o abuso sexual de menores dependentes previsto no art. 172.º, 2 ou 3, da referida codificação legal (o emprego de formas mais graves de ofender a liberdade e autodeterminação sexual é punível pelas respetivas incriminações); e,

- Atos impeditivos do acesso ou fruição aos recursos económicos e patrimoniais próprios ou comuns.

Se o entendermos como um crime de resultado (com a exceção supra enunciada), o resultado será, pois, a lesão da integridade do corpo, da saúde física ou da saúde psíquica - sendo de exigir a existência de um nexo causal entre a conduta e a lesão, aferido em conformidade com os critérios de imputação objetiva e legalmente previsto no art. 10.º, 1, do Código Penal - ou a ablação do acesso ou fruição de recursos económicos e patrimoniais próprios ou comuns.

Segundo Ricardo Bragança de Matos (in Dos maus tratos a cônjuge à violência doméstica: um passo na tutela da vitima, RMP, ano 27, Julho-Setembro de 2006, n.º107, pp. 102-103), em termos práticos, maus-tratos significa, antes de mais, o exercício de violência. A “prática de maus tratos entre cônjuges parece então poder analisar-se na perpetração de qualquer acto de violência que afecte, por alguma forma, a saúde física, psíquica e emocional do cônjuge vítima, diminuindo ou afectando, do mesmo modo, a sua dignidade enquanto pessoa inserida numa realidade conjugal igualitária”.

Para Rui Abrunhosa Gonçalves (in Agressores conjugais: investigar, avaliar e intervir na outra face da violência conjugal, RPCC, Ano 14, n.º 4, Outubro-Dezembro 2004, págs. 542-543), a expressão “violência conjugal” – que se distingue de conceitos mais abrangentes como os de “violência doméstica”, “violência familiar” ou “maus tratos familiares”, em que podem ser afetados outros elementos da família ou que coabitem com o casal – abarca um conjunto variado de atos agressivos que se distinguem entre si pela sua gravidade, mas que têm em comum o facto de serem exercidos por um elemento do casal sobre o outro, de forma consciente, envolvendo a noção de que tais atos podem ocorrer numa fase pré-matrimonial ou de vida em conjunto, durante esse período ou mesmo após, quando o matrimónio ou a união de facto se encontram em vias de dissolução.

Conforme refere Maria Teresa Féria de Almeida (in O crime de Violência Doméstica: o antes e o depois da Convenção de Istambul, Combate à Violência de Género, Da Convenção de Istambul à nova legislação penal, Universidade Católica Editora, Porto, fevereiro de 2016, p. 195 e 203) e no que tange às modalidades da conduta típica do agente, “para além da agressão física, mais ou menos violenta, utilizando-se ou não quaisquer instrumentos, existe a agressão sexual, que se pode traduzir na prática forçada, ou da sua ausência, de qualquer tipo de ato sexual, a agressão psicológica ou psíquica - que se pode traduzir em qualquer sorte de humilhações ou vexames, ou em coagir a vítima a praticar actos que vão contra as suas convicções religiosas, morais ou cívicas, ou ainda no impedimento do seu livre relacionamento com a sua família, amigas/os ou colegas - e a agressão económica, impedindo-se o livre acesso ou gestão de dinheiro ou do património. É multíplice, pois, não só a estrutura naturalística deste tipo de condutas, como também o é a sua forma de comissão, pois podem implicar uma acção, ou traduzir-se numa omissão, por exemplo a não prestação de cuidados médicos ou assistenciais. Mas o seu fio condutor é sempre o da afirmação de um poder sobre a vida, a liberdade, a segurança, a honra ou o património da vítima. Sendo este facto - a afirmação de um poder - aquilo que verdadeiramente caracteriza, identifica e distingue este crime, e que se afere pelo estado de tensão e medo suportado e vivido pela vítima”.

Como exemplos de agressões que entram na esfera dos maus-tratos físicos, e que podem ser excluídas das ofensas corporais, aponta Nuno Brandão (in A tutela penal especial reforçada da violência doméstica, Julgar, n.º 12, Set.-Dez. 2010), os «empurrões, arrastões, puxões e apertões de braços ou puxões de cabelos» E como exemplos de maus-tratos psíquicos «os insultos, as críticas e comentários destrutivos, achincalhantes ou vexatórios, a sujeição a situações de humilhação, certas ameaças, as privações de comida, de medicamentos ou de bens e serviços de primeira necessidade, as restrições arbitrárias à entrada e saída da habitação ou de partes da habitação comum, as privações da liberdade, as perseguições, as esperas inopinadas e não consentidas, os telefonemas a desoras».

Posto isto, com o Supremo Tribunal de Justiça no Acórdão que, supra, citámos, consideramos que efetivamente o bem jurídico protegido no crime de violência doméstica é plural e complexo, na medida em que integra a saúde (física e/ou psíquica), mas também a integridade pessoal e o livre desenvolvimento da personalidade, respeitando à defesa da integridade pessoal individual por referência à proteção da dignidade humana. Dito de outra forma, o bem jurídico protegido pela norma é, em geral, o da dignidade humana e, em particular o da saúde que abrange o bem estar físico, psíquico e mental, podendo este bem jurídico ser lesado, no âmbito que ora importa considerar, por qualquer espécie de comportamento que afete a dignidade e integridade pessoal do cônjuge ou da pessoa que com o agente conviva ou conviveu em condições análogas às dos cônjuges ou em relação de namoro e, nessa medida, seja suscetível de colocar em causa o supra referido bem estar.

Quanto à necessidade de a conduta criminosa, ora caracterizada, exigir, para preenchimento do tipo objetivo, alguma reiteração comportamental de modo a inculcar a ideia de habitualidade, tal requisito foi expressamente afastado na nova redação conferida pela Lei n.º 59/2007, de 04/09, ao art. 152.º, cujo n.º 1 pune quem, de modo reiterado ou não, infligir maus tratos físicos ou psíquicos, incluindo castigos corporais, privações de liberdade e ofensas sexuais.

Somos a entender que apenas nas circunstâncias do caso concreto podemos concluir pela violação do bem jurídico em causa. Assim, dependendo da imagem global do facto é que poderemos concluir se o desvalor da ação e do resultado são aptos para molestar o bem jurídico protegido, de modo incompatível com a dignidade da pessoa humana.

A nível do tipo subjetivo de ilícito, exige-se o dolo (em qualquer uma das suas modalidades, a saber, dolo direto, necessário ou eventual – cfr. art. 14.º do Código Penal). O fator intelectual deste crime consiste no conhecimento dos seus elementos objetivos, isto é, no facto de o agente do crime ter conhecimento da relação que o une à vítima e de que a sua conduta, traduzida numa ação ou omissão, ofende a integridade/dignidade pessoal e o livre desenvolvimento da personalidade da vítima. A componente volitiva do dolo traduz-se no ato de querer a conduta típica.

Sem prejuízo do que fica dito, não desconhecemos que, mais recentemente, alguma Jurisprudência dos nossos Tribunais Superiores vem diluindo a tónica na necessidade de colocação da dignidade da vítima (vista num plano individual) em crise, antes a fazendo incidir na colocação da pacífica convivência familiar, para-familiar ou doméstica em crise.

Assim, a título exemplificativo, pode ler-se no Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 28.10.2022: “Tem sido entendido pela jurisprudência que o bem jurídico protegido pelo crime de violência doméstica é complexo ou multifacetado, podendo nele ser integrado uma série de comportamentos que, isoladamente, também são alvo de tutela penal, como sejam as ofensas à integridade física, difamação ou injúrias, simples ou qualificadas, ameaça simples ou agravada, coação simples, etc.

Porém, o crime de violência doméstica visa proteger muito mais do que a soma dos diversos ilícitos típicos que o podem preencher, uma vez que o legislador quis tutelar algo mais do que a saúde da vítima, ainda que de forma secundária ou reflexa, devendo entender-se que o bem jurídico a proteger terá de estar relacionado com o núcleo dos vínculos que se estabelecem no seio familiar e doméstico. Dito de outro modo, só serão subsumíveis ao artigo 152.º condutas de pouca gravidade, quando as mesmas comprometerem a pacífica convivência familiar ou doméstica; então, nesta linha de pensamento, o tipo penal em causa é assim constituído, a título principal, pela saúde da vítima e, ainda, de forma secundária ou reflexa, pela pacífica convivência familiar ou doméstica.

Daí que, uma conduta materialmente não grave perpetrada no âmbito familiar e doméstico, como sejam uma simples bofetada ou soco, ou injúrias/insultos e críticas, no caso, dirigidas pelo agente no domicílio comum à companheira ou à filha menor desta, encerra uma danosidade social distinta da ofensa praticada em contexto não-doméstico, pois semeia o medo, a desconfiança, a insegurança sentimentos que são contrários àqueles que são costumeiros no seio familiar, primeiro e último reduto de proteção do indivíduo. (…)

Concorrem para esta conceção do bem jurídico (pluriofensivo) protegido, a natureza pública do crime de violência doméstica, o agravamento da incriminação quando crime é praticado no domicílio comum, a consagração das penas acessórias de proibição de contacto com a vítima, o afastamento da residência desta e a frequência de programas específicos de prevenção da violência doméstica, o que demonstra que o legislador na redação da hipótese e da estatuição desta norma, vislumbra uma perspetiva de futuro que vai muito para além da expetativa de proteção individual, da vítima em concreto, para assumir um escopo protetor da própria família, ou da comunidade doméstica, enquanto tal, desde que a conduta típica em concreto, haja colocado em crise a pacífica convivência familiar, para-familiar ou doméstica.

Esta interpretação será a tipicamente mais adequada, face aos elementos interpretativos do artigo 9.º do Código Civil, do tipo de crime previsto no artigo 152.º do Código Penal tendo em conta os princípios da legalidade, tipicidade e máxima determinação do tipo, vigentes em Direito Penal”.

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Atentas as considerações expostas, revertamos ao conjunto da materialidade cujo apuramento se logrou.

Provou-se nos autos que:

Em 2009, o arguido, AA, e a assistente, BB, iniciaram entre si um relacionamento de namoro, tendo passado a viver em comunhão de leito, mesa e habitação, como se de marido e mulher se tratassem, em data não concretamente apurada, entre os anos de 2011 e 2012.

Têm em comum dois filhos, CC, nascido a … de 2014, e DD, nascida a … de 2018.

Mais se apurou que, em data não concretamente apurada do ano de 2013, no decurso de uma discussão mantida entre o casal da assistente e do arguido, relacionada com ciúmes manifestados por aquela, este desferiu um empurrão sobre o corpo dela, determinando a queda da mesma ao solo no exterior da residência que então partilhavam, sita no …. Nessa sequência, conforme também se apurou, BB levantou-se e desferiu uma bofetada na face do arguido. Ato contínuo, o arguido desferiu uma bofetada na face da assistente, segurou-a pelos cabelos e puxou-a para o interior da habitação, local onde a empurrou para cima do sofá, desferindo nova bofetada sobre a face da mesma. Como consequência direta e necessária da conduta do arguido, descrita, a assistente sentiu dores nas regiões corporais atingidas.

Também se logrou a demonstração de que, entre data não concretamente apurada do ano de 2012 e fevereiro de 2020, a assistente exerceu as funções de … no estabelecimento comercial denominado “…”, sito no centro comercial “…”, em …, fazendo o atendimento ao público e trabalhando por turnos, rotativos, inclusive aos fins de semana.

Mais se apurou que, após o nascimento de DD e o gozo, pela assistente, da respetiva licença de maternidade, decorrido, ainda, o ano em que esta beneficiou da redução de horário de trabalho, o arguido e a mãe deste manifestaram, perante BB, que não mantinham a sua anterior disponibilidade para assegurarem os cuidados aos menores DD e CC após a hora limite da permanência deles na creche e na escola, respetivamente. Nessa sequência, em fevereiro de 2020,BB decidiu fazer cessar o seu contrato de trabalho, o que concretizou com o desiderato de assegurar a sua disponibilidade para cuidar dos dois descendentes findas as atividades letivas.

Também se provou que, no período situado entre fevereiro de 2020 e setembro de 2021, em datas e em número de vezes não concretamente apurados, o arguido, no contexto de discussões – mormente, associadas a críticas que fazia à assistente, relacionadas com a invocada falta de brio da mesma na realização das tarefas domésticas no interior da residência comum –, disse a BB que a mesma devia estar a passar o tempo, em casa, a falar, nas redes sociais, com outros homens.

Também se logrou apurar que, em data não concretamente apurada do verão de 2021, no final de junho ou em julho, à noite, a assistente e o arguido encontravam-se na sala da residência comum, então sita no …, em …, a assistir a um filme. A dado momento, o telemóvel de BB rececionou uma notificação, que esta não leu de imediato, o que foi percecionado pelo arguido. Seguidamente, BB deslocou-se à casa de banho, levando consigo o seu telemóvel, com a intenção de ler tal notificação. Ato contínuo, o arguido AA entrou na casa de banho e questionou a assistente sobre o facto de a mesma não ter aberto a notificação na sua presença. Sentada na sanita, BB disse ao arguido que podia consultar o seu telemóvel, o que o mesmo recusou fazer, tendo gritado com ela, apodando-a de “mentirosa”, dizendo-lhe que estava a enganá-lo, mas que ele “não era parvo nenhum”. Ao sair da casa de banho, o arguido segurou a porta dessa divisão assoalhada pelo respetivo perfil e empurrou-a no sentido do corpo da assistente – que se mantinha sentada na sanita –, fazendo tal objeto embater na cabeça dela, sobre a fronte (testa). Como consequência direta e necessária da conduta do arguido, descrita, a assistente sofreu edema ligeiro na região corporal atingida.

Também se provou que, devido ao barulho inerente à discussão referida, CC – que se encontrava a dormir no respetivo quarto –, acordou, tendo ouvido a assistente chorar.

Igualmente se logrou a demonstração de que, no dia 31 de agosto de 2021, após terem jantado num estabelecimento de restaurante e quando se dirigiam para o automóvel em que se haviam feito transportar, a assistente perguntou ao arguido: “- Então e agora, onde é que vamos beber um copo?!”, tendo-lhe este manifestado a sua indisponibilidade para irem a um bar. BB questionou o arguido sobre o motivo de não querer prolongar a saída consigo e confrontou-o com o facto de, na noite anterior, o mesmo ter saído, até de madrugada, com amigos dele. Nessa sequência, o arguido iniciou a marcha do automóvel e imprimiu-lhe velocidade não concretamente apurada, mas determinante de desconforto e de receio à assistente pela sua integridade física, ao mesmo tempo que discutia com esta, dizendo-lhe que estava “a ser irónica”, a “ser ciumenta” e “a fazer filmes”. Chegados à residência comum, no interior do quarto do, então, casal, o arguido agarrou a assistente pelo pescoço com uma mão e exerceu alguma pressão, dizendo a esta que não sabia valorizar o homem que ele era nem a qualidade de vida que o mesmo lhe proporcionava e que “tinha de abrir os olhos”. Após, o arguido saiu da residência comum e BB, amedrontada pela conduta deste, começou a guardar alguns pertences numa mala, determinada a sair de casa e a deslocar-se para a residência dos seus pais – onde então se encontravam CC e DD, em gozo de férias –, sita em …. Todavia, AA regressou à residência comum e, ao percecionar que BB diligenciava por ausentar-se da residência comum, desferiu pontapés sobre a mencionada mala e disse à mesma que ela não saía de casa, pois o menor CC teria treino de futebol no dia a seguir, pelo que o mesmo deveria regressar ao … com os avós maternos, conforme estava previsto.

Após, mormente, a partir das 08:44 horas do dia 01 de setembro de 2021, a assistente e o arguido trocaram várias mensagens escritas (SMS), nas quais a primeira manifestou ao segundo a sua vontade de terminar o relacionamento que mantinham.

No decurso dessa troca de mensagens, a assistente (com o contacto telefónico …) escreveu, dirigindo-se ao arguido, designadamente: “Não há justificação para as tuas atitudes cmg, eu não posso dizer nada que tu ages como um animal para me provocar medo e insegurança. Eu não aceito mais isso na minha vida. Desculpa por tudo de mal que te tenha provocado mas está mais que visto que as nossas vidas vão seguir rumos diferentes. (…)” e “Não quero mais discutir ctg não suporto a tua agressividade temos que resolver as coisas a bem pelos nossos filhos está bem? As relações kd já não dão não precisam de ser terminadas da pior forma com guerras. Eu gostava que ressolvessemos tudo a bem. (…)”.

Nessa sequência, o arguido (com o contacto telefónico n.º …) escreveu, dirigindo-se à assistente, designadamente: “Eu sei que sou agressivo e não devia. Mas o meu saco também enche. Não sou de ferro. Desculpa. (…)”.

Também se provou, que, não obstante a situação acabada de descrever, o relacionamento entre o casal do arguido e da assistente manteve-se e, no dia 20 de setembro de 2021, esta voltou a exercer funções de … no estabelecimento comercial denominado “…”, sito no centro comercial “…”, em …, fazendo atendimento ao público e trabalhando por turnos, rotativos, inclusive aos fins de semana.

No dia 29 de setembro de 2021, conforme se apurou, BB trabalhou no mencionado estabelecimento comercial até às 21:00 horas, após o que se deslocou para a residência que partilhava com o arguido. Aí chegada, entre as 21:30 horas e as 22:00 horas, o arguido AA, desagradado pelo facto de a assistente não estar em casa com ele e com os filhos sempre que assegurava o último turno da loja, disse-lhe que, ou ela deixava aquele emprego, ou a relação entre ambos não iria durar. BB disse ao arguido que não ia deixar o seu emprego e que não queria mais conversas com ele; todavia, AA insistiu em querer conversar sobre o assunto e disse-lhe que ela estava a optar pelo trabalho, em detrimento da família. A assistente, determinada a não ter a conversa desejada pelo arguido, deslocou-se para a casa de banho a fim de tomar um duche, tendo aberto a torneira e entrado no compartimento respetivo. Em seguida, o arguido entrou no compartimento do chuveiro, vestido, e, fazendo uso das duas mãos, agarrou BB pelo pescoço, exercendo pressão, ao mesmo tempo que dizia, em voz alta, que a mesma não tinha o direito de lhe responder, tendo ainda proferido a seguinte expressão: “- Tu já viste o que tu me obrigas a fazer-te? A culpa disto tudo é tua!”. Como consequência direta e necessária da conduta do arguido, descrita em 33., a assistente sentiu dor no pescoço e falta de ar, bem como sentimentos de pânico, tendo receado pela sua vida e, sofrido, ainda, uma escoriação no pescoço, determinada pela abrasão do fecho de um fio metálico que usava. O arguido cessou, entretanto, a sua conduta e deslocou-se para a sala da residência, na sequência do que a assistente – que não chegou a tomar o duche –, após ter-se vestido, foi ao encontro daquele e disse-lhe, a chorar, que iria a casa da mãe dele, a fim de pedir ajuda. Depois de a assistente ter entrado no respetivo automóvel, o arguido, que a seguira até ao logradouro da residência, desferiu pelo menos dois socos no vidro da porta dianteira esquerda; não obstante, BB logrou tripular o veículo, ausentando-se do local na direção das residências da mãe e da irmã do arguido. Entre as 22:38 horas e as 22:59 horas, o arguido escreveu e remeteu à assistente três mensagens de texto (SMS), com o seguinte teor: “Dou te 10 minutos para tar aqui. Se não vou me embora”, “O relógio tá a contar” e “Fui me embora”. A assistente esteve na residência da irmã do arguido, EE, com quem falou, tendo igualmente interagido com JJ, mãe de AA, que lhe disse para ir para casa e para tratar dos assuntos do casal com o companheiro. Nessa sequência, sentindo-se abalada, a assistente disse a JJ que iria apresentar queixa contra o ora arguido e regressou ao seu automóvel tendo, no trajeto entre as residências da mãe e da irmã do arguido e a sua própria residência, imobilizado o veículo e permanecido no respetivo interior, altura em que leu as mensagens de texto mencionadas no ponto 37., que lhe determinaram receio de que o arguido saísse de casa deixando aí sozinhos CC e DD, que se encontravam a dormir. Nessa altura, EE, na sequência da interação que tivera com BB, deslocou-se à residência do, então, casal, a fim de falar com AA, facto que foi percecionado pela assistente, que viu aquela passar na mesma estrada. Subsequentemente, a assistente e EE entabularam uma comunicação, tendo esta dito àquela que o arguido estava calmo e que podia regressar à habitação, o que BB fez, tendo dormido num quarto separada de AA.

Ainda se provou que, não obstante o acabado de descrever, o casal do arguido e da assistente não se separou, tendo-se reaproximado no decurso do mês de outubro de 2021.

Todavia, no dia 11 de novembro de 2021, durante a hora de almoço, antes das 14:28 horas, o arguido e a ofendida encontravam-se no interior da residência comum, tendo BB recebido, no seu telemóvel e através da aplicação Whatsapp, uma mensagem do pai de um colega do menor CC, de nome KK. AA, apercebendo-se, através da fotografia associada ao perfil do remetente, de que a mensagem fora enviada por um homem, disse à assistente que abrisse a mesma e lhe mostrasse o respetivo conteúdo, o que a mesma recusou fazer. Posteriormente, nesse dia 11 de novembro de 2021, depois das 23:36 horas, a assistente encontrava-se deitada no quarto do casal quando o arguido a interpelou novamente, dizendo que queria que a mesma lhe mostrasse o conteúdo das mensagens trocadas com o aludido indivíduo, na sequência do que BB, segurando o telemóvel, que previamente desbloqueou, numa das mãos, estendeu o correspondente braço na direção de AA, para que este recebesse o aparelho. Ato contínuo, o arguido, fazendo uso das duas mãos, segurou a assistente pelos pulsos e exerceu força, dando-lhe puxões, tendo ainda atingido, com as unhas, a região malar da face lateral esquerda e a face lateral esquerda da raiz do pescoço da assistente. Ao mesmo tempo, o arguido, em tom de voz elevado e dirigindo-se à assistente, disse: “- Deves querer enfiar-me um dedo no rabo, por teres uma racha não te posso bater, mas a minha vontade é meter-te os dentes para dentro. Não mereces ser mãe dos teus filhos. Estás fodida comigo”. Com o barulho, pelo menos o menor CC acordou e começou a chorar, tendo o arguido ido buscá-lo ao respetivo quarto; já no quarto do arguido e da assistente, AA disse ao menor que a mãe era “uma mentirosa”. Como consequência direta e necessária da conduta do arguido, acabada de descrever, resultaram para a assistente, para além de dores nas regiões corporais atingidas, equimoses com 3 cm no pulso direito, equimoses com 2 cm no pulso esquerdo, uma escoriação na face lateral esquerda com 3 cm, na região malar e uma escoriação na face lateral esquerda da raiz do pescoço com 3 cm, lesões que lhe determinaram 7 dias de doença, sem afetação do trabalho geral e/ou profissional. Ainda como consequência direta e necessária da conduta do arguido, resultaram para a assistente sentimentos de medo, determinantes de que a mesma tivesse pedido desculpa, sucessivas vezes, durante o episódio, a AA, com o propósito de o mesmo cessar a sua conduta.

Mais se logrou a demonstração de que, no dia 14 de novembro de 2021, a hora não concretamente apurada, mas seguramente antes das 09:30 horas, o arguido questionou a assistente sobre a razão de esta ter o seu telemóvel em modo silencioso. Em ato contínuo, o arguido AA, usando um tom de voz elevado, acusou a BB de lhe estar a esconder algo e a mentir. Alertada pelo ruído, a menor DD deslocou-se para o quarto dos pais e correu na direção da assistente; concomitantemente, o arguido AA, agarrou no telemóvel de BB e atirou-o contra a parede do quarto, na sequência do que o ecrã do aparelho se partiu, o que determinou prejuízo patrimonial à sua dona. No mesmo dia 14 de novembro de 2021, pelas 19:30 horas, o arguido e a assistente regressaram a casa após terem conversado num local público; nesse circunstancialismo, AA iniciou uma discussão com aquela, na presença da mãe de BB, que se deslocara ao … a pedido da filha e ali se encontrava, nesse momento, a tomar conta de CC e de DD. Mais tarde, antes das 22:39 horas, o arguido deu início a uma nova discussão pela circunstância de BB pretender ficar a dormir no quarto dos filhos. A fim de fazer cessar a discussão, a assistente decidiu ir para outro quarto, tendo sido seguida por AA que, já no interior dessa divisão, cuspiu para a face de BB, apodando-a, pelo menos, de “nojenta” e de “puta”, após o que saiu do quarto, batendo com a porta. Alertada pelo ruído, a mãe da assistente foi em auxílio dela, na sequência do que o arguido se lhe dirigiu dizendo que “não tinha nada de estar ali”.

Na noite de 15 para 16 de novembro de 2021, o arguido AA não permitiu que a mãe da assistente dormisse no interior da habitação, ficando a mesma a pernoitar no interior de um automóvel.

Na noite de 16 de novembro de 2021, antes das 22:55 horas, no interior da residência comum, o arguido disse à assistente que a mesma já tinha “abandonado o lar”; nesse mesmo circunstancialismo de tempo e de lugar, AA pegou nas chaves do automóvel de BB e foi procurar os cartões de cidadão dos dois filhos do, então, casal. Percecionando que as chaves do seu automóvel não se encontravam no local onde as deixara, a assistente interpelou o arguido, que estava deitado na cama, mas vestido com a roupa do dia. O arguido devolveu as chaves à assistente e disse-lhe que apenas queria aceder aos cartões de cidadão dos filhos, na sequência do que a mesma lhos exibiu para que o mesmo os fotografasse, o que ele fez. Subsequentemente, a assistente ouviu o arguido a remexer em objetos, bem como se apercebeu de que o mesmo ligara o respetivo automóvel, na sequência do que temeu que ele estivesse a reunir objetos para se ausentar da residência comum com CC e DD, que se encontravam a dormir no respetivo quarto. De seguida, o arguido instou a ofendida acerca da queixa que a mesma apresentara contra ele no dia 14 de novembro de 2021 e disse-lhe: “Não tens provas, não tens poder económico para lutar comigo, tu vais-te foder”. Ato contínuo, BB acionou a Guarda Nacional Republicana para o local, tendo aguardado a chegada dos Militares no exterior da residência, trancada no interior do respetivo veículo.

No dia seguinte, 17 de novembro de 2021, a assistente mudou a residência, juntamente com os filhos, tendo ido para a casa dos seus progenitores, em …, após ter recebido aconselhamento, nesse sentido, pela APAV, tratando-se, ainda, da concretização do projeto que já formulara, pelo menos, desde a chegada da sua progenitora ao …, no dia 14 de novembro de 2021.

Mais se provou que o arguido, ao atuar do modo acima descrito nos pontos 3. e 5., agiu livre, deliberada e conscientemente, com o propósito concretizado de molestar o corpo de BB e de lhe produzir as dores verificadas, resultados que o mesmo representou e quis. O arguido, ao atuar do modo supra descrito nos pontos 10., 15., 49. e 57. e nos pontos 16., 22., 33. e 46., agiu livre, deliberada e conscientemente, com o propósito concretizado de maltratar BB através da moléstia da honra e consideração da mesma e do corpo e da saúde dela, e de lhe produzir as dores e as lesões verificadas, resultados que o mesmo representou e quis, tendo ainda representado que, ao assim agir, bem como ao atuar conforme descrito nos pontos 21. e 47., cercearia a assistente na sua autodeterminação, incutindo-lhe receio pela sua vida e integridade física, o que quis e conseguiu.

Mais agiu o arguido ciente de que cometia parte dos factos na presença dos filhos de ambos, CC e DD, nascidos em … de 2014 e em … de 2018, respetivamente, e no interior da residência da assistente, o que quis.

O arguido sabia que as suas condutas eram proibidas e punidas por Lei Penal.

Por fim, provou-se que, como consequência direta e necessária das condutas do arguido, a assistente sentiu-se humilhada e diminuída, tendo visto afetada a sua autoestima e o seu equilíbrio emocional; sentiu-se constrangida na sua vida, tendendo a analisar os comportamentos de terceiros, com receio de que a situação vivenciada com AA se repita com outras pessoas. Ainda como consequência direta e necessária da conduta do arguido, após ter ido residir para …, a assistente sentiu, durante um período de tempo não concretamente apurado, mas seguramente anterior a abril de 2023, medo do arguido.

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Vista a materialidade cujo apuramento se logrou, resulta, pois, para nós, desde logo manifesto que, relativamente às condutas empreendidas pelo arguido no ano de 2013, apuradas, não podem as mesmas considerar-se integradas no pedaço de vida em que, de modo evidente, se inscrevem os demais comportamentos assumidos por AA, demonstrados nos autos.

Com efeito, os factos provados sob os pontos 3. a 6. (e 67. e 70.) inscrevem-se num contexto totalmente distinto dos demais, tendo decorrido entre eles um período de cerca de 7 anos; naquela primeira situação, revela-se uma discussão entre o casal motivada por ciúmes da assistente e o envolvimento físico entre os dois elementos do casal, iniciado pelo arguido, envolve alguma reciprocidade: AA molesta BB com um empurrão que a deita por terra, a mesma retorque com uma bofetada na face do companheiro e este, em manifesta sobre reação, desfere-lhe duas bofetadas, intercaladas por um puxão de cabelos.

Depois desse dia de 2013, até data posterior a fevereiro de 2020, não se apuraram quaisquer comportamentos que possam ter-se por comprometedores da dignidade da assistente ou da sã convivência do casal ou da família, constituída também pelos dois descendentes comuns, nascidos em 2014 e em 2018.

Donde, conforme se disse, não pode deixar-se de considerar que aquelas condutas se autonomizam do pedaço de vida do casal então formado pelo arguido e pela assistente, este, desenhado entre momento posterior a fevereiro de 2020 e a data da separação definitiva, ocorrida no dia 17 de novembro de 2021.

E, autonomizando-se, evidencia-se que tais condutas, protagonizadas por AA no ano de 2013, se subsumem aos elementos objetivos e subjetivos do tipo de crime previsto e punido pelo art. 143.º, 1, do Código Penal [o que lhe foi comunicado nos termos e para os efeitos do disposto no art. 358.º, 1 e 3, do Código de Processo Penal].

Com efeito, de harmonia com o disposto no n.º 1 do art. 143.º do Código Penal, “quem ofender o corpo ou a saúde de outra pessoa é punido com pena de prisão até três anos ou com pena de multa”.

Encontra-se este preceito integrado no Capítulo III do Título I do Livro II do Código Penal, dedicado à proteção do bem jurídico integridade física, constituindo o crime nele previsto o tipo fundamental em matéria de crimes contra a integridade física.

São os seguintes os elementos constitutivos do crime de ofensa à integridade física simples:

- ofensa do corpo ou da saúde de outra pessoa;

- levada a cabo por ação ou omissão;

- de forma dolosa.

Quanto às duas modalidades de realização do tipo legal contido no art. 143.º do Código Penal, ofensas no corpo ou na saúde, poderão as mesmas verificar-se em simultâneo ou não, bastando a verificação de qualquer ofensa no corpo ou na saúde para que se considere verificado o tipo de crime, irrelevando para tal efeito os meios empregues na agressão, bem como a duração da mesma.

Por ofensa do corpo deve entender-se “todo o mau trato através do qual o agente é prejudicado no seu bem estar físico de uma forma não insignificante” - cfr. Paula Ribeiro de Faria, in Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, Tomo I, Coimbra Editora, Coimbra, 1999, p. 205.

Sendo o objeto da ação o corpo humano, estão aqui unicamente abrangidas as ofensas contra o físico ou contra a parte corporal do homem, ficando de fora as lesões psíquicas propriamente ditas que apenas encontrarão cobertura neste tipo legal na medida em que simultaneamente causem um efeito físico.

Por outro lado, ainda segundo Paula Ribeiro de Faria (cfr. Ob. Cit., p. 207), como lesão da saúde deve considerar-se “toda a intervenção que ponha em causa o normal funcionamento das funções corporais da vítima, prejudicando-a; pertence a este âmbito toda a produção ou aprofundamento de uma constituição patológica”. Deve considerar-se, assim, lesão da saúde a criação de um estado de doença, seja através de uma infeção, seja por qualquer outra via, bem como deve considerar-se lesão da saúde a contribuição para a manutenção ou agravamento de um estado de doença ou sofrimento já existente.

Objeto da agressão no crime previsto no art. 143.º, 1, do Código Penal será sempre outra pessoa.

Verifica-se, assim, ser este um crime material ou de dano, já que abrange um determinado resultado, que é a lesão do corpo ou da saúde de outrem, imputando-se o mesmo ao agente nos termos gerais (por ação ou omissão - art. 10.º do Código Penal); constitui também um tipo legal de realização instantânea, bastando para o seu preenchimento a verificação do referido resultado.

Finalmente, o tipo legal em referência exige o dolo em qualquer das suas modalidades, referindo-se o mesmo às ofensas do corpo ou da saúde do ofendido. Subjetivamente, é, pois, necessário que o agente aja com vontade e consciência de, com a sua conduta, ofender corporalmente a vítima.

Ora, confrontando a factualidade provada sob os pontos 3. a 6. com o supra consignado, evidencia-se que o arguido, com um empurrão, duas bofetadas na face e um puxão de cabelos molestou o corpo da assistente.

Mostram-se, pois, preenchidos, pela conduta do arguido, os elementos objetivos do tipo de ilícito em análise.

O mesmo se dirá do elemento subjetivo, atento a materialidade apurada sob os pontos 67. e 70...

Ao nível subjetivo conclui-se, pois, ter o arguido atuado com dolo necessário.

Termos em que, não se patenteando quaisquer causas de exclusão da ilicitude ou da culpa, importa concluir que, com a sua conduta, ora em análise, o arguido AA incorreu na prática, em autoria material e sob a forma consumada, de um crime de ofensa à integridade física simples, p. e p. pelo art. 143.º, 1, do Código Penal.

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Consigna-se que afastado está, em nosso entendimento, o preenchimento do tipo qualificado, então, como agora, previsto no art. 145.º, 1, a) e 2, do Código Penal, por referência à alínea b) do n.º 2 do art. 132.º do mesmo compêndio legal, não se descortinando, ante o circunstancialismo concreto, apurado, em que os factos ocorreram, uma particular censurabilidade ou perversidade na conduta empreendida pelo ora arguido, justificativa da tutela conferida pelo tipo qualificado.

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Isto ressalvado e não obstante o supra exposto, importa, todavia, atentar a que, conforme resulta do n.º 3 do art. 143.º do Código Penal, está em causa um crime de natureza semipública.

Nos termos do art. 113.º, 1, do Código Penal, “Quando o procedimento criminal depender de queixa, tem legitimidade para apresentá-la, salvo disposição em contrário, o ofendido, considerando-se como tal o titular dos interesses que a lei especialmente quis proteger com a incriminação”. Por seu turno, nos termos do n.º 1 do art. 115.º, “O direito de queixa extingue-se no prazo de seis meses a contar da data em que o titular tiver tido conhecimento do facto e dos seus autores, ou a partir da morte do ofendido, ou da data em que ele se tiver tornado incapaz”.

Ora, tendo os factos em apreço ocorrido em data não apurada do ano de 2013, importa, inexoravelmente, concluir que o direito de queixa da ofendida, relativamente a tais factos, se extinguiu, sendo a apresentação da queixa, efetivada nos presentes autos no ano de 2021, intempestiva.

Nos termos do art. 49.º, 1, do Código de Processo Penal, “quando o procedimento criminal depender de queixa, do ofendido ou de outras pessoas, é necessário que essas pessoas deem conhecimento do facto ao Ministério Público, para que este promova o processo”, sendo que, para este efeito, “considera-se feita ao Ministério Público a queixa dirigida a qualquer entidade que tenha a obrigação legal de a transmitir àquele” (n.º 2). E, “a queixa pode ser apresentada pelo titular do direito respetivo, por mandatário judicial ou por mandatário munido de poderes especiais”, como se dispõe no nº 3 do mesmo artigo.

Verificamos, assim, que nos crimes semipúblicos e particulares a promoção do procedimento pelo Ministério Público está condicionada pela queixa (tempestiva, entenda-se) das pessoas para tal legitimadas; sem a queixa o Ministério Público carece de legitimidade para promover o processo, instaurando o inquérito. Nos crimes particulares há, ainda, a necessidade de constituição de assistente para que o procedimento seja instaurado com a abertura de inquérito. A queixa (nos crimes semipúblicos), a queixa, a constituição de assistente e a acusação particular (nos crimes particulares) são pressupostos da admissibilidade do processo, neste sentido, pressupostos processuais, que constituem limitações (nos crimes semipúblicos, em que a denúncia não substitui a acusação, mas tem necessariamente de a preceder) e mesmo autênticas exceções (nos crimes particulares) ao princípio da promoção oficiosa do processo penal.

Dos regimes, material e processual, supra transcritos flui, pois, a não verificação do pressuposto de procedibilidade legitimidade do Ministério Público, nos termos do n.º 1 do art. 49.º do Código de Processo Penal, para a instauração do procedimento criminal (e dedução da acusação) contra o arguido relativamente aos factos em análise, o que obsta ao conhecimento do mérito da causa.

Em conformidade com o supra exposto, impõe-se, pois, declarar extinto, nesta parte, o presente procedimento criminal pendente contra AA, por falta de uma condição de procedibilidade, o que se decide.

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Isto posto, analisando a demais materialidade cujo apuramento foi conseguido, resulta, indubitavelmente, que o arguido infligiu maus tratos físicos e psíquicos a BB, com quem manteve uma relação análoga à dos cônjuges, incutindo-lhe um tratamento que pôs em causa a sua dignidade enquanto pessoa, tendo-a seviciado corporalmente em 4 ocasiões no interior da residência comum; tendo-a molestado reiteradamente na sua honra (mormente, através dos epítetos com que a apodou e das imputações que lhe fez, de ter relacionamentos com outros homens); tendo-a coartado na sua liberdade de determinação e formação da vontade, com as suas palavras, animadas pelas suas ações, determinando-lhe pavor de ser morta ou seviciada fisicamente, com maior gravidade, por ele.

Não há, atenta a reiteração das condutas do arguido para com a ofendida e considerando, sobretudo, o menosprezo das qualidades de BB, enquanto pessoa e mulher e o tratamento humilhante que lhe foi infligido quando era seviciada fisicamente (maioritariamente, em situações em que estava em situações de maior vulnerabilidade – no duche, molhada, deitada na cama, sentada na sanita –, assim a impossibilitando de sequer tentar defender-se) e, designadamente, apodada de “mentirosa” perante o filho menor com, então … anos de idade (sendo consabido que, nessas idades, as palavras ditas e os juízos de valor transmitidos pelas figuras de referência das crianças – acreditando-se que o arguido o será para o seu filho – marcam profundamente a sua personalidade, em formação), como não afirmar o comprometimento da dignidade da pessoa desta no âmbito do relacionamento que ambos mantiveram.

Está, pois, preenchido, em nosso entendimento, o elemento objetivo do tipo de ilícito em análise.

Preenchida está, igualmente, a circunstância agravante prevista na alínea a) do n.º 2 do art. 152.º do Código Penal, na medida em que resultou demonstrado que parte das condutas empreendidas pelo arguido tiveram lugar na residência da assistente (que era comum) e, por vezes, na presença dos filhos do então casal, então como agora com idades inferiores a 18 anos.

Em face da factualidade apurada, resulta, igualmente, encontrar-se preenchido o elemento subjetivo do mesmo tipo de crime, devendo concluir-se ter o arguido atuado com dolo direto - cfr. art. 14.º, 1, do Código Penal.

Face à factualidade provada e uma vez que não ocorre qualquer causa de exclusão da ilicitude ou da culpa, impõe-se, pois, concluir que o arguido, AA, praticou, efetivamente, o crime que lhe está imputado, p. e p. pelo art. 152.º, 1, b), 2, a), 4 e 5, do Código Penal, impondo-se, assim, a respetiva punição, o que se decide.

(…)

VII - DO PEDIDO DE INDEMNIZAÇÃO CIVIL

BB deduziu pedido de indemnização civil contra o arguido, peticionando a condenação do mesmo no pagamento do quantitativo de 11500,00€ - acrescido de juros de mora, à taxa legal, até ao efetivo e integral pagamento -, a título de compensação por danos morais sofridos em consequência da conduta assumida por AA.

x

Nos termos do art. 71.º do Código de Processo Penal, “o pedido de indemnização fundado na prática de um crime é deduzido no processo penal respetivo, só o podendo ser em separado, perante o tribunal civil, nos casos previstos na lei”, consagrando-se, desde modo, o princípio da adesão.

A indemnização de perdas e danos emergentes da prática de um crime é regulada pela lei civil, tal como dispõe o art. 129.º do Código Penal, ou seja, de harmonia com as regras constantes dos arts. 483.º, 562.º, 563.º e 566.º, todos do Código Civil.

Independentemente do respetivo processamento ter lugar no âmbito da ação penal, o pedido de indemnização civil tem, pois, que ser apreciado com base nos pressupostos de que a lei civil faz depender a existência de direito à indemnização.

Nestes termos, a responsabilidade civil, geradora da obrigação de indemnizar assenta nos pressupostos que resultam da interpretação conjugada dos arts. 483.º, 562.º e 563.º do aludido código, impondo, assim, a existência de um facto voluntário; que tal facto seja ilícito; que exista um nexo de imputação do facto ao lesante, indicador da existência e intensidade da culpa; que existam danos e que entre estes e o facto ilícito exista um nexo de causalidade.

Isto posto, e revertendo à factualidade apurada, é indubitável, desde logo, que as ações praticadas pelo arguido constituem factos humanos, domináveis pela vontade.

No que concerne à ilicitude dos factos, entendemos que a mesma resulta da violação dos direitos da demandante, constitucionalmente garantidos, designadamente, do direito à honra, o direito à integridade física e o direito à liberdade e autodeterminação (o direito de “viver sem medo”).

No que tange ao nexo de imputação dos factos ao agente e, mais especificamente, à imputabilidade, ela resulta, claramente, da matéria de facto provada nos autos.

A culpa do agente, por seu turno, afere-se pela conduta que um bom pai de família adotaria no caso concreto - cfr. art. 487.º, 2, do Código Civil. No caso dos autos, a existência de culpa é evidente, atendendo a que o arguido agiu, sempre e conforme se apurou, dolosamente.

Os danos estão provados nos autos, nos termos que infra se expenderá.

O nexo causal entre o facto e o dano no caso da responsabilidade por facto ilícito existe sempre que a conduta se não possa considerar de todo em todo indiferente para a verificação do dano, tendo-o provocado só por causa de circunstâncias excecionais, anormais, extraordinárias ou anómalas - a chamada formulação negativa da causalidade adequada, que se reputa preferível neste domínio (cfr., neste sentido, Antunes Varela, in Das Obrigações em Geral, Volume I, Almedina, Coimbra, 6.ª edição, 1989, pp. 862 a 865). No caso dos autos, é manifesto que os danos verificados resultaram, de forma direta e necessária, da conduta do arguido.

Da breve análise que acabámos de fazer, resulta que estão genericamente preenchidos, in casu, todos os pressupostos da responsabilidade civil, importando, pois, proceder à determinação do montante da indemnização que o arguido/demandado deverá pagar à demandante.

A obrigação de indemnização tem como finalidade precípua a remoção do dano causado ao lesado. Por essa razão, o art. 562.º do Código Civil prescreve que “quem estiver obrigado a reparar um dano, deve reconstituir a situação que existiria se não se tivesse verificado o evento que obriga à reparação”. O legislador português acolheu, prioritariamente, a via da reconstituição natural (cfr. art. 566.º, 1, do mencionado código), sendo que, sempre que a indemnização seja fixada em dinheiro, deverá sê-lo por referência à medida da diferença entre a situação patrimonial do lesado, na data mais recente que puder ser atendida pelo tribunal, e a que teria nessa data, se não existissem danos.

A obrigação de indemnizar pode implicar não só a reparação dos danos patrimoniais (os quais são reflexo do dano real sobre a esfera patrimonial do lesado e podem assumir a dupla faceta de lucros cessantes e danos emergentes, quer sejam presentes, quer sejam futuros, desde que, neste caso, sejam previsíveis - cfr. art. 564.º, 1 e 2, do Código Civil), mas também a compensação pelos danos não patrimoniais merecedores da tutela do direito (correspondentes aos prejuízos que, sendo insuscetíveis de avaliação pecuniária, porque atingem bens que não integram o património do lesado, apenas podem ser compensados com a obrigação pecuniária imposta ao agente, sendo esta mais uma satisfação do que uma indemnização - cfr. arts. 562.º a 564.º e 496.º, todos do Código Civil).

De harmonia com o disposto no art. 494.º do diploma legal em apreço, a fixação da indemnização por danos não patrimoniais será feita equitativamente pelo Tribunal, tendo em atenção todas as circunstâncias ali referidas. Nas palavras de Antunes Varela, “o montante da indemnização deve ser proporcionado à gravidade do dano devendo ter-se em conta na sua fixação todas as regras da prudência, de bom senso prático, de justa medida das coisas e de criteriosa ponderação das realidades da vida” - cfr. Antunes Varela, in Das Obrigações em Geral, 10.ª edição, p. 605.

Passemos, pois, à análise dos danos não patrimoniais sofridos pela demandante.

Resultou provado que, como consequência direta e necessária da apurada conduta do arguido, a demandante:

- sentiu dores em todas as regiões do corpo atingidas;

- sofreu edema ligeiro na fronte;

- sentiu falta de ar

- sofreu uma escoriação no pescoço;

- sofreu equimoses com 3 cm no pulso direito, equimoses com 2 cm no pulso esquerdo, uma escoriação na face lateral esquerda com 3 cm, na região malar e uma escoriação na face lateral esquerda da raiz do pescoço com 3 cm, lesões que lhe determinaram 7 dias de doença, sem afetação do trabalho geral e/ou profissional;

- sentiu-se humilhada e diminuída, mesmo perante o filho menor, tendo visto afetada a sua autoestima e o seu equilíbrio emocional;

- sentiu medo de que o arguido atentasse contra a sua vida e integridade física;

- sentiu-se constrangida na sua vida, tendendo a analisar os comportamentos de terceiros, com receio de que a situação vivenciada com AA se repita com outras pessoas.

Ora, em nosso entendimento, os danos acabados de referir configuram danos não patrimoniais graves que, indubitavelmente, merecem a tutela do direito à luz do n.º 1 do art. 496.º do Código Civil.

Por outro lado, o arguido/demandado agiu com culpa intensa.

Nesta conformidade, atendendo aos critérios usualmente seguidos pela jurisprudência na fixação dos danos morais, e porque os danos não patrimoniais devem ser dignamente compensados , afigura-se-nos adequado, por equitativo, fixar a indemnização, por danos não patrimoniais, a favor da demandante, no montante de 4000,00€, valor que se considera reportado à data da presente decisão.

A este valor, acrescerão os juros de mora, vincendos, calculados, às taxas legais sucessivamente em vigor para os juros civis, sobre aquele, desde a data da presente decisão, até efetivo e integral pagamento.

Do mais contra ele peticionado, será o arguido/demandado absolvido.. (…)”.

*

IV – FUNDAMENTAÇÃO.

IV.1. DA NULIDADE DECORRENTE DA ALEGADA VIOLAÇÃO DO PRINCÍPIO DA CONTINUIDADE DA AUDIÊNCIA DE JULGAMENTO.

O Arguido Recorrente AA considera que ocorreu violação manifesta do princípio da continuidade da audiência previsto no nº 1 do artigo 328º do Código de Processo Penal, da qual entende resultar nulidade que expressamente se arguiu.

Para tanto, argumenta que a realização do julgamento se arrastou ao longo de 12 sessões que tiveram o seu início em 27 de abril de 2023 e termo a 05-09-2024, tendo a sentença sido proferida a 26 de Setembro de 2024, e que isso “acarretou , manifestamente, consequências ao nível da discussão e apreciação da prova, nomeadamente dando origem a erros de julgamento na apreciação da matéria de facto”.

Para o que ora importa, resulta documentado nos autos que a audiência de julgamento se iniciou em 27 de abril de 2023, prosseguiu nos dias 13.06.2023, 22.06.2023, 27.06.2023, 06.07.2023, 13.07.2023 e 15.09.2023. Nesta última data foi interrompida para se obterem relatórios periciais que chegaram aos autos em 23.01.2024 (o referente à assistente) e em 01.03.2024 (o referente ao arguido), sendo que após foram agendadas diversas datas para continuação da audiência que, por sucessivos impedimentos (designadamente por doença comprovada da Ilustre Mandatária da Assistente e por impedimento do Tribunal noutras audiências), foram dadas sem efeito, vindo a audiência a ser retomada em 5 de setembro de 2024. A leitura da sentença ocorreu em 26 de setembro de 2024.

Após ser alterado com a entrada em vigor da Lei nº 27/2015, de 14 de abril, o artigo 328º do Código de Processo Penal, sob a epígrafe “Continuidade da audiência”, estabelece:

“1- A audiência é contínua, decorrendo sem qualquer interrupção ou adiamento.

2 – (…)

3- O adiamento da audiência só é possível, sem prejuízo dos demais casos previstos nesta Código quando, não sendo a simples interrupção bastante para remover o obstáculo:

(…)

6 - O adiamento da audiência de discussão e julgamento não pode exceder 30 dias. Se não for possível retomar a audiência neste prazo, por impedimento do tribunal ou por impedimento dos defensores constituídos em consequência de outro serviço judicial já marcado de natureza urgente e com prioridade sobre a audiência em curso, deve o respetivo motivo ficar consignado em ata, identificando-se expressamente a diligência e o processo a que respeita.

7 - Para efeitos da contagem do prazo referido no nº anterior não é considerado o período das férias judiciais, nem o período em que, por motivo estranho ao tribunal, os autos aguardem a realização de diligências de prova, a prolação de sentença ou que, em via de recurso o julgamento seja anulado parcialmente, nomeadamente para repetição de prova ou produção de prova suplementar.”.

A segunda parte do nº 6 e o nº 7 do artigo 328º foram introduzidos pela já referida Lei nº 27/2015, de 14 de abril, alterando-se a versão originária que estabelecia, como consequência expressa, que o decurso de mais de 30 dias entre cada uma das sessões da audiência de discussão e julgamento, determinava, inexoravelmente, a perda de eficácia da prova produzida.

Em qualquer uma das suas versões, o preceituado no artigo 328º do Código de Processo Penal visa assegurar o princípio da continuidade e da concentração da audiência de julgamento, consagrado no nº 1 do artigo 328º - a regra é a de que a audiência de julgamento deve decorrer sem interrupção ou adiamento, do seu início até ao seu encerramento.

Essas continuidade e concentração visam objetivos claros de maximizar as potencialidades da oralidade e da imediação e, por outro lado, de assegurar a realização da Justiça Penal em tempo útil e razoável.

Efetivamente o princípio da continuidade da audiência está orientado para a concentração da produção da prova no tempo, devendo os atos processuais desenrolar-se de forma o mais possível unitária e contínua, para assim se garantir que a prova será apreciada o mais próximo possível do momento em que é produzia e discutida, com a vantagem de se manter viva na memória de todos os intervenientes processuais e do julgador.

Noutra perspetiva, a continuidade assegura a eficácia da administração da justiça em conformidade com as garantias constitucionais previstas no artigo 20º, nrs. 4 e 5, da Lei Fundamental – o direito à decisão em prazo razoável e a garantia de que a defesa dos direitos, liberdades e garantias pessoais será legalmente assegurada, mediante procedimentos judiciais caracterizados pela celeridade (cfr. também o previsto no artigo 6º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem).

Esses objetivos e princípios não deixaram de vigorar com a entrada em vigor da Lei nº 27/2015, de 14 de abril – tanto assim que se manteve inalterada a redação do nº 1 e da primeira parte do nº 6 do artigo 328º do CPP (“O adiamento da audiência de discussão e julgamento não pode exceder 30 dias”).

A Lei 27/2015, de 14 de abril, veio permitir a ocorrência excecional de adiamentos da audiência que excedam 30 dias e fez desaparecer a sanção da perda de eficácia da prova para as situações em que, entre cada uma das sessões, não foi possível assegurar esse limite.

Por um lado pretendeu-se afastar o efeito automático da perda de eficácia da prova independentemente da natureza dos fundamentos – era isso que sucedia até então, numa solução rígida que, mesmo perante circunstâncias justificadas, e designadamente em julgamentos muito complexos, determinava que ficasse sem efeito todo o trabalho processual ocorrido até ao hiato de interrupção de duração superior a 30 dias, obrigando à repetição de depoimentos e atos de produção de prova, mesmo que sobre eles não se suscitassem dúvidas e, designadamente, estando a prova produzida devidamente gravada.

Na exposição de motivos da Proposta de Lei nº 263/XII, a propósito da eliminação da sanção consistente na perda da prova, por ultrapassagem do prazo de 30 dias para a continuação de audiência de julgamento interrompida, pode ler-se:

«(…) no contexto tecnológico atual, a sanção legalmente prevista - perda da eficácia da prova pela ultrapassagem do prazo legal de 30 dias para a continuação da audiência de julgamento - antolha-se desajustada, sendo certo que se considera que a eliminação desta sanção não contende com a manutenção plena dos princípios da concentração da audiência e da imediação».

Tendo sido suprimida a consequência da perda de eficácia da prova produzida (e consequentemente deixando de ter aplicação os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça para Uniformização de Jurisprudência nº 11/2008 (publicado no DR, Série I, de 11/12/2008) e nº 1/2016 (publicado no DR, Série I, de 5 de janeiro de 2016), manteve-se a regra da continuidade da audiência.

É excecional a possibilidade de excesso do prazo de trinta dias entre as várias sessões da audiência de julgamento – tal excecionalidade resulta da ressalva dos casos previstos no nº 7 do artigo 328º do CPP e, por outro lado, das exigências previstas na segunda parte do nº 6, relativas à demonstração dos motivos de impedimento da observância do referido prazo de trinta dias, devidamente explicitados no processo, devendo ficar objetivados em ata (“Se não for possível retomar a audiência neste prazo, por impedimento do tribunal ou por impedimento dos defensores constituídos em consequência de outro serviço judicial já marcado de natureza urgente e com prioridade sobre a audiência em curso, deve o respetivo motivo ficar consignado em ata, identificando-se expressamente a diligência e o processo a que respeita”).

A regra continua a ser a da continuidade da audiência de discussão e julgamento que apenas poderá ser adiada por mais de 30 dias, nas circunstâncias previstas na 2ª parte do nº6 e com as ressalvas decorrentes do nº7 do artigo 328º.

Porque a continuidade da audiência visa a realização da justiça em tempo razoável, a alteração de 2015 quis, precisamente, afastar a necessidade de repetição da produção de provas, designadamente gravadas, quando circunstâncias justificadas determinassem a interrupção da audiência por mais de 30 dias.

Descendo ao caso dos autos, verificamos que, como bem mencionou o Ministério Público na resposta ao recurso, dos próprios termos em que o recorrente suscita a questão, resulta a improcedência da arguição da nulidade.

De facto, não identificou o recorrente a ocorrência de qualquer violação às regras previstas no artigo 328º - todos os lapsos de tempo superiores a trinta dias ocorridos entre as várias sessões de audiência de julgamento encontram cobertura legal nos nrs. 6 (2ª parte) e 7 do preceito em questão, designadamente por ocorrência de impedimentos do Tribunal e de mandatário, por se aguardar a realização de diligências de prova (designadamente exames periciais) e o decurso dos períodos de férias judiciais.

O recorrente considera que a audiência de julgamento se arrastou. Mas dos autos não resulta qualquer período de injustificado protelamento dos atos de produção de prova, nem o recorrente identifica qualquer situação concreta de interrupção que constitua infração às regras (gerais e excecionais) previstas no artigo 328º do CPP.

Nesta conformidade, porque as situações verificadas de continuidade da audiência para além de 30 dias sobre a anterior sessão, se mostraram sempre justificadas, ocorrendo a preservação dos atos (designadamente por via da gravação da prova), não se mostra violada a lei, antes de podendo afirmar respeitado o princípio do julgamento em tempo razoável.

O tribunal fundamentou sempre as razões dos adiamentos da audiência em prazo superior a 30 dias, sem que algum dos sujeitos processuais tivesse, aliás, levantado qualquer questão em tempo oportuno. Pelo que não ocorreu qualquer invalidade.

Improcede assim a nulidade invocada pelo Recorrente.

*

IV-II – IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO.

IV-II-1. DA ALEGADA VIOLAÇÃO DO DISPOSTO NO ARTIGO 163º DO CPP E DO CONSEQUENTE ERRO NOTÓRIO NA APRECIAÇÃO DA PROVA – DA VIOLAÇÃO DOS LIMITES DA LIVRE APRECIAÇÃO DA PROVA E DO PRINCÍPIO DO IN DUBIO PRO REO.

O recorrente, referindo-se aos exames periciais a que ele próprio e a assistente foram sujeitos, considera que o Tribunal a quo se afastou erradamente das conclusões dos peritos, concluindo, designadamente:

“16. A prova pericial representa, assim, em processo penal um desvio ao princípio da livre apreciação da prova contido no art. 127º do C.P.P.

17. O Tribunal não só interpretou erradamente o resultado do exame pericial, como não o valorou em conformidade com o disposto na norma aplicável do artigo 163, no seu nº. 2, do C.P.P., violando assim o princípio da prova vinculada, prova que só pode ser afastada por outro meio de prova idêntico.

18.Caso o Tribunal concluísse que as respostas contidas nas perícias por si ordenadas, tendo em vista a obtenção de respostas aos quesitos por si formulados e realizadas pelas entidades oficiais devidos não foram no sentido de afastar as dúvidas que o motivaram, apenas lhe restaria, em obediência ao princípio in dubio pro reo, valorar a favor do arguido.” (destacados nossos).

Com estes argumentos, não obstante não invoque o disposto no artigo 410º, nº 2, do CPP, o Recorrente assinala a ocorrência do vício decisório de erro notório na apreciação da prova, por violação do princípio do in dubio pro reo e do princípio de livre apreciação da prova.

O regime dos vícios decisórios está definido no artigo 410º/2, do CPP.

Como o normativo esclarece, a apreciação acerca da existência de vícios é restrita ao texto da decisão recorrida, por si ou conjugada com as regras de experiência comum. Significa isto que jamais será fundamento de vício qualquer apreciação que extravase do domínio da literalidade da sentença, ou seja, que implique, por exemplo, a apreciação da prova produzida no processo, documental, pericial ou testemunhal.

O erro notório na apreciação da prova é o vício que tem a ver com a aptidão da fundamentação da aquisição probatória à consideração de que determinados factos se encontram provados, ou não provados. Ocorre sempre que, considerado o texto da decisão recorrida, por si, ou conjugado com as regras de experiência comum, se evidencia um erro de tal modo patente que não escapa à observação do cidadão comum ou do jurista com normal preparação profissional.

O vício do erro notório na apreciação da prova ocorre quando se dá como assente algo patentemente errado, quando se retira de um facto provado uma conclusão ilógica, arbitrária, contraditória ou notoriamente violadora das regras de experiência comum, quando se violam as regras da prova vinculada, as regras da experiência, as legis artis ou quando o tribunal se afasta, sem fundamento, dos juízos dos peritos.

O artigo 163.º do Código de Processo Penal, sob a epígrafe “Valor da prova pericial”, estabelece:

“1 - O juízo técnico, científico ou artístico inerente à prova pericial presume-se subtraído à livre apreciação do julgador.

2 - Sempre que a convicção do julgador divergir do juízo contido no parecer dos peritos, deve aquele fundamentar a divergência.”.

A regra do artigo 163.º do CPP é compatível com a livre apreciação probatória, apenas se erigindo como norma que qualifica essa apreciação probatória, na medida em que permite ao juiz divergir com argumentos qualificados na área técnica, científica ou artística em causa. Para que se constate uma divergência da convicção do julgador relativamente ao resultado da prova pericial é necessário que esse resultado não seja inconclusivo e, por outro lado, que o juízo do Tribunal e o juízo pericial incidam sobre o mesmo facto.

O preceituado no artigo 163º impõe que o Juiz não se desvie do juízo pericial com mero apelo a «regras de experiência comum», à sua convicção pessoal ou a qualquer outro critério que não o uso de conhecimentos e argumentos inerentes à área artística, técnica ou científica da perícia. Emitido um juízo pericial conclusivo sobre determinado facto, o Juiz só dele se poderá desviar se apresentar fundamentação qualificada.

Se na decisão se constata um desvio do juízo pericial sem adequada fundamentação que o suporte, estará configurado o vício do erro notório na apreciação da prova.

Como sempre, também numa tal hipótese, o vício prende-se com os limites a que está sujeito o princípio da livre apreciação da prova, previsto no artigo 127º do CPP.

A apreciação da prova não pode ser entendida como uma operação puramente subjetiva, emocional e, portanto, imotivável: há-de traduzir-se em valoração racional e crítica, de acordo com as regras comuns da lógica, da razão, das máximas de experiência e dos conhecimentos científicos, que permita ao julgador objetivar a apreciação dos factos.

O princípio da livre apreciação da prova serve para não aprisionar o juiz em critérios preestabelecidos pela lei para formar a sua convicção, mas não para o isentar de obediência às regras da experiência e aos critérios da lógica. Neste sentido, um elemento de legalidade entra de novo no problema da apreciação da prova. Ainda que não fixadas pela lei, ele implica, na verdade, que certas regras de direito (nas quais podem transformar-se as leis da lógica e da experiência) presidam à avaliação da prova pelo juiz, mesmo onde falamos de livre convicção. Ideia que implica, por um lado, a possibilidade de apreciar em via de recurso a violação de tais leis na apreciação da prova e, por outro lado, conduz à necessidade de motivar as decisões em matéria de facto.

Em processo penal figura, como critério positivo de prova de um facto, o parâmetro da prova além da presunção de inocência, vindo do direito processual anglo-saxónico, entendido como prova para além de toda a dúvida razoável.

Articula-se com o princípio da livre convicção como se fossem «dois círculos concêntricos de salvaguarda que o sistema processual penal coloca em defesa do cidadão inocente para não correr o risco de ser condenado. Ambos incidem sobre o momento da valoração da prova pelo juiz; momento verdadeiramente crucial para tornar efetivo o direito individual a ver reconhecida a própria inocência, se não resultar provada a sua culpa. O primeiro círculo, com a afirmação do princípio da livre convicção, coloca o momento da valoração da prova a coberto dos efeitos devastadores produzidos pelo sistema precedente da prova legal. O acusado, com efeito, não pode sofrer condenação em resultado do emprego de regras probatórias formais, como as que resultam do modelo aritmético da prova e tem, sem dúvida, o direito de exigir que a garantia da sua presunção de inocência seja efetivamente acionada no caso concreto colocado à valoração do juiz. Com o segundo círculo de salvaguarda, procura evitar-se que a livre valoração do juiz se transforme em arbítrio. O juiz não está sujeito a vínculos normativos externos, mas deve chegar à formação da sua convicção através do emprego de critérios racionais, próprios da lógica, da ciência e do conhecimento comum. A certeza probatória que desse modo o juiz alcança constitui, naturalmente, uma certeza lógica, aplicada ao caso concreto e modelada segundo um itinerário argumentativo objetivamente suscetível de controlo.

Funciona também como base ou pressuposto do princípio in dubio pro reo. Ao pedir-se ao juiz, para prova dos factos, uma convicção objetivável e motivável, está-se a impedi-lo de decidir quando não tenha chegado a esse convencimento; ou seja: quando possa objetivar e motivar uma dúvida. Espera-se deste modo que a decisão convença. Convença o juiz no seu íntimo, mas contenha em si igualmente a virtualidade de convencer o arguido e, nele, a inteira comunidade jurídica. O princípio da livre apreciação da prova, entendido como esforço para alcançar a verdade material, como tensão de objetividade, encontra assim no in dubio pro reo o seu limite normativo: ao mesmo tempo que transmite o carácter objetivo à dúvida que aciona este último. Livre convicção e dúvida que impede a sua formação são face e contra-face de uma mesma intenção: a de imprimir à prova a marca da razoabilidade ou da racionalidade objetiva.

O princípio in dubio é uma regra de decisão, que funciona na falta de uma convicção para além da dúvida razoável sobre os factos. Assim o impõe o processo penal da presunção de inocência, verdadeira base da confiança legítima dos cidadãos nas decisões dos Tribunais.

A sua aplicação desdobra-se em dois momentos: no da avaliação probatória direta, imediata, em primeira instância ou em sede de efetiva reapreciação de prova, na fase de recurso e no da apreciação do processo de aquisição processual da prova fixada, na vertente da avaliação sobre a existência ou não de vício de erro na sua apreciação. Numa primeira fase «o universo fáctico – de acordo com o «pro reo» passar a compor-se de dois hemisférios que receberão tratamento distinto no momento da emissão do juízo: o dos factos favoráveis ao arguido e o dos que lhe são desfavoráveis. Diz o princípio que os primeiros devem dar-se como provados desde que certos ou duvidosos, ao passo que para prova dos segundos se exige certeza. Numa segunda fase, funciona aquando da sua aplicação em Tribunal de recurso: sempre que resulta do texto da decisão recorrida a existência de dúvida sobre factos desfavoráveis ao arguido, ou ainda que não constando, ocorra que a dúvida se instala, quando apreciado o iter cognitivo do julgador.

«Entendidos, assim, objetivamente, os princípios da livre apreciação da prova e do in dubio pro reo, sempre será de considerar este princípio violado quando o tribunal dá como provados factos duvidosos desfavoráveis ao arguido, mesmo que o tribunal não tenha manifestado ou sentido a dúvida que, porém, resulta de uma análise e apreciação objetiva da prova produzida à luz das regras da experiência e/ou de regras legais ou princípios válidos em matéria de direito probatório (cfr art. 127º do CPP)» ( ).

O preceituado no artº 127º/CPP deve ter-se por cumprido quando a convicção a que o Tribunal chegou se mostra objeto de um procedimento lógico e coerente de valoração, com motivação bastante, onde não se vislumbre qualquer assomo de arbítrio na apreciação da prova, considerando que o objeto da prova tanto inclui os factos probandos (prova direta) como factos diversos do tema de prova, mas que permitam, com o auxilio das regras de experiência, uma ilação quanto a estes (prova indireta ou indiciária).

Feito este ponto de ordem, cumpre avançar já para a conclusão – na decisão recorrida, analisada nos seus termos e à luz dos dados da experiência comum, não se deteta qualquer erro notório na apreciação da prova, nem tão-pouco se constata que o Tribunal a quo se tenha desviado de um qualquer juízo pericial conclusivo sobre determinado facto e, menos ainda, que tenha desfavorecido a arguido dando como provados factos relativamente aos quais se confrontou com uma dúvida inultrapassável.

Na economia do recurso, o Tribunal teria emitido um juízo probatório positivo quanto aos factos delituosos imputados ao arguido capaz de consubstanciar um desvio ou afastamento do juízo dos peritos.

Revisitemos os relatórios periciais em questão, para constatarmos o efetivo resultado das perícias.

Do relatório da perícia que incidiu sobre a pessoa da Assistente (relatório apresentado nos autos em 23 de janeiro de 2024) consta:

“Respondendo aos quesitos:

1) A ofendida relata e demonstra comportamentos que denunciem ter sido vítima de maus-tratos físicos e/ou psíquicos perpetrados pelo arguido? - na afirmativa, quais?

A ofendida relata ter sido vítima de maus-tratos físicos e psíquicos perpetrados pelo arguido, a referir maus-tratos emocionais (referido mais do que uma vez, impedir o contacto com outras pessoas, insultar, difamar, humilhar, gritar, ameaçar para meter medo, danificar objetos pessoais para meter medo), bem como atos de maus-tratos físicos (referido mais do que uma vez, apertar o pescoço, atirar com objetos à própria, empurrões violentos e referido uma vez, puxar o cabelo e dar uma sova). Ao longo do seu discurso, demonstra afetos congruentes com o discurso.

2) Os factos verbalizados pela ofendida e imputados ao arguido aparentam ter sido vivenciados?

Existe concordância entre os factos relatados e as emoções demonstradas pela examinanda, o que não nos permite afirmar se foram vivenciados ou não.

3) Ou denotam ter sido induzidos/ imaginados?

Não denotam ter sido induzidos ou imaginados, dado que a mesma apresenta juízo critico pleno.

4) Tais factos afetaram psíquica e mentalmente a ofendida?

Apesar do descrito no passado, considera-se que não existe sintomatologia clínica associada às situações relatadas, sugerindo que os seus fatores protetores, como familiares, sociais e de personalidade, permitiram uma adaptação à situação, não existindo atualmente impacto na vida pessoal, familiar, social e profissional.

5) Na afirmativa, de que forma e com que intensidade a sua personalidade foi afetada?

Não se aplica.

6) A ofendida apresenta capacidade para testemunhar com verdade sobre os factos em apreço?

A ofendida apresenta capacidade para testemunhar com verdade sobre os factos em apreço.”

Por seu turno, do relatório da perícia que incidiu sobre a pessoa do Arguido (relatório apresentado nos autos em 1 de março de 2024) consta:

“O examinado não apresenta sintomatologia do foro mental que permita realizar qualquer diagnóstico de patologia mental, codificável na International Classification of Diseases and Related Health Problems, Tenth Revision (ICD-10).

Da avaliação do seu estado mental no momento resulta apresentar capacidade de distinguir o bem/mal, lícito/ilícito, querer/poder, e de se conseguir autodeterminar segundo essa avaliação, sendo que seria essa a sua condição clínica na altura da ocorrência dos fatos de que está indiciado.

“1) O arguido apresenta traços de personalidade ou patologia que potenciem atos de natureza controladora, manipuladora, persecutória e /ou impulsiva?;”

Não.

“2) O arguido apresenta traços de personalidade ou patologia que potenciem, vitimização, efabulação ou invenção de factos?”

Não.

“3) O arguido apresenta traços de personalidade ou patologia que potenciem atos de heteroagressividade?”

Não.

“4) Em caso afirmativo, qual o espaço temporal que medeia a passagem do pensamento ao ato?”

Não aplicável.

“5) Os factos verbalizados pelo arguido (a versão por este apresentada) aparenta ter sido imaginada/efabulada?”

Não. O examinado refere os eventuais factos ocorridos e descritos no processo de modo coerente e conexo.”

Perante tais conclusões, não se constata qualquer desvio ou afastamento do Tribunal. Ao dar como provados os factos que assim constam na sentença, não afastou o Tribunal a quo qualquer uma das conclusões formuladas pelos peritos.

A Perita que examinou a Assistente afirmou “Existe concordância entre os factos relatados e as emoções demonstradas pela examinanda, o que não nos permite afirmar se foram vivenciados ou não”.

O Tribunal a quo, baseando-se em meios de prova concretamente produzidos e que indicou e analisou na motivação da decisão de facto (designadamente as declarações da assistente e documentos dos autos) deu como provados os factos enumerados na sentença.

O Perito que examinou o arguido afirmou a sua plena imputabilidade e, simultaneamente, que o mesmo não apresenta traços de personalidade ou patologia que potenciem atos de natureza controladora, manipuladora, persecutória e /ou impulsiva, que potenciem atos de vitimização, efabulação ou invenção de factos, que potenciem atos de heteroagressividade.

O Tribunal a quo, baseando-se nos meios de prova que já supra aludimos, mas também nas declarações do próprio arguido (que igualmente indicou e analisou criticamente na motivação da decisão de facto) deu como provados os factos enumerados na sentença.

Não há qualquer vislumbre de violação na sentença das conclusões das perícias – estas não infirmam ou afirmam os factos dados como provados ou não provados. E tanto basta para que se conclua pela improcedência da argumentação do recorrente.

O Recorrente considera que perante a circunstância de a Perita que examinou a Assistente não se permitir afirmar que os factos por ela relatados foram efetivamente vivenciados e, por outro lado, perante o facto de o Perito que examinou o arguido excluir que os factos verbalizados pelo mesmo tenham a aparência de terem sido imaginados/efabulados (por ser coerente e conexa a versão apresentada), nada mais restava ao Tribunal a quo que a constatação da dúvida intransponível – impunha-se, a seu ver, que o Tribunal tivesse permanecido em estado de dúvida sobre a ocorrência dos factos e, consequentemente, os tivesse julgado não provados.

Nada mais errado.

Dos termos vertidos na decisão recorrida (e é com esses que temos de lidar na busca de solução para a questão da ocorrência do vício invocado), não decorre que o Tribunal a quo se tenha confrontado com o problema que inquieta o recorrente.

Não se deixaram de referir na decisão recorrida as dificuldades na apreciação da prova, dada a oposição de versões do arguido e da assistente e a indisponibilidade de testemunhos credíveis no sentido de uma ou outra das versões. Mas da motivação não consta só isso. Ali se verteram as razões que, em profunda análise crítica dos meios de prova produzidos, permitiram afastar as dúvidas e formular o juízo probatório positivo quanto aos factos dados como provados.

Aqui chegados, podemos com segurança afirmar que da leitura da decisão recorrida não resulta a violação do princípio do in dubio pro reo.

Resulta da motivação da decisão de facto, que o Tribunal a quo conferiu grande relevância às declarações da Assistente, dando crédito à sua versão. Mas o que também resulta da leitura da decisão é que o juízo probatório emitido se mostra fundado, não apenas nas declarações daquela, mas também noutros meios de prova, designadamente testemunhal e por declarações do próprio arguido, provas essas que com o relato da ofendida foram concatenados e que, nos termos expostos na decisão recorrida, reforçam a versão apresentada pela vítima e, desse modo, a sua credibilidade.

Contra isso, de nada vale esgrimir, como faz o recorrente, com uma visão pessoal/particular da prova. Esse exercício ensaiado pelo recorrente assenta apenas numa interpretação diferente da prova produzida e, consequentemente somos remetidos para o âmbito da livre apreciação da prova por parte do julgador, princípio consagrado no art.º 127.º do C.P.P. que impõe que, salvo quando a lei dispuser diferentemente, a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente.

De facto, é na atribuição, ou não, de credibilidade a determinado meio de prova que tem especial aplicação o princípio da livre apreciação da prova por parte do julgador vertido no citado art.º 127.º do C.P.P.. Foi precisamente isso que se verificou no caso em apreço, sendo que igualmente não se vislumbra qualquer violação do princípio in dubio pro reo.

Como afirmámos, o que resulta deste princípio é que, quando o Tribunal fica na dúvida quanto à ocorrência de determinado facto, deve daí retirar a consequência jurídica que mais beneficie o arguido, sendo que, conforme refere Figueiredo Dias, in “Direito Processual Penal”, I, pág. 205, para que a dúvida seja relevante para este efeito há-de ser uma dúvida razoável, uma dúvida fundada em razões adequadas e não uma qualquer dúvida. Só haverá, pois, violação do mencionado princípio quando, perante uma dúvida sobre factos essenciais para a decisão da causa, venha o julgador a decidir em desfavor do arguido. Tal não ocorreu, manifestamente, no caso dos autos, mostrando-se a factualidade julgada provada estribada em prova dos autos e em consonância com essa prova. Não vislumbramos na decisão recorrida, quer na matéria de facto julgada provada, quer na sua fundamentação, que, ao fazer esta opção fáctica, o Tribunal a quo tivesse tido qualquer hesitação quanto à valoração da prova, não se vislumbrando também que, na concreta situação dos autos, devesse ter tido qualquer dúvida.

Deste modo, sendo os factos dados como provados na decisão recorrida conclusões lógicas das provas referidas e analisadas na motivação, não constituindo qualquer desvio a juízo pericial constante dos autos, a convicção assim formada pelo julgador não pode ser censurada, ser apelidada de notoriamente errada, sob pena de violação do princípio da livre apreciação da prova pelo julgador.

Consequentemente, improcede o recurso na parte em que vem invocada a violação do disposto no artigo 163º do Código de Processo Penal e, por essa via, o vício de erro notório e a violação dos princípios da livre apreciação da prova e do in dubio pro reo.

*

IV-II-2. DO ERRO DE JULGAMENTO EM MATÉRIA DE FACTO – IMPUGNAÇÃO AMPLA DA MATÉRIA DE FACTO.

Enfrentemos, então, a impugnação da matéria de facto por erro de julgamento que surge na economia do recurso fundada na insuficiência da prova produzida para a emissão do juízo probatório positivo emitido quanto aos factos imputados ao arguido.

Cumprindo os ónus de impugnação estabelecidos no artigo 412º, nº 3, do Código de Processo Penal, o recorrente considera incorretamente julgados os seguintes pontos da matéria de facto dada como provada: 15, 16, 17, 21, 22, 23, 24, 30, 33, 36, 46, 47, 50, 51, 54, 57, 64, 68, 69, 71, 72 e 73.

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Vejamos.

Quando a reapreciação da matéria de facto é feita no âmbito da impugnação ampla, nos termos previstos no art.º 412.º, n.ºs 3, 4 e 6, do Código de Processo Penal, a apreciação alarga-se à análise da prova produzida em audiência, dentro dos limites fornecidos pelo recorrente, só podendo alterar-se o decidido se as provas indicadas obrigarem a decisão diversa da proferida (assim não podendo fazer-se caso tais provas apenas permitam uma outra decisão, a par da decisão recorrida - neste último caso, havendo duas, ou mais, possíveis soluções de facto, face à prova produzida [o que sucede, com algum grau de frequência, nomeadamente nos casos em que os elementos de prova recolhidos são totalmente opostos ou muito contraditórios entre si], se a decisão de primeira instância se mostrar devidamente fundamentada e couber dentro de uma das possíveis soluções face às regras de experiência comum, é esta que deve prevalecer, mantendo-se intocável e inatacável, pois tal decisão foi proferida de acordo com as imposições previstas na lei [artºs127 e 374 nº2 do C. P. Penal], inexistindo assim violação destes preceitos legais).

Nesse sentido, veja-se o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 29.03.20112, em cujo sumário se lê:

«I. A matéria de facto pode ser sindicada por duas vias: no âmbito, mais restrito, dos vícios previstos no artigo 410º, nº2, do C.P.P., no que se convencionou chamar de «revista alargada»; ou através da impugnação ampla da matéria de facto, a que se refere o artigo 412º, nºs3, 4 e 6, do mesmo diploma;

II. No primeiro caso, estamos perante a arguição dos vícios decisórios previstos nas diversas alíneas do nº2 do referido artigo 410º, cuja indagação, como resulta do preceito, tem que resultar da decisão recorrida, por si mesma ou conjugada com as regras da experiência comum, não sendo por isso admissível o recurso a elementos àquela estranhos, para a fundamentar, como, por exemplo, quaisquer dados existentes nos autos, mesmo que provenientes do próprio julgamento. No segundo caso, a apreciação não se restringe ao texto da decisão, alargando-se à análise do que se contém e pode extrair da prova (documentada) produzida em audiência, mas sempre dentro dos limites fornecidos pelo recorrente no estrito cumprimento do ónus de especificação imposto pelos nºs3 e 4 do art. 412º do C.P. Penal;

III. A ausência de imediação determina que o tribunal de 2ª instância, no recurso da matéria de facto, só possa alterar o decidido pela 1ª instância se as provas indicadas pelo recorrente impuserem decisão diversa da proferida e não apenas se a permitirem [al. b) do n.º3 do citado artigo 412.º];»

Expliquemos.

O poder reapreciativo da 2ª instância não é equivalente ao poder original atribuído ao juiz do julgamento, não podendo a sua convicção ser arbitrariamente alterada apenas porque um dos intervenientes processuais expressa o seu desacordo face àquela, pois o poder reapreciativo concedido ao tribunal de recurso não é absoluto nem se reconduz à realização integral de um novo julgamento da matéria de facto, substituto do já realizado em 1ª instância.

Na verdade, sendo o recurso um remédio jurídico, um instrumento de reparação de algo que foi errada ou deficientemente apreciado e decidido, daqui decorre que só poderá haver lugar a uma alteração da decisão quanto à matéria factual já apurada pelo julgador a quo, nos casos em que, dentro dos poderes que a lei concede ao tribunal de revista, se tenha de concluir que um “mal” inelutavelmente se verifica.

Assim, a reapreciação só determinará uma alteração à matéria fáctica provada quando, do reexame realizado dentro das balizas legais, se concluir que os elementos probatórios impõem uma decisão diversa, mas já não assim quando esta análise apenas permita uma outra decisão.

Cumpre então enunciar quais são os poderes de reapreciação de matéria de facto, atribuídos por lei a este tribunal de apelo, bem como os seus limites e os seus condicionalismos

Há que começar por constatar que compete ao Tribunal decidir a matéria de facto, segundo os ditames previstos no artigo 127º do Código de Processo Penal.

Daqui decorre que a livre convicção não se confunde com a íntima convicção do julgador, uma vez que a lei lhe impõe que extraia das provas um convencimento lógico e motivado, sendo que a avaliação probatória deve ser realizada com sentido da responsabilidade e bom senso.

O artigo 127° do Código de Processo Penal determina, pois, um limite à discricionariedade do julgador: as regras da experiência comum e da lógica do homem médio suposto pela ordem jurídica. Sempre que a convicção seja uma convicção possível e explicável pelas regras da experiência comum, deve acolher-se a opção do julgador de 1ª instância, até porque o mesmo beneficiou da oralidade e da imediação na recolha da prova (Cfr. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 13 de fevereiro de 2008, processo nº 07P4729, acessível em www.dgsi.pt.).

Temos, pois, que a lei não considera relevante a pessoal convicção de cada um dos intervenientes processuais, no sentido de a mesma se sobrepor à convicção do Tribunal – até porque se assim fosse, não haveria, como é óbvio, qualquer decisão final. O que a lei permite é que, quem entenda que ocorreu um erro de apreciação da prova, o invoque, fundamentadamente, em sede de recurso, para que tal questão possa ser reapreciada por uma nova instância jurisdicional.

Para além de a lei determinar a forma como tal reapreciação deve ser pedida, estabelece igualmente os limites de tal reapreciação – ou seja, os poderes de cognição que confere ao tribunal de apelo.

Mesmo nos casos em que exista documentação dos atos da audiência, o recurso para o Tribunal da Relação não constitui um novo julgamento, no sentido de haver lugar a reapreciação integral da prova.

O que esta instância pode e deve fazer em tal matéria, em sede de recurso (precisamente porque o seu propósito é, essencialmente, o de remédio jurídico), é verificar, ponto por ponto, se os concretos erros de julgamento indicados pelo recorrente, de facto existem e, na afirmativa, proceder à sua correção.

Face ao que se deixa exposto, haverá que concluir que, em tal matéria, cabe apenas ao tribunal de recurso verificar, controlar, se o tribunal a quo, ao formar a sua convicção, fez um bom uso do princípio de livre apreciação da prova, aferindo da legalidade do caminho que prosseguiu para chegar à matéria fáctica dada como provada e não provada, sendo certo que tal apreciação deverá ser feita com base na motivação elaborada pelo tribunal de primeira instância, na fundamentação da sua escolha – ou seja, no cumprimento do disposto no artº 374º, nº 2, do Código de Processo Penal.

Prosseguindo.

Determina o artigo 412º, nrs. 3 e 4, do Código de Processo Penal que, quando impugne a decisão proferida sobre matéria de facto, o recorrente deve especificar:

a) Quais os pontos de facto que considera incorretamente julgados;

b) Quais as provas que impõem decisão diversa da recorrida,

c) Sendo que o deve fazer concretizando tais matérias e fazendo referência às passagens constantes nos suportes técnicos de gravação, devendo tais especificações serem feitas por referência ao consignado na ata.

O que decorre destes requisitos legais é algo simples – cabe ao recorrente enunciar qual a factualidade concreta que se mostra mal apreciada e discutir os diversos segmentos probatórios que, no seu entender, deveriam fundar uma diversa apreciação relativamente a tais pontos de facto.

Efetivamente, não basta afirmar sumariamente que A. ou B. disse isto ou aquilo, que não corresponde ao que foi dado como assente; necessário se mostra que o recorrente, com base nesses elementos probatórios, os discuta face aos restantes e demonstre que o raciocínio lógico e conviccional do tribunal “a quo” se mostra sem suporte, na análise global a realizar da prova, enunciando concretamente as razões para tal.

No fundo, exige-se que o recorrente – à semelhança do que a lei impõe ao juiz – fundamente a imperiosa existência de erro de julgamento, desmontando e refutando a argumentação expendida pelo julgador.

Assim, o que é pedido ao recorrente que invoca a existência de erro de julgamento é que aponte na decisão os segmentos que impugna e que os coloque em relação com as provas, concretizando as partes da prova gravada que pretende que sejam ouvidas (se tal for o caso), quais os documentos que pretende que sejam reexaminados, bem como quaisquer outros concretos e especificados elementos probatórios, demonstrando com argumentos a verificação do erro judiciário a que alude.

Postas estas considerações gerais, nas quais seguimos muito de perto o que se pode ler na modelar explanação feita no Acórdão da Relação de Lisboa de 16 de outubro de 2019 proferido no Processo nº 4910/08.9TDLSB3, vejamos a impugnação concretamente apresentada pelo recorrente.

*

Cumpre, desde logo, sublinhar que o recorrente considera incorretamente julgados os pontos de facto supramencionados, entendendo que quanto aos mesmos se impunha um juízo probatório negativo, por considerar que as declarações da assistente não merecem credibilidade e estão desacompanhadas de quaisquer meios de prova que as corroborem.

Insistindo na sua valoração dos meios de prova e criticando a valoração feita pelo Tribunal recorrido, o recorrente considera irrelevantes todas as declarações prestadas pela ofendida, argumentando que a valoração feita pelo Tribunal a quo prescindiu de provas corroborantes e, em face do comportamento da assistente de manutenção da vida em comum com o arguido, choca com as regras da experiência comum. Pugna o recorrente pela ausência de prova suficiente dos factos, indicando os segmentos da prova gravada e os documentos que, na sua perspetiva, excluem a possibilidade de se aceitar o relato da assistente.

Sucede que as provas indicadas pelo recorrente não impõem decisão diversa da proferida (al. b) do n°3 do art.° 412º do CPP) que permita ao tribunal de recurso alterar o decidido.

Conforme se escreve no Acórdão da Relação de Évora, de 1 de Abril de 2008 proferido no P.° 360/08-1.a, acessível em www.dgsi.pt: “Impor decisão diversa da recorrida não significa admitir uma decisão diversa da recorrida. Tem um alcance muito mais exigente, muito mais impositivo, no sentido de que não basta contrapor à convicção do julgador uma outra convicção diferente, ainda que também possível, para provocar uma modificação na decisão de facto. É necessário que o recorrente desenvolva um quadro argumentativo que demonstre, através da análise das provas por si especificadas, que a convicção formada pelo julgador, relativamente aos pontos de facto impugnados, é impossível ou desprovida de razoabilidade. É inequivocamente este o sentido da referida expressão, que consubstancia um ónus imposto ao recorrente.»

Conforme entendimento perfilhado no Acórdão do TRL, de 09.10.2013, Proc. n° 132/12.SYLSB.L1-3, disponível em www.dgsi.pt:

"A discordância do recorrente quanto ao modo como o tribunal recorrido valorou a prova produzida só pode relevar se não tiverem sido respeitados os limites decorrentes da regra da livre apreciação da prova, se as declarações tiverem inequivocamente um sentido diferente daquele que foi apreendido pelo tribunal recorrido ou se existirem provas que imponham (e não apenas que permitam) decisão diversa da recorrida.".

In casu, o que se verifica é que o recorrente não se conforma com a matéria de facto fixada pelo Tribunal, mas essa discordância não resulta de declarações, ou prova documental, ou outra, evidenciadora do contrário, mas, tão só, da forma como a prova foi apreciada pelo Tribunal a quo.

Importa começar por afirmar que, ponderando o acervo probatório à disposição do Tribunal a quo – tendo em conta que o próprio arguido prestou declarações sobre os factos, por um lado; considerando as declarações prestadas pela assistente; e considerando ainda a demais prova testemunhal e documental produzida – verifica-se que não assiste razão ao arguido quando argumenta com a ausência de base para a emissão do juízo probatório que o Tribunal recorrido emitiu.

O recorrente pretende convencer que o Tribunal emitiu o juízo probatório apenas com base nas declarações da ofendida, sem dispor de qualquer outro meio de prova que as corroborasse.

Não tem razão.

O Tribunal a quo fez um completo trabalho de conjugação e apreciação de toda a prova produzida - como bem refere o Ministério Público na resposta ao recurso “a douta Sentença ora recorrida fundamentou de forma clara e adequada a matéria de facto dada como provada, analisando todos os meios de prova que sustentaram a apreciação feita pelo Tribunal a quo, fazendo uma apreciação, interpretação e valoração dos mesmos, cuja razoabilidade e plausibilidade é (…) inatacável”.

O recorrente limita-se a tecer considerações sobre a forma errada como o Tribunal recorrido valorou a prova, designadamente fazendo apelo a um suposto erro de julgamento, consistente na atribuição de crédito à assistente, mesmo quando as suas declarações não dispuseram de outras provas que corroborassem a versão apresentada.

Certo é que o Tribunal a quo especificou detalhadamente os motivos pelos quais as declarações da ofendida/assistente mereceram crédito e, bem assim, as razões pelas quais os meios de prova que as corroboraram (designadamente a documentação dos autos), concorreram para a formação da convicção da Julgadora.

Para formar a sua convicção, em relação aos factos provados e não provados, o Tribunal recorrido apoiou-se em elementos de prova válidos, que analisou criticamente, conjugando-os entre si, não indicando o recorrente, nem constando dos autos, quaisquer elementos de prova que imponham decisão diversa, ou sequer, que justifiquem dúvida sobre os factos considerados provados.

Efetivamente, retira-se da douta decisão recorrida que a convicção do Tribunal a quo relativamente à matéria de facto dada por assente relativamente aos factos respeitante à vítima se fundou na análise crítica e conjugada de toda a prova, fazendo-se, ainda, apelo às regras da vida e da experiência comum, em obediência ao princípio da livre apreciação da prova ínsito no art.° 127° do Código de Processo Penal, tendo, em concreto, a Julgadora dado especial primazia às declarações da ofendida/assistente, perante a forma coerente, completa, sincera e com detalhe com que foram produzidas as mesmas. Considerou, para além do mais, prova testemunhal e documental que corroborou as declarações da ofendida.

Tendo a motivação apresentada pelo Tribunal recorrido o conteúdo supra transcrito, relida também a motivação do recurso e tendo-se procedido ao exame da prova e, designadamente, à audição integral das declarações da assistente e do arguido e dos depoimentos prestados em audiência de julgamento, afigura-se-nos manifesto que o que o recorrente pretende atacar não é a insuficiência, ou a errada apreciação da prova para a sua condenação, mas antes, e tão só, a convicção do Tribunal a quo. Sucede que da decisão recorrida resulta que foi ponderado, de forma fundamentada, o conjunto da prova produzida, através dos diversos meios que o Tribunal concatenou entre si, de acordo com as regras da experiência comum e de juízos de normalidade social. Não se conforma o recorrente com a circunstância de o Tribunal ter julgado credíveis as declarações da assistente para concluir que o recorrente efetivamente praticou os factos. Mas esse inconformismo não constitui fundamento do alegado erro de julgamento.

São transponíveis para o caso presente as doutas considerações que foram vertidas no Acórdão da Relação de Évora de 24 de junho de 2008, acerca da valoração das declarações do assistente4:

“No essencial, o arguido e recorrente não assinala qualquer desconformidade entre a prova produzida e a prova considerada pelo tribunal para formar a sua convicção, nomeadamente no que respeita ao teor do depoimento da assistente, ao peso relativo do mesmo no conjunto da prova produzida e examinada e à verificação dos factos indiciários. Considera, antes, que ao formar a sua convicção essencialmente com base no depoimento da assistente e em factos indiciários, como afirmado na análise crítica da prova, o tribunal a quo extravasou do disposto no art. 127º do CPP, conjugado com as regras da experiência comum e o princípio da presunção de inocência, violando assim o princípio da livre apreciação da prova nele acolhido, pelo que os pontos de factos especificamente impugnados devem ser julgados não provados.

Não tem, porém, razão o recorrente - pelo menos no plano do direito constituído que aqui nos importa -, pois a valoração do depoimento do assistente e dos factos indiciários mostra-se conforme às actuais regras de direito probatório acolhidas no nosso processo penal, maxime o princípio da prova livre ou não taxatividade dos meios de prova, previsto no art. 125º do C.P.P., relativo á aquisição da prova, e o princípio da livre apreciação da prova consagrado no art. 127º do CPP, relativo à sua valoração:

a) Do ponto de vista da aquisição da prova, a lei processual penal inclui genericamente as declarações do assistente e das partes civis entre os meios de prova que expressamente prevê ( cfr art. 145º do CPP), pelo que não só aquelas declarações não são proibidas por lei, como são expressamente reguladas, sendo claramente admissíveis face ao princípio acolhido no art. 125º do CPP.

b) Do ponto de vista da valoração da prova, a lei processual penal não regula em especial o valor probatório daquelas declarações, limitando-se a dispensar o assistente e as partes civis da obrigação de prestar juramento, mas vinculando aqueles sujeitos processuais ao dever de falar com verdade de forma semelhante ao previsto para o depoimento testemunhal, cujo regime lhe é subsidiariamente aplicável (cfr art 145º nºs 2 e 3 CPP). O CPP. Não prevê, ainda, qualquer regra de corroboração necessária, […] quer em geral, quer para aquele meio de prova específico, quer mesmo para a prova de determinados factos, pelo que a valoração das declarações do assistente e das partes civis, deve respeitar apenas o princípio da livre apreciação da prova.

(…)

b.2. - Ora, não obstante o interesse na causa que, por princípio, se reconhece no Assistente e nas partes civis, não há regra legal que limite o seu valor probatório, como aludido, nem tão pouco pode falar-se de regra ou máxima da experiência que, de forma apriorística e abstracta, afirme a falta de credibilidade das declarações do assistente e das partes civis ( ou, mais amplamente, da vítima e do ofendido) em termos tais que se exigisse – pelo menos – a sua corroboração por outros meios de prova, tal como o faz, por exemplo, o art. 192º nº3 do CPP italiano para o co-arguido.(…)”.

A este Tribunal de apelo cabe constatar que o Tribunal recorrido teve contacto vivo e imediato com o arguido, com a assistente e com as demais testemunhas, tendo transposto para a motivação da sua convicção não só o elenco das provas reputadas relevantes, como também o seu exame crítico, explicitando o processo de formação da convicção, tecendo considerações sobre a credibilidade a conferir às declarações da ofendida, em aspeto algum destruída ou enfraquecida por outros meios de prova, não se limitando a decisão recorrida a mostrar os meios de prova, através do seu elenco, pois demonstrou e exteriorizou por que razão se convenceu que o recorrente cometeu os factos de que vinha acusado.

Nenhuma censura nos merece a fundamentação, cumprindo, mais uma vez, salientar que a crítica à convicção a que chegou o Tribunal a quo, sustentada na livre apreciação da prova e nas regras da experiência comum [que não se mostram violadas], não pode ter sucesso ao alicerçar-se apenas na diferente convicção do recorrente sobre a prova produzida.

Da análise do conjunto das provas produzidas em julgamento, resulta evidente que inexiste qualquer prova que obrigasse a decisão diferente da proferida pelo Tribunal a quo, mostrando-se a decisão de facto devida e claramente fundamentada, estando suportada pela prova produzida, criticamente analisada pelo Tribunal, nos termos constantes da motivação da decisão de facto.

Dúvidas não existem, pois, de que as provas produzidas permitiam considerar provados os factos, objectivos e subjectivos, referentes à situação de que foi vítima …, nos termos deixados consignados na decisão recorrida, não tendo o Recorrente logrado indicar, como lhe competia, provas que impusessem decisão diversa da consignada pelo Tribunal a quo.

Impõe-se, por isso, julgar improcedente a impugnação ampla da matéria de facto.

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Aqui chegados, importa concluir pela total improcedência do recurso em matéria de facto, devendo ter-se por definitivamente assentes as circunstâncias enumeradas pelo Tribunal a quo, em face das quais se deverá apreciar as questões de Direito suscitadas no recurso.

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IV.III. DO ENQUADRAMENTO JURÍDICO DOS FACTOS – PREENCHIMENTO DO TIPO DE CRIME; DO QUANTUM INDEMNIZATÓRIO.

O Arguido Recorrente, argumentando que o conceito de maus tratos exige o desprezo, humilhação, especial desconsideração pela vítima e a gravidade destas manifestações, entende que “não se pode considerar que a conduta do arguido espelhe uma situação de maus tratos da qual resulte ou seja susceptível de resultar sérios riscos para a integridade física e psíquica da assistente”.

Acrescenta que no caso é “demasiado evidente que após momentos de discussão mais acesa, arguido e assistente reataram a sua relação e fazendo-o sempre de um modo carinhoso, bem como resulta, outrossim, de todas as mensagens trocadas entre ambos, sentimentos de profundo respeito demonstrado pelo arguido à assistente”.

Alega, ainda, que resulta da perícia médico legal – Psicologia – efetuada na pessoa da Assistente que “os factos por ela narrados não afectaram psiquica e mentalmente a ofendida não afectando a sua personalidade”.

Conclui que “os episódios não revestem a gravidade suficiente para serem taxados de violência doméstica, uma vez que não possuem aquele plus em termos de perversidade ou crueldade que a sua tutela já não possa ser assegurada, eventualmente, por outro tipo de ilícito parcelar”, entendendo que se mostra arredada a punição da conduta do arguido como integrante de um crime de violência doméstica p. p. pelo art. 152º do Código Penal.

Por fim, considera que “a condenação do demandado ao pagamento à demandante, a título de indemnização pelos danos não patrimoniais da quantia de 4.000,00 € (quatro mil euros) revela-se manifestamente exagerado por ofender o disposto no art. 494º do Código Civil”.

Cumpre apreciar.

Preceitua o artigo 152.º, n.º 1, alínea b) do Código Penal que “quem de modo reiterado ou não infligir maus-tratos físicos ou psíquicos incluindo castigos corporais, privações de liberdade e ofensas sexuais: […] b) A pessoa de outro ou do mesmo sexo com quem o agente mantenha ou tenha mantido uma relação de namoro ou uma relação análoga à dos cônjuges, ainda que sem coabitação; […]”

Por sua vez, acrescenta a alínea a) do n.º 2 que “No caso previsto no número anterior, se o agente a) Praticar o facto contra menor, na presença de menor, no domicílio comum ou no domicílio da vítima; […] é punido com pena de prisão de dois a cinco anos.”, o que corresponde a uma circunstância agravante consubstanciada, além do mais, no facto de as condutas serem praticadas, nomeadamente, no domicílio da vítima, contra menor ou na presença de menor.

Até à entrada em vigor da Lei n.º 59/2007, de 04.09, constava do artigo 152.º, n.º 2 do Código Penal, o crime de maus tratos, tendo o legislador autonomizado, com essa alteração legislativa, o crime de violência doméstica face aos demais crimes que constavam do elenco do referido artigo.

Ainda por via do referido diploma legal, o legislador tomou posição quanto à desnecessidade da reiteração dos maus tratos e enunciou um conjunto de condutas aptas a preencher o conceito de “maus tratos físicos e psíquicos”, alargou o âmbito das potenciais vítimas através das várias alíneas aditadas ao n.º 1 do referido crime, puniu de forma mais severa determinadas formas de cometimento do crime e consagrou a possibilidade de aplicação de penas acessórias.

Cumpre referir que quanto ao bem jurídico protegido no crime de violência doméstica, AMÉRICO TAIPA DE CARVALHO refere que “o âmbito punitivo deste tipo de crime inclui comportamentos que lesam esta dignidade [humana]. Se, em tempos passados, se considerou que o bem jurídico protegido era apenas a integridade física, constituindo o crime de maus tratos uma forma qualificada/agravada do crime de ofensas corporais simples, hoje, uma tal interpretação redutora é, manifestamente, de excluir” (Comentário Conimbricense ao Código Penal, Tomo I, pág. 512), sustentando que o crime tipificado no artigo 152.º do Código Penal visa antes a “protecção da pessoa individual e da sua dignidade humana”.

Assim, para além da agressão física, mais ou menos violenta, pode verificar-se o ilícito com a agressão verbal, a agressão emocional, a agressão sexual e a agressão à liberdade, sendo igualmente múltiplas as suas formas de comissão ou omissão.

Trata-se de um crime de dano, quanto ao bem jurídico e de resultado, no que tange ao objeto da ação, exceto quanto às ofensas sexuais, sendo então um crime de mera atividade.

Por outro lado, estamos em presença de um crime específico impróprio, vendo-se agravada a ilicitude da conduta atendendo aos especiais laços entre agente e vítima, os quais serão de família, parentalidade ou dependência.

Quanto ao tipo objetivo, pratica o crime de violência doméstica “quem, de modo reiterado ou não, infligir maus tratos físicos ou psíquicos, incluindo castigos corporais, privações da liberdade e ofensas sexuais”, deixando de parte a discussão sobre se o crime em apreço exigia ou não a reiteração da conduta delituosa – concluindo o legislador pela inexigibilidade de reiteração para o preenchimento do tipo de crime.

Na verdade, o crime de violência doméstica pode ser preenchido pela prática de múltiplas condutas, de forma reiterada ou através de uma só conduta do agente, solução que, como se viu, anteriormente, já vinha sendo defendida na jurisprudência, no sentido de se admitir poder integrar um crime de violência doméstica uma só resolução criminosa, desde que, revestindo uma gravidade tal, que configurasse atentado grave contra a saúde física, psíquica ou moral da vítima, atingindo inexoravelmente a sua dignidade enquanto pessoa humana e tornando insustentável a relação com o agressor.

A distinção deste tipo de ilícito dos demais, sobretudo do crime de ofensas à integridade física, do crime de injúria, do crime de ameaça, do crime de sequestro, entre outros, não se funda na qualidade da vítima, mas na autonomia do bem jurídico tutelado – a integridade pessoal e física das pessoas.

Assim, é indispensável que a atuação ilícita, única ou reiterada, atinja pela sua intensidade, circunstâncias ou modo como foi praticada, a integridade pessoal da vítima, a sua dignidade ou o livre desenvolvimento da sua personalidade.

São sempre as circunstâncias de facto que demonstrarão, havendo ou não reiteração, que à luz da relação existente entre o agente e a vítima, a atuação daquele colocou esta última numa situação que se deva considerar incompatível com a sua dignidade e liberdade dentro do ambiente conjugal ou equiparado.

Em suma, atento o bem jurídico protegido pelo crime, a doutrina e a jurisprudência têm entendido que para se considerar que uma única conduta ou um ato isolado possam preencher o tipo de crime em apreço, há que atender à intensidade da conduta e à forma como esta é suscetível de afetar a dignidade humana da vítima.

O julgador, na densificação do conceito de maus tratos não poderá olvidar a razão de ser pretendida pela própria incriminação, no sentido de o crime de violência doméstica visar uma “tutela especial ou reforçada” da dignidade da pessoa humana.

Assim, nem todas as ofensas perpetradas no seio familiar ou de uma relação de namoro são suscetíveis de integrar o conceito de maus tratos.

Pelo contrário, apenas deverão ser reconduzidas a este conceito as ofensas que, face à configuração global dos factos, revelem por parte do agressor um desrespeito pela pessoa da vítima ou uma posição de prevalência e domínio sobre aquela, que evidenciem um enfraquecimento ou aviltamento da dignidade pessoal, reveladoras de um tratamento insensível ou degradante da condição humana.

Ou seja, impõe-se a análise da conduta concretamente realizada para que se averigue se a mesma constitui, ou não, um atentado à dignidade pessoal protegida pela norma.

No que concerne ao elemento da reiteração este há-de assentar num conceito fáctico e criminológico de repetição por parte do sujeito ativo, que dê lugar a um estado de agressão permanente, sem que as agressões tenham que ser constantes - embora se imponha uma proximidade temporal relativa entre si. Muitas vezes, é o estado de agressão permanente que permite concluir pelo exercício de uma relação de domínio ou de poder, proporcionada pelo âmbito familiar ou quase-familiar, deixando a vítima sem defesa numa situação humanamente degradante.

A unidade de ação típica não é excluída pela realização repetida de atos parciais, quer estes atos integrem, ou não, em si mesmos, outros tipos de crime, pois que o tipo legal inclui na descrição da ação uma pluralidade indeterminada de atos parciais, persistindo este crime “enquanto durarem os actos lesivos da saúde física (que podem ser simples ofensas corporais), da saúde psíquica e mental da vítima (humilhando-a, ou apelidando-a com injúrias, por exemplo) e a relação de convivência, que faz dele um crime de vinculação pessoal persistente” (neste sentido, o Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 09.10.2017 – Relatora: Ausenda Gonçalves - Processo n.º 83/14.6GAMCD.G1, disponível em www.dgsi.pt).

O crime de violência doméstica integra, assim, a categoria de crimes prolongados, exauridos ou de trato sucessivo, exigindo-se, no entanto, que se confirme uma unidade de condutas ilícitas sucessivas, essencialmente homogéneas e temporalmente uniformes e sem interrupção, presididas por uma mesma unidade resolutiva criminosa assumida pelo agente. É essa unidade resolutiva, a par da homogeneidade de atuação e da proximidade temporal, que constitui a razão de ser da unificação dos atos de tratos sucessivos num só crime.

Tendo tudo isto em mente, revisitemos os factos provados, transcrevendo-se agora apenas os pontos essenciais dos mesmos:

“1. Em 2009, o arguido, AA, e a assistente, BB, iniciaram entre si um relacionamento de namoro, tendo passado a viver em comunhão de leito, mesa e habitação, como se de marido e mulher se tratassem, em data não concretamente apurada, entre os anos de 2011 e 2012.

(…)

10. No período situado entre fevereiro de 2020 e setembro de 2021, em datas e em número de vezes não concretamente apurados, o arguido, no contexto de discussões – mormente, associadas a críticas que fazia à assistente, relacionadas com a invocada falta de brio da mesma na realização das tarefas domésticas no interior da residência comum –, disse a BB que a mesma devia estar a passar o tempo, em casa, a falar, nas redes sociais, com outros homens.

11. Em data não concretamente apurada do verão de 2021, no final de junho ou em julho, à noite, a assistente e o arguido encontravam-se na sala da residência comum (…) a assistir a um filme.

12. A dado momento, o telemóvel de BB rececionou uma notificação, que esta não leu de imediato, o que foi percecionado pelo arguido.

13. Seguidamente, BB deslocou-se à casa de banho, levando consigo o seu telemóvel, com a intenção de ler tal notificação.

14. Ato contínuo, o arguido AA entrou na casa de banho e questionou a assistente sobre o facto de a mesma não ter aberto a notificação na sua presença.

15. Sentada na sanita, BB disse ao arguido que podia consultar o seu telemóvel, o que o mesmo recusou fazer, tendo gritado com ela, apodando-a de “mentirosa”, dizendo-lhe que estava a enganá-lo, mas que ele “não era parvo nenhum”.

16. Ao sair da casa de banho, o arguido segurou a porta dessa divisão assoalhada pelo respetivo perfil e empurrou-a no sentido do corpo da assistente – que se mantinha sentada na sanita –, fazendo tal objeto embater na cabeça dela, sobre a fronte (testa).

17. Como consequência direta e necessária da conduta do arguido, descrita em 16., a assistente sofreu edema ligeiro na região corporal atingida.

18. Devido ao barulho inerente à discussão referida, CC – que se encontrava a dormir no respetivo quarto –, acordou, tendo ouvido a assistente chorar.

19. No dia 31 de agosto de 2021, após terem jantado num estabelecimento de restaurante e quando se dirigiam para o automóvel em que se haviam feito transportar, a assistente perguntou ao arguido: “- Então e agora, onde é que vamos beber um copo?!”, tendo-lhe este manifestado a sua indisponibilidade para irem a um bar.

20. BB questionou o arguido sobre o motivo de não querer prolongar a saída consigo e confrontou-o com o facto de, na noite anterior, o mesmo ter saído, até de madrugada, com amigos dele.

21. Nessa sequência, o arguido iniciou a marcha do automóvel e imprimiu-lhe velocidade não concretamente apurada, mas determinante de desconforto e de receio à assistente pela sua integridade dade física, ao mesmo tempo que discutia com esta, dizendo-lhe que estava “a ser irónica”, a “ser ciumenta” e “a fazer filmes”.

22. Chegados à residência comum, no interior do quarto do, então, casal, o arguido agarrou a assistente pelo pescoço com uma mão e exerceu alguma pressão, dizendo a esta que não sabia valorizar o homem que ele era nem a qualidade de vida que o mesmo lhe proporcionava e que “tinha de abrir os olhos”.

23. Após, o arguido saiu da residência comum e BB, amedrontada pela conduta deste, começou a guardar alguns pertences numa mala, determinada a sair de casa e a deslocar-se para a residência dos seus pais – onde então se encontravam CC e DD, em gozo de férias –, sita em ….

24. Todavia, AA regressou à residência comum e, ao percecionar o descrito em 23., desferiu pontapés sobre a mencionada mala e disse à assistente que ela não saía de casa, pois o menor CC teria treino de futebol no dia a seguir, pelo que o mesmo deveria regressar ao … com os avós maternos, conforme estava previsto.

25. Após, mormente, a partir das 08:44 horas do dia 01 de setembro de 2021, a assistente e o arguido trocaram várias mensagens escritas (SMS), nas quais a primeira manifestou ao segundo a sua vontade de terminar o relacionamento que mantinham.

26. No decurso dessa troca de mensagens, a assistente (com o contacto telefónico …) escreveu, dirigindo-se ao arguido, designadamente: “Não há justificação para as tuas atitudes cmg, eu não posso dizer nada que tu ages como um animal para me provocar medo e insegurança. Eu não aceito mais isso na minha vida. Desculpa por tudo de mal que te tenha provocado mas está mais que visto que as nossas vidas vão seguir rumos diferentes. (…)” e “Não quero mais discutir ctg não suporto a tua agressividade temos que resolver as coisas a bem pelos nossos filhos está bem? As relações kd já não dão não precisam de ser terminadas da pior forma com guerras. Eu gostava que ressolvessemos tudo a bem. (…)”.

27. Nessa sequência, o arguido (com o contacto telefónico n.º …) escreveu, dirigindo-se à assistente, designadamente: “Eu sei que sou agressivo e não devia. Mas o meu saco também enche. Não sou de ferro. Desculpa. (…)”.

28. Não obstante o descrito em 22., o relacionamento entre o casal do arguido e da assistente manteve-se e, no dia 20 de setembro de 2021, esta voltou a exercer funções de … no estabelecimento comercial denominado “…”, sito no centro comercial “…”, em …, fazendo atendimento ao público e trabalhando por turnos, rotativos, inclusive aos fins de semana.

29. No dia 29 de setembro de 2021, BB trabalhou no mencionado estabelecimento comercial até às 21:00 horas, após o que se deslocou para a residência que partilhava com o arguido.

30. Aí chegada, entre as 21:30 horas e as 22:00 horas, o arguido AA, desagradado pelo facto de a assistente não estar em casa com ele e com os filhos sempre que assegurava o último turno da loja, disse-lhe que, ou ela deixava aquele emprego, ou a relação entre ambos não iria durar.

31. BB disse ao arguido que não ia deixar o seu emprego e que não queria mais conversas com ele; todavia, AA insistiu em querer conversar sobre o assunto e disse-lhe que ela estava a optar pelo trabalho, em detrimento da família.

32. A assistente, determinada a não ter a conversa desejada pelo arguido, deslocou-se para a casa de banho a fim de tomar um duche, tendo aberto a torneira e entrado no compartimento respetivo.

33. Em seguida, o arguido entrou no compartimento do chuveiro, vestido, e, fazendo uso das duas mãos, agarrou BB pelo pescoço, exercendo pressão, ao mesmo tempo que dizia, em voz alta, que a mesma não tinha o direito de lhe responder, tendo ainda proferido a seguinte expressão: “- Tu já viste o que tu me obrigas a fazer-te? A culpa disto tudo é tua!”.

34. Como consequência direta e necessária da conduta do arguido, descrita em 33., a assistente sentiu dor no pescoço e falta de ar, bem como sentimentos de pânico, tendo receado pela sua vida e, sofrido, ainda, uma escoriação no pescoço, determinada pela abrasão do fecho de um fio metálico que usava.

35. O arguido cessou, entretanto, a sua conduta e deslocou-se para a sala da residência, na sequência do que a assistente – que não chegou a tomar o duche –, após ter-se vestido, foi ao encontro daquele e disse-lhe, a chorar, que iria a casa da mãe dele, a fim de pedir ajuda.

36. Depois de a assistente ter entrado no respetivo automóvel, o arguido, que a seguira até ao logradouro da residência, desferiu pelo menos dois socos no vidro da porta dianteira esquerda; não obstante, BB logrou tripular o veículo, ausentando-se do local na direção das residências da mãe e da irmã do arguido.

37. Entre as 22:38 horas e as 22:59 horas, o arguido escreveu e remeteu à assistente três mensagens de texto (SMS), com o seguinte teor: “Dou te 10 minutos para tar aqui. Se não vou me embora”, “O relógio tá a contar” e “Fui me embora”.

38. A assistente esteve na residência da irmã do arguido, EE, com quem falou, tendo igualmente interagido com JJ, mãe de AA, que lhe disse para ir para casa e para tratar dos assuntos do casal com o companheiro.

39. Nessa sequência, sentindo-se abalada, a assistente disse a JJ que iria apresentar queixa contra o ora arguido e regressou ao seu automóvel tendo, no trajeto entre as residências da mãe e da irmã do arguido e a sua própria residência, imobilizado o veículo e permanecido no respetivo interior, altura em que leu as mensagens de texto mencionadas em 37., que lhe determinaram receio de que o arguido saísse de casa deixando aí sozinhos CC e DD, que se encontravam a dormir.

(…)

43. No dia 11 de novembro de 2021, durante a hora de almoço, antes das 14:28 horas, o arguido e a ofendida encontravam-se no interior da residência comum, tendo BB recebido, no seu telemóvel e através da aplicação Whatsapp, uma mensagem do pai de um colega do menor CC, de nomeKK.

44. AA, apercebendo-se, através da fotografia associada ao perfil do remetente, de que a mensagem fora enviada por um homem, disse à assistente que abrisse a mesma e lhe mostrasse o respetivo conteúdo, o que a mesma recusou fazer.

45. Posteriormente, nesse dia 11 de novembro de 2021, depois das 23:36 horas, a assistente encontrava-se deitada no quarto do casal quando o arguido a interpelou novamente, dizendo que queria que a mesma lhe mostrasse o conteúdo das mensagens trocadas com o aludido indivíduo, na sequência do que BB, segurando o telemóvel, que previamente desbloqueou, numa das mãos, estendeu o correspondente braço na direção de AA, para que este recebesse o aparelho.

46. Ato contínuo, o arguido, fazendo uso das duas mãos, segurou a assistente pelos pulsos e exerceu força, dando-lhe puxões, tendo ainda atingido, com as unhas, a região malar da face lateral esquerda e a face lateral esquerda da raiz do pescoço da assistente.

47. Ao mesmo tempo, o arguido, em tom de voz elevado e dirigindo-se à assistente, disse: “- Deves querer enfiar-me um dedo no rabo, por teres uma racha não te posso bater, mas a minha vontade é meter-te os dentes para dentro. Não mereces ser mãe dos teus filhos. Estás fodida comigo”.

48. Com o barulho, pelo menos o menor CC acordou e começou a chorar, tendo o arguido ido buscá-lo ao respetivo quarto.

49. Já no quarto do arguido e da assistente, AA disse ao menor que a mãe era “uma mentirosa”.

50. Como consequência direta e necessária da conduta do arguido, descrita em 46., resultaram para a assistente, para além de dores nas regiões corporais atingidas, equimoses com 3 cm no pulso direito, equimoses com 2 cm no pulso esquerdo, uma escoriação na face lateral esquerda com 3 cm, na região malar e uma escoriação na face lateral esquerda da raiz do pescoço com 3 cm, lesões que lhe determinaram 7 dias de doença, sem afetação do trabalho geral e/ou profissional.

51. Ainda como consequência direta e necessária da conduta do arguido, descrita em 46. e 47., resultaram para a assistente sentimentos de medo, determinantes de que a mesma tivesse pedido desculpa, sucessivas vezes, durante o episódio, a AA, com o propósito de o mesmo cessar a sua conduta.

52. No dia 14 de novembro de 2021, a hora não concretamente apurada, mas seguramente antes das 09:30 horas, o arguido questionou a assistente sobre a razão de esta ter o seu telemóvel em modo silencioso.

53. Em ato contínuo, o arguido AA, usando um tom de voz elevado, acusou a BB de lhe estar a esconder algo e a mentir.

54. Alertada pelo ruído, a menor DD deslocou-se para o quarto dos pais e correu na direção da assistente; concomitantemente, o arguido AA, agarrou no telemóvel de BB e atirou-o contra a parede do quarto, na sequência do que o ecrã do aparelho se partiu, o que determinou prejuízo patrimonial à sua dona.

55. No mesmo dia 14 de novembro de 2021, pelas 19:30 horas, o arguido e a assistente regressaram a casa após terem conversado num local público; nesse circunstancialismo, AA iniciou ma discussão com aquela, na presença da mãe de BB, que se deslocara ao … a pedido da filha e ali se encontrava, nesse momento, a tomar conta de CC e de DD.

56. Mais tarde, antes das 22:39 horas, o arguido deu início a uma nova discussão pela circunstância de BB pretender ficar a dormir no quarto dos filhos.

57. A fim de fazer cessar a discussão, a assistente decidiu ir para outro quarto, tendo sido seguida por AA que, já no interior dessa divisão, cuspiu para a face de BB, apodando-a, pelo menos, de “nojenta” e de “puta”, após o que saiu do quarto, batendo com a porta.

(…)

60. Na noite de 16 de novembro de 2021, antes das 22:55 horas, no interior da residência comum, o arguido disse à assistente que a mesma já tinha “abandonado o lar”; nesse mesmo circunstancialismo de tempo e de lugar, AA pegou nas chaves do automóvel de BB e foi procurar os cartões de cidadão dos dois filhos do, então, casal.

61. Percecionando que as chaves do seu automóvel não se encontravam no local onde as deixara, a assistente interpelou o arguido, que estava deitado na cama, mas vestido com a roupa do dia.

62. O arguido devolveu as chaves à assistente e disse-lhe que apenas queria aceder aos cartões de cidadão dos filhos, na sequência do que a mesma lhos exibiu para que o mesmo os fotografasse, o que ele fez.

63. Subsequentemente, a assistente ouviu o arguido a remexer em objetos, bem como se apercebeu de que o mesmo ligara o respetivo automóvel, na sequência do que temeu que ele estivesse a reunir objetos para se ausentar da residência comum com CC e DD, que se encontravam a dormir no respetivo quarto.

64. De seguida, o arguido instou a ofendida acerca da queixa que a mesma apresentara contra ele no dia 14 de novembro de 2021 e disse-lhe: “Não tens provas, não tens poder económico para lutar comigo, tu vais-te foder”.

65. Ato contínuo, BB acionou a Guarda Nacional Republicana para o local, tendo aguardado a chegada dos Militares no exterior da residência, trancada no interior do respetivo veículo.

(…)

68. O arguido, ao atuar do modo supra descrito em 10., 15., 49. e 57. e em 16., 22., 33. e 46., agiu livre, deliberada e conscientemente, com o propósito concretizado de maltratar BB através da moléstia da honra e consideração da mesma e do corpo e da saúde dela, e de lhe produzir as dores e as lesões verificadas, resultados que o mesmo representou e quis, tendo ainda representado que, ao assim agir, bem como ao atuar conforme descrito em 21. e 47., cercearia a assistente na sua autodeterminação, incutindo-lhe receio pela sua vida e integridade física, o que quis e conseguiu.

69. Mais agiu o arguido ciente de que cometia parte dos factos na presença dos filhos de ambos, CC e DD, nascidos em … de 2014 e em … de 2018, respetivamente, e no interior da residência da assistente, o que quis.

70. O arguido sabia que as suas condutas eram proibidas e punidas por Lei Penal.

71. Como consequência direta e necessária das condutas do arguido, a assistente sentiu-se humilhada e diminuída, tendo visto afetada a sua autoestima e o seu equilíbrio emocional.

72. Como consequência direta e necessária da conduta do arguido, a assistente sentiu-se constrangida na sua vida, tendendo a analisar os comportamentos de terceiros, com receio de que a situação vivenciada com AA se repita com outras pessoas.

73. Como consequência direta e necessária da conduta do arguido, após ter ido residir para …, a assistente sentiu, durante um período de tempo não concretamente apurado, mas seguramente anterior a abril de 2023, medo do arguido” (destacados nossos).

Em face desta factualidade, nenhuma dúvida se nos suscita quanto ao efetivo preenchimento do tipo de crime imputado ao arguido recorrente. Fazemos nossas, sem necessidade de outros acrescentos, as palavras vertidas na douta sentença recorrida:

“(…) resulta, indubitavelmente, que o arguido infligiu maus tratos físicos e psíquicos a BB, com quem manteve uma relação análoga à dos cônjuges, incutindo-lhe um tratamento que pôs em causa a sua dignidade enquanto pessoa, tendo-a seviciado corporalmente em 4 ocasiões no interior da residência comum; tendo-a molestado reiteradamente na sua honra (mormente, através dos epítetos com que a apodou e das imputações que lhe fez, de ter relacionamentos com outros homens); tendo-a coartado na sua liberdade de determinação e formação da vontade, com as suas palavras, animadas pelas suas ações, determinando-lhe pavor de ser morta ou seviciada fisicamente, com maior gravidade, por ele.

Não há, atenta a reiteração das condutas do arguido para com a ofendida e considerando, sobretudo, o menosprezo das qualidades de BB, enquanto pessoa e mulher e o tratamento humilhante que lhe foi infligido quando era seviciada fisicamente (maioritariamente, em situações em que estava em situações de maior vulnerabilidade – no duche, molhada, deitada na cama, sentada na sanita –, assim a impossibilitando de sequer tentar defender-se) e, designadamente, apodada de “mentirosa” perante o filho menor com, então … anos de idade (sendo consabido que, nessas idades, as palavras ditas e os juízos de valor transmitidos pelas figuras de referência das crianças – acreditando-se que o arguido o será para o seu filho – marcam profundamente a sua personalidade, em formação), como não afirmar o comprometimento da dignidade da pessoa desta no âmbito do relacionamento que ambos mantiveram.

Está, pois, preenchido, em nosso entendimento, o elemento objetivo do tipo de ilícito em análise.

Preenchida está, igualmente, a circunstância agravante prevista na alínea a) do n.º 2 do art. 152.º do Código Penal, na medida em que resultou demonstrado que parte das condutas empreendidas pelo arguido tiveram lugar na residência da assistente (que era comum) e, por vezes, na presença dos filhos do então casal, então como agora com idades inferiores a 18 anos.

Em face da factualidade apurada, resulta, igualmente, encontrar-se preenchido o elemento subjetivo do mesmo tipo de crime, devendo concluir-se ter o arguido atuado com dolo direto - cfr. art. 14.º, 1, do Código Penal.”

A alegação recursiva de que “os episódios não revestem a gravidade suficiente para serem taxados de violência doméstica”, não só é manifestamente infundada, como é preocupante. Só aos olhos do arguido se poderá considerar pouco grave a ação de apertar o pescoço da sua companheira e mãe dos seus filhos, provocando dor e falta de ar, bem como sentimentos de pânico e receio pela sua vida. Só numa muito destorcida visão do relacionamento conjugal se poderá considerar pouco graves os repetidos insultos e atos de desrespeito empreendidos pelo arguido.

O crime de violência doméstica está preenchido em todos os seus elementos, não podendo o arguido deixar de por ele ser condenado e, por isso, improcedendo o recurso nesta parte.

*

Entende, por fim, o recorrente que a decisão impugnada peca por excesso na determinação da indemnização fixada para reparação dos danos sofridos pela Demandante, pugnando pela sua redução.

Apreciando.

Quanto à determinação do quantum de indemnização, referiu-se com pleno acerto na decisão recorrida o seguinte:

“Resultou provado que, como consequência direta e necessária da apurada conduta do arguido, a demandante:

- sentiu dores em todas as regiões do corpo atingidas;

- sofreu edema ligeiro na fronte;

- sentiu falta de ar

- sofreu uma escoriação no pescoço;

- sofreu equimoses com 3 cm no pulso direito, equimoses com 2 cm no pulso esquerdo, uma escoriação na face lateral esquerda com 3 cm, na região malar e uma escoriação na face lateral esquerda da raiz do pescoço com 3 cm, lesões que lhe determinaram 7 dias de doença, sem afetação do trabalho geral e/ou profissional;

- sentiu-se humilhada e diminuída, mesmo perante o filho menor, tendo visto afetada a sua autoestima e o seu equilíbrio emocional;

- sentiu medo de que o arguido atentasse contra a sua vida e integridade física;

- sentiu-se constrangida na sua vida, tendendo a analisar os comportamentos de terceiros, com receio de que a situação vivenciada com AA se repita com outras pessoas.

Ora, em nosso entendimento, os danos acabados de referir configuram danos não patrimoniais graves que, indubitavelmente, merecem a tutela do direito à luz do n.º 1 do art. 496.º do Código Civil.

Por outro lado, o arguido/demandado agiu com culpa intensa.

Nesta conformidade, atendendo aos critérios usualmente seguidos pela jurisprudência na fixação dos danos morais, e porque os danos não patrimoniais devem ser dignamente compensados, afigura-se-nos adequado, por equitativo, fixar a indemnização, por danos não patrimoniais, a favor da demandante, no montante de 4000,00€, valor que se considera reportado à data da presente decisão.

(…)”.

A lei remete a fixação do montante indemnizatório pelos danos em causa para juízos de equidade, ponderando o grau de culpabilidade do agente, a situação económica deste e do lesado e as demais circunstâncias do caso o justifiquem.

No caso, o elevado grau de culpa do arguido, a gravidade dos factos e as consequências dos mesmos para a ofendida – cuja gravidade não podemos deixar de sublinhar - não se coadunam com um montante de reparação mais reduzido que o fixado, como sugere o recorrente (que persiste em minimizar a gravidade dos factos).

Em suma, o quantum de indemnização fixado tem apoio legal e não pode ser qualificado como exagerado, termos em que nenhuma censura, também, nesta parte, nos merece a decisão recorrida, que será mantida.

*

V. DECISÃO

Pelo exposto, acordam os Juízes Desembargadores desta Secção Criminal da Relação de Évora em julgar improcedente o recurso interposto pelo arguido AA e, em consequência, em confirmar a douta sentença recorrida nos seus precisos termos.

*

Tributação.

Condena-se o arguido no pagamento das custas do processo, fixando-se a taxa de justiça em 4 (quatro) UC.

*

D.N.

*

O presente acórdão foi elaborado pelo Relator e por si integralmente revisto (art. 94º, n.º 2 do C.P.P.).

Évora, 11 de fevereiro de 2025

Jorge Antunes (Relator)

Laura Goulart Maurício (1ª Adjunta)

Anabela Cardoso (2ª Adjunta)

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1 Transtorno de personalidade histriônica - Transtornos psiquiátricos - Manuais MSD edição para profissionais (msdmanuals.com)

2 Relator- Desembargador Jorge Gonçalves - decisão acessível em: http://www.dgsi.pt/jtrl.nsf/33182fc732316039802565fa00497eec/8128b9801996b3c18025788d003ad395?OpenDocument

3 Relatora - Desembargadora Margarida Ramos de Almeida - decisão acessível em: http://www.dgsi.pt/jtrl.nsf/33182fc732316039802565fa00497eec/055038cf6af4ebed8025865e004507a7?OpenDocument

4 Cfr. Acórdão da Relação de Évora de 24 de junho de 2008 – Relator: António João Latas – acessível em: http://www.dgsi.pt/jtre.nsf/-/E56638C8EAD44B8E80257DE100574D67