Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
912/23.3PBSTB.E1
Relator: RENATO BARROSO
Descritores: CONSTITUIÇÃO DE ASSISTENTE
PRAZO
NOTIFICAÇÃO
MINISTÉRIO PÚBLICO
Data do Acordão: 05/21/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: I - Em procedimento dependente de acusação particular, o direito à constituição como assistente fica precludido se não for apresentado requerimento para esse efeito no prazo fixado no nº 2 do artigo 68º do C. P. Penal.
II - Face à preclusão do direito de se constituir como assistente, a recorrente, devidamente advertida das consequências da sua inação dentro do prazo de que dispunha, quando foi destinatária de uma notificação (feita pelo Ministério Público) que nunca deveria ter sido ordenada, não podia razoavelmente contar com a possibilidade de se fazer renascer um direito já extinto.
III - Nessa situação, não existia qualquer expectativa juridicamente criada que, em nome do princípio da confiança dos cidadãos no ordenamento jurídico e na atuação do Estado, deva ser tutelada.
IV - O entendimento contrário levaria a que se aceitasse uma violação frontal da lei por parte do Ministério Público, atribuindo às partes prazos processuais quando estes já se mostram extintos.
V - A segunda notificação da ofendida para se constituir assistente, erradamente realizada pelo Ministério Público, não tem, pois, a virtualidade de lhe conferir novo prazo para tal constituição e é, por isso, inoperante.
Decisão Texto Integral:

ACORDAM OS JUÍZES, EM CONFERÊNCIA, NA SECÇÃO CRIMINAL DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE ÉVORA


1. RELATÓRIO

A – Decisão Recorrida

No processo nº 912/23.3PBSTB, a correr termos no Tribunal Judicial da Comarca de Setúbal, Juízo de Instrução Criminal de Setúbal, Juiz 2, C veio requerer a sua constituição como assistente, o que foi judicialmente deferido, pelo despacho que gera o presente recurso e que reza assim (transcrição):

CONSTITUIÇÃO ASSISTENTE
Os presentes autos iniciaram-se com a queixa-crime de C a 15.06.2023 contra a sua vizinha N por factos que enquadrou como subsumíveis ao crime de injúrias, previsto e punido pelo artigo 181.º do Código Penal.
No dia 15.06.2023 a denunciante foi notificada pelo OPC da necessidade de se constituir como assistente, atenta a natureza particular do crime sob investigação (fls. 4).
Sucede que, por despacho do MP datado de 14.09.2023 foi comunicada à denunciante novamente a necessidade de se constituir como assistente, com a expressa advertência que o processo seria arquivado caso não o fizesse. Tal despacho foi depositado na caixa de correio da queixosa em 21.09.2023 [fls. 11], concedendo-lhe um prazo de 10 dias para vir ao processo manifestar esta posição enquanto sujeito processual.
No dia 28.09.2023 veio a mandatária da queixosa requerer a sua constituição como assistente, juntando aos autos pedido de apoio judiciário impetrado junto da Segurança Social em 20.06.2023 (fls. 13v).
Considerando a data em que a queixosa foi notificada pelo MP da necessidade de se constituir como assistente, a data em que juntou aos autos a sua constituição como assistente e a circunstância de ter pedido apoio judiciário ainda em junho de 2023, leva este Tribunal a concluir que é tempestivo o seu pedido de constituição como assistente, tanto que em 31.08.2023 a queixosa já havia pedido ao MP que encetasse diligências investigatórias, comportando-se como uma assistente importada com o sucesso da investigação.
Por todo o exposto, por estar em tempo, ter legitimidade, estar devidamente representado(a) por advogado(a) e estar dispensada do pagamento da taxa de justiça por ter-lhe sido deferido o benefício de apoio judiciário, admito C a intervir nos autos como assistente, nos termos e para os efeitos dos artigos 68.º, n.º 1, alínea a) e n.º 5, 70.º, n.º 1 e 519.º, todos do Código de Processo Penal.
Notifique.
Devolva ao Ministério Público.

B – Recurso

Inconformado com o assim decidido, recorreu o MP com as seguintes conclusões (transcrição):

1.Nos presentes autos apura-se a responsabilidade criminal pela prática de crime de injúria p. e p. pelo artigo 181.º do CP.
2.A queixosa foi notificada pelo OPC em 15/06/23 para, no prazo de 10 dias, se constituir assistente sob pena de o ministério Público não poder, por falta de legitimidade, exercer a acção penal.
3.Em 20.06.23 pela queixosa foi requerido o benefício de apoio judiciário na modalidade de dispensa de taxa de justiça e nomeação e pagamento de compensação ao patrono que lhe foi deferido em 16.08.23 (cfr. fls. 13, 15 a 16) tendo sido nomeada patrona em 16.08.23.
4.O art.º 24.º, n.º4 da Lei n.º 24/2004, de 29 de Julho, estabelece que «quando o pedido de apoio judiciário é apresentado na pendência de acção judicial e o requerente pretende a nomeação de patrono, o prazo que estiver em curso interrompe-se com a junção aos autos do documento comprovativo da apresentação do requerimento com que é promovido o procedimento administrativo».
5.Por despacho do MP foi a queixosa novamente notificada para a constituição de assistente em 21.09.23.
6.Em 28.09.23 veio a queixosa requerer a constituição como assistente.
7.Quando a queixos foi notificada pelo OPC, em 15.06.23 para, no prazo de 10 dias, se constituir assistente, esse prazo terminou em 16.06.23 + 3 dias de multa (29.06.23).
8.Não tendo o denunciante/requerente/recorrente diligenciado pela junção aos autos, no decurso do prazo legal de 10 dias, para a constituição de assistente, do documento comprovativo da apresentação, junto dos Serviços da Segurança Social, do requerimento do pedido de apoio judiciário, abrangendo a modalidade de nomeação de patrono, não se operou a interrupção daquele prazo.
9.Mesmo que se entendesse que o prazo se interrompeu com o pedido do benefício de apoio judiciário o prazo teria terminado em 11.09.23 + 3 dias de multa que seria em 14.09.23.
10.O prazo para requerer a constituição de assistente é um prazo peremptório, em função do que o correspondente acto deve ser praticado dentro do respectivo período de tempo de dez dias e o seu decurso sem que aquele seja realizado faz extinguir o direito de o praticar.
11.O que decorre do Acórdão do STJ de Fixação de Jurisprudência, n.º 1/2011, in DR I Série, de 26-01-2011, em cujo sumário se lê que “Em procedimento dependente de acusação particular, o direito à constituição como assistente fica precludido se não for apresentado requerimento para esse efeito no prazo fixado no nº 2 do artigo 68.º do Código de Processo Penal”.
12.Muito embora a queixosa tenha sido, novamente, notificada, tal não obsta à verificação de que o prazo para a constituição de assistente para o crime de injúria se extinguiu.
13.Acresce que com a nova notificação para constituição de assistente não emerge qualquer legítima expectativa para a ofendida se possa constituir assistente.
14.A admissão de constituição de assistente pela Mmª JIC afronta o disposto no artigo 246.º, n.º 4 e 68.º, n.º 2, ambos do CPP.
15.A circunstância de em 31.08.2023 a queixosa ter requerido ao MP que encetasse diligências investigatórias, não pode ter por efeito a prática de actos na qualidade de assistente nem tem a virtualidade de requerer a sua constituição como assistente.
Pelo exposto e pelo mais que for doutamente suprido por V. Exas. deve conceder-se provimento ao presente recurso, revogando-se o despacho proferido, substituindo-o, em conformidade, não se admitindo a constituição de assistente requerida, por extemporânea, fazendo-se assim a costumada JUSTIÇA.

C – Resposta ao Recurso

Inexiste resposta ao recurso

D – Tramitação subsequente

Aqui recebidos, foram os autos com vista ao Exmº Procurador-Geral Adjunto, que militou pela procedência do recurso.
Observado o disposto no Artº 417 nº2 do CPP, não foi apresentada resposta.
Efectuado o exame preliminar, determinou-se que o recurso fosse julgado em conferência.
Colhidos os vistos legais e tendo o processo ido à conferência, cumpre apreciar e decidir.


2. FUNDAMENTAÇÃO

A – Objecto do recurso

De acordo com o disposto no Artº 412 do CPP e com a Jurisprudência fixada pelo Acórdão do Plenário da Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça n.º 7/95, de 19/10/95, publicado no D.R. I-A de 28/12/95 (neste sentido, que constitui jurisprudência dominante, podem consultar-se, entre outros, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 12 de Setembro de 2007, proferido no processo n.º 07P2583, acessível em HYPERLINK "http://www.dgsi.pt/" HYPERLINK "http://www.dgsi.pt/"www.dgsi.pt, que se indica pela exposição da evolução legislativa, doutrinária e jurisprudencial nesta matéria), o objecto do recurso define-se pelas conclusões que o recorrente extrai da respectiva motivação, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, que aqui e pela própria natureza do recurso, não têm aplicação.
Tudo está, pois, em saber, se o requerimento de constituição de assistente, apresentado pela ofendida, deve, ou não, ser considerado extemporâneo, como defende o recorrente.

B – Apreciação

B.1. Do requerimento de constituição de assistente

Estando em causa, nos autos, a eventual prática de um crime de injúria, de natureza particular, carece o procedimento criminal de acusação particular e prévia constituição de assistente por parte do ofendido, sendo que o prazo para tal requerimento é o de dez dias contados desde a advertência, para tanto efectuada, pela autoridade judiciária ou órgão de polícia criminal, nos termos do nº4 do Artº 246 do CPP.
Esta notificação, foi, nos autos, levada a cabo pelo OPC, em 15/06/23, ou seja, nesta data foi a ofendida notificada para em 10 dias requerer a sua constituição como assistente, nos termos e para os efeitos do disposto nos Artsº 246 nº4 e 68 nº2, ambos do CPP, sob pena, naturalmente, de o MP não poder, por falta de legitimidade, exercer a acção penal.
A ofendida, em 29/06/23, requereu a concessão de benefício de apoio judiciário na modalidade de nomeação de patrono, o que lhe foi deferido em 16/08/23, tendo-lhe sido nomeada patrona no mesmo dia.
A ofendida só veio requerer a sua constituição como assistente em 28/09/23, ou seja, em momento bem posterior ao esgotamento de tal prazo de 10 dias, considerando-o sem qualquer interrupção - pela circunstância de não ter junto aos autos o documento o comprovativo do seu pedido de protecção jurídica, nos termos do Artº 24 nº4 da Lei 34/2004 de 29/09 - ou mesmo com a interrupção resultante da dedução de tal benefício.
É certo que o MP, por lapso, em 21/09/23, notificou de novo a ofendida para, querendo se constituir como assistente, mas tal notificação é inócua e não obsta ao decurso daquele prazo que é, como se sabe, peremptório, ou seja, o seu não acatamento leva à preclusão do respectivo direito.
Como se escreveu em aresto do Tribunal da Relação de Coimbra, no Proc. 542/17.9PBCLD-A.C1, de 05/12/2018 “ …face à inacção que determinou a extinção do direito de se constituir assistente, a partir daí o recorrente podia e devia contar com tal desfecho preclusivo que, em última análise, conduziria ao arquivamento dos autos por ilegitimidade do Ministério Público para prosseguir o procedimento, caso a apensação que requereu não se concretizasse, como não se concretizou.
Não se pode, pois, dizer que, quando erradamente o Ministério Público mandou cumprir o artigo 246.º, n.º 4 do CPP, foi criada a legítima expectativa no sentido de o recorrente vir a beneficiar de uma segunda possibilidade de se constituir assistente, em contravenção ao disposto no artigo 68.º, n.º 2 do CPP e contrariando frontalmente a referida jurisprudência fixada, e que tal acto indevido, realizado num momento em que já se encontrava extinto o direito do recorrente, era apto a gerar no mesmo uma confiança merecedora de tutela.
Como também ficou dito na decisão recorrida, aquela notificação jamais deveria ter sido ordenada pelo Ministério Público, atenta a preclusão do direito de o recorrente se constituir assistente. Não obstante, a notificação não tem a virtualidade de lhe conferir novo prazo para a prática do acto precludido.
Nem, acrescentamos nós, é susceptível de gerar qualquer legítima expectativa em que aquele fundadamente tenha confiado e que, por isso, deva ser merecedora da tutela que o mesmo veio invocar, ao abrigo do disposto no artigo 157.º, n.º 6 do CPC, ex vi artigo 4.º do CPP.
É verdade que o princípio da confiança, ínsito no princípio do Estado de direito democrático, consagrado no artigo 2.º da Constituição da República Portuguesa, postula um mínimo de certeza nos direitos das pessoas e nas expectativas que lhes são juridicamente criadas, censurando as afectações inadmissíveis, arbitrárias ou excessivamente onerosas, com as quais o cidadão comum, minimamente avisado, não poderia razoavelmente contar, já que deve poder prever as intervenções que o Estado poderá levar a cabo sobre ele ou perante ele e preparar-se para se adequar às mesmas, devendo poder confiar em que a sua actuação de acordo com o direito seja reconhecida pela ordem jurídica e assim permaneça em todas as suas consequências juridicamente relevantes (cf. Acórdão do STJ de 27-03-2007 e, entre outros, os Acórdãos do Tribunal Constitucional n.os 17/84, 303/90, 625/98 160/00 e 345/2009).
Contudo, como atrás se assinalou, no caso dos autos, face à apontada preclusão do direito de se constituir assistente, o recorrente, devidamente advertido das consequências da sua inacção dentro do prazo de que dispunha, quando foi destinatário de uma notificação que nunca deveria ter sido ordenada, não podia razoavelmente contar com a possibilidade de se fazer renascer um direito já extinto. Não havia, pois, qualquer expectativa juridicamente criada que, em nome do princípio da confiança dos cidadãos no ordenamento jurídico e na actuação do Estado, devesse ser tutelada.
Temos, assim, que, a decisão recorrida que não admitiu o recorrente a intervir nos autos como assistente, por ser extemporâneo o requerimento que nesse sentido apresentou, obedeceu às exigências da lei e não pôs em crise aquele princípio constitucionalmente consagrado, sendo insusceptível de reparo.”
O entendimento contrário levaria a que se aceitasse uma violação frontal da lei por parte do MP, atribuindo, às partes prazos processuais quando estes já se mostram extintos o que é, obviamente, intolerável, para além de que o raciocínio contrário implicaria esvaziar de todo o conteúdo os normativos do Artº 68 nº2 do CPP e 24 nº5 da Lei 34/2004 de 29/09, não se olvidando o Acórdão de Fixação de Jurisprudência do STJ 1/2011, DR, nº18 Série I de 26/01/11, onde se diz que “em procedimento dependente de acusação particular, o direito à constituição como assistente fica precludido se não for apresentado requerimento para esse efeito no prazo fixado no n.º 2 do artigo 68.º do Código de Processo Penal”.
Nesta medida, a segunda notificação da ofendida para se constituir assistente, erradamente realizada pelo MP, não tem a virtualidade de lhe conferir novo prazo para tal constituição e é, por isso, inoperante.
Por fim, a circunstância de, a dado passo dos autos, a ofendida ter requerido ao MP a realização de diligências de investigação não belisca a necessidade do procedimento formal de constituição de assistente, pelo que tal argumentação em nada releva para a apreciação da presente instância recursiva.
Assim sendo, não se pode deixar de concluir, como pretende o recorrente, que o requerimento de constituição de assistente apresentado pela ofendida é extemporâneo, nos termos do Artº 68 nº3 al. b) do CPP, pelo que não deveria ter sido admitido.
Procede, pois, o recurso.


3. DECISÃO

Nestes termos, decide-se conceder provimento ao recurso e em consequência, revogando-se o despacho recorrido, não se admite, por extemporânea, a constituição como assistente de C.
Sem custas.
x
Consigna-se, nos termos e para os efeitos do disposto no Artº 94 nº2 do CPP, que o presente acórdão foi integralmente revisto e elaborado pelo primeiro signatário.

Évora, 21 de maio de 2024
Renato Barroso
Maria Gomes Perquilhas
Carlos de Campos Lobo