Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
575/21.0T8SLV-A.E1
Relator: FILIPE CÉSAR OSÓRIO
Descritores: HIPOTECA
DIVISIBILIDADE
TÍTULO EXECUTIVO
NULIDADE DE SENTENÇA
EXCESSO DE PRONÚNCIA
OMISSÃO DE PRONÚNCIA
DECISÃO SURPRESA
Data do Acordão: 05/22/2025
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA A DECISÃO RECORRIDA
Área Temática: CÍVEL
Sumário: Sumário:

I. Não ocorre nulidade do saneador-sentença por excesso de pronúncia (cfr. art. 615.º, n.º 1, al. d), do CPC), por violação do princípio da proibição de decisões-surpresa ao decidir pela falta do título executivo com fundamento na verificação da divisibilidade da hipoteca e no desconhecimento do valor em dívida correspondente à fracção autónoma do Executado, se nos Embargos o Executado colocou em causa o título executivo e os factos subjacentes foram alegados pela própria Exequente/Recorrente e foram as partes expressa e previamente notificadas, após realização de audiência prévia e tentativa de conciliação, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 3º, nº 3 do Código de Processo Civil de que “afigurando-se que os presentes autos apresentam condições para que seja proferida decisão final, notifique as partes nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 3º, nº 3 do Código de Processo Civil.”, bem como, por ser ainda manifestamente desnecessária ou inútil.


II. Não ocorre nulidade de sentença por omissão de pronúncia (cfr. art. 615.º, n.º 1, al. d), do CPC) quando o conhecimento das restantes questões ficou prejudicado pela solução dada à questão de fundo, como ficou expressamente consignado na sentença recorrida.


III. O princípio da indivisibilidade da hipoteca (previsto no artigo 696.º do Código Civil), fica afastado a partir do momento em que ocorreu o cancelamento das hipotecas relativas a várias fracções do mesmo prédio urbano, por isso, a Exequente não pode vir executar apenas uma fracção autónoma pela totalidade da dívida ainda pendente que fora garantida por hipoteca incidente sobre o lote de terreno onde foi edificado o prédio que inclui a fracção, apenas o podendo fazer sobre a parte proporcional de responsabilidade na dívida que à mesma deva ser imputada.


IV. Deste modo, carece assim a Exequente de título executivo especificamente contra o Executado, porquanto nele não estão delimitadas/liquidadas as responsabilidades que a este caberiam, portanto, o problema não está no apuramento do valor global que ainda está em dívida relativamente ao contrato inicial, mas antes, desse valor global ainda em dívida qual o montante parcial que corresponde à fracção do Executado.

Decisão Texto Integral: *

Apelação n.º 575/21.0T8SLV-A.E1

(1.ª Secção Cível)

Relator: Filipe César Osório

1.º Adjunto: Manuel Bargado

2.º Adjunto: António Fernando Marques da Silva

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ACORDAM OS JUÍZES NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE ÉVORA


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I. RELATÓRIO


Execução para Pagamento de Quantia Certa


Embargos de Executado


Oposição à Execução, Oposição à Penhora


1. As partes:


Exequente – Embargada – Recorrente: HEFESTO STC, S.A.


Executado – Embargante – Recorrido: AA


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2. HEFESTO STC, S.A., instaurou Execução para Pagamento de Quantia Certa contra AA e outra, indicando no item “Título Executivo”: “Escritura” e no item “Liquidação da Obrigação”:


«No âmbito do contrato aqui executado, na presente data de 29.03.2021, estão em dívida os seguintes valores:


- Capital: € 27 268,73;


- Juros de mora, à taxa 19,5%, acrescidos da sobretaxa de 2%, contabilizados desde a data de incumprimento em 28.02.2014 até à presente data (29.03.2021): € 573.637,98;


- Despesas: € 21 558,99;


- Total: €622.465,70».


A Exequente juntou ainda como documentos: “Doc. 1 - Contrato de cessão”; “”Doc. 2 - Certidão permanente”; “Doc. 3 - Escritura pública” e “Doc. 4 - Extrato bancário”.


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3. O Executado/Embargante AA veio, por apenso à Execução que contra ele foi intentada pela Exequente/Embargada HEFESTO STC, S.A., deduzir “Oposição à Execução mediante Embargos” e “Oposição à Penhora”, onde pede o seguinte:

«a) Serem julgadas procedentes por provadas as exceções dilatórias deduzidas e, consequentemente, o executado absolvido da instância, com todas as devidas e legais consequências;

b) Concomitantemente deverá ser ordenado o cancelamento da hipoteca constante da Ap. 8 de 03.04.1987, existente sobre as frações R e S, do prédio descrito sob o n.º 450/Local 1, de que é titular o executado – por o mesmo as ter adquirido livre de ónus e encargos;

c) Deverá a exequente ser condenada como litigante de má fé, em quantia fixar pelo tribunal ,mas nunca inferior a 100.000€

Caso, assim, não se entenda,

d) Deverá a excepção peremptória ser julgada totalmente procedente por provada e, consequentemente ser o executado absolvido do pedido;

Se assim não se entender,

e) Ser julgado procedente, por provado, o ora alegado, e por via disso, improceder totalmente o pedido da exequente.

Sempre deverá:

f) Deverá admitir-se os incidentes de intervenção principal provocada de todos os chamados (…).».

Para tal efeito, alegou essencialmente que a exequente apresentou à execução, como título executivo, uma escritura pública (mútuo com hipoteca), outorgada em 27/05/1987, no Cartório Notarial de Local 2, sucede que não estão reunidos todos os requisitos atinentes à exequibilidade, o Executado nunca foi notificado ou lhe foi dado conhecimento da cessão de créditos, o Executado não constituiu, nem tampouco reconheceu qualquer obrigação para com a Exequente, é manifesto que não assegurou a aqui Exequente a sua efectiva legitimidade processual quanto à titularidade do crédito em causa; o Executado adquiriu, por escritura pública de compra e venda, outorgada no dia 23.10.1987, no Cartório Notarial do concelho de Local 3 adquiriu à então sociedade comercial “Quinta Nova – Empreendimentos Turísticos Lda.”, devidamente representada pelos seus sócios, o prédio urbano em regime de propriedade horizontal, sito na ..., freguesia de Local 1, concelho de Local 2, designado por “Bloco II- 14”, na Urbanização...; quando o Executado adquire as ditas fracções, fê-lo na convicção de que as mesmas estariam livres de quaisquer ónus e encargos, tal como demonstra o documento junto; estamos perante uma situação de litisconsórcio necessário, dado que devem estar presentes em juízo todos os interessados na relação controvertida; o Executado foi citado para a execução a 29.06.2021, data em que todas as quantias mostram-se prescritas, nos termos do disposto no artigo 310.º, al. e) do Código Civil; os juros peticionados mostram-se, também eles, prescritos, não sendo, por via disso, exigíveis; a Exequente excede manifestamente os limites da boa fé, incorrendo assim em abuso de direito nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 334.º, do Código Civil e pugna, assim pela condenação da Exequente no pagamento de indemnização a favor dos Executados em virtude da litigância de má fé.


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3. Foram liminarmente admitidos os embargos e indeferida “a requerida suspensão do prosseguimento da execução, sem prestação de caução”.


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4. Na Contestação a Exequente/Embargada pediu a improcedência total dos embargos, impugnou os factos invocados pelo Executado/Embargante e alegou, muito resumidamente, que a Embargada intentou a presente execução contra o Embargante não por o mesmo ter sido mutuário, fiador ou avalista no contrato que originou a dívida peticionada no requerimento executivo, mas apenas porque o mesmo responde pela dívida na estrita medida em que adquiriu a propriedade da fracção “R” penhorada nos autos principais, sem ter previamente acautelado junto do credor hipotecário o distrate da hipoteca em causa; está em causa um contrato de mútuo com hipoteca, nos contratos desta natureza o documento que titula a dívida é composto pelo contrato em si, no caso a escritura de mútuo com hipoteca, acompanhado do respetivo extrato de movimentos da conta corrente, que identifica os montantes e datas em que foram disponibilizados e os valores que foram sendo amortizados, até se chegar ao saldo final em dívida, pelo que o contrato acompanhado do respetivo extrato bancário de movimentos permite, que estejamos perante um título executivo completo para execuções de dívidas emergentes de contratos desta natureza, não ocorreu prescrição porque o prazo aplicável é de 20 anos e não de apenas cinco anos; não se verifica abuso do direito nem litigância de má fé; a Embargada não teve qualquer intervenção no processo da compra e venda das fracções que ocorreu entre o Embargante na qualidade de comprador e a sociedade QUINTA NOVA - EMPREENDIMENTOS TURISTICOS LDA na qualidade de vendedora, aliás a situação que ocorreu com o Embargante é idêntica à que ocorreu com muitos dos adquirentes das restantes fracções do mesmo prédio, que também compraram os imóveis sem a hipoteca estar cancelada e tiveram de chegar a acordo e efetuar pagamentos à primitiva credora Caixa Económica Montepio Geral para obterem os distrates das respetivas fracções de que eram proprietários, a fracção N foi a única cujo cancelamento ocorreu já após a celebração da cessão de créditos (cfr. AVERB. - AP. 951 de 2019/09/24 que consta da CRP Genérica junta como Doc. 1) contudo relativamente à qual a cessionária e aqui Embargada nada recebeu, uma vez que a primitiva credora Caixa Económica Montepio Geral confirmou que os adquirentes, previamente à cessão de créditos já tinham efetuado um pagamento para que o distrate lhe fosse entregue, contrariamente ao que ocorreu com as fracções de que o Embargante é proprietário.


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5. Em 30/05/2023 foi realizada Audiência Prévia com tentativa de conciliação.


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6. Em 04/01/2024 foi proferido o seguinte Despacho:


«Após e afigurando-se que os presentes autos apresentam condições para que seja proferida decisão final, notifique as partes nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 3º, nº 3 do Código de Processo Civil.».


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7. Em 01/07/2024 foi realizada tentativa de conciliação a pedido das partes.


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8. Saneador-sentença proferido em Primeira Instância:


Foi proferido saneador-sentença em primeira instância com o seguinte dispositivo:


«Em face do exposto, julgam-se procedentes os presentes Embargos de Executado e, em consequência, declara-se extinta a execução.


Custas a cargo da Embargada HEFESTO STC, S.A. (artigo 527º do Código de Processo Civil).


Registe e notifique.


Dê conhecimento ao/à Agente de Execução.».


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9. Recurso de apelação da Exequente/Embargada/Recorrente:


A Recorrente interpôs recurso de apelação da decisão onde pede a «revogação da decisão que julgou os embargos procedentes por alegada falta de título executivo, determinando o prosseguimento da execução para cobrança do capital em dívida de € 27.268,73 e 3 anos de juros conforme limitação legal da hipoteca», com as seguintes conclusões:


«a) A Recorrente, notificada do saneador-sentença e não se conformando com a decisão na parte que julgou os presentes embargos procedentes, vem, nos termos do artigo 638.º n.º 1 do Código de Processo Civil, interpor recurso de apelação para o Venerando Tribunal da Relação de Évora;


b) O presente recurso respeita a matéria de facto e de direito que foi aplicada na douta sentença recorrida e é restrito à parte da sentença que julgou os embargos procedentes, não abrangendo a parte da sentença em que não houve lugar à condenação da Recorrente como litigante de má-fé;


c) O Tribunal a quo no saneador-sentença que julgou os embargos procedentes apenas deu como provados, os seguintes factos:


(…)


d) O Tribunal a quo retirou uma conclusão incorreta ao considerar que o título executivo que fundamenta a execução era “dando à execução como título executivo, “escritura pública celebrada a 27.05.1987 (…)” quando na realidade estamos perante um título executivo complexo em que o documento que titula a dívida é composto pelo contrato em si, no caso a escritura de mútuo com hipoteca, acompanhado do respetivo extrato de movimentos da conta corrente, que identifica os montantes e datas em que foram disponibilizados e os valores que foram sendo amortizados, até se chegar ao saldo final em dívida de € 27.268,73 aí indicado;


e) A Recorrente não pode deixar de discordar do facto do Tribunal a quo ter julgado que “(…) Não se deixaram de demonstrar outros factos nem se mostra necessária a produção de outra prova respeitante a qualquer dos demais factos alegados, uma vez que a matéria apurada é suficiente para a decisão da causa. (…)”;


f) Existiam muitos outros factos com interesse e relevo para a boa decisão da causa e cuja prova resultaria unicamente de uma análise mais detalhada de toda a prova documental constante dos autos e que foram completamente omitidos;


g) O Recorrido, na sua petição de embargos, não impugnou a existência da dívida no que respeita a capital e juros nem a validade do título executivo quanto a estes, limitou-se a invocar a sua não exigibilidade por entender estarem prescritos por aplicação de prazo prescricional de 5 anos, e apenas suscitou a questão de falta de título quanto à quantia peticionada a título de despesas;


h) Do extrato de movimentos do contrato junto com o requerimento executivo como documento n.º 4, conjugada com a análise da página 18 do documento n.º 1 desde logo não restam dúvidas de que deveria ter sido dado como provado que o contrato n.º ... apresenta um capital em dívida de € 27.268,73, conforme peticionado e devidamente discriminado na Liquidação da Obrigação e na descrição dos factos no requerimento executivo;


i) Da descrição dos factos no requerimento executivo, o incumprimento do contrato ocorreu a 28/02/2014, data que o Recorrido na sua petição de embargos expressamente aceitou nos artigos 57.º, 61.º e 64.º da sua petição de embargos, pelo que este facto teria forçosamente que ter sido julgado como provado por acordo das partes;


j) Foi consignado no saneador-sentença proferido pelo Tribunal a quo e bem que “(…) O terceiro intervirá na qualidade de executado, embora esteja a sua responsabilidade limitada ao bem sobre o qual incide a garantia, sendo este um caso de litisconsórcio voluntário. (…)” referindo neste caso ao Recorrido;


k) Não subsistem dúvidas que está plenamente provado pela documentação constante dos autos (certidões genérica e da fracção R do registo predial do prédio penhorado) que o Recorrido é proprietário da fracção R penhorada nos autos e que sobre a mesma permanece em vigor a hipoteca;


l) A hipoteca que havia sido constituída no prédio mãe (Lote de Terreno) passa a estar em pleno vigor sobre cada uma das fracções respondendo cada uma individualmente e na íntegra pelo montante máximo assegurado, que no caso dos autos ascende a 67.400.000$00 (sessenta e sete milhões e quatrocentos mil escudos) a que corresponde o contravalor em euros de € 336.189,78 (trezentos e trinta e seis mil cento e oitenta e nove euros e setenta e oito cêntimos);


m) A questão da divisibilidade da hipoteca e de todo o circunstancialismo em que ocorreu o termos de cancelamento da hipoteca sobre muitas das fracções autónomas não foi suscitado pelo Recorrido na sua petição de embargos e por essa razão a Recorrente não sua contestação aos embargos não poderia ter nomeadamente requerido que a primitiva credora fosse notificada para prestar esclarecimentos;


n) Salvo o devido respeito e se a questão da divisibilidade da hipoteca que acabou por se revelar de extrema importância na decisão final proferida no saneador-sentença, deveria o Tribunal a quo ao abrigo dos basilares princípios da cooperação e dever de boa-fé processual ter notificado as partes para se pronunciarem sobre esta questão ou oficiosamente notificar diretamente a primitiva credora Caixa Económica Montepio Geral para prestar esclarecimentos (cfr. artigos 7.º e 8.º do Código de Processo Civil);


o) O Tribunal a quo concluiu pela falta de título executivo para execução da hipoteca, contudo no entender da Recorrente tal deveu-se a erro de análise nomeadamente de toda a documentação que instruiu o requerimento executivo e que compunha o título executivo complexo;


p) Pelo que o contrato (escritura de mútuo com hipoteca no caso dos autos) acompanhado do respetivo extrato bancário de movimentos do contrato onde constam os montantes e datas em que foram disponibilizados à mutuária os valores, bem como o lançamento dos juros e despesas contratuais e ainda as amortizações que ocorreram permite, que estejamos perante um título executivo completo para execuções de dívidas emergentes de contratos desta natureza.


q) Não corresponde por isso à verdade o que é referido pelo Tribunal a quo no sentido de que o “contrato de mútuo com hipoteca, celebrado por escritura pública, desacompanhado de outros documentos que a complementem, não permitem certezas quanto à quantia que ainda estará em dívida, nem a parte da dívida pela qual responderia o bem que é propriedade do Embargante, sendo, pois, o título executivo apresentado insuficiente.”;


r) O Tribunal a quo no saneador-sentença foi totalmente omisso no que respeita à análise do extrato bancário do contrário que instruiu o requerimento executivo onde consta expressamente o capital em dívida de € 27.268,73 e que foi o montante de capital em dívida cedido à Recorrente;


s) Acresce que tendo a dívida exequenda sido cedida à Recorrente consta ainda do anexo ao contrato de cessão o montante de capital em dívida do contrato de € 27.268,73;


t) Assistiria razão ao Tribunal a quo caso efetivamente a Recorrente tivesse instaurado a execução apenas com base na escritura do mútuo com hipoteca, o que não foi o que ocorreu nos presentes autos;


u) Salvo melhor opinião, os limites pelos quais o Recorrido responde no que respeita aos juros resultam da própria lei, no sentido em que relativamente à hipoteca apenas garante um período temporal de 3 anos (cfr. artigo 693.º n.º 2 do Código Civil), conforme a Recorrente acabou por admitir na sua contestação aos embargos;


v) A Recorrente liquidou devidamente a obrigação no requerimento executivo, sendo que os cálculos resultam de mero cálculo aritmético;


w) O Recorrido na sua petição de embargos não suscitou qualquer questão de erro na liquidação da obrigação nem falta de título o que o mesmo alegou foi a prescrição da dívida, ou seja, aceitou a dívida mas alegou que a mesma não era judicialmente exigível por em seu entender estar prescrita, ao que a Recorrente respondeu em sede própria (contestação aos embargos);


x) Salvo o devido respeito ocorreu excesso de pronúncia da parte do Tribunal a quo e por outro lado absteve-se de pronúncia sobre diversões questões controversas tais.».


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10. Resposta


O Recorrido apresentou contra-alegações pedindo a improcedência do recurso e a manutenção do decidido.


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11. Admissão do recurso


O recurso foi admitido.


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– Questão: admissão de documentos juntos com as alegações do recurso de apelação:


A Recorrente juntou com as suas alegações de recurso dois documentos. O Recorrido entende que não é admissível a sua junção por falta de verificação dos pressupostos.


Admite-se a junção do documento n.º 1 (“extracto movimentos”) porque o mesmo já constava dos autos de execução pois foi junto com o respectivo Requerimento Inicial Executivo.


Quanto ao documento n.º 2 (“documento complementar”) admite-se a sua junção, dada a importância do mesmo para a questão do capital em causa, não se condenando a apresentante em multa ou fazendo qualquer outra censura, porquanto até poderia ser este Tribunal da Relação, oficiosamente, mesmo nesta fase do recurso, a ordenar a sua respectiva junção, dada aquela importância ou essencialidade para a discussão da causa (cfr. artigos 651.º, n.º 1, do CPC).


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12. Objecto do recurso – Questões a Decidir:


- Nulidade da sentença;


- Impugnação da matéria de facto;


- Reapreciação jurídica da causa.


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II. FUNDAMENTAÇÃO

A. FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

13. Em Primeira Instância consignou-se a seguinte factualidade:


«Factos Provados


São os seguintes os factos a ter em consideração:


1. Em 07.04.2021, a Exequente apresentou requerimento executivo, cujo teor se dá integralmente por reproduzido, dando à execução como título executivo, “escritura pública celebrada a 27.05.1987, no Cartório Notarial de Local 2, pelo Notário BB, a Caixa Económica Montepio Geral (designada Caixa Económica de Lisboa até 1991), no exercício da sua atividade creditícia, celebrou com a QUINTA NOVA - EMPREENDIMENTOS TURISTICOS, LDA., neste ato representada pelos seus gerentes e sócios, um contrato de mútuo com hipoteca, destinado a construção de um imóvel, tendo a Caixa Económica Montepio Geral mutuado a esta a quantia de 40.000.000,00 Escudos”, conforme Documento n.º 3 junto com o requerimento executivo e que aqui se dá por integralmente reproduzido.


2. Para garantia do pagamento das obrigações assumidas no referido contrato, a mutuária QUINTA NOVA - EMPREENDIMENTOS TURISTICOS, LDA. constituiu hipoteca voluntária sobre o imóvel Lote de terreno, no qual estava em construção um prédio urbano sito na ..., designado pelo número H-Catorze, descrito na Conservatória do Registo Predial de Local 2 sob o n.º 450, da freguesia de Local 1, e omisso na matriz.


3. Tal hipoteca voluntária encontra-se registada a favor da CAIXA ECONÓMICA, MONTEPIO GERAL, S.A., pela AP. 8 de 1987/04/03 e tem o montante máximo assegurado de 67.400.000,00 Escudos.


4. Desse prédio, várias fracções tiveram as hipotecas canceladas, como resulta da respectiva informação predial, cujo teor se dá por reproduzido.


5. A Embargada encontra-se identificada no registo predial como sendo a actual titular da referida garantia hipotecária, através da AP. 2121 de 2016/06/24.


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Factos Não provados


Não se deixaram de demonstrar outros factos nem se mostra necessária a produção de outra prova respeitante a qualquer dos demais factos alegados, uma vez que a matéria apurada é suficiente para a decisão da causa.».


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B. FUNDAMENTAÇÃO JURÍDICA


14. Da invocada nulidade da sentença por excesso de pronúncia e ainda por omissão de pronúncia:


O juiz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, excetuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras; não pode ocupar-se senão das questões suscitadas pelas partes, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o conhecimento oficioso de outras – cfr. art. 608.º, n.º 2, do CPC.


É nula a sentença quando, entre outros casos, o juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento – cfr. art. 615.º, n.º 1, al. d), do CPC.


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14.1. A Recorrente entende que ocorreu nulidade por excesso de pronúncia da sentença ao decidir pela falta de título executivo, essencialmente porque a questão da divisibilidade da hipoteca e de todo o circunstancialismo em que ocorreu o termos de cancelamento da hipoteca sobre muitas das fracções autónomas não foi suscitado pelo Recorrido na sua petição de embargos e por essa razão a Recorrente não sua contestação aos embargos não poderia ter nomeadamente requerido que a primitiva credora fosse notificada para prestar esclarecimentos e se tal questão acabou por se revelar de extrema importância na decisão final proferida no saneador-sentença, deveria o Tribunal a quo ao abrigo dos basilares princípios da cooperação e dever de boa-fé processual ter notificado as partes para se pronunciarem sobre esta questão ou oficiosamente notificar diretamente a primitiva credora Caixa Económica Montepio Geral para prestar esclarecimentos, na sentença recorrida consta que “O título executivo não contém, deste modo, elementos que permitam determinar os limites da acção executiva (artigo 10.º, n.º 5, do Código de Processo Civil).” e “Conclui-se, assim pela falta de título executivo para execução da hipoteca.”, contudo, o Embargante/Recorrido na sua petição de embargos não suscitou qualquer questão de erro na liquidação da obrigação nem falta de título.


O Recorrido discorda desse entendimento.


Apreciando.


A Recorrente invoca a violação do princípio da cooperação e o dever de boa-fé processual porque entende que o tribunal deveria ter notificado previamente as partes para se pronunciarem sobre esta questão da “divisibilidade da hipoteca” antes de proferir sentença.


É debatido na doutrina1 se a falta de consulta das partes pelo tribunal sempre que pretenda conhecer de matéria de facto ou de direito sobre a qual as partes não tenham tido a oportunidade de se pronunciarem, viola o princípio do contraditório ou antes se viola o princípio da cooperação, certamente por isso a Recorrente invocou a violação deste último.


Independentemente da concepção assumida a esse propósito, movemo-nos no âmbito do princípio da proibição das decisões-surpresa.


Não é lícito ao juiz, salvo caso de manifesta desnecessidade, decidir questões de direito ou de facto, mesmo que de conhecimento oficioso, sem que as partes tenham tido a possibilidade de sobre elas se pronunciarem – cfr. art. 3.º, n.º 3, do CPC.


E em que consiste uma “decisão-surpresa”?


Tal conceito não se encontra definido na lei, por isso, a doutrina com vista a colocar fim a tal lacuna ocupou-se de o tentar especificar, porém, não há unanimidade quanto ao que se pode entender por decisão-surpresa. É possível dividir a doutrina em dois entendimentos: o antiformalista e o garantista2.


Então, a corrente antiformalista (corrente maioritária) é defendida por J. Pereira Baptista, Carlos Lopes do Rego, Paulo Ramos de Faria e Ana Luísa Loureiro. Essencialmente, diz-nos que “a decisão-surpresa não se confunde com a suposição ou expectativa que as partes possam ter feito ou acalentado quanto à decisão; não se pode falar de decisão-surpresa quando as decisões, de facto ou de direito, devam ser conhecidas pelas partes como viáveis, como possíveis; só há decisão-surpresa «quando se trate de apreciar questões jurídicas suscetíveis de se repercutirem, de forma relevante e inovatória, no conteúdo da decisão e quando não for exigível que a parte interessada a houvesse perspetivado durante o processo, tomando oportunamente posição sobre ela»3.


Como defensor do critério garantista José Lebre de Freitas entende que a contrariedade, no processo civil, deve ser perspetivada como “garantia da participação efetiva das partes no desenvolvimento de todo o litígio, mediante a possibilidade de, em plena igualdade, influírem em todos os elementos (factos, provas, questões de direito) que se encontrem em ligação com o objeto da causa e que em qualquer fase do processo apareçam como potencialmente relevantes para a decisão”. E, caso exista alguma questão, não debatida pelas partes, em que o juiz entenda dever basear nela a sua decisão, “deve previamente convidar ambas as partes a sobre elas tomarem posição, só estando dispensado de o fazer em casos de manifesta desnecessidade (art. 3.º, n.º 3)” De seguida, este autor, exemplifica quais os casos em que se pode considerar que é manifestamente desnecessário chamar a parte para se pronunciar. Portanto, fora de tais casos, se o juiz basear a sua decisão numa questão nova não debatida pelas partes, é possível dizer-se que estamos perante uma decisão-surpresa4.


A propósito desta problemática parece-nos interessante o que se entendeu no Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 04/05/20225 (Manuel Domingos Fernandes processo 475/21.4T8STS-B.P1) www.dgsi.pt):


«Evidentemente que o respeito pelo citado princípio não implica que haja que apresentar às partes um projecto de decisão para que sobre ele se pronunciem ou que devam ser ouvidas fora dos momentos processuais previstos sobre questões que as suas pretensões coloquem habitualmente na jurisprudência e sejam por isso conhecidas na comunidade jurídica».


O caso prático tratado nesse processo dizia respeito à nulidade do contrato de empreitada mas na decisão recorrida tratou-se esta questão no sentido da sua improcedência com recurso à figura de abuso de direito, enquadramento jurídico cujo enfoque não foi feito por qualquer das partes nas peças processuais apresentadas, por isso, aí se entendeu que deveria ter sido observado o princípio em causa.


Também não é ainda pacífico o entendimento na doutrina e na jurisprudência qual a consequência da prolação de decisão-surpresa, podendo sintetizar-se as seguintes correntes, como melhor sintetizado no Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 09/05/20246 (Arlindo Crua , proc. n.º 16858/22.0T8SNT-A.L1-2, www.dgsi.pt):


- a prática de nulidade secundária, por omissão de acto ou formalidade legalmente prescritos, inscrita no art.º 195º, do Cód. de Processo Civil;


- causa de nulidade da sentença decorrente de excesso de pronúncia (apreciação de questão que, naquele contexto, o Tribunal não poderia tomar conhecimento), com legal enquadramento na 2ª parte, da alínea d), do nº. 1, do art.º 615º, do Cód. de Processo Civil;


- a prática de nulidade extraformal, geneticamente derivada das garantias constitucionais, como omissão ou vício de natureza material ou substantiva.


Importa ainda salientar que, o Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 23/09/20217 (Cristina Dá Mesquita, proc. 1502/20.8T8PTM.E1, www.dgsi.pt) entendeu que “A omissão do dever de permitir às partes, antes da prolação da decisão de mérito, a produção de alegações de facto e de direito constitui a violação do princípio do contraditório previsto no artigo 3.º, n.º 3 do CPC e do direito a uma tutela jurisdicional efetiva consagrada constitucionalmente no artigo 20.º, n.º 4, da CR. 3- Violação essa que afeta a decisão sob recurso, tornando-a nula, nos termos do artigo 615.º, n.º 1, alínea d) do CPC.”.


Ainda a este propósito, Abrantes Geraldes8 entende “que continua a merecer crédito a solução que aponta para a integração no regime das nulidades da sentença as situações em que é desrespeitado o princípio do contraditório e proferida decisão-surpresa”.


Finalmente, como bem referido no Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 17/11/20229 (Maria Amália Santos, proc. n.º 1002/18.6T8VCT-C.G1, www.dgsi.pt): “A dificuldade está, pois, em saber o que deve entender-se por questões, para efeitos do disposto nos artigos 608º nº 2 e 615, n.º 1, d), do CPC. A resposta tem de ser procurada na configuração que as partes deram ao litígio, levando em conta a causa de pedir, o pedido, e as exceções invocadas pelo réu, o que vale por dizer que questões serão apenas as questões de fundo, isto é, as que integram matéria decisória, tendo em conta a pretensão que se visa obter. Não farão parte dessas “questões” os argumentos e as motivações produzidas pelas partes, mas apenas os pontos de facto ou de direito relevantes no quadro do litígio, ou seja, os concernentes ao pedido, à causa de pedir e às exceções invocadas (José Alberto dos Reis (CPC anotado, Vol. V. pág. 142, e José Lebre de Freitas, A. Montalvão Machado e Rui Pinto, Código de Processo Civil Anotado, Vol. 2, 2ª ed., Coimbra Editora, pág. 704)”.


Revertendo todos os referidos ensinamentos para o caso concreto em apreciação, constata-se desde logo que, ao contrário do que alega a Recorrente, a questão de fundo a decidir consiste na “falta de título executivo” e esta não se pode circunscrever a uma mera “divisibilidade da hipoteca” ou “liquidação da dívida” que não é mais do que motivos ou razões que fundamentam a falta de título executivo.


Por outro lado, é possível surpreender ainda que o Executado/Embargante alegou expressamente nos seus Embargos de Executado o seguinte:

“1. A exequente apresentou à execução, como título executivo, uma escritura pública (mútuo com hipoteca), outorgada em 27/05/1987, no Cartório Notarial de Local 2.

(…)

“5. Sucede que, conforme se logrará demonstrar, não estão reunidos todos os requisitos atinentes à exequibilidade”.

Portanto, o Embargante/Executado coloca em causa o título executivo e pelos mais variados motivos.


Então, parece-nos que daqui resulta desde logo que não se poderá afirmar que a questão da falta de título não foi invocada.


Por sua vez, é possível surpreender ainda que os factos em que se baseou a sentença para fundamentar a sua decisão relativa à falta de título executivo e relacionada com a “divisibilidade da hipoteca” foram alegados pela própria Recorrente na sua Contestação aos embargos (para além de resultarem do teor objectivo da certidão do registo predial junto pela própria Recorrente no seu Requerimento Inicial Executivo), como segue:

68.º

Aliás a situação que ocorreu com o Embargante é idêntica à que ocorreu com muitos dos adquirentes das restantes fracções do mesmo prédio, que também compraram os imóveis sem a hipoteca estar cancelada e tiveram de chegar a acordo e efetuar pagamentos à primitiva credora Caixa Económica Montepio Geral para obterem os distrates das respetivas fracções de que eram proprietários.

69.º

A fracção N foi a única cujo cancelamento ocorreu já após a celebração da cessão de créditos (cfr. AVERB. - AP. 951 de 2019/09/24 que consta da CRP Genérica junta como Doc. 1) contudo relativamente à qual a cessionária e aqui Embargada nada recebeu, uma vez que a primitiva credora Caixa Económica Montepio Geral confirmou que os adquirentes, previamente à cessão de créditos já tinham efetuado um pagamento para que o distrate lhe fosse entregue.

70.º

Contrariamente ao que ocorreu com as fracções de que o Embargante é proprietário.”.

E vejamos que na fundamentação de facto da sentença consta, no essencial, essa factualidade:

«4. Desse prédio, várias fracções tiveram as hipotecas canceladas, como resulta da respectiva informação predial, cujo teor se dá por reproduzido.».

Nesta sequência, no contexto de toda a factualidade invocada pelo Embargante/Executado nos seus embargos, este coloca em causa precisamente o título executivo, pelos mais variados motivos de facto e de direito, não estando vedado ao tribunal enquadrar toda a factualidade assim apresentada à qualificação jurídica que entender como a mais adequada.


Com efeito, “O juiz não está sujeito às alegações das partes no tocante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito” – cfr. art. 5.º, n.º 3, do CPC.


Não obstante, julgamos que nos presentes autos foi exercido o princípio da cooperação e do contraditório, basta atentar que em 30/05/2023 foi realizada Audiência Prévia com tentativa de conciliação, em 01/07/2024 foi realizada novamente tentativa de conciliação desta vez a pedido das partes e, finalmente, em 04/01/2024 foi proferido o seguinte Despacho:


«Após e afigurando-se que os presentes autos apresentam condições para que seja proferida decisão final, notifique as partes nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 3º, nº 3 do Código de Processo Civil.».


Importa ainda referir, de todo o modo, em abstracto, mesmo que se entendesse possível circunscrever a questão colocada à “divisibilidade da hipoteca” ou a “liquidação da dívida” como invocou a Recorrente, sempre diremos que não se pode propriamente falar de uma “decisão surpresa” para a Recorrente, porque, instaurando a Recorrente uma execução contra terceiro, que não é devedor, com base na circunstância da fracção autónoma de que é proprietário se mostrar onerada em consequência de antiga hipoteca sobre o prédio mãe, ainda para mais quando é a própria Recorrente a alegar que várias fracções tiveram as hipotecas canceladas, basta uma simples consulta das bases de dados jurídicas de jurisprudência, para se constatar que é precisamente essa questão colocada habitualmente na jurisprudência e por isso conhecida da comunidade jurídica, tal como se considerou no supra citado Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 04/05/202210 (Manuel Domingos Fernandes processo 475/21.4T8STS-B.P1) www.dgsi.pt).


Finalmente, mesmo que assim se não entendesse, consideramos que no caso concreto em apreciação sempre se trataria de um caso de manifesta desnecessidade (cfr. art. n.º 3, do CPC) e inutilidade (cfr. art. 130.º, do CPC), atentos os concretos termos em que foi proposta a execução e os motivos da procedência dos embargos em conjugação com as razões invocadas pela Recorrente, como se verá melhor infra na reapreciação do mérito da causa.


Deste modo, por todos os apontados motivos, não se verifica a invocada nulidade da sentença por excesso de pronúncia, para efeitos do disposto no art. 615.º, n.º 1, al. d), do CPC.


*


14.2. A Recorrente invoca ainda a omissão de pronúncia limitando-se a alegar que “Salvo o devido respeito ocorreu excesso de pronúncia da parte do Tribunal a quo e por outro lado absteve-se de pronúncia sobre diversões questões controversas tais como a prescrição que efetivamente haviam sido suscitadas pelo Recorrido, o que determina a nulidade da sentença nos termos do artigo 615.º n.º 1 alínea d) do Código de Processo Civil.”.


«A este respeito, também é pacífica a jurisprudência que o dever de decidir tem por referência as questões suscitadas e bem assim as questões de conhecimento oficioso, mas que não obriga a que se incida sobre todos os argumentos, pois que estes não se confundem com “questões” (STJ 27-3-14, 555/2002). Para determinar se existe omissão de pronúncia há que interpretar a sentença na sua totalidade, articulando fundamentação e decisão (STJ 23-1-19, 4568/13).». E ainda «Se é grave a falta de apreciação de alguma questão relevante para o resultado da lide (omissão de pronúncia), não o é menos a apreciação de questões de facto ou de direito que não tenham sido invocadas e que não sejam de conhecimento oficioso (excesso de pronúncia). Já a condenação ultra petitum resultará na violação do disposto no art. 609.º, n.º 1.»11.


Como de igual modo se decidiu no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 09/01/202412 (Nuno Gonçalves, proc. n.º 21/21.0YFLSB, www.dgsi.pt): “Constitui jurisprudência pacífica que a omissão de pronúncia existe quando o tribunal deixa, em absoluto, de apreciar e decidir as questões que lhe são colocadas, e não quando deixa de apreciar argumentos, considerações, raciocínios, ou razões invocados pela parte em sustentação do seu ponto de vista quanto à apreciação e decisão dessas questões.”.


E ainda como se decidiu Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 06/03/202413 (Mário Belo Morgado, proc. n.º 4553/21.1T8LSB.L1.S1, www.dgsi.pt):


“Em matéria de pronúncia decisória, o tribunal deve conhecer de todas (e apenas) as questões suscitadas nas conclusões das alegações apresentadas pelo recorrente, excetuadas as que venham a ficar prejudicadas pela solução, entretanto dada a outra(s), questões (a resolver) que não se confundem nem compreendem o dever de responder a todos os invocados argumentos, motivos ou razões jurídicas, sendo certo que o juiz não está sujeito às alegações das partes no tocante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito.”.


No caso concreto em apreciação, na fundamentação da decisão recorrida consta claramente que:


«Conclui-se, assim pela falta de título executivo para execução da hipoteca.


Tendo-se concluído pela falta de título executivo, mostram-se prejudicadas as demais questões suscitadas.».


Ou seja, o conhecimento das demais questões colocadas ficou naturalmente prejudicado com a decisão dada à primeira questão de fundo: a falta de título executivo.


Deste modo, não ocorreu a invocada nulidade da sentença por omissão de pronúncia para efeitos do disposto no art. 615.º, n.º 1, al. d), do CPC.


*


15. Impugnação da decisão da matéria de facto:


A este propósito, a Recorrente alegou o seguinte:

“15.º

No que respeita ao facto dado como Provado em 1., salvo o devido respeito o Tribunal a quo retirou uma conclusão incorreta ao considerar que o título executivo que fundamenta a execução era “dando à execução como título executivo, “escritura pública celebrada a 27.05.1987 (…)” quando na realidade estamos perante um título executivo complexo em que o documento que titula a dívida é composto pelo contrato em si, no caso a escritura de mútuo com hipoteca, acompanhado do respetivo extrato de movimentos da conta corrente, que identifica os montantes e datas em que foram disponibilizados e os valores que foram sendo amortizados, até se chegar ao saldo final em dívida de € 27.268,73 aí indicado.

16.º

Assistiria razão ao Tribunal a quo caso efetivamente a Recorrente tivesse instaurado a execução apenas com base na escritura do mútuo com hipoteca, o que conforme já referido não aconteceu.

(…)

20.º

Desde logo porque o Recorrido, na sua petição de embargos, não impugnou a existência da dívida no que respeita a capital e juros nem a validade do título executivo quanto a estes, limitou-se a invocar a sua não exigibilidade por entender estarem prescritos por aplicação de prazo prescricional de 5 anos, e apenas suscitou a questão de falta de título quanto à quantia peticionada a título de despesas.

21.º

Da análise detalhada do extrato de movimentos do contrato junto com o requerimento executivo como documento n.º 4, conjugada com a análise da página 18 do documento n.º 1 (anexamos agora para melhor esclarecimento) desde logo não restam dúvidas de que deveria ter sido dado como provado que o contrato n.º ... apresentava um capital em dívida de € 27.268,73, conforme peticionado e devidamente discriminado na Liquidação da Obrigação e na descrição dos factos no requerimento executivo.

(…)

26.º

Deveria igualmente ter sido julgado como Provado que a Recorrente (Exequente nos autos principais) dispõe de título executivo válido contra o Recorrido quanto ao capital em dívida de € 27.268,73 do contrato ... e 3 anos de juros de acordo a limitação legal da hipoteca.”.

Apreciando.


Daqui parece resultar essencialmente que a Recorrente entende que deveria constar dos factos provados que “A Recorrente (Exequente nos autos principais) dispõe de título executivo válido contra o Recorrido quanto ao capital em dívida de € 27.268,73 do contrato ... e 3 anos de juros de acordo a limitação legal da hipoteca.”.


Contudo, importa salientar que a eventual existência, ou não, de título executivo válido contra o Recorrido e de que montante, é uma questão a decidir e não um facto.


Por sua vez, o capital em dívida e os juros invocados constam da liquidação apresentada pela Recorrente no seu Requerimento Executivo e a sua verificação é uma conclusão que resultará da análise do título executivo apresentado pela Recorrente e demais elementos juntos, mas não um facto a ter de constar nos factos provados.


Com efeito, a decisão de facto constante da sentença limitou-se a constatar no ponto 1 que foi dada à execução como título executivo a “escritura pública …” e descreve o seu conteúdo objectivo, nada mais sendo exigido para efeitos da enunciação dos factos provados.


Acresce ainda que os documentos juntos aos autos, incluindo o documento n.º 2 junto com o Recurso de apelação não altera as anteriores conclusões.


Deste modo, nesta parte improcede a impugnação da decisão da matéria de facto.


Alegou ainda a Recorrente o seguinte:

“22.º

Deveria igualmente ter sido considerado como facto provado o facto de o Recorrido ter adquirido à sociedade QUINTA NOVA - EMPREENDIMENTOS TURÍSTICOS, LDA a propriedade da fração “R” do prédio urbano constituído em regime de propriedade horizontal e descrito na Conservatória do Registo Predial de Local 2 sob o n.º 450, penhorada nesta execução, através de escritura pública celebrada em 23 de Outubro de 1987 no antigo Cartório Notarial de Local 3 a cargo da Notária CC, através da escritura pública junta pelo Recorrido como documento n.º 1 com a sua petição inicial de embargos

E que a aquisição a favor do Recorrido foi registada através da AP. 32 de 1988/09/30, conforme resulta da certidão do registo predial constante dos autos.

Bem como que a hipoteca voluntária da AP. 8 de 1987/04/03 permanece em vigor quanto à fracção “R” propriedade do Recorrido, conforme resulta da certidão do registo predial da fração constante dos autos.

(…)

25.º

Da descrição dos factos no requerimento executivo, o incumprimento do contrato ocorreu a 28/02/2014, data que o Recorrido na sua petição de embargos expressamente aceitou nos artigos 57.º, 61.º e 64.º da sua petição de embargos, pelo que este facto teria forçosamente que ter sido julgado como provado por acordo das partes.”.

Vejamos.


Quanto a esta parte, trata-se de factos que constam do teor objectivo dos documentos juntos aos autos (certidão da escritura pública e certidão do registo predial), devem passar a constar do elenco dos factos provados, procedendo nesta parte a impugnação, como segue:


«6- Através de escritura pública celebrada em 23 de Outubro de 1987 no antigo Cartório Notarial de Local 3 a cargo da Notária CC o Recorrido adquiriu à sociedade QUINTA NOVA - EMPREENDIMENTOS TURÍSTICOS, LDA a propriedade da fração “R” do prédio urbano constituído em regime de propriedade horizontal e descrito na Conservatória do Registo Predial de Local 2 sob o n.º 450, penhorada nesta execução;


7- A aquisição a favor do Recorrido foi registada através da AP. 32 de 1988/09/30;


8- A hipoteca voluntária da AP. 8 de 1987/04/03 permanece em vigor quanto à fracção “R” propriedade do Recorrido.».


Contudo, já quanto ao mais, não é correcta a asserção da Recorrente de que o Recorrido na sua petição de embargos expressamente aceitou nos artigos 57.º, 61.º e 64.º da sua petição de embargos que o incumprimento do contrato ocorreu a 28/02/2014.


Basta atentar que nos seus Embargos de Executado o ora Recorrido alegou o seguinte:

“57. Refere a exequente que o incumprimento terá ocorrido em 28/02/2014.

58. É certo que, nos termos do disposto no art.º 781.º do Código Civil, o não cumprimento de uma prestação importa o vencimento da quantia global em dívida.

59. Porém, para que tal aconteça é necessário que o credor interpele o devedor para proceder ao pagamento.

60. Na verdade “o «vencimento imediato» significa «exigibilidade imediata» e não que o prazo de pagamento de todas as prestações seja o da primeira prestação” (Acórdão da Relação de Lisboa de 10-02-2000: CJ, 2000, 1.º-107).

61. Como não ocorreu tal interpelação, pelo menos nada é demonstrado pela exequente, significa que após 28/02/2014, foram-se vencendo mensalmente as prestações, conforme resulta do termos contratuais, até ao momento em que a exequente as reclamou através da acção executiva.

62. A acção executiva foi intentada a 29/03/2021.

63. O executado foi citado para a execução a 29/06/2021.

64. Esta é a data relevante para efeitos de interrupção da prescrição.

65. Ora, nesta data, em 29/06/2021, todas as quantias mostram-se prescritas, nos termos do disposto no artigo 310.º, al. e) do Código Civil.”.

Ou seja, daqui resulta claramente que apenas que o Recorrido afirma apenas que a Exequente é que refere esse facto para depois analisar a prescrição, por isso não se pode considerar que é uma confissão, porque não o aceita expressamente como verdadeiro, aliás, nem é um facto pessoal, improcedendo nesta parte a impugnação.


*


16. Reapreciação jurídica da causa:


A sentença recorrida entendeu o seguinte:


«Os presentes autos são de execução hipotecária pois que a Exequente beneficia de garantia de hipoteca sobre o imóvel Lote de terreno, no qual estava em construção um prédio urbano sito na ..., designado pelo número H-Catorze, descrito na Conservatória do Registo Predial de Local 2 sob o n.º 450, da freguesia de Local 1. Tal hipoteca encontra-se registada sob a AP. 8 de 1987/04/03 e tem o montante máximo assegurado de 67.400.000,00 Escudos.


A pretensão da Exequente quanto ao Embargante é a prevista nos termos do artigo 54º, nº 2 Código Processo Civil, ou seja, pretende executar dívida provida de garantia real sobre bens de terceiro que deve seguir diretamente contra este ab initio.


Ou seja, este caso constitui um desvio à regra geral da determinação da legitimidade, configurando um caso de litisconsórcio voluntário, pois pode-se demandar ab initio só o terceiro ou o terceiro e o devedor.


O terceiro intervirá na qualidade de executado, embora esteja a sua responsabilidade limitada ao bem sobre o qual incide a garantia, sendo este um caso de litisconsórcio voluntário.


Deste modo, quando foi instaurada a execução em 07.04.2021, o bem imóvel descrito na Conservatória do Registo Predial Local 2 sob o nº 450/19870403-R estava registada em nome do ora Executado e da sua falecida mulher, pelo que tinham estes legitimidade para serem demandados nos termos do artigo 54º do Código Processo Civil.


A garantia em causa é uma hipoteca que abrangeu o prédio do qual faz parte, em regime de propriedade horizontal, a fracção autónoma do Embargante. A dívida é liquidada pela Exequente abrangendo a escritura dada à execução e invoca garantia hipotecária que havia sido constituída sobre todo o imóvel.


O Embargante é, porém, proprietário de apenas uma das fracções autónomas do referido prédio, desconhecendo-se qual a dívida que o bem que é propriedade do Embargante garante.


Nos termos do artigo 10.º, n.º 5, do Código de Processo Civil, toda a execução tem por base um título, pelo qual se determinam o fim e os limites da acção executiva, não constituindo, contudo, a causa de pedir da mesma, nem se confunde com ela, apenas a suporta, incorporando a obrigação creditícia cuja realização coactiva se pretende.


No caso concreto, a intervenção do Embargante na execução, na qualidade de Executado, tem fundamento no disposto no artigo 54.º, n.º 2, do Código de Processo Civil que estatui que: “A execução por dívida provida de garantia real sobre bens de terceiro segue diretamente contra este se o exequente pretender fazer valer a garantia, sem prejuízo de poder desde logo ser também demandado o devedor”.


Estatui, o artigo 696.º, do Código Civil, que, salvo convenção em contrário, a hipoteca é indivisível, subsistindo por inteiro sobre cada uma das coisas oneradas e sobre cada uma das partes que as constituam, ainda que a coisa ou o crédito seja dividido ou este se encontre parcialmente satisfeito.


Por regra, a hipoteca é, deste modo, indivisível, mas tal indivisibilidade pode ser afastada por convenção, afigurando-se que a mesma pode ser expressa ou tácita.


No caso em apreço, resultando da informação do registo predial vários averbamentos de cancelamento parcial do registo da hipoteca de várias fracções do mesmo prédio a que pertence o imóvel do Embargante, forçoso é concluir que o credor convencionou ou aceitou a divisibilidade da hipoteca ou que renunciou à indivisibilidade da hipoteca. Por outro lado, a fracção autónoma pertencente ao Embargante não é a única sobre a qual a hipoteca continua a incidir.


E se relativamente a algumas das fracções autónomas do mesmo prédio a hipoteca registada foi cancelada parcialmente, significa isso que o credor hipotecário já convencionou/aceitou que cada fracção autónoma servirá apenas o pagamento da parte proporcional do crédito que ainda se encontre em dívida. Esse cálculo terá por base as permilagens fixadas aquando da constituição do prédio em propriedade horizontal.


Deste modo, a responsabilidade do Embargante sempre estaria limitada ao imóvel da sua propriedade, onerado por hipoteca.


Conclui-se, deste modo, que contrato de mútuo com hipoteca, celebrado por escritura pública, desacompanhado de outros documentos que a complementem, não permitem certezas quanto à quantia que ainda estará em dívida, nem a parte da dívida pela qual responderia o bem que é propriedade do Embargante, sendo, pois, o título executivo apresentado insuficiente.


Com efeito, se a execução é instaurada contra o Embargante na qualidade de proprietário de bem que, parcialmente, responde pela dívida garantida pela hipoteca, o título tem de suportar essa pretensão de forma devidamente determinada.


O título executivo não contém, deste modo, elementos que permitam determinar os limites da acção executiva (artigo 10.º, n.º 5, do Código de Processo Civil).


Conclui-se, assim pela falta de título executivo para execução da hipoteca.


Tendo-se concluído pela falta de título executivo, mostram-se prejudicadas as demais questões suscitadas.».


A Recorrente discorda essencialmente da conclusão ou do entendimento a que chegou o tribunal a quo no sentido de que o facto de ter existido cancelamento da hipoteca relativamente a diversas fracções «(…) forçoso é concluir que o credor convencionou ou aceitou a divisibilidade da hipoteca ou que renunciou à indivisibilidade da hipoteca. (…)», porque considera a Recorrente que a “A indivisibilidade da hipoteca prevista no artigo 696.º do Código Civil, em nada é afetada no caso de imóveis que posteriormente à constituição da hipoteca, são constituídos em regime de propriedade horizontal.”.


Entende ainda a Recorrente que “A hipoteca que havia sido constituída no prédio mãe passa a estar em pleno vigor sobre cada uma das fracções respondendo cada uma individualmente e na íntegra pelo montante máximo assegurado, que no caso dos autos ascende a 67.400.000$00 (sessenta e sete milhões e quatrocentos mil escudos) a que corresponde o contravalor em euros de € 336.189,78 (trezentos e trinta e seis mil cento e oitenta e nove euros e setenta e oito cêntimos)”, e por isso considera “Razão pela qual não existiu qualquer renúncia à indivisibilidade da hipoteca para efeitos do 696.º do Código Civil.”.


A Recorrente admite que “Houve recebimentos de valores por parte da primitiva credora Caixa Económica Montepio Geral que se encontram espelhados no extrato de movimento do contrato que foi junto pela Recorrente com o requerimento executivo. E que por essa razão o montante de capital em dívida cedido à Recorrente apenas ascendesse a € 27.268,73 (cfr. extrato de movimentos do contrato e página do anexo à cessão que instruíram o requerimento executivo e uma vez mais se juntam para mais fácil esclarecimento).”, contudo, “A Recorrente não conhece, nem tem obrigação de conhecer quais as negociações e as circunstâncias que conduziram à entrega dos termos de cancelamento de hipoteca sobre a maioria das fracções do prédio entre a primitiva credora Caixa Económica Montepio Geral e/ou os proprietários dessas fracções ou a sociedade mutuária QUINTA NOVA - EMPREENDIMENTOS TURÍSTICOS, LDA, uma vez que tal ocorreu muito antes de terem sido cedidos os créditos à Recorrente.”.


Importa salientar que, para estribar o entendimento da Recorrente esta não invocou, nem no corpo das alegações nem nas conclusões, qualquer norma jurídica específica nem doutrina ou jurisprudência aplicáveis.


Apreciando.


Com efeito, nos termos do disposto no art. 696.º do Código Civil, sob a epígrafe “Indivisibilidade”, “Salvo convenção em contrário, a hipoteca é indivisível, subsistindo por inteiro sobre cada uma das coisas oneradas e sobre cada uma das partes que as constituam, ainda que a coisa ou o crédito seja dividido ou este se encontre parcialmente satisfeito”.


O Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 28/09/202114 (Tibério Nunes da Silva, processo n.º 8263/19.1T8SNT-A.L1.S1, www.dgsi.pt), diz a este propósito o seguinte, reportando-se à obra “Da Hipoteca: Caracterização, Constituição e Efeitos”, Almedina, Coimbra, 2003, pág. 117: “A citada autora, Maria Menéres Campos, escreve, a propósito deste princípio, que: «Na opinião de Oliveira Ascensão e Menezes Cordeiro, da sim­ples leitura do preceito contido no artigo 696.° poderão inferir-se as seguintes conclusões, que nos parece importante enumerar: quando uma hipoteca seja constituída sobre várias coisas, o credor hipotecário pode executá-la, na sua totalidade sobre qualquer delas; quando a hipoteca seja constituída sobre várias partes da coisa (com autonomia jurídica), o credor hipotecário pode, de igual forma, executá-la na sua totalidade, sobre qual­quer das partes em causa; quando uma hipoteca seja constituída sobre uma única coisa que, posteriormente, se divide ou fracciona em várias ou partes autónomas, o credor pode executá-la, na sua totalidade, sobre qualquer uma das novas coisas surgidas ou das partes de coisa autonomizadas; quando a hipoteca seja constituída para garantia de um crédito e este se venha a dividir, qualquer dos credores pode executá-la, na sua totalidade, para satisfação do seu débito; quando uma hipoteca seja constituída para garantia de um crédito de certo montante, e haja cumprimento parcial, o credor hipotecário pode executá-la, na sua totalidade, para satisfação do remanescente em dívida».


Em princípio, o direito da Exequente, ora Recorrente, poderia ser exercido, na execução de que estes embargos são apenso, porquanto a garantia que o sustentava – hipoteca – havia sido constituída sobre o lote de terreno no qual foi construído o empreendimento de que faz parte a fracção R do Executado, que já foi objecto de penhora nessa execução.


Ou seja: a fracção respondia por toda a dívida – pelas forças do valor que fosse conseguido na sua venda executiva, naturalmente – ainda que a hipoteca tivesse abrangido, como abrangeu, bens de maior valor – Tal o corolário do referido princípio da indivisibilidade da hipoteca consagrado no já citado normativo legal.


O problema para a Exequente, ora Recorrente, é que aquele princípio da indivisibilidade da hipoteca não é absoluto e está na perfeita e total disponibilidade das partes contratantes.


E a credora original (porque a Exequente é cessionária) não deixou de dispensar ou renunciar ao princípio quando enveredou por tentar receber o crédito sobre cada fracção, individualmente considerada.


Note-se que a circunstância da Exequente ser cessionária não a exclui daquelas considerações que lhe são aplicáveis como ao credor originário.


A Exequente, ora Recorrente, depois de terem sido canceladas várias hipotecas (como a própria o admite, tanto em sede de Contestação aos Embargos como em sede de recurso e que, aliás, resulta objectivamente do teor do registo predial), mesmo assim vem exigir a totalidade do montante ainda em dívida apenas sobre a fracção do Executado, ora Recorrido e não a parte da dívida correspondente apenas à fracção deste, repristinando desse modo o tal princípio da indivisibilidade da hipoteca, o que não pode fazer.


Com efeito, tendo ocorrido renúncia anterior a tal princípio, com o referido cancelamento de várias hipotecas, a Exequente carece de título executivo especificamente contra o Executado, porquanto nele não estão delimitadas/liquidadas as responsabilidades que a este caberiam e só assim não seria e a execução estaria correctamente instaurada, se não tivesse havido a referida renúncia à indivisibilidade da hipoteca, como a lei prevê e veio a ocorrer de uma forma que claramente assumida, independentemente daquela ser cessionária.


Ou seja, ao contrário do que entende a Recorrente, o problema não está no apuramento do valor global que ainda está em dívida, mas antes, desse valor global em dívida qual é o montante parcial que corresponde à fracção do Executado.


E para tal questão a alteração parcial da decisão da matéria de facto pretendida pela Recorrente, e acima assinalada, não tem qualquer repercussão, antes a reforça.


Deste modo, a Exequente, ora Recorrente, ao vir pedir a totalidade da dívida alegadamente ainda pendente, sem ter em conta aquela limitação, carece de título executivo.


Neste mesmo sentido, em situação em tudo idêntica, se decidiu no Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 09/06/202215 (Canelas Brás, proc. n.º 1298/18.3T8SLV-A.E1, www.dgsi.pt).


E de igual modo, tal como decidido no citado Acórdão «nem sequer é caso para o aperfeiçoamento do requerimento executivo, como pretende a embargada, nos termos e ao abrigo do disposto no artigo 734.º do Código de Processo Civil, pois o problema está no próprio título executivo e terá que ser solucionado com a liquidação da dívida da embargante dentro dele ou até, porventura, por recurso ainda ao processo declarativo, podendo também passar pela divisão do valor do crédito em dívida pelo número de fracções que estão construídas no lote de terreno objecto inicial da hipoteca e sua respectiva permilagem (mas tal não faz parte do objecto do presente recurso, pelo que nos não compete adiantar como se poderá vir a resolver tal problemática).» (sublinhado nosso).


Consequentemente, o Requerimento Executivo e os documentos com ele juntos não são título executivo bastante a fundar a execução contra o titular de uma fracção que foi construída no lote de terreno objecto inicial da hipoteca, não havendo, pois, motivo para continuar a permitir o desenvolvimento da sua tramitação futura, seja com prolação de convites ao aperfeiçoamento ou realização de diligencias instrutórias.


E, tal como de igual modo se considerou no citado aresto, o Embargante/Executado não se poderá queixar dos incómodos que toda esta situação lhe trouxe – e, na certa, lhe continuará a acarretar no futuro –, pois que a hipoteca de que goza o crédito da Embargada/Exequente, estava naturalmente registada (desde 1987) quando adquiriu a sua fracção – pois deveria ter visualizado, com cuidado, o conteúdo do registo predial do prédio antes de adquirir a fracção para evitar este tipo de surpresas ou constrangimentos.


A este propósito desta temática pode ainda ser consultado o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 24/03/202516 (Eugénia Cunha, proc. n.º 1315/24.8T8PRT-B.P1, www.dgsi.pt), onde se sumariou que:


«I - Sendo admissíveis expurgações parciais de hipotecas globais, distrate parcial que se verifique tem como, normal, consequência, a renúncia à indivisibilidade da hipoteca (esta a regra, consagrada no art. 696.º, do Código Civil, a admitir convenção em contrário), passando a hipoteca sobre a parte não distratada a divisível por força do referido acordo.


II - Com efeito, a convenção de divisibilidade da hipoteca, que pode ser contemporânea ou posterior à sua constituição, pode ser expressa ou tácita (cfr. nº1, do art. 217º, do CC).


III - Constitui convenção tácita de divisibilidade da hipoteca a aceitação, pelo credor hipotecário, do distrate da hipoteca sobre uma das frações prediais autónomas integradas na hipoteca global, facto praticado pelo credor que, inequivocamente, revela a renúncia à indivisibilidade (o acordo de divisibilidade).


IV - Passando a hipoteca a divisível, tem de se encontrar o critério adequado a estabelecer a divisão da garantia pelas frações que se mantêm oneradas, em função do crédito atual.


V - E, no caso de divisibilidade da hipoteca de frações autónomas de um prédio, o critério que se revela claro e objetivo para a divisão da garantia pelas frações ainda oneradas é o critério da permilagem adequado e capaz de traduzir a proporcional participação de cada uma das frações oneradas, compreendendo o título constitutivo da propriedade horizontal a individualização das frações com o seu valor relativo, expresso em permilagem do valor total do prédio, a vincular os adquirentes das frações (cfr. arts 1418º e nº1, do art. 1419º, do Código Civil).


VI - Assim, para o cálculo do valor pelo qual responde a fração autónoma hipotecada penhorada ao executado/embargante, o que releva é a participação de cada fração das que se encontram, ainda, oneradas (sendo de considerar no cálculo a permilagem relativa da fração aqui em causa de entre a permilagem correspondente às frações ainda hipotecadas) por referência à dívida exequenda atualmente existente.».


E importa salientar ainda que, como se decidiu no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 27/03/2025 (Maria dos Prazeres Pizarro Beleza, proc. n.º 2151/22.1T8PRT-A.P1.S2, www.dgsi.pt), não existem dúvidas de que «Cabe ao credor hipotecário que instaura uma execução contra o proprietário de fracções de um dos prédios urbanos que ainda se encontram oneradas pela hipoteca, contra a qual são deduzidos embargos de executado opondo a divisibilidade, o ónus da prova dos elementos de que depende a aplicação do critério de divisibilidade, uma vez que, no contexto dos embargos, desempenham o papel de factos constitutivos de crédito do exequente.».


Deste modo e em suma, nesse enquadramento fáctico e jurídico deve manter-se, intacta na ordem jurídica, a decisão da primeira instância que assim considerou, impondo-se, consequentemente, a total improcedência do recurso de apelação e a manutenção da decisão recorrida.


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17. Responsabilidade Tributária


As custas do recurso de Apelação são da responsabilidade da Recorrente.


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III. DISPOSITIVO


Nos termos e fundamentos expostos,

1. Acordam os Juízes da 1.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora em julgar totalmente improcedente o recurso de apelação interposto pela Recorrente e, em consequência confirmar a decisão recorrida.

2. As custas do recurso de Apelação são da responsabilidade da Recorrente.

3. Registe e notifique.


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Évora, data e assinaturas certificadas

Relator: Filipe César Osório

1.º Adjunto: Manuel Bargado

2.º Adjunto: António Fernando Marques da Silva

1. Para melhores desenvolvimentos vide Ana Lúcia Cardoso de Azevedo Moreira, in “PRINCÍPIO DA PROIBIÇÃO DAS DECISÕES-SURPRESA, O DESEJO DE UMA JUSTIÇA EFETIVA, Universidade de Coimbra, Julho de 2023, pág. 18 e ss.↩︎

2. Ob. cit., pág. 25 e ss.↩︎

3. Idem, pág. 25 e ss.↩︎

4. Idem, pág. 25 e ss.↩︎

5. https://www.dgsi.pt/jtrp.nsf/56a6e7121657f91e80257cda00381fdf/2567245ff58ad9768025886e00509c8b?OpenDocument↩︎

6. https://www.dgsi.pt/jtrl.nsf/33182fc732316039802565fa00497eec/b10b26afba5d333380258b1f003bc312?OpenDocument↩︎

7. https://www.dgsi.pt/jtre.nsf/134973db04f39bf2802579bf005f080b/b68d5410526e014b80258776006c1f2d?OpenDocument↩︎

8. Abrantes Geraldes, Recursos em Processo Civil, Almedina, 2024, pág. 33.↩︎

9. https://www.dgsi.pt/jtrg.nsf/86c25a698e4e7cb7802579ec004d3832/b4aab5c7e59f714a8025890c0034e366?OpenDocument↩︎

10. https://www.dgsi.pt/jtrp.nsf/56a6e7121657f91e80257cda00381fdf/2567245ff58ad9768025886e00509c8b?OpenDocument↩︎

11. Abrantes Geraldes e outros, CPC Anotado, Vol. I, Almedina, 2022, pág. 794.↩︎

12. https://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/e4147f7504c91d0880258aa0003bc7ab?OpenDocument↩︎

13. https://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/c6aeec6e660d904980258ad9003e5976?OpenDocument↩︎

14. https://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/d537a727e5f779c88025876500656ef4?OpenDocument↩︎

15. https://www.dgsi.pt/jtre.nsf/134973db04f39bf2802579bf005f080b/94127f96365b625e802588690032cc90?OpenDocument↩︎

16. https://www.dgsi.pt/jtrp.nsf/56a6e7121657f91e80257cda00381fdf/76e55447b936ecb980258c60002d6691?OpenDocument↩︎