Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
293/24.8T8CBA.E2
Relator: SUSANA DA COSTA CABRAL
Descritores: MATÉRIA DE FACTO
RESTITUIÇÃO PROVISÓRIA DE POSSE
ESBULHO VIOLENTO
Data do Acordão: 07/10/2025
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: I. As alegações “ter a posse” e “ficar desapossado” não devem integrar a matéria de facto porque estão diretamente relacionados com o thema decidendum, impedem e dificultam a perceção da realidade concreta e antecipam a solução jurídica do caso.
II. Provando-se indiciariamente que a requerida procedeu à mudança da fechadura do imóvel de que o requerente é proprietário, impedindo-o de aceder ao imóvel, como vinha acontecendo, prejudica a posse deste.
III. O proprietário que é assim esbulhado com violência da posse que exerce sobre o imóvel, tem direito à reposição da situação possessória anterior, mediante o procedimento cautelar especificado de restituição provisória da posse.
(Sumário da Relatora)
Decisão Texto Integral: Sumário: (…)
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Acordam na 1.ª secção do Tribunal da Relação de Évora,
1) Relatório:
(…) instaurou o presente Procedimento Cautelar especificado de restituição provisória da posse contra (…), pedindo a condenação desta:
a) a restituir-lhe o imóvel destinado a habitação, sito na Rua do (…), n.º 13, 7940-149 Cuba;
b) a pagar-lhe uma indemnização pelo período em que o Autor ficou impossibilitado de usufruir o imóvel, bem como pelas despesas na eliminação da soldadura, reconstituição do portão e muro construído ilegalmente.
Em abono da sua pretensão invocou que é proprietário do prédio e que a Ré se apossou do mesmo sem qualquer título legítimo para o efeito, tendo vedado com recurso a atos de vandalismo todo e qualquer acesso ao imóvel.
Sem audiência da parte contrária e após inquirição das testemunhas, foi proferida decisão que julgou improcedente o procedimento cautelar, a qual veio a ser revogada por este Tribunal da Relação de Évora que julgou procedente o procedimento cautelar e determinou a restituição provisória ao requerente da posse do imóvel.
A requente deduziu oposição com os seguintes fundamentos:
- a propriedade do imóvel objeto dos autos encontra-se a ser discutida entre requerente e requerida no processo judicial que corre termos com o n.º 1964/24.4T8BJA, no Tribunal Judicial da Comarca de Beja, Juízo Central Cível e Criminal de Beja - Juízo 3.
- A requerida reside no imóvel com conhecimento e consentimento do requerente.
- O requerente possui as chaves do imóvel, apesar de ali não residir desde 2019 e aparecia na habitação sempre que lhe apetecia de forma a intimidar a requerida.
- A requerida via a sua intimidade devassada a toda a hora, começando a temer pela sua segurança física.
- Não teve a requerida outra alternativa se não mudar a fechadura do imóvel para sua segurança pessoal.
- Não houve qualquer apropriação ilícita da habitação, de forma abusiva, violenta ou com vandalismo como o requerente quer fazer crer ao presente Tribunal, omitindo factos relevantes para a boa decisão da causa.
Após a realização da audiência final, foi proferida sentença que:
i. Decretou a restituição provisória da posse do prédio destinado a habitação, sito na Rua do (…), n.º 13, 7940-149, Cuba, com o artigo matricial n.º (…), ao Requerente (…).
ii. Julgou improcedente o pedido de condenação do Requerente como litigante de má fé.
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A requerida (…) não se conformando com a sentença proferida interpôs o presente recurso, apresentando as seguintes conclusões:
A) Vem interposto o presente recurso da Douta Sentença proferida no Procedimento Cautelar de Restituição Provisória da Posse, que condenou a recorrente à restituição provisória da posse do prédio destinado a habitação, sito na Rua do (…), n.º 13, 7940-149, Cuba, com o artigo matricial n.º (…), ao Requerente (…).
B) Através do presente recurso pretende-se impugnar a douta decisão, não só quanto à matéria de facto dada como provada, mas também quanto às consequências jurídicas daí extraídas, considerando a decisão insuficientemente fundamentada e erradamente apreciada e julgada.
C) A articulação, a correta avaliação e valoração, o correto julgamento, o exame crítico de tudo o que resultou da discussão da causa, da prova produzida em audiência, dos demais elementos probatórios constantes dos autos assim como o recurso às regras da lógica, da experiência, do senso comum e da razão, a terem acontecido, impunham que providência cautelar fosse indeferida, mantendo-se a recorrente na posse do imóvel.
D) Considerou a douta sentença que o requerente é proprietário do prédio sito na Rua do (…), n.º 13, 7940-149, Cuba, com o artigo matricial n.º (…), adquirindo-o por compra à Requerida segundo Ap. de (…).
E) A restituição provisória constitui um meio de defesa da posse previsto no artigo 1279.º do Código Civil, ao serviço do possuidor, contra atos de esbulho violento.
F) Nenhuma prova direta há sobre a posse do requerente quanto ao imóvel.
G) Sem prova da posse do bem esbulhado não pode pedir a sua restituição.
H) O requerente é apenas um presumível proprietário.
I) O registo faz presumir que o direito existe e pertence ao titular inscrito, sendo tal presunção ilidível – artigo 7.º do Código do Registo Predial.
J) A presunção resultante do artigo 7.º do Código do Registo Predial pode ser ilidida mediante prova em contrário – artigo 350.º, n.º 2, do Código Civil.
K) Existe assim uma divergência entre a realidade material e a realidade registral, devendo a primeira prevalecer.
L) A prova da titularidade da posse sobre o bem não se confunde com a prova da titularidade do direito de propriedade sobre esse mesmo bem.
M) A posse não opera por mera transmissão do direito de propriedade sobre o imóvel.
N) A douta sentença evidencia o vício de insuficiência de fundamentação para a decisão da matéria de facto, bem como os vícios referidos nas alíneas c) e d) do artigo 615.º do CPC, pelo que a mesma padece de nulidade.
O) Nenhuma prova direta há sobre a posse do requerente, ao contrário da prova feita relativamente à posse da recorrente, a qual habita no imóvel há cerca de 50 anos.
P) As declarações das testemunhas apresentadas pelo requerente e a que supra se fez referência, limitaram-se a ser prestadas quanto à construção do muro, nunca tendo os mesmos referido que o requerente tinha a posse do imóvel.
Q) Residir no imóvel é uma das formas mais evidentes de demonstrar a posse. A comprovação de residência pode ser feita por meio de contas de luz, água, telefone, internet ou qualquer outro documento oficial em nome do possuidor, que ateste o uso do imóvel para fins de habitação.
R) A recorrente prova a posse do imóvel.
S) Para além do doc. n.º 3 e 13 juntos com a oposição da recorrente, que provam a posse do imóvel pela recorrente, o requerente nas suas declarações de parte, reconhece de forma clara e direta que a recorrente se manteve a viver no imóvel até aos dias de hoje, com o seu conhecimento e que foi este que por volta de 2017 decidiu sair do imóvel para ir viver para casa dos pais. Reconhecendo que até essa data só utilizava o imóvel para dormir e que o mesmo pertenceu aos pais da recorrente.
T) Toda a conduta da recorrente para com o imóvel é a de “dona”.
U) Considera assim a recorrente que, através de toda a prova produzida, se consegue determinar, com precisão, que a posse do imóvel é da recorrente e não o contrário.
V) A própria sentença omite qualquer pronúncia quanto à posse do requerente.
W) A sentença não dá como facto provado que a posse do imóvel era do requerente, mas, ainda assim, condena a recorrente na restituição do imóvel ao mesmo.
X) É a recorrente e não o requerente que detém a posse pública, pacifica e de boa-fé, conforme resulta das declarações das suas testemunhas, assim como do Atestado da Junta de Freguesia e Sentença já proferida no processo cautelar de arrolamento.
Y) A recorrente não pode esbulhar um bem que está na sua posse.
Z) A recorrente com a mudança de fechadura não desapossou o requerente da sua posse, pois a posse do imóvel é da recorrente, mas sim protegeu a sua segurança em legitima defesa das atitudes impróprias e violentas do requerente.
AA) É dever imposto ao Juiz de “resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação”.
BB) O que não aconteceu no caso em apreço, limitando a defesa na produção da prova.
CC) Recusando-se a apreciar o receio de retaliações e de agressões por parte do requerente contra a recorrente.
DD) As questões de conhecimento oficioso são todas aquelas que o tribunal tem obrigação de conhecer independentemente de alegação.
EE) O presente Tribunal tem acesso ao objeto de participação da queixa, pelo que, nos termos da alínea c) do artigo 5.º do CPC deveria ter considerado que a junção da notificação relativa à apresentação da queixa-crime, é prova adequada para demonstração do receio da recorrente em ficar sozinha na habitação com o requerente, sendo que a alteração da fechadura se deveu à necessidade de promover a sua segurança pessoal.
FF) Não havia outra forma da mesma assegurar a sua pessoa senão evitando o contacto direto e físico com o requerente, evitando sobretudo ficar exposta sozinha na casa com ele.
GG) A mudança da fechadura foi sem dúvida uma forma de legitima defesa contra a invasão de privacidade da requerente e um meio de assegurar a sua segurança, que deveria ter sido mais bem apreciada pelo Tribunal.
HH) As três testemunhas indicadas pela recorrente na sua oposição, evidenciaram nas suas declarações que a recorrente tinha receio e medo de retaliações do requerente.
II) Considera a recorrente que na sentença ficou por completar o criterioso exame crítico da prova produzida em julgamento, relevantes para a boa decisão da causa e para uma melhor compreensão dessa condenação.
JJ) O Tribunal a quo não valorizou, como deveria, as declarações das testemunhas nem a prova documental apresentada com a oposição.
KK) Não se provou que o requerente tivesse a posse do imóvel.
LL) Não se provou que o requerente tivesse ficado desapossado do imóvel.
MM) Tais factos deveriam, por essa razão, terem ficado a constar dos factos não provados.
NN) De igual modo, resultou da prova produzida que:
a) não foi a recorrente que construiu o muro;
b) não foi a recorrente que soldou o portão;
c) não foi a recorrente que modificou o muro;
d) é a recorrente que tem a posse do prédio sito na Rua do (…), n.º 13, 7940-149, Cuba, com o artigo matricial n.º (…);
e) que a recorrente mudou a fechadura do imóvel por não lhe restar outra alternativa e para sua segurança pessoal.
OO) Tais factos deveriam ser considerados como factos provados.
PP) Pelo que tal apreciação implicaria uma decisão diferente daquela que foi proferida na sentença de que ora se recorre.
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O requerente não contra-alegou.
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O tribunal a quo pronunciou-se sobre as invocadas nulidades entendendo não se verificar nenhuma delas e admitiu o recurso.
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Questões a decidir:
O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões dos recorrentes, sem prejuízo das questões que sejam de conhecimento oficioso, atento o disposto artigos 608.º, n.º 2, 635.º, n.º 4, e 639.º do Código de Processo Civil.
Assim, considerando o teor das conclusões apresentadas, importa apreciar e decidir:
i. Da nulidade da sentença;
ii. Da admissão do recurso da matéria de facto;
iii. Da impugnação da decisão de facto
iv. Reapreciação jurídica da causa: dos pressupostos para o decretamento da providência.
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2. Fundamentação:
2.1. O Tribunal a quo considerou indiciados os seguintes factos:
1) O Requerente é proprietário do prédio sito na Rua do (…), n.º 13, 7940-149, Cuba, com o artigo matricial n.º (…), adquirindo-o por compra à Requerida segundo Ap. (…).
2) Requerente e Requerida viveram juntos, partilhando mesa, leito e habitação, naquele imóvel, entre 2005 e data não concretamente apurada, mas cerca do ano de 2017.
3) No ano de 2017 o Requerente saiu da casa sita em 1, ali permanecendo a Requerida.
4) O Requerente celebrou um contrato promessa de compra e venda do imóvel com terceiros, os quais pretendem adquirir o mesmo, desde que este esteja livre de ónus, encargos e de pessoas e bens.
5) O Requerente pretende ter a plena propriedade do imóvel para cumprir o contrato- promessa de compra e venda do mesmo, procedendo a transmissão do mesmo, a qual tinha data marcada para dia 16-12-2024.
6) Aquele deu conhecimento da venda à Requerida.
7) Em data não concretamente apurada o Requerente informou a Requerida de que teria de sair do imóvel em determinado prazo, não tendo a mesma saído voluntariamente naquele período.
8) No dia 1 de dezembro de 2024, o Requerente dirigiu-se ao imóvel e encontrou o portão do imóvel soldado e modificada a fechadura da porta da rua, sem disso ter conhecimento.
9) Naquelas mesmas circunstâncias denotou que o muro na propriedade foi modificado.
10) Nessa sequência, o Requerente saltou o muro do imóvel, procedeu à remoção da solda do portão e logrou aceder à residência.
11) Após, regressando ao local, encontrou novamente o portão do imóvel soldado.
12) A Requerida não se encontrava no local.
13) A Requerida não procedeu à entrega do imóvel ao Requerente.
Da oposição:
14) A Requerida celebrou contratos de prestação de serviços com as operadoras de internet e serviços de televisão no imóvel identificado em 1.
15) O Requerente manteve a chave do imóvel.
16) A Requerida mudou a fechadura do imóvel.
17) A Requerida reclama a propriedade do referido imóvel no âmbito do Processo n.º 1964/24.4T8BJA, o qual corre termos no Tribunal Judicial da Comarca de Beja, Juízo Central Cível e Criminal de Beja, Juízo 3.
18) A requerida habita o imóvel há cerca de 50 anos, na medida em que consistia na residência dos seus progenitores, ali se mantendo após aquisição do mesmo pelo Requerente.
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2.2. O Tribunal a quo considerou não indiciados os seguintes factos:
a. Que a requerida tivesse mudado a fechadura do imóvel por não lhe restar outra alternativa e para sua segurança pessoal.
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2.3. Apreciação das questões a decidir:
2.3.1. Da nulidade da sentença:
Propugna a Recorrente que a sentença evidencia o vício da insuficiência de fundamentação para a decisão da matéria de facto, bem como os vícios referidos nas alíneas c) e d) do artigo 615.º do CPC, pelo que a mesma padece de nulidade.
Dispõe a norma citada e designadamente as alíneas em causa, que:
“É nula a sentença quando: (….)
b) Não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão;
c) Os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível;
d) O juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento;
É jurisprudência pacífica, no que se refere a estas alíneas que:
A falta de especificação a que se alude na alínea b) inclui apenas a absoluta falta de fundamentação e não a fundamentação alegadamente insuficiente e ainda menos o eventual desacerto da decisão;
A nulidade a que se reporta a alínea c) “ocorre quando existe incompatibilidade entre os fundamentos de direito e a decisão, ou seja, em que a fundamentação aponta num sentido que contradiz o resultado. Situação que, sendo violadora do chamado silogismo judiciário, em que as premissas devem condizer com a conclusão, também não se confunde com um eventual erro de julgamento, que se verifica quando o juiz decide contrariamente aos factos apurados ou contra norma jurídica que lhe impõe uma solução jurídica diferente (….) é obscura quando contém algum passo cujo sentido seja ininteligível e é ambígua quando alguma passagem se preste a interpretações diferentes.”[1]
Finalmente, relativamente à alínea d) que está intimamente relacionada com o artigo 608.º do CPC, é pacífico que o dever de decidir incide apenas sobre as questões suscitadas e de conhecimento oficioso e não sobre todos os argumentos invocados no processo. Como se decidiu no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 09/01/2024[2] “Constitui jurisprudência pacífica que a omissão de pronúncia existe quando o tribunal deixa, em absoluto, de apreciar e decidir as questões que lhe são colocadas, e não quando deixa de apreciar argumentos, considerações, raciocínios, ou razões invocados pela parte em sustentação do seu ponto de vista quanto à apreciação e decisão dessas questões”.
No caso concreto, analisada a sentença é manifesto que nenhum dos referidos fundamentos de nulidade se verifica.
Com efeito, a Mma. Juíza elencou os factos sumariamente provados, os factos que considerou não indiciados, motivou essa decisão de facto e após analisou os factos à luz do direito e decidiu.
Por outro lado, a invocada “contradição entre os factos provados e os fundamentos da sentença, ao considerar que a recorrente não demonstrou atuar sobre o imóvel com o corpus acompanhado do animus possidendi “ não consubstancia uma oposição entre os fundamentos e a decisão, mas antes uma discordância da Recorrente quanto à decisão, que não consubstancia nulidade mas eventual erro de julgamento que oportunamente se apreciará.
Por fim, a Recorrente invoca a alínea d) referindo que a sentença omite pronúncia “quanto à posse do requerente” e não apreciou “o receio de retaliações e de agressões por parte do requerente contra a recorrente”.
Como já se referiu, a omissão de pronúncia que conduz à nulidade da sentença, consubstancia-se na omissão de apreciação de questões colocadas, controvertidas e com impacto direto na solução do processo e não a omissão de apreciação de argumentos e ou factos secundários. Ora, as questões a decidir na sentença eram, por um lado, as exceções invocadas de litispendência e abuso de direito e, por outro lado, se se devia ou não manter-se a restituição da posse do imóvel, já determinada. Esta última questão, pressupunha a pronúncia sobre a posse e efetivamente resulta da sentença que a Mma. Juíza também se pronunciou sobre a posse do requerente, designadamente para concluir que: “reclama o requerente a restituição do imóvel acima descrito, havendo demonstrado a sua posse sobre o mesmo”.
Quanto “ao receio de retaliações”, não se trata de uma questão a decidir, mas apenas de um facto secundário, que pode auxiliar o facto que que foi dado como não provado em a. mas, porque não releva diretamente para a discussão da causa, também não merece uma resposta concreta do tribunal e cuja omissão não conduz à nulidade da sentença.
Em suma, também não se verifica a nulidade da sentença com fundamento na alínea d) do artigo 615.º do CPC.
Face a todo o exposto, improcede o recurso, na parte atinente à arguição da nulidade da sentença, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 615.º, alíneas b), c) e d), do Código de Processo Civil.
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2.3.2. Da admissão do recurso da decisão sobre a matéria de facto
Cumpre, antes do mais, apreciar e decidir se é de admitir ou rejeitar o recurso da decisão relativa à matéria de facto.
Nos termos do artigo 640.º do CPC (que estabelece os requisitos que o recorrente tem que cumprir para que o Tribunal de Recurso reaprecie a decisão quanto à matéria de facto), sob pena de rejeição, “por forma a obviar à interposição de recursos de pendor genérico ou inconsequente” [3], o recorrente deve especificar, na impugnação:
a. os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados[4];
b. os meios probatórios que imponham decisão diversa e, no caso de prova gravada, com indicação exata das passagens da gravação relevantes.
c. a decisão pretendida;
Analisado o teor do recurso, no que se refere ao mencionada em a., verificamos, que a Recorrente especifica, nas conclusões, os seguintes concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados:
- Não se provou: “que o requerente tivesse a posse do imóvel; que o requerente tivesse ficado desapossado do imóvel.” E não constam dos factos dados como não provados;
- Resultou da prova produzida que:
a) Não foi a recorrente que construiu o muro;
b) não foi a recorrente que soldou o portão;
c) Não foi a recorrente que modificou o muro;
d) É a recorrente que tem a posse do prédio;
e) A recorrente mudou a fechadura do imóvel por não lhe restar outra alternativa e para sua segurança pessoal (ponto a. dos factos não indiciados).
No que se refere ao requisito referido em b., a Recorrente especifica em concreto as passagens da gravação dos depoimentos que considera pertinentes e alude a documentos juntos.
Finalmente, quanto ao pressuposto constante em c., a Recorrente declara pretender que se dê como não provados e provados todos os referidos factos, respetivamente.
Face ao exposto, admite-se a impugnação da matéria de facto, procedendo-se, assim, de imediato à sua apreciação.
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2.3.3. Da impugnação da decisão relativa à matéria de facto:
A Recorrente considera que deve ser dado como não provado o seguinte:
- que o requerente tivesse a posse do imóvel;
- que o requerente tivesse ficado desapossado do imóvel.
Conforme resulta do disposto no artigo 607.º, n.º 4, do CPC, na sentença incumbe ao juiz declarar quais os factos que julga provados e quais os que julga não provados. Ora, as expressões “tem a posse do imóvel“ “ficou desapossado do imóvel”, não são objetivamente factos, mas antes conclusões jurídicas, pelo que não obstante já não existir uma norma com o teor do artigo 646.º, n.º 4, do CPC de 1961, nos termos do qual se tinham por não escritas as respostas do tribunal coletivo sobre questões de direito ainda assim consideramos que as mesmas não devem constar da fundamentação de facto, quando é precisamente o que está em causa no processo. Com efeito, a decisão final, na sentença, resulta do chamado silogismo judiciário, em que as premissas permitem atingir a conclusão. Ora, os factos são uma das premissas com as quais se alcança a solução. Se o tribunal, ao invés de descrever os factos, concluir de imediato pela solução, deixa de permitir a realização desse silogismo, que se mostra fundamental para a transparência e justificação da decisão.
Acolhemos, assim, o decidido no Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 31-03-2022[5], “Os factos conclusivos não podem integrar a matéria de facto quando estão diretamente relacionados com o thema decidendum, impedem ou dificultam de modo relevante a perceção da realidade concreta, e/ou ditam por si mesmo a solução jurídica do caso, normalmente através da formulação de um juízo de valor”.
Na verdade, os pontos mencionados são, no caso concreto, mais uma conclusão do que um facto e, por isso, o alegado – ter a posse ou ficar desapossado - não tinha como não foi de ser levado à matéria de facto (provada ou não provada) da sentença, nos termos e para os efeitos do disposto no n.º 4 do artigo 607.º do CPC.
Acresce que estes factos conclusivos – da forma como foram agora alegados em sede de recurso – não consta expressamente do requerimento ‘ inicial e, por isso, também por esta razão não tinha o Tribunal a quo de ser pronunciar sobre os mesmos. Pelo exposto, bem andou o Tribunal ao não inserir na fundamentação de facto, designadamente nos factos não indiciados, o agora pretendido.
Improcede, por isso, nesta parte, o requerido pela recorrente.
Pretende, também, a recorrente que sejam dados como provados os seguintes factos, por resultar da prova produzida:
a) Não foi a recorrente que construiu o muro;
b) não foi a recorrente que soldou o portão;
c) Não foi a recorrente que modificou o muro;
d) É a recorrente que tem a posse do prédio;
e) A recorrente mudou a fechadura do imóvel por não lhe restar outra alternativa e para sua segurança pessoal. (ponto a. dos factos não indiciados).
Quanto aos factos referidos em a), b) e c): factos negativos invocados pela recorrente:
A Recorrente/requerida foi citada para deduzir oposição, podendo, nos termos do artigo 372.º, n.º 1, alínea b), do CPC, “alegar factos ou produzir meios de prova não tidos em conta pelo Tribunal e que possam afastar os fundamentos da providência ou determinem a sua redução”.
Ora os referidos factos – descritos em a), b) e c) - são irrelevantes para afastar os fundamentos da providência. Com efeito, quem tinha de fazer a prova da posse, do esbulho e da violência era o requerente e não a requerida/Recorrente, atento o disposto no artigo 342.º, n.º 1, do CC. Por conseguinte, é completamente irrelevante para a economia da decisão “a não prova dos referidos factos”.
Conforme se decidiu no Acórdão do STJ de 14-07-2021[6]: Se o facto que se pretende impugnar for irrelevante para a decisão, segundo as várias soluções plausíveis, não há qualquer utilidade naquela impugnação da matéria de facto, pois o resultado a que se chegar (provado ou não provado) é sempre o mesmo: absolutamente inócuo.
Improcede, assim, nesta parte, também a impugnação de facto deduzida.
No que concerne ao facto d): “É a recorrente que tem a posse do prédio”. Dá-se aqui por reproduzido o supra exposto quanto aos factos que a Recorrente pretendia que fossem elencados como factos não provados: a posse é um conceito de direito, que não deve ser enunciado na fundamentação de facto, pois no caso sub iudice a posse é precisamente o conceito normativo que importa ser concretizado com factos reais e concretos, pelo que o que importava era alegar e demonstrar os factos que consubstanciam a posse.
Improcede, também, nesta parte, a impugnação de facto deduzida.
Finalmente, relativamente ao facto e) que foi dado como não provado e que a Recorrente pretende que seja dado como provado.
Invocou a Recorrente que:
“Ao contrário do alegado na douta sentença, a recorrente provou, sem qualquer dúvida, que a mudança de fechadura teve como principal objetivo assegurar a sua segurança, apesar da Sra. Mma. Juiz ter por duas vezes tentado inviabilizar o apuramento da matéria de facto impedindo que fossem prestadas declarações a esse respeito, conforme consta da gravação da inquirição à testemunha (…) ao minuto 00.13.27 e nas declarações da testemunha (…) ao minuto 00.07.20 até 00:07:32. (…)
Tal facto foi assim provado pelas testemunhas … (declarações prestadas a 14/05/2025 às 10h 42m ao minuto 00:06:25 até 00:07:14), … e …, pois todas elas conheciam a recorrente e requerente como um casal, frequentando a casa quando os mesmos viveram em união de facto e após a separação do casal.
As três testemunhas nas suas declarações evidenciaram que a recorrente tinha receio e medo de retaliações do requerente.
A testemunha (…) assistiu à forma agressiva como o requerente tratava a recorrente. Afirmando que a mesma durante muitos anos teve medo de retaliações e de discussões por parte do requerente.
Assim como presenciou a entrada do requerente na habitação sem aviso prévio quando a recorrente se encontrava meio despida embrulhada na toalha de banho (declarações prestadas no dia 14/05/2025 pelas 11h. 35m ao minuto 00:10:18 até 00:11:21 e 00: 11: 45 até 00:12: 58).
A testemunha (…) declarou que o requerente entrava e saía da casa sem avisar, invadindo a privacidade da recorrente e de todos os que ali se encontravam, facto que intimidava a recorrente e até a própria testemunha, tendo-a aconselhado a mudar a fechadura para proteção da sua privacidade e segurança.
Declarando também que ao longo da relação presenciou muitas coisas desagradáveis entre o casal (declarações prestadas dia 14/05/2025 pelas 12h. 01m ao minuto 00:05:22 até 00:06:22 e 00:07: 42 até 00:07:48).
Com o testemunho de (…), considera igualmente a recorrente que ficou também provada a forma violenta com que o requerente a tratava, já que a testemunha, por se ter deslocado ao local ainda na presença da GNR, soube que o requerente partiu propositadamente um vidro da habitação.
Também ela declarou que a recorrente tinha receio do requerente (declarações prestadas dia 14/05/2025 às 11h 03m entre o minuto 00:09:04 até 00:10:17).
Sendo que nessa sequência e receando uma agressão à própria, a fechadura da porta da habitação foi mudada.
A recorrente juntou prova da queixa-crime apresentada na sequência desse ato, tendo adquirido o estatuto de vítima de violência doméstica, conforme doc. n.º 7 junto com a oposição.
Queixa-crime apresentada a 13/11/2024, sendo que ficou provado no ponto 8 da sentença que o requerente só em 1 de dezembro de 2024 deixou de ter acesso ao imóvel por mudança de fechadura.
Não pode assim o Tribunal considerar como não provado que a requerida tivesse mudado a fechadura do imóvel por não lhe restar outra alternativa e para a sua segurança pessoal, na medida que a mudança de fechadura se dá precisamente na sequência das atitudes violentas e intimidatórias à recorrente, partindo um vidro da habitação, aparecendo a horas impróprias, violando a sua privacidade sempre que lhe apetecia, sendo que esta é sem dúvida, a melhor forma para assegurar a sua segurança pessoal e privacidade”.
Da motivação da decisão de facto, resulta que o referido facto foi dado como não provado com a seguinte fundamentação:
Quanto à matéria não indiciada, importa apreciar. Não logrou a Requerida demonstrar que a alteração da fechadura se devesse a uma necessidade para assegurar a respetiva segurança pessoal ou que não lhe restasse opção diversa. Efetivamente, procedeu a Requerida a junção de documento consistente em termo de notificação relativa ao NUIPC (...) e atribuição de estatuto de vítima no mesmo processo, sem que se procedesse à demonstração do objeto da participação por si indicada, do visado da mesma ou qualquer outro elemento adequado a evidenciar que, aquando da atuação sobre a fechadura, aquela havia esgotado outros meios de proteção ao seu dispor, ónus que lhe incumbia.
Vejamos:
Refere-se e bem na sentença que a mera junção da participação não é suficiente para dar este facto como provado. Porém, o certo é que as testemunhas … (conhece a Requerente e o requerido de sempre, por ser de Cuba), … (irmã da requerente) que referiu que a sua irmã ficava aflita porque o requerido entrava a toda a hora na casa, quando queria e ela tinha receio. Contou que quando chegou a casa viu a janela partida e a irmã assustada, … (Professora de Matemática, amiga da Requerente) e que conhece as partes desde sempre e … referiram que a Requerida tinha receio de estar em casa sozinha e do requerente entrar em casa, porque as discussões entre ambos estavam a agudizar-se. Face aos depoimentos destas testemunhas é verosímil que a requerida tivesse receio e, de acordo com as regras da experiência e da razoabilidade, não quisesse que o requerente entrasse em casa.
Por outro lado, resulta do documento junto com a contestação que foi atribuído à requerida pela GNR o estatuto de Vítima.
Assim, nesta parte, o recurso procede, devendo retirar-se do facto dado como não provado a menção de “para sua segurança”, que deve ser acrescentado ao facto 16, o qual passa assim a ter a seguinte redação:
16. A Requeria mudou a fechadura do imóvel, entre o mais, para sua segurança, para evitar que o requerente aparecesse na habitação sempre que lhe apetecesse, como fazia.
Por seu turno o facto a. dos factos indiciariamente dados como não provados fica com a seguinte redação:
a. Que a requerida tivesse mudado a fechadura do imóvel por não lhe restar outra alternativa.
*
2.3.4. Reapreciação jurídica da causa: dos pressupostos do procedimento cautelar de restituição provisória da posse:
Considera a Recorrente que o Requerente não logrou demonstrar os pressupostos da providência requerida e ordenada, porquanto, diz, dos factos indiciariamente provados não resulta nem que o Requerente/Recorrido se encontrasse na posse do imóvel, pois a recorrente é que habita o imóvel, nem que o mesmo tivesse sido esbulhado.
Vejamos.
O procedimento cautelar especificado de restituição provisória da posse encontra-se previsto no artigo 377.º do CPC que dispõe que “No caso de esbulho violento, pode o possuidor pedir que seja restituído provisoriamente à sua posse, alegando os factos que constituem a posse, o esbulho e a violência”.
Desta norma resulta que a procedência deste procedimento depende da alegação e prova:
- Da qualidade de possuidor do requerente, decorrente do exercício de poderes de facto sobre uma coisa, por forma correspondente ao direito de propriedade ou a outro qualquer direito real de gozo (artigo 1251.º do CC);
- Do esbulho que ocorre quando alguém é privado, total ou parcialmente, contra a sua vontade, de exercício de retenção ou fruição do objeto possuído ou da possibilidade de continuar esse exercício;
- Da
violência, que consiste em atos de força sobre pessoas ou sobre as coisas, se forem um instrumento de coação sobre as pessoas, impedindo-as do exercício da posse.
No caso concreto e relativamente ao primeiro dos requisitos: a posse do imóvel, cuja restituição o requerente pretende, considerou-se, na sentença recorrida que o requerente demonstrou a posse sobre o imóvel. Porém, a recorrente discorda.
São os seguintes, os factos com relevância para a demonstração da posse que resultaram indiciariamente provados:
- facto 1: Mostra-se inscrita a favor do requerente, na CRP, a propriedade do prédio, a qual o requerente adquiriu por compra à requerente ( Ap. …).
- factos 2 e 3: Requerente e requerida viveram no imóvel, partilhando mesa, leito e habitação de 2005 até 2017, data em que o requerente saiu de casa.
- facto 4: O requerente (…) prometeu vender a (…) o imóvel.
- facto 7: o requerente concedeu à requerida um prazo, para sair do imóvel, o que a mesma não fez.
- factos 15 e 16: o requerente manteve a chave do imóvel e aparecia na habitação sempre que lhe apetecia.
Destes factos resulta que o requerente é proprietário do imóvel e que o usou, habitando no mesmo até 2017, data a partir da qual permitiu que a requerida continuasse a habitar o imóvel, mantendo, porém, a chave do mesmo e acedendo ao imóvel quando queria.
A posse conforme dispõe o artigo 1251.º do CC corresponde ao poder que se manifesta quando alguém actua por forma correspondente ao exercício do direito de propriedade ou de outro direito real.
A posse não se confunde com o direito de propriedade, porquanto a posse não é um direito mas uma situação de facto. Todavia, nos termos do disposto no artigo 1305.º do Código Civil, o direito de propriedade atribuiu ao proprietário o gozo pleno e exclusivo dos direitos de uso, fruição e disposição das coisas, além de poder reavê-las de quem a possua ou detenha indevidamente. Ou seja, a posse não pressupõe a propriedade, mas a propriedade envolve o direito de posse.
No caso dos autos, para além de a propriedade do imóvel estar registada em nome do requerente, este adquiriu-a por compra à requerida e até à mudança da fechadura, exercia os poderes de facto correspondentes ao direito de propriedade – entrava e saia da casa quando pretendia, mantinha a chave de casa , permitia que a requerente habitasse no imóvel – e tinha o animus, tanto assim que deu um prazo à requerida para sair da habitação porque como proprietário registado pretendia vender o imóvel.
A requerida não logrou demonstrar, na oposição que deduziu qualquer facto que afastasse este pressuposto da providência: a posse do requerente. Designadamente, o facto de a requerente habitar o imóvel não se mostra incompatível com a posse do requerente, proprietário inscrito.
Quanto ao esbulho, que se caracteriza “pela privação total ou parcial, do poder do possuidor no exercício dos actos correspondentes ao direito real que se traduzem na retenção, fruição, do objeto da coisa, ou da possibilidade de o continuar a exercer.”[7] Ficou indiciariamente provado que:
19) No dia 1 de dezembro de 2024, o Requerente dirigiu-se ao imóvel e encontrou o portão do imóvel soldado e modificada a fechadura da porta da rua, sem disso ter conhecimento.
20) A Requerida mudou a fechadura do imóvel, entre o mais, para sua segurança, para evitar que o requerente aparecesse na habitação sempre que lhe apetecesse, como fazia.
É manifesto que a mudança da fechadura teve o propósito de impedir que o requerido entrasse no imóvel como costumava fazer, ou seja, que continuasse a praticar atos próprios de possuidor do imóvel (aceder e usufruir do imóvel que lhe pertence).
Neste conspecto, importa referir que só não existiria esbulho se a requerida demonstrasse ser titular de um direito real limitado sobre o imóvel, compatível com a propriedade do requerente, e que, por via dessa posse, o acto de soldar o portão e mudar a fechadura em nada afetava a posse do requerente, por este não obstante ser o proprietário não ter na sua esfera jurídica essa posse.
Ora, tal não sucedeu. Como já se referiu, o facto de a requerida habitar o imóvel, não é suficiente para se considerar ter uma posse incompatível com a posse do requerente. De acordo com o artigo 1251.º do CC, a posse corresponde ao poder que se manifesta quando alguém atua por forma correspondente ao exercício do direito de propriedade ou de outro direito real, sendo integrada por dois elementos estruturais: o corpus e o animus possidendi, definindo-se o corpus como o exercício de um poder de facto sobre a coisa, enquanto o animus possidendi se caracteriza como a intenção de agir como titular do direito correspondente aos atos realizados. É a existência deste elemento subjetivo (animus) que distingue o possuidor do mero detentor ou possuidor precário (cfr. o disposto no artigo 1253.º do CC). Com efeito, apesar de quer o requerente, quer a requerida exercerem sobre a coisa o poder de facto que corresponde ao corpus da posse, o requerente exerce esse poder com a convicção e a intenção de atuar como titular do direito real correspondente. Ora, a requerida não fez prova de que actuasse com intenção correspondente a qualquer direito. No caso concreto, está demonstrado que a requerida vendeu o imóvel ao requerente, e ao fazê-lo transferiu a propriedade do imóvel para o requerente. A requerida até pode vir a ver-lhe reconhecida a propriedade do imóvel, mas tal não afeta a posse actual do requerente, indiciariamente demonstrada. Aliás, importa referir que, ainda que a requerida fosse possuidora de natureza diversa ou mesmo comproprietária do imóvel jamais lhe seria permitido, através do esbulho violento, impedir o requerente de exercer a posse do imóvel como vinha acontecendo (cfr. o disposto no artigo 1286.º do CC).
Conforme se decidiu no Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 22-10-2019[8] “Numa situação de composse, qualquer um dos compossuidores poderá, em princípio, servir-se da coisa por inteiro, não lhe sendo lícito, no entanto, privar os outros consortes do uso a que igualmente têm direito. 3.-Cada um dos compossuidores já poderá recorrer à acção de restituição contra os demais compossuidores com vista a ser reintegrado na posse da coisa comum a que tem direito e de que tenha sido privado por acção de outro compossuidor”.
Em suma, os atos de soldadura do portão da propriedade e de modificação da fechadura da porta da rua configuram atos de esbulho, atos impeditivos do requerente ter acesso e de usufruir do imóvel que lhe pertence, como se decidiu na Acórdão que decretou a providência e na oposição a requerida não logrou afastar esta conclusão.
Finalmente, quanto à violência. A violência está definida no artigo 1261.º, n.º 2, do Código Civil. A posse violenta pressupõe a coação física ou a coação moral nos termos do artigo 255.º do CC.
a mesma também se verifica porquanto ocorreu através de uma conduta sobre o imóvel criando um obstáculo ao possuidor de modo a constrangê-lo a não possuir o bem contra a sua vontade[9].
Foi precisamente o que sucedeu no caso, conforme se decidiu no Acórdão deste Tribunal da Relação de Évora 30-01-2005: “Uma vez que foi demonstrado, em termos de prova indiciária, que o Requerido, em consequência de tais atos, passou a estar impedido de aceder ao imóvel de que é proprietário, resulta afirmado o esbulho violento, legitimando a atuação da disciplina inerente ao procedimento cautelar de restituição provisória da posse.”
Face a todo o exposto, importa concluir que que bem andou o Tribunal a quo em manter a providência anteriormente decretada, já que o requerente tem direito à reposição da situação possessória anterior ao esbulho.
Assim, julga-se improcedente o recurso apresentado pela Requerida.
As custas deverão ser suportadas pela Requerida/Recorrente, atenta a total improcedência do recurso (artigo 527.º, n.ºs 1 e 2, do Código de Processo Civil).
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3. Decisão:
Pelo exposto, decide-se julgar a apelação totalmente improcedente, mantendo-se a decisão recorrida.
Custas pela Recorrente, sem prejuízo do apoio judiciário concedido.
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Évora, 10 de julho de 2025
Susana Ferrão da Costa Cabral (Relatora)
José António Moita (1.ª Adjunto)
Maria Adelaide Domingos (2.º Adjunta)



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[1] Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Pires de Sousa, Código de Processo Civil Anotado, Almedina, págs. 737 e 738.
[2] Proferido no Processo n.º 21/21.0YFLSB, acessível in
https://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/e4147f7504c91d0880258aa0003bc7ab?OpenDocument
[3] Abrantes Geraldes, Recursos em Processo Civil, Almedina – 7:ª edição, pág. 198.
[4] Que conforme se decidiu no Acórdão deste Tribunal da Relação de Évora de 10-10-2024, no Processo n.º 1109/21.2T8ENT.E1, publicado in www.dgsi.pt: “(os concretos pontos de facto impugnados) devem ser feitos nas respetivas conclusões, porque delimitadoras do âmbito do recurso e constituírem o fundamento da alteração da decisão.”
[5] Processo n.º 249/19.8T8MAC.G1, publicado in
https://www.dgsi.pt/jtrg.nsf/86c25a698e4e7cb7802579ec004d3832/f6647589658931e980258829003d69e0?OpenDocument
[6] Proferido no Processo n.º 65/18.9T8EPS.G1.S1, acessível in
https://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/19c3ddcb0fbc504980258714004da030?OpenDocument
[7] Cfr. Pires de Lima e Antunes Varela, CC anotado, vol. III, 2.ª edição, pág. 49.
[8] Proferido no Processo n.º 5236/17.2T8CBR-D.C1, https://www.dgsi.pt/jtrc.nsf/8fe0e606d8f56b22802576c0005637dc/3db62f35cc586bb6802584c4004424aa?OpenDocument
[9] Neste sentido o Acórdão do tribunal da Relação de Guimarães de 07-05-2015 (Processo n.º 188/15.6T8FAF.G1).:
“I. A violência no esbulho pode ser exercida tanto sobre as pessoas como sobre as coisas.
II - Quando o esbulhador, para ter acesso à coisa, procede à mudança/substituição e à alteração das fechaduras que o impediam de àquela livremente aceder, obstando e tornando doravante impossível a continuação da posse pelo requerente/esbulhado, está-se perante um caso de esbulho violento”.