Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
59/15.6GTBJA.E1
Relator: JOÃO AMARO
Descritores: HOMICÍDIO POR NEGLIGÊNCIA
CONCURSO DE INFRACÇÕES
CENTRO NACIONAL DE PENSÕES
SUB-ROGAÇÃO NOS DIREITOS DO LESADO
Data do Acordão: 10/22/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSOS PENAIS
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Sumário:
I – Mesmo nos casos de negligência inconsciente, encontra-se nos tipos penais negligentes de homicídio e de ofensa à integridade física um desvalor do resultado, pelo que sempre cumpre determinar se a conduta do agente tinha ou não a virtualidade de produzir os eventos efetivamente verificados e, se tiver, então a conduta é passível de tantos juízos de censura quantas as lesões jurídicas que o agente devia ter previsto que se produziriam e, efetivamente, se produziram como consequência direta e adequada da sua falta de cuidado.

II – O conteúdo material da culpa presente no crime negligente de “resultado” não se esgota na violação do dever objetivo de cuidado, e, por isso, a pluralidade de sentidos sociais de ilicitude impõe o concurso efetivo nos tipos legais de crime que protegem bens de carácter eminentemente pessoal, como é o caso dos tipos legais que protegem a vida ou a integridade física, sempre que haja pluralidade das vítimas.

III - O Centro Nacional de Pensões tem um direito de sub-rogação legal sobre as quantias por si pagas aos familiares das vítimas mortais de acidente devido a ato de terceiro, nomeadamente a título de subsídio por morte e de pensões de sobrevivência.
Decisão Texto Integral:
Acordam os Juízes, em conferência, na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:

I - RELATÓRIO

Nos autos de Processo Comum (Tribunal Coletivo) nº 59/15.6GTBJA, do Juízo Central Cível e Criminal de Beja (Juiz 2), após audiência de discussão e julgamento, e mediante pertinente acórdão, o tribunal decidiu nos seguintes termos:

“a) Condena o arguido JM pela prática de três crimes de homicídio por negligência, p. e p. pelo art. 137º n.º 1 do C. Penal, na pena de 15 (quinze) meses de prisão por cada um dos crimes;

b) Condena o arguido JM pela prática de um crime de ofensa à integridade física grave negligente, p. e p. pelos arts. p. pelos arts. 148.º, n.º 3, 144.º, alíneas b) e c) e art. 15.º, alínea a), do citado Código, na pena de 8 (oito) meses de prisão;

c) Condena o arguido JM pela prática de seis crimes de ofensa à integridade física simples negligente, p. e p. pelos arts. 148.º, n.º 1 e 15.º, alínea a), do C. Penal, na pena de 3 (três) meses de prisão por cada um dos crimes;

d) Em cúmulo jurídico, nos termos do art. 77.º, números 1 e 2, do Código Penal, vai o arguido JM numa pena única de 3 (três) anos e 10 (dez) meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período de tempo, ao abrigo do disposto no art. 50º do C. Penal.

e) Atento o disposto no art. 69º nº1 al. a) do CP condena o arguido na pena acessória de proibição de conduzir por um período de 1 (um) ano.

f) Ordena que o arguido entregue a sua carta de condução na secretaria deste Tribunal no prazo de 10 (dez) dias a contar do trânsito em julgado desta decisão, sob pena de incorrer num crime de desobediência - art. 500 n.º 2 do C. Processo Penal.

g) Condena o arguido no pagamento de taxa de justiça, fixando-se a taxa de justiça devida em 4 UC.

h) Julga parcialmente procedente o pedido de indemnização deduzido pela Unidade Local de Saúde do Baixo Alentejo, EPE e, em consequência, condena a demandada A. - Companhia de Seguros, S.A. a pagar-lhe a quantia de € 102,00 (cento e dois), acrescida de juros de mora a contar da data da notificação para contestar, absolvendo-a do demais peticionado.

i) Julga parcialmente procedente por provado o pedido de indemnização deduzido por DD e, em consequência, condeno a demandada A. – Companhia de Seguros, S.A. a pagar-lhe a quantia de € 40.000,00 (quarenta mil euros) a título a título de indemnização por danos não patrimoniais, acrescida de juros de mora a contar da data da prolação do presente acórdão. Mais se condena a demandada a pagar à demandante o que se vier a liquidar em execução de sentença até ao montante máximo peticionado, deduzido o valor atribuído a título de danos não patrimoniais, ou seja, até ao montante de € 100.274,04 (cem mil, duzentos e setenta e quatro euros e quatro cêntimos), ao abrigo do disposto no art. 82º n.º 1 do CPP, absolvendo-a do demais peticionado.

j) Julga parcialmente procedente por provado o pedido de indemnização deduzido por EE e, consequentemente condena a demandada A. – Companhia de Seguros S.A. a pagar-lhe a quantia total de € 102.000.00 (cento e dois mil euros), a título de indemnização por danos não patrimoniais, acrescida de juros de mora a contar da data da prolação do presente acórdão, absolvendo-a do demais peticionado.

k) Julga improcedente por não provado o pedido de indemnização deduzido pelo assistente JT, absolvendo a demandada A. – Companhia de Seguros S.A. do pedido.

l) Julga procedente por provado o pedido de reembolso deduzido pelo Instituto de Segurança Social, IP/Centro Nacional de Pensões, e, consequentemente, condena a demandada A. – Companhia de Seguros S.A. no pagamento da quantia total de € 6.132,89 (seis mil cento e trinta e dois euros e oitenta e nove cêntimos), acrescida de juros de mora a contar da citação, absolvendo-o do demais peticionado.

m) Custas dos enxertos cíveis nas proporções dos respetivos decaimentos, sem prejuízo das isenções legais e benefícios de apoio judiciários concedidos”.
*
O arguido JM, inconformado, interpôs recurso, apresentando as seguintes (transcritas) conclusões:
“I.O presente recurso tem como objeto toda a matéria de facto e de direito do douto acórdão proferido nos presentes autos que condenou o Recorrente: a) “pela prática de três crimes de homicídio por negligência, p. e p. pelo art. 137º n.º 1 do C. Penal na pena de 15 (quinze) meses de prisão por cada um dos crimes”. b) “pela prática de um crime de ofensa à integridade física grave negligente, p. e p. pelos arts. p. pelos arts. 148.º, n.º 3, 144.º, alíneas b) e c) e art. 15.º, alínea a) do citado Código na pena de 8 (oito) meses de prisão”. c) “pela prática de seis crimes de ofensa à integridade física simples negligente, p. e p. pelos arts. 148.º, n.º 1 e 15.º, alínea a) do C. Penal na pena de 3 (três) meses de prisão por cada um dos crimes”. d) “Em cúmulo jurídico, nos termos do art. 77º, números 1 e 2, do Código Penal, vai o arguido JM numa pena única de 3 (três) anos e 10 (dez) meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período de tempo, ao abrigo do disposto no art. 50º do C. Penal”. e) “Atento o disposto no art. 69º nº1 al. a) do CP condena o arguido na pena acessória de proibição de conduzir por um período de 1 (um) ano”. f) “Ordena que o arguido entregue a sua carta de condução na secretaria deste Tribunal no prazo de 10 (dez) dias a contar do trânsito em julgado desta decisão, sob pena de incorrer num crime de desobediência - art. 500 n.º 2 do C. Processo Penal”. g) “Condena o arguido no pagamento de taxa de justiça, fixando-se a taxa de justiça devida em 4 UC”.

II. O Tribunal a quo considerou provado a seguinte matéria de facto com a qual não concordamos (itens 4, 5, 37, 38 e 92 dos factos provados): Item 4 - “Após ter passado pela área de serviço de Almodôvar, na referida autoestrada, ao quilómetro 192,884, o arguido permitiu que o veículo FE- desviasse a sua trajetória para a direita, saindo da faixa de rodagem, ficando a circular na vala de escoamento das águas pluviais aí existente”. Item 5 - “Ato contínuo, o arguido tentou recolocar o veículo na faixa de rodagem, guinando o volante do veículo -FE- para o lado esquerdo, acabando no entanto por perder o controlo da direção do mesmo, o qual veio a capotar lateralmente para a direita, deslizando na faixa de rodagem já com a lateral direita em contacto com o solo por uma extensão de 154,4 metros”. Item 37 - “O arguido não prestou a necessária atenção à estrada e à condução que efetuava no momento do acidente, permitindo que o veículo -FE- saísse da sua faixa de rodagem nos termos e com as consequências supra descritas”. Item 38 - “Ao conduzir veículo -FE- sem a atenção necessária para evitar que o veículo saísse da faixa de rodagem, o arguido agiu sem a precaução devida e de que era capaz, sendo que a conduta devida e exigível era-lhe acessível, possuindo capacidade para se determinar de acordo com esse conhecimento, o que não fez”. Item 92 - “O arguido na tentativa de o estabilizar e equilibrar o veículo após ter saído da faixa de rodagem guinou para a esquerda”.

III. O Recorrente impugna a matéria de facto dada como provada, considerando que não há nenhuma prova direta, clara e uniforme, sobre o desenrolar do acidente de viação, não há registos de vídeo nem testemunhas presenciais que tenham estado <<fora>> do veículo automóvel de passageiros interveniente, que tivessem visto todo o <<filme>> do acidente.

IV. O Tribunal a quo formou a sua convicção em probabilidades, porquanto, da análise da prova produzida, resulta não ficar demonstrado que o recorrente praticasse os factos provados, uma vez que resultou de prova presumida, prova por convicção, que não deveria ter sido levado em consideração, pois, em tempo algum o arguido permitiu que o veículo -FE- desviasse a sua trajetória para a direita, saindo da faixa de rodagem.

V. E nunca afirmou ter GUINADO o volante do referido veículo para o lado esquerdo.

VI. Com efeito, foi tudo com base em probabilidades, pois não existe prova nos autos que o Recorrente agisse de forma descuidada, violando qualquer dever de cuidado a que se encontrava adstrito, estando sim a retirar-se conclusões sem base fáctica que as sustentem, pois não se apuraram circunstâncias que permitam conclui que o arguido agira voluntariamente (o que seria um contrassenso) ou sem as cautelas devidas para evitar o acidente, tanto mais ficou provado que o arguido (cfr. relatório) seguia à velocidade de 97Km/hora.

VII. Ademais, o facto de o Recorrente não ter conseguido colocar o veículo automóvel na faixa de rodagem ou imobiliza-lo, não é sinónimo de imperícia, porquanto a possibilidade de conseguir que o veículo não continuasse a fugir pressupõe que ocorreram eventos inesperados, por exemplo, avaria mecânica.

VIII. Com efeito, a estas conclusões chega-se com o depoimento e as passagens de vários depoimentos.

IX. De facto, no item 4 e 5, cfr. o depoimento do Recorrente, JM - com depoimento gravado em CD no dia 03-04-2018, desde 10:01:27 h às 10:50:13 h, passagens gravadas de 09:59 min. aos 48:45min; Testemunha – FP - com depoimento gravado em CD no dia 03-04-2018, desde 11:31:29 h às 12:01:32 h passagens gravadas de 00:04 min. aos 29:54min. Testemunha – MS - com depoimento gravado em CD no dia 03-04-2018, desde 11:00:34 h às 11:30:32 h passagens gravadas de 01:33 min. aos 29:57 min.

X. Podemos concluir que não ficou provado que Recorrente permitisse que veículo -FE- desviasse a sua trajetória para a direita, cfr. depoimento do Recorrente JM, cfr. depoimento supra transcrito.

XI. Com efeito os factos constantes no item 4 e 5 do acórdão recorrido terão de ser considerados não provados, pois o arguido não violou as regras de trânsito e o dever de cuidado a que estava adstrito.

XII. E ainda, o item 5, não há nenhum elemento de prova que contraria a posição do Recorrente que tivesse guinado o carro para esquerda, porque em sede de julgamento no depoimento do arguido não há nenhuma afirmação por parte daquele que tivesse guinado o autocarro, cfr. depoimentos do arguido, que ora se transcreve, “sempre a fazer esforço no volante para trazer o carro para a faixa de rodagem, outra vez o carro não obedeceu, ao fim de 200 e tal metros, o carro guina-me de repente derivado à força que eu estava a fazer, a exercer sobre o volante”.

XIII. O que é comprovativo que algo não estava bem, fala-se em guinar mas não é dito nem é afirmado pelo Recorrente, cfr. depoimento do Recorrente, gravado em CD, de 03 -04-2018, de 09:59 a 48:45.

XIV. Com efeito, os factos constantes no item 5 do acórdão recorrido terão de ser considerados não provados, pois o arguido não guinou o volante do veículo, como se deixou dito, cfr. depoimento do arguido, supra.

XV. De igual forma, o item 37 não é corroborado por nenhuma testemunha, pois, estas afirmações sobre a boa condução do Recorrente são corroboradas pelos próprios ofendidos e além do mais está subjacente à prova dos itens 4 e 5

XVI. Com efeito, os factos constantes no item 37 do acórdão recorrido terão de ser considerados não provados, pois o arguido não violou regras de trânsito e o dever de cuidado a que estava obrigado, cfr. transcrições supra.

XVII. Ainda o item 38, também não é corroborado por nenhuma testemunha, pois, estas afirmações sobre a boa condução do Recorrente são corroboradas pelos próprios ofendidos e pelas testemunhas abonatórias, como se pode comprovar dos depoimentos dos mesmos, constantes dos presentes autos cfr. depoimentos.

XVIII. Com efeito, os factos constantes no item 38 do acórdão recorrido terão de ser considerados não provados, pois o arguido não violou regras de trânsito e o dever de cuidado a que estava obrigado, conforme explicados nos itens 4 e 5, porque lhe estão subjacentes.

XIX. E, por fim, o item 92, quantos aos factos deste item da matéria de facto dada como provada, os mesmos devem considerar-se como não provados; a tal conclusão chega-se através do que foi respondido no item 5: o Recorrente não guinou o carro, cfr. várias afirmações daquele, supra transcritas.

XX. Também os depoimentos das testemunhas ouvidas, vítimas do acidente, na sua generalidade, apenas souberam dizer que não se aperceberam do acidente em virtude de virem a dormir, outras vinham com os fones a ouvir música.

XXI. No entanto, duas testemunhas confirmam que ouviram o autocarro pisar as bandas sonoras: cfr. depoimento da testemunha AA, vítima do acidente, prestado em sede de julgamento, Testemunha – AA - com depoimento gravado em CD no dia 03-04-2018, desde 12:02:33 h às 12:18:00 h passagens gravadas de 02:26 min. aos 15:26min

XXII. E, também, cfr. depoimento da testemunha DD, vítima do acidente, prestado em sede de julgamento, diz que viu tudo: Testemunha – DD – com depoimento gravado em CD no dia 03-04-2018, desde 15:31:17 h às 15:47:17 h, passagens gravadas de 02:26 min. aos 15:26min

XXIII. Resulta assim que não ficaram esclarecidos os elementos necessários e indispensáveis para o cabal esclarecimento da dinâmica do acidente, nomeadamente, não resultou dos autos, nem da prova, testemunhal e documental, produzida, quer globalmente considerada, quer apreciada individualmente, matéria suficiente para que se possa concluir que o Recorrente praticasse os factos nos itens supra mencionados.

XXIV. E, ainda, também, como se pode alcançar das questões formuladas à testemunha, militar da GNR, responsável pela elaboração do relatório final, FP, nomeadamente, que só “foi feito um exame visual ao autocarro”, tendo sido “feito no local um resumo geral”.

XXV. O autocarro não foi apreendido à ordem do processo por falta de meios, mas no entanto “foram apreendidos os documentos para uma inspeção extraordinária”.

XXVI. É que, o autocarro tinha feito as “inspeções periódicas, sem anomalias nos prazos e que estava tudo correto”.

XXVII. Logo nesse mesmo dia, “depois do acidente o autocarro foi entregue à responsabilidade do proprietário”.

XXVIII. E, quanto à explicação para o acidente, disse a testemunha FP: “qualquer motivo da parte do condutor que perdeu a atenção ao ato de condução por adormecimento ou por falta de descanso”.

XXIX. A prova só foi visual, com exames visuais, a “olhómetro” passe a expressão, ao veículo sinistrado, cfr. supra o depoimento da testemunha, militar da GNR, MS que diz, “a gente quando faz a participação põe lá APARENTEMENTE BONS, APARENTEMENTE”.

XXX. O relatório foi elaborado às 21h10, ao lusque-fusque, cfr. gravação em CD, de 03-04-2018, gravado CD e registado de 10:01:27 às 10:50:13, passagem 29:18.

XXXI. E, mesmo que o autocarro tivesse todas as inspeções realizadas e sem registo de anomalias, não significa que não pudesse ter tido uma avaria mecânica, porque isto não faz prova plena que o autocarro estivesse nas devidas condições, pois não é com base nas inspeções periódicas que se pode garantir o bom estado do veículo, assim ficará para sempre esta dúvida insanável.

XXXII. Mesmo que o Recorrente quisesse requerer a perícia ao autocarro, durante a fase de inquérito ou nas fases seguintes, já este estava reparado, impedindo assim qualquer tipo de perícia que fosse requerida.

XXXIII. Foi o que aconteceu quando foi requerido pela A. – Companhia de Seguros, S.A., cfr. fls. 91 e 128 dos presentes autos.

XXXIV. Pelo que devia, sim, ter ficado apreendido à ordem dos presentes autos para posteriormente ser feita a devida perícia para dissipar qualquer tipo de dúvidas.

XXXV. E, ainda em relação às causas do acidente, vejamos as seguintes transcrições, prestadas em 03.04-2018, registado em CD desde 11:31:29 h às 12:01:32 h Testemunha FP, passagens gravadas de 00:04 aos 29:54 “Exmo. Procurador – 05:33 – A explicação que o Senhor pode ter para que o carro…Testemunha – 05:38 – A explicação que encontro aqui, qualquer motivo da parte do condutor que perdeu a atenção ao ato de condução por adormecimento ou falta de descanso”.

XXXVI. Mas se foi, eventualmente, adormecimento, o Tribunal a quo não tomou em linha de conta que, após o acidente, o Recorrente esteve internado durante 15 dias no Hospital Beatriz Ângelo, sendo-lhe detetadas, quando dormia, várias paragens respiratórias.

XXXVII. Sendo posteriormente submetido a vários exames, que confirmaram sofrer de apneia do sono.

XXXVIII. Porém, o arguido desconhecia que sofria desta patologia e as respetivas consequências.

XXXIX. Será que foi devido a esta patologia a causa do acidente, não se sabe, só suposições; “adormecimento”, não ficou provado que o arguido tivesse adormecido; porém, o arguido desconhecia à data aquela patologia, pelo que não podia ter tomado medidas preventivas.

XL. Tal relatório de apneia foi requerido ao Hospital Beatriz Ângelo e foi junto aos autos, em sede de julgamento.

XLI. Porém, salvo o devido respeito, o tribunal a quo não o valorou, não lhe dando qualquer relevância.

XLII. Pelo que, o Tribunal a quo fundou a sua decisão em presunções, porque não ficou demonstrado, pois não há prova, que o Recorrente praticasse tais factos, sendo este também vítima do acidente.

XLIII. Não obstante, apesar de algumas testemunhas terem ouvido o barulho produzido pelo atrito dos pneus a pisar nas faixas sonoras.

XLIV. O que é normal, pois o Recorrente tem o costume de conduzir o mais à direita possível, sendo obrigado a fazê-lo, cfr. depoimento do arguido, 35:39 que ora se transcreve: “sim, porque eu normalmente circulo o mais à direita possível, portanto ando sempre muito perto da guia” e como o veículo automóvel de passageiros é de grandes dimensões é suscetível de pisar as faixas sonoras, devido ao vento que se faz sentir naquela zonas, cfr. “ em virtude de as serras serem muito abertas, mas não é condição sine qua non para presumir que o condutor não ia atento à condução, cfr. declarações do OPC, testemunha, FP, que infra se transcreve no dia 03-04-2018, gravado em CD de 11:31:29 a 12:01:24: Exmo. Procurador - 07:37 – (…) Agora uma pergunta, havia vento? Testemunha – 08:23 – não havia vento que pudesse provocar o desequilíbrio do …, é natural naquela zona, que é muito aberta, que haja sempre um pouco de vento (…).

XLV. Não sendo feita a perícia ao autocarro, verificamos que houve de facto uma omissão grosseira, que põe em causa a descoberta da verdade material e a boa decisão da causa.

XLVI. Logo, foi posta em causa a descoberta da verdade material, pois era imprescindível que tivesse sido realizada, nomeadamente aos sistemas de direção, suspensão, travões ou componentes relacionados com os mesmos, pois nada nos revela, com veemência, que o autocarro não tivesse uma avaria mecânica.

XLVII. Ao invés foi, o mesmo, rebocado de imediato para as oficinas do proprietário em Frielas - Loures, cfr. relatório de fls. 185 dos autos, sem ser submetido a uma perícia que confirmasse que o acidente se deveu a uma avaria mecânica.

XLVIII. Assim, não resultou dos autos, nem da prova, testemunhal e documental, produzida, quer globalmente, quer apreciada individualmente, matéria suficiente para que se possa concluir, com a máxima certeza, porque o que está em causa é a inocência do Recorrente, JM, se cometeu os factos descritos, conforme considerou o acórdão nos itens 4, 5, 37, 38 e 92 dos factos provados).

XLIX. O Tribunal a quo considerou, ainda, como não provado a seguinte matéria de facto com a qual não concordamos, pois deveria ter sido considerado provado: a projeção só ocorreu porque os passageiros não usavam o cinto de segurança.

L. A tal conclusão chega-se através do que foi considerado no relatório final, fls. 802, que foram projetadas e que a projeção das vítimas para o exterior do autocarro se deveu à falta de uso do cinto de segurança, e ainda cfr. depoimento da Testemunha, Militar da GNR, FP, em 03-04-2018, gravado em CD, registado de 11:31:29 a 12:01:32, que infra se transcreve: 11:22 – Demandante – “bom dia Sr. agente, olhe por este ponto que referiu o cinto abdominal eu pergunto-lhe de acordo com a sua experiência o passageiro num autocarro deste que leva o cinto abdominal posto, se no caso de situação como esta de acidente se é projetado para o exterior do veículo, estando a fazer uso do cinto?” 11:47 – Testemunha – “não é projetado”.

LI. Tendo ficado provado que a maioria das testemunhas não usava cinto de segurança, não obstante no interior do veículo existir diversa sinalização da obrigatoriedade do uso de cinto de segurança.

LII. Em relação às vítimas mortais, temos de sublinhar e até colocar o enfoque no facto de a morte ter resultado da sua projeção, cfr. depoimento supra transcrito.

LIII. A projeção só ocorreu porque estes não usavam o cinto de segurança, instrumento cujo uso é obrigatório por lei, artigo 82º do Código da Estrada, e encontravam-se devidamente esclarecidos nesse sentido.

LIV. Logo, o Recorrente não teria sido condenado por três homicídios negligentes, mas sim por crimes de ofensa à integridade física.

LV. Nos acidentes de viação há um princípio orientador desenvolvido pela jurisprudência – Princípio da confiança. Este princípio retira o desvalor da ação quando o agente atua confiando que os outros também cumpriram os seus deveres de cuidado.

LVI. O Tribunal a quo também considerou como não provado a seguinte matéria de facto, com a qual não concordamos, pois deveria ter sido considerada como provada: “após a passagem da área de serviço de Almodôvar, ao km 192,884, quando se registou o acidente e o veículo desviou a sua marcha para a direita, não se deveu a qualquer incúria ou falta de cuidado por parte do arguido”.

LVII. A tal conclusão chega-se através de alguns depoimentos, tanto do arguido, que não soube explicar o motivo, como também das testemunhas, Militares da GNR, tendo afirmado só suposições para a verificação do acidente, designadamente, adormecimento, falta de descanso ou outro motivo.

LVIII. O Tribunal a quo considerou ainda como não provada a seguinte matéria de facto, com a qual não concordamos, pois deveria ter sido considerada como provada: “o arguido conduzia normalmente e, quando se apercebeu, o despiste do veículo estava iminente, porque inusitadamente o sentiu virar para a direita”.

LIX. A tal conclusão chega-se através dos vários depoimentos, cfr. supra, tanto do arguido e das testemunhas que se baseiam em probabilidades.

LX. O Tribunal a quo considerou como não provada a seguinte matéria de facto, com a qual não concordamos, pois deveria ter sido considerada como provada: “ao tentar estabilizar o veículo, desacelerou e tentou travar a viatura, que obedeceu, pois não se encontrava em excesso de velocidade”.

LXI. A tal conclusão chega-se através do depoimento do arguido, que o autocarro circulava a 97 km/h, e da análise ao tacógrafo que consta no Relatório final.

LXII. Pelo que, a prova produzida nos presentes autos impunha ao Tribunal a quo uma decisão oposta à que resulta do acórdão recorrido, cfr. depoimentos das testemunhas abonatórias do dia 24-04-2018, nomeadamente, a testemunha, JM, com depoimento gravado em CD no dia 24-04-2018, desde 15:01:34 h às 15:23:43 h com passagens gravadas de 00:46 aos 13:08.

LXIII. Da conjugação dos factos expostos, concluímos sem qualquer margem de dúvida que o Arguido não praticou nenhum crime de que vem acusado, uma vez que não violou qualquer dever de cuidado, aspeto fundamental para o preenchimento destes ilícitos penais.

LXIV. Ao considerar-se diferentemente, decidindo contra o Recorrente na sequência do já escrito, configurar-se-ia a violação do princípio in dubio pro reo.

LXV. Com efeito, tal ocorre quando da matéria de facto resulta que o Tribunal a quo chegou a um estado de dúvida insanável e, apesar disso, escolheu a tese desfavorável ao arguido.

LXVI. Desta forma, o Tribunal a quo violou, entre outros: a. o art. 32º, nº 2, (princípio in dubio pro reo), da CRP; b. os arts. 97º, nº 5; 127º, 340º,nº 1, e 374º, nº 2, todos do CPP.

Por outro lado, do texto do acórdão recorrido resulta a “insuficiência para a decisão da matéria de facto provada”, a que alude a al. a), do nº 2, do art. 410º, do CPP.

LXVIII. O tribunal a quo, ao dar como provados os factos supra mencionados, nas versões que constam da fundamentação da sentença, violou, entre outros, o princípio da livre apreciação da prova, consagrado no art. 127º, do CPP.

LXIX. Por outro lado, ao dar como provados factos que não resultaram da prova produzida em audiência de julgamento, violou, ainda, o disposto no art. 355º, nº 1, do CPP, nomeadamente as inspeções periódicas ao autocarro.

LXX. Pelo exposto, e perante a prova produzida, verificamos que o Recorrente não cometeu os crimes em que foi condenado.

LXXI. Não violando, assim, os artigos 15º, 70º, 71º, e 137º, nº 1, do CP, e artigo 13º do C.E.

LXXII. Pelo que o Recorrente não transgrediu nenhuma regra de trânsito nem adotou qualquer conduta negligente.

LXXIII. No entanto, caso assim não se entenda, desde já se alega que a pena aplicada ao arguido é manifestamente injusta e desproporcionada.

LXXIV. À luz dos parâmetros estabelecidos nos artigos 70º e 71° do C.P., e em face da matéria de facto apurada, deveria o Tribunal a quo optar, em detrimento de uma pena de prisão, pela aplicação de pena de multa, a qual satisfaria de forma adequada e suficiente as finalidades da punição, bem como as exigências de reprovação e prevenção do crime.

LXXV. Não obstante, e admitindo-se, por mera hipótese, que o Recorrente cometeu os crimes de que vem condenado, deveria ser por um só crime, de acordo com a jurisprudência dominante, cfr. entre outros, o Ac. do STJ de 13.07.2011, relatado pelo Sr. Conselheiro Henriques Gaspar.

LXXVI. Por outro lado, o Tribunal a quo aplicou ao Recorrente a pena acessória de 1 (ano) de proibição de conduzir, de acordo com o art. 69º, nº1, al. a) do Código Penal.

LXXVII. Antes de mais, tenhamos presente o princípio do carácter não autónomo dos efeitos das penas.

LXXVIII. Princípio este expressamente consagrado no art. 65º, nº 1, do Código Penal, nos termos do qual “nenhuma pena envolve como efeito necessário a perda de direitos civis, profissionais ou políticos”.

LXXIX. Assim, para que se justifique a aplicação de uma pena acessória é necessário que “o Juiz comprove, no facto, um particular conteúdo ilícito, que justifique materialmente a aplicação em espécie da pena acessória”, FIGUEIREDO DIAS in “Direito Penal Português – As consequências jurídicas do crime”, Aequitas, Editorial Notícias, 1993, p.158.

LXXX. Ora, no caso concreto, também não existe justificação para a pena acessória aplicada.

LXXXI. Com efeito, com a entrada em vigor da Lei 77/2001, de 13/07, e como decorre da nova redação dada à alínea a), do nº 1, do art. 69º, do Código Penal, deixou de ser aplicável a pena acessória de proibição de conduzir por crime cometido no exercício da condução de veículo com motor com ou sem grave violação das regras de trânsito rodoviário.

LXXXII. Por isso, tendo sido o Recorrente condenado por crime cometido no exercício da condução de veículo automóvel, pelos crimes de homicídio negligente e de ofensas à integridade física negligentes, é indubitável que aqueles foram cometidos no exercício da condução, e, sendo-o, não pode haver lugar à aplicação da sanção acessória.

LXXXIII. Aquela sanção acessória só poderá ser aplicada caso o arguido haja cometido, concomitantemente, o crime previsto no artigo 291º do Código Penal (condução perigosa de veículo rodoviário) ou o crime previsto no artigo 292º (condução em estado embriaguez) – Cfr. Acórdão da Relação de Coimbra de 23/1/2002, CJ, I-43.

LXXXIV. O que efetivamente não foi o caso.

LXXXV. No artigo 69º do referido diploma quer-se apenas abranger os crimes dolosos, excluindo-se a utilização negligente durante a mera condução, ainda que imprudente.

LXXXVI. Também assim o decidiu o Acórdão da Relação de Évora de 24-06-2003 (CJ.III- 267), dando o seu acordo a essa posição jurisprudencial o Prof. Paulo Pinto de Albuquerque do Código Penal, página 225.

LXXXVII. Pelo que o Recorrente não foi acusado pela prática de uma autónoma contraordenação, tendo apenas sido lançado mão da norma do artigo 13º do Código da Estrada para efeitos de indicação da infração estradal causal da negligência evidenciada pelo comportamento do arguido.

LXXXVIII. Pelo que não podia ter sido aplicada ao Recorrente a pena acessória do artigo 69º do C.P.

LXXXIX. Na verdade, o Recorrente não foi acusado, pronunciado, julgado e condenado pela prática de uma autónoma contraordenação muito grave em relação aos factos criminosos pelos quais foi acusado, pronunciado e condenado.

XC. Não restam, assim, dúvidas que o recorrente não praticou o crime em que foi condenado.

XCI. Não há qualquer facto provado suscetível de enquadrar juridicamente a conduta do Recorrente como autor de qualquer infração criminal, nomeadamente o crime de condução perigosa.

XCII. Pelo exposto, o Tribunal, salvo o devido respeito, não interpretou nem aplicou corretamente o art. 69º, nº 1, do C.P.

XCIII. Ora, no caso concreto, não existe justificação para a pena acessória aplicada.

XCIV. Sem prescindir, admitamos porém, por mera hipótese, que o que deixamos referido não constitui absolvição da pena acessória.

XCV. Sem prescindir sempre se diga que, face à matéria dada provada, o período de 1 (um) ano aplicado é manifestamente excessivo.

XCVI. O Recorrente tem 54 anos de idade e não tem antecedentes criminais.

XCVII. Sendo que os crimes que lhe foram imputados foram episódios únicos na sua vida.

XCVIII. Aliás, mesmo do ponto de vista estradal, o arguido nunca cometeu nenhuma contraordenação grave ou muito grave, sendo por isso um condutor exemplar.

XCIX. O arguido está inserido profissional e socialmente.

C. A pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor, prevista no art. 69º, nº 1, do C.P., apresenta uma moldura variável entre um limite mínimo e um limite máximo (período fixado entre três meses e três anos).

CI. A sua determinação deve ter por base as circunstâncias do caso concreto, a culpa do agente e as exigências de prevenção.

CII. Ora, in casu, para além dos factos supra referidos, convém ter em linha conta que o Recorrente é motorista profissional (cfr., consta nos autos), utilizando os veículos automóveis como instrumento de trabalho.

CIII. Acresce que, a pena aplicada causar-lhe-á inúmeros prejuízos, que podem colocá-lo numa situação de absoluta carência económica, atentos os encargos bancários e despesas básicas do seu agregado familiar que tem a seu cargo.

CIV. O que certamente provocará sérios problemas na sua vida profissional e pessoal.

CV. Paralelamente, é de notar que o período de 1 ano aplicado não é sustentado nos mesmos argumentos que o tribunal invocou para a determinação da pena principal.

CVI. De facto, os fundamentos em que assentou a medida da pena acessória não tiveram em atenção a ilicitude do facto, a inexistência de antecedentes criminais, as condições pessoais do arguido e a sua situação económica e profissional.

CVII. Por outro lado, as exigências de prevenção especial e geral também não justificam tal medida.

CVIII. Assim, a medida da pena acessória deve ser reduzida para o seu limite mínimo (três meses).

CIX. Em suma, não restam dúvidas que os factos alegadamente praticados pelo recorrente não foram corretamente avaliados, pelo que o Tribunal acabou por condená-lo.

CX. Nos termos do supra alegado, e não tendo o Recorrente praticado os factos em que foi condenado sem uma adequada realização e apreciação da prova, deve o mesmo ser absolvido.

TERMOS EM QUE, E NOS DEMAIS DE DIREITO, DEVE O PRESENTE RECURSO SER JULGADO PROCEDENTE E, EM CONSEQUÊNCIA:

i. O RECORRENTE SER ABSOLVIDO DOS CRIMES EM QUE FOI CONDENADO;

ii. O RECORRENTE SER ABSOLVIDO DA PENA ACESSÓRIA APLICADA, OU, SUBSIDIARIAMENTE,

iii. A MESMA SER REDUZIDA PARA O SEU LIMITE MÍNIMO (3 MESES)

FAZENDO-SE, ASSIM, A HABITUAL E NECESSÁRIA JUSTIÇA”.
*
A demandada civil “A. - Companhia de Seguros, S.A.”, interpôs também recurso do acórdão condenatório, terminando a respetiva motivação com as seguintes conclusões (em transcrição):

“1) Com todo o merecido respeito e salvaguardando melhor entendimento, andou mal o douto Tribunal a quo, ao considerar como não provada a supra citada factualidade:

- A conduta dos demandantes/lesados contribuiu necessária e determinantemente para os danos ocorridos, porquanto os danos jamais se teriam verificado se fizessem uso do cinto de segurança;
- A projeção só ocorreu porque os passageiros não usavam o cinto de segurança.

2) É do conhecimento comum, amplamente divulgado e suportado em inúmeros estudos científicos, que a utilização de cinto de segurança é apta e minimizar lesões e evitar projeções para o exterior dos veículos num contexto de acidente rodoviário – sendo tal ciência fundamento para a lei determinar a utilização obrigatória destes dispositivos de segurança.

3) Não se alcança com base em que razão de ciência se fundamentou o Tribunal a quo para concluir que a localização dos passageiros foi seguramente a causa da maior ou menor gravidade das lesões por ele sofridas, desde logo considerando que o Relatório Final elaborado pelo NICAV, fls. 802, página 4 a final, refere que, quanto às vitimas mortais, não foi possível apurar quais os lugares que ocupavam.

4) Acresce que, do Auto de Exame Direto ao Local, fls. 172 e seguintes, resulta que apenas dois passageiros faziam uso de cinto de segurança: JS, que do acidente resultou ferido ligeiro, e ST, que do acidente resultou como único ileso (fls. 180 e 181).

5) Mais se realça que estes passageiros ocupavam os lugares 17 e 27, sendo que não muito distantes desses lugares estariam pelo menos dois passageiros que, não fazendo uso de cinto de segurança, resultaram como feridos graves (AS e AT), pelo que não só não existem elementos factuais que corroborem que a localização dos passageiros foi seguramente a causa da maior ou menor gravidade das lesões, como a contrario os elementos existentes permitem concluir a utilização de cinto de segurança não terá sido alheia, sendo que, com grande probabilidade, terá contribuído decisivamente para a inexistência de lesões nos passageiros que, cumprindo a lei, dos mesmos fizeram uso.

6) Sendo a utilização de cinto de segurança obrigatória por lei, é de presumir que tal imposição decorre de se considerar que essa utilização é apta a proteger o passageiro e a sua não utilização potenciadora de lesões.

7) Era aos lesados que caberia a prova que a falta de utilização do cinto de segurança em nada teria contribuído para as lesões, prova essa que não foi feita.

8) Sem prejuízo, e como decidiu o douto Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 06.05.2004 (disponível em www.dgsi.pt), admite-se que “seria as mais das vezes "diabólica" a prova de que o não uso do cinto de segurança em nada contribuiu para as lesões ou seu agravamento.”

9) Não obstante, tratar-se efetivamente de uma prova diabólica, do depoimento da testemunha FP, Agente da GNR que elaborou o Relatório Final do NICAV, com experiência profissional de dezassete anos em acidentes de viação (depoimento gravado no sistema de gravação digital, no dia 03.04.2018, entre as 11:31 e as 12:02, a minutos 11:33 a 12:15) resulta, expressa e inequivocamente, que as vítimas mortais não teriam sido projetadas para o exterior do veículo caso fizessem uso do cinto de segurança.

10) Sendo certo que resulta dos Factos provados 8 a 13 que as graves lesões que provocaram a morte das três vítimas, foram resultado da projeção para o exterior do veículo.

11) Quanto aos demais passageiros e feridos graves, será igualmente adequado concluir que a falta de utilização do cinto de segurança contribuiu determinantemente para as lesões sofridas, não só porque os passageiros que faziam esse uso resultaram um ileso e outro ferido ligeiro, como a retenção ao banco necessariamente evitaria toda a mobilização e impacto a que os seus corpos foram sujeitos, com as consequentes lesões, entre outros, as lesões sofridas pela lesada DD – nada se tendo provado em contrário.

12) Termos em que, considerando o amplo conhecimento que a utilização de cinto de segurança tem para evitar ou reduzir as lesões e mortes, a sua obrigatoriedade legal, bem como a prova produzida em audiência e constante dos autos (nomeadamente Relatório final fls. 802, Exame Direto ao Local, fls. 172, depoimento gravado da testemunha FP no sistema de gravação citius, no dia 03.04.2018, gravação digital entre as 11:31 e as 12:02, minutos 11:33 a 12:15), e ainda a falta de prova que a não utilização de cinto de segurança foi de todo alheia às lesões sofridas pelos passageiros, deveria o douto Tribunal a quo ter considerado como provada a seguinte factualidade:

- A conduta dos demandantes/lesados contribuiu necessária e determinantemente para os danos ocorridos, porquanto os danos jamais se teriam verificado se fizessem uso do cinto de segurança;

- A projeção só ocorreu porque os passageiros não usavam o cinto de segurança.

13) Prosseguindo, resultou provado do documento 7 do pedido de indemnização cível de DD (fls. 1382) e dos diversos depoimentos, nomeadamente do cônjuge CC (gravação digital de 24.04.2015, entre as 11:05 e as 11:24, minutos 10:10 a 10:19), PL (gravação digital de 24.04.2015, entre as 11:35 e as 11:50- minutos 09:01 a 09:09) e AS (gravação digital de 24.04.2015, entre as 12:14 e as 12:20- minutos 01:01 a 01:15), que a Demandante DD à data do acidente já se encontrava há algum tempo de baixa médica por depressão.

14) Tal factualidade havia sido invocada em sede de contestação, foi objeto de prova e como tal deveria constar da factualidade provada, sob pena de ser omitido facto essencial, pelo que deverá aí passar a constar:

- À data do acidente a lesada DD encontrava-se de baixa psiquiátrica por depressão.

15) Em sede de contestação ao pedido do Centro Nacional de Pensões, a Recorrente alegou, a artigos 25º e 29º, que havia pago a DC a quantia de €: 4.475,52, a título de reembolso integral das despesas de funeral, conforme documento 3 e 4 que ali se deram por integralmente reproduzidos, e que, em virtude desse pagamento e conforme o aludido doc. 3, havia sido conferida à Recorrente a titularidade desse direito permitindo que esta fique sub-rogada pelo aludido pagamento.

16) Este documento 3 (fls. 1829), previamente à assinatura de DC, contem os seguintes dizeres: “Com o recebimento do montante mencionado, considerar-se-á totalmente ressarcido de todos os danos patrimoniais e não patrimoniais, sofridos em consequência do sinistro a que se reporta o processo acima indicado, dando assim quitação à Generali- Companhia de Seguros, e subrogando-a em todos os seus direitos, ações e recursos, contra possíveis responsáveis nos termos da lei”.

17) Tal documento e assinatura foi confirmada pela própria DC, testemunha cujo depoimento ficou gravado em suporte digital, dia 08.05.2018, entre as 10:55 e as 11:10, minutos 03:35 as 03:38.

18) Como tal, porque se afigura de relevância para a discussão em causa e sobre tal facto incidiu prova, deveria constar como Facto Provado que:

- Com o aludido pagamento referido em 84 (Factos Provados), DC deu a respetiva quitação à A- Companhia de Seguros, subrogando-a em todos os seus direitos, ações e recursos, contra possíveis responsáveis nos termos da lei.

19) Atento o supra exposto, prova produzida e supra citada, entende a Recorrente que deverá ser alterada a decisão no que concerne à factualidade provada, passando a constar como Factos Provados:

- A conduta dos demandantes/lesados contribuiu necessária e determinantemente para os danos ocorridos, porquanto os danos jamais se teriam verificado se fizessem uso do cinto de segurança

- A projeção só ocorreu porque os passageiros não usavam o cinto de segurança.

- À data do acidente a lesada DD encontrava-se de baixa psiquiátrica por depressão.

- Com o pagamento referido em 84 (Factos Provados) DC deu a respetiva quitação à A. - Companhia de Seguros, subrogando-a em todos os seus direitos, ações e recursos, contra possíveis responsáveis nos termos da lei.

DO DIREITO
20) A obrigatoriedade de utilização de cinto de segurança decorre do disposto no art. 82º do Código da Estrada e do art. 8º do Decreto-Lei n.º 170-A/2014, de 07 de Novembro.

21) Resultou provado que tais informações foram transmitidas (87, 88 e 89), sendo inúmeros os elementos constantes dos autos que confirmam a existência dos pictogramas de sinalização da obrigatoriedade do cinto de segurança, sendo ainda tal obrigatoriedade do conhecimento comum, como, de resto, foi também atestado por diversos passageiros que depuseram como testemunhas.

22) Ultrapassando a conhecida premissa Ignorantia legis non excusat, diremos que nos tempos que correm é do conhecimento geral a obrigatoriedade de utilização do cinto de segurança, bem como que essa obrigatoriedade decorre de se saber que estes dispositivos se revelam eficazes para salvar vidas e minimizar lesões em contexto de acidentes rodoviários.

23) Procedendo-se à alteração da matéria de facto provada, conforme supra defendido, e aplicando o direito à factualidade, temos que, quanto às vítimas mortais a projeção só ocorreu porque os passageiros não usavam o cinto de segurança, sendo que em resultado da projeção para o exterior do veículo -FE- e consequente colisão com o solo vieram a sofrer os ferimentos que determinaram a sua morte (factos provados 8 a 13) - pelo que, se não tivessem sido projetados (por falta de utilização do cinto de segurança) também não teriam sofrido as lesões que determinaram a sua morte.

24) Consequentemente, por força do art. 570º do Código Civil, não se pode afastar que a culpa do lesado (no caso as três vítimas mortais: JM, MM e AA) foi determinante para o resultado pelo que deverá a indemnização ser excluída, ou ainda que assim não se entenda e no limiar, sempre deverá essa indemnização ser reduzida por referência à contribuição do lesado para o agravamento dos danos.

25) Igualmente no que concerne à Demandante DD se impunha uma redução da indemnização com base na culpa por falta de utilização do cinto de segurança, nunca inferior a 50%, uma vez que tal falta de utilização foi necessariamente determinante para a produção e agravamento dos danos por si sofridos.

26) Citando o ilustre Prof. Dr. J. C. Brandão Proença, a norma do artº 570º “integra um princípio elementar de justiça, requerido pela própria consciência ético-jurídica, estatuindo, com naturalidade, determinadas consequências ligadas à repercussão patrimonial do dano para que concorreu a conduta “culposa” do lesado”.

27) A Jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça tem sido unânime na aplicação do art. 570º do Código Civil em acidentes de viação em que os passageiros se fazem transportar sem uso do cinto de segurança, como servem de exemplo, entre muitos, o douto Acórdão de 21.02.2013 (e pese embora aí a culpa do acidente até fosse de um veículo terceiro): “(…) essa falta pode ter contribuído para o agravamento do dano causado pelo acidente e, por essa via, conduzir à redução da indemnização devida, porque se trata de uma omissão de cuidado claramente culposa, ostensivamente reveladora da inobservância do cuidado e diligência exigíveis a uma pessoa medianamente diligente e cuidadosa, colocada na situação da lesado. É do conhecimento geral que é perigoso fazer-se transportar num veículo automóvel sem ter o cinto de segurança colocado.” E ainda o Acórdão de 03.03.2009: “(…) Ora, independentemente de não ter sido posta em nenhum dos recursos esta questão, o certo é que no caso dos autos este nexo de adequação está presente uma vez que, em geral e abstrato, a ausência de cinto de segurança é um facto omissivo apto a causar agravamento das lesões em caso de acidente de viação. Afigura-se de igual modo incontroverso que a conduta do autor, para além de ilícita, pois integra uma infração ao artº 82º, nº 1, do Código da Estrada, é culposa (…)”

28) Com todo o merecido respeito e salvaguardando melhor entendimento, não se pode aceitar a complacência e conivência com a postura do passageiro que, sabendo da obrigatoriedade de utilização de cinto de segurança e que o mesmo é um equipamento apto a evitar ou minimizar as consequências de um acidente de viação, opta por não fazer tal uso exponenciando o risco para a sua vida e integridades físicas.

29) Uma tal conivência afigurar-se-á inclusive perigosa e incitadora da desresponsabilização dos passageiros.

30) Termos em que, por força do disposto no art. 570º do C.C. impunha-se que o Tribunal determinasse a exclusão ou no limite a redução de todas as indemnizações em que condenou a Recorrente, uma vez que para a verificação dos danos foi determinante a culpa dos lesados que se fizeram transportar sem utilização do cinto de segurança e que tal culpa, no limiar, sempre se fixaria em 50% da responsabilidade pelos danos.

31) No que concerne ao pedido de indemnização cível de DD, na sequência do supra defendido e alterando-se a decisão em conformidade, sempre se deveria salvaguardar que à indemnização que se venha a apurar em execução de sentença deverá ser reduzida a percentagem correspondente à valoração da conduta da Demandante (por falta de utilização do cinto de segurança) para a verificação dos danos (art. 570º do Código Civil) e que nunca deverá ser inferior a 50%, nomeadamente considerando que os passageiros que faziam uso de cinto de segurança resultaram ilesos ou feridos ligeiros.

32) Tal redução igualmente deverá ser aplicada à condenação em danos não patrimoniais, a qual, no nosso modesto entender, afigura-se ainda excessiva, tendo em conta que na determinação do quantum da indemnização do dano não patrimonial, a lei aponta nitidamente para uma valoração casuística, orientada por critérios de equidade (artº 494, ex vi artº 493, 1ª parte, do Código Civil), que a jurisprudência aplica considerando o bem jurídico atingido, a natureza e a intensidade do dano causado, o género e a idade da vítima.

33) O douto Acórdão recorrido, pese embora afirmando que não ficou demonstrado o grau da incapacidade da Demandante, entendeu adequado fixar em €: 40.000,00 os danos não patrimoniais, tendo em consideração as lesões sofridas, dores, sofrimento, cicatrizes, período de internamento e sequelas físicas e psicológicas, por referência a valores atribuídos pela jurisprudência em situações de idêntica natureza.

34) Tendo, entre outros, presente que a Demandante, à data com 59 anos, esteve internada entre 19.06.2015 (data do acidente) e 23.06.2015 (cfr. Fls. 1382, 1383 e 1384), e que das avaliações clínicas a que foi submetida uma atribui um Dano Estético de 2 pontos em 7 e outra 4 pontos em 7, bem como a abundante jurisprudência em situações semelhantes, afigura-se manifestamente excessiva a indemnização arbitrada.

35) Sendo inúmera a jurisprudência que, em situações de maior gravidade, tem entendido adequado e equitativo a atribuição de indemnização por danos não patrimoniais em valores bastantes inferiores, citando para o efeito o douto Acórdão do STJ de 21.02.2013, no qual a uma lesada com 30 anos, que ficou com uma IPG de 10 pontos; padece de insónia, depressão e relembra constantemente o acidente, manifestando medo de andar de automóvel, em especial, como passageira; apresenta perturbações persistentes de humor e perturbação de stress pós-traumático; acamada e sem nada fazer, o que debilita ainda mais a sua situação depressiva; apresenta cicatriz no rosto notável com um grau de dano estético de 6 em 7; teve e tem dores, padecimentos e sofrimentos com o acidente e os tratamentos a que foi sujeita, considerou-se adequada uma indemnização de € 25.000,00 (vinte e cinco mil euros) a título de danos não patrimoniais.

36) No mesmo Acórdão é citada diversa jurisprudência que confirma ser manifestamente excessiva e pouco equitativa a atribuição de indemnização no valor de € 40.000,00 a título de danos não patrimoniais à Demandante DD -se pois que, atentos os danos demonstrados, o valor da indemnização a atribuir a DD a título de danos não patrimoniais, por força do disposto no art. 496º do Cód. Civil, em razão quer do princípio da proporcionalidade quer por referência à uniformidade jurisprudencial, sempre se deveria fixar em valor não superior a € 25.000,00 (vinte e cinco mil euros).

38) Ainda quanto ao pedido de indemnização cível de DD e à condenação proferida, cumpre esclarecer que a Demandante peticionou a quantia total de € 140.274,04 a título de danos não patrimoniais, pese embora no seu articulado e para tal montante reclame danos patrimoniais e não patrimoniais, nos seguintes termos:

- € 123,12 a título de despesas de internamento- julgado improcedente;
- € 15.203,32 a título de IPG;
- € 79.200,00 a título de repercussão na vida laboral;
- Indemnização não contabilizada a título de danos não patrimoniais;
- Indemnização não contabilizada a título ajuda de 3ª pessoa e despesas médicas e fisioterapia futuras – estas últimas julgadas improcedentes.

39) Sucede porém que o Tribunal a quo relegou os danos patrimoniais para execução de sentença, deduzindo o valor da condenação do dano não patrimonial e estabelecendo como limite o remanescente de € 100.274,04.

40) Ao estabelecer tal limite, o Tribunal a quo ignorou nesse limite os pedidos que foram julgados improcedentes, assim violando o disposto no art. 82º do CPP e art. 5º e 609º do Código Processo Civil.

41) Assim, desde logo àquele limite deveria ser reduzida a quantia de €: 123,12 (despesas de internamento) julgada improcedente, bem como a parte do pedido indevidamente não concretizado pela Demandante e que foi julgado improcedente, relativo a despesas médicas e de fisioterapia futuras.

42) Pelo que sempre se impunha a aludida redução ao limite estipulado para o valor que se vier a apurar em execução de sentença, sem prejuízo e sem prescindir da valoração da conduta da Demandante (art. 570º), conforme supra defendido.

43) Tendo presente os Factos considerados Provados (79 a 81 e 84), bem como a factualidade que supra se recorre e deverá ser considerada provada (com o pagamento referido em 84 DC deu a respetiva quitação à A. - Companhia de Seguros, subrogando-a em todos os seus direitos, ações e recursos, contra possíveis responsáveis nos termos da lei), mal andou o Tribunal a quo ao julgar procedente o pedido do Centro Nacional de Pensões.

44) Para o efeito, o Tribunal a quo limitou-se condenar a Recorrente por alusão ao Acórdão da Relação do Porto de 14.09.2016, sem qualquer alusão às específicas disposições legais aplicáveis (nomeadamente atento o disposto no art. 374º do CPP) e em notória violação do disposto nos artigos 562º, 592º e 593º do Código Civil e 70º da Lei 4/2007.

45) O direito de sub-rogação traduz a substituição do credor na titularidade do direito a uma prestação fungível. Tendo as aludidas lesadas sub-rogado a Demandante, o respetivo direito deixou de estar na titularidade das mesmas passando a estar na titularidade da Demandante.

46) O Centro Nacional de Pensões não pode ficar sub-rogado no direito que já não existia na esfera das lesadas, sendo que o art. 70º da Lei 4/2007 estabelece que as instituições de segurança social ficam sub-rogadas nos direitos do lesado.

47) Imputar-se à Recorrente a obrigação de proceder ao pagamento de um direito que já ressarciu e no qual a própria já se encontra sub-rogada, não só resvala numa contradição jurídica, como atribui uma total desvalorização aos acordos extrajudiciais e desvirtua a legislação vigente e a almejada compensação dos lesados dentro da maior brevidade possível (Decreto-Lei 291/2007).

48) Reitera-se que não existe fundamento legal para se exigir da Recorrente o pagamento em duplicado do mesmo dano, o que sempre se afiguraria abusivo e contrário aos mais basilares princípios de direito.

49) O Tribunal a quo fundamentou esta decisão por mera colação ao Acórdão ali citado, todavia importa notar que deste Acórdão também consta a seguinte passagem: “a tal entendimento subjaz a ideia de que as prestações sociais em causa não são direta contrapartida das contribuições, constituindo estas, no seu todo, um fundo de apoio indistinto, quer quanto às pessoas quer quanto às situações que as reclamam, e de que, por isso, podem e devem funcionar mesmo nos casos em que houver terceiros responsáveis, enquanto a sua responsabilidade se não mostre estabelecida judicialmente ou formalmente reconhecida entre as partes. É certo que a seguradora não se encontra obrigada a pagar mais do que deve e que, portanto, não deve ser obrigada a pagar duas vezes: reembolsando quem já adiantou as prestações pelas quais é responsável, não tem que pagar novamente aos beneficiários, seja por que via for – acordo ou demanda judicial – tendo o direito de descontar na eventual indemnização que lhe venha a ser pedida as quantias que já desembolsou. No entanto, ao pagar diretamente aos lesados, deverá usar dos devidos cuidados, especificando o que é devido a título de danos patrimoniais e de danos não patrimoniais, sem o que não é possível fazer a devida imputação das prestações sociais na fatia correspondente aos danos patrimoniais”.

50) Ora, nas situações em análise e conforme resulta dos documentos juntos com a contestação ao pedido do Centro Nacional de Pensões:

- A responsabilidade da Recorrente estava reconhecida entre as partes;
- A Recorrente não pode ser obrigada a pagar duas vezes o mesmo dano;
- Ao pagar foram especificados os concretos valores pagos a título de danos patrimoniais e não patrimoniais.

51) Note-se que em ambos os recibos de indemnização consta especificamente a distinção entre valores pagos a título de danos patrimoniais e danos não patrimoniais, sendo que no caso de DC é ainda expressamente identificado que são pagos € 4.475,52 a título de despesas de funeral - sendo que esse montante pago corresponde à totalidade das despesas de funeral, conforme fatura igualmente junta àquela contestação.

52) Como tal, e ainda que se vinculasse à citada jurisprudência, sempre se impunha julgar improcedente o pedido do Centro Nacional de Pensões, porquanto nas duas situações objeto do presente litígio, encontram-se especificamente concretizados os valores pagos a título de danos patrimoniais, sendo que tal concretização, no caso de DC, vai ao pormenor de identificar os montantes pagos a título de despesas de funeral.

53) Tendo a Recorrente oportunamente indemnizado os danos pelos quais era responsável, não existe fundamento para lhe imputar que pague duas vezes o mesmo dano, pelo que a decisão do Tribunal a quo viola o disposto nos art. 562º, 589º, 592º e 593º do Código Civil.

54) Sem prescindir e por mero dever de patrocínio e à cautela, ainda que assim não se entendesse, na senda do supra defendido, porque ambas as vitimas mortais (que originam as prestações sociais reclamadas pelo Centro Nacional de Pensões) se faziam transportar sem utilização do cinto de segurança, cuja utilização é obrigatória por lei, tendo sido tal falta que motivou a projeção, colisão com solo e morte, sempre se impunha excluir a responsabilidade da Recorrente ou no limite reduzi-la em função da responsabilidade das vítimas.

55) Do que fica dito resulta que, salvo melhor entendimento, ao decidir como o fez, o Tribunal a quo fez um incorreto julgamento da factualidade considerada provada bem como uma incorreta aplicação do direito e violou o quanto dispõem os artigos 342º, 344º, 496º, 562º, 570º, 589º, 592º e 593º do Código Civil, e artigos 5º e 609º do Código de Processo Civil, art. 82º e 374º do Código de Processo Penal, art. 82º do Código da Estrada, art. 8º do Decreto-Lei 170-A/2014 e art. 70º da Lei 4/2007 e o disposto no Decreto-Lei nº 291/2007.

Nestes termos, nos mais de direito e sempre com o mui douto suprimento de V. Exas. deve dar-se provimento ao presente recurso, revogando-se a sentença recorrida em conformidade com as presentes alegações, assim se fazendo como sempre Justiça”.

O Exmº Magistrado do Ministério Público junto da primeira instância apresentou resposta ao recurso interposto pelo arguido, concluindo pela sua improcedência, e não respondeu ao recurso da demandada civil “A - Companhia de Seguros, S.A.”, por entender que respeita a matéria de natureza exclusivamente civil.

Neste Tribunal da Relação, o Exmº Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer no sentido da improcedência de ambos os recursos.

Cumprido o disposto no artigo 417º, nº 2, do C. P. Penal, a demandada “A. - Companhia de Seguros, S.A.”, apresentou resposta, renovando, em síntese, o já alegado na motivação do respetivo recurso.

Efetuado o exame preliminar, e colhidos os vistos legais, foi o processo à conferência, cumprindo agora apreciar e decidir.

II - FUNDAMENTAÇÃO

1 - Delimitação do objeto dos recursos.

No caso destes autos, face às conclusões extraídas pelos recorrentes das motivações de recurso apresentadas, e em breve síntese, são as seguintes as questões a conhecer:

A - Recurso do arguido:
1ª - Existência do vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada (artigo 410º, nº 2, al. a), do C. P. Penal).

2ª - Ocorrência de erro de julgamento sobre a matéria de facto (por incorreta apreciação e valoração da prova produzida).

3ª - Violação do princípio in dubio pro reo.

4ª - Violação do princípio da livre apreciação da prova.

5ª - Valoração (ilegal) de prova não produzida na audiência de discussão e julgamento.

6ª - Errado enquadramento jurídico-penal dos factos (que configuram um só crime e não vários crimes).

7ª - Escolha da pena (principal), devendo ser aplicada pena de multa em detrimento de pena de prisão.

8ª - Impossibilidade de aplicação, in casu, da pena acessória de proibição de conduzir.

9ª - Errada determinação da medida concreta da pena acessória de proibição de conduzir.

B - Recurso da demandada civil “A. - Companhia de Seguros, S.A.”:
1ª - Impugnação alargada da matéria de facto.

2ª - Exclusão ou redução (para 50%) de todas as indemnizações, porquanto, para a verificação dos danos, foi determinante a culpa dos lesados (que se faziam transportar sem utilização do cinto de segurança).

3ª - Montantes indemnizatórios atribuídos.

4ª - Improcedência do pedido do Centro Nacional de Pensões.

2 - O acórdão recorrido.
No tocante aos factos (provados e não provados) e à motivação da decisão fáctica, é do seguinte teor o acórdão objeto do recurso:

Factos Provados:
Discutida a causa, resultaram provados os seguintes factos:
1. O arguido é funcionário da empresa B.Transportes S.A. há cerca de 19 anos, exercendo a função de motorista de veículos pesados de passageiros.

2. No dia 19.06.2015, pelas 18:30 horas, o arguido circulava na autoestrada A2, no sentido Sul/Norte, conduzindo o veículo pesado de passageiros com a matrícula -FE- (doravante veículo -FE- ou autocarro), realizando um serviço de transporte expresso de passageiros com início em Lagos e destino a Lisboa.

3. O arguido fazia então o transporte de 19 passageiros.

4. Após ter passado pela área de serviço de Almodôvar, na referida autoestrada, ao quilómetro 192,884, o arguido permitiu que o veículo -FE- desviasse a sua trajetória para a direita, saindo da faixa de rodagem, ficando a circular na vala de escoamento das águas pluviais aí existente.

5. Ato contínuo, o arguido tentou recolocar o veículo na faixa de rodagem, guinando o volante do veículo -FE- para o lado esquerdo, acabando no entanto por perder o controlo da direção do mesmo, o qual veio a capotar lateralmente para a direita, deslizando na faixa de rodagem já com a lateral direita em contacto com o solo por uma extensão de 154,4 metros.

6. Como consequência, três dos passageiros, JM, MM e AA, foram projetados para o exterior do veículo FE-.

7. Estes três passageiros não faziam uso do cinto de segurança.

8. Em resultado da projeção para o exterior do veículo -FE- e consequente colisão com o solo, JM sofreu os seguintes ferimentos corporais:

Ao nível da cabeça:
- Parte Moles: Ferida lacerada do pavilhão auricular esquerdo;
- Fratura nos andares anterior e médio com infiltração hemorrágica dos ossos da cabeça ao nível da abóboda;
- Hemorragia subaracnoídea na linha média do tronco cerebral;
Ao nível do tórax:
- Infiltração hemorrágica dos tecidos perifocais do esterno e grelha costal das paredes do tórax;
- Fratura com infiltração hemorrágica dos tecidos perifocais do esterno;
- Luxação posterior da clavícula direita e fratura de todos os arcos costais a mais de um nível;
- Luxação posterior da clavícula esquerda e fratura de todos os arcos costais a mais de um nível;
- Laceração do saco pericárdico;
- Arrancamento do coração que se encontra localizado na região do ombro esquerdo, com laceração do ventrículo esquerdo, laceração do mediastino da artéria aorta, laceração da artéria pulmonar;
- Laceração da pleura parietal esquerda e direita;
- Rutura do diafragma com evisceração dos órgãos abdominais para a cavidade torácica.
Ao nível do abdómen:
- Múltiplas lacerações do fígado;
- Laceração da vesícula biliar;
- Ao nível da coluna vertebral sofreu luxação de C1;
Ao nível dos membros:
- Fratura fechada de metade superior do braço direito, com infiltração dos tecidos adjacentes;
- Fratura fechada do ombro esquerdo, com infiltração dos tecidos adjacentes.

9. Os ferimentos descritos em 8 resultaram em lesões traumáticas raqui-medulares crânio meningo encefálicas, torácicas, abdominais e dos membros, as quais, por sua vez, vieram a provocar a morte de JM no dia 19.06.2015, pelas 21:00 horas, no local do acidente.

10. Em resultado da projeção para o exterior do veículo -FE- e consequente colisão com o solo, MM sofreu os seguintes ferimentos corporais:

Ao nível da cabeça:
- Ferida e esfacelo do couro cabeludo;
- Fratura cominutiva do rochedo e cavidades orbitárias com infiltração dos ossos da base da cabeça;
- Múltiplas áreas de contusão com amolecimento de perda de definição do encéfalo;
- Fraturas a mais de um nível com desvio dos todos ósseos e infiltração sanguínea dos ossos da face;
- Fratura e esfacelo das cavidades orbitarias e globos oculares,
- Múltiplas fraturas a mais de um nível das fossas nasais, seios maxilares, frontais e esfenoidais;
- Fratura e esfacelo da cavidade oral e língua;
- Fratura dos ossos do ouvido com otorragia bilateral.
Ao nível do pescoço:
- Hipermobilidade do pescoço por luxação completa da cervical;
- Esfacelo dos músculos do pescoço bilateral;
- Laceração da laringe e traqueia.
Ao nível do tórax:
- Laceração por fratura de todos os ossos torácicos com exposição das vísceras toracoabdominais;
- Escoriações com sinais de arrastamento nas glândulas mamárias;
- Fratura cominutiva com infiltração dos tecidos adjacentes do esterno;
- Fratura da clavícula direita e de todos os arcos costais a mais de um nível com infiltração dos tecidos perifocais;
- Fratura da clavícula esquerda e de todos os arcos costais a mais de um nível com infiltração dos tecidos perifocais;
- Laceração do saco pericárdico com desvio para a cavidade pleural direita;
- Laceração das cavidades do coração a dois níveis;
- Laceração das artérias aorta e pulmonar;
- Laceração da traqueia e brônquios;
- Perfuração da pleura parietal posterior direita e esquerda
- Amputação pelo lobo médio do pulmão direito e rutura do hilo;
- Contusão do pulmão direito e petéquias intercisurais pulmonares, infiltração sanguínea do hilo pulmonar com laceração da base de hilo.
Ao nível do abdómen:
- Laceração a mais de um nível com exposição visceral das paredes do abdómen;
- Múltiplas lacerações a mais de um nível do fígado;
- Contusão com hemorragia hepática ao nível das vias biliares;
- Laceração do baço;
- Perda de substância do rim direito;
- Ausência do rim esquerdo;
- Esfacelo dos ureteres;
- Esfacelo dos órgãos genitais;
- Esfacelo da aorta abdominal;
- Fratura cominutiva dos ossos da bacia com infiltração dos tecidos adjacentes.
Ao nível da coluna vertebral e medula:
- Fratura do corpo do C2-C3 com luxação completa de D3 e D4, laceração completa das meninges e amputação completa da medula vertebral.
Ao nível dos membros:
- Fratura do ombro direito com laceração da pele;
- Fratura do ombro esquerdo com laceração da pele;
- Fraturas a mais de um nível do membro inferior direito com laceração da pele.

11. Os ferimentos descritos em 10 resultaram em lesões traumáticas raqui-medulares cervicais, torácicas, abdominais, da face e membros, as quais, por sua vez, vieram a provocar a morte de MM no dia 19.06.2015, pelas 21:06 horas, no local do acidente.

12. Em resultado da projeção para o exterior do veículo -FE- e consequente colisão com o solo, AA, sofreu os seguintes ferimentos corporais:

Ao nível da cabeça:
- Infiltração hemorrágica do couro cabeludo e da aponevrose epicraniana;
- Luxação do sulco interparietal dos ossos da cabeça ao nível da abóbada;
- Fratura dos ossos da base do crânio a mais de um nível;
- Hemorragia subaracnoídea da linha média do tronco cerebral.
Ao nível do tórax:
- Ausência de pele na região torácica posterior;
- Fratura dos arcos costais posteriores direitos a mais de um nível;
- Fratura do 5.º arco costal anterior esquerdo e do 5.º e 6.º arcos costais posteriores esquerdos com escalpe e infiltração dos tecidos perifocias;
- Deslocação do pericárdio para a cavidade pleural direita, com deslocação do coração para uma posição que não corresponde à posição anatómica;
- Laceração da artéria pulmonar esquerda;
- Contusão posterior da pleura parietal direita;
- Laceração anterior e posterior da pleura e cavidade pleural esquerda;
- Múltiplas sufusões hemorrágicas subpleurais dispersas pela superfície pulmonar direita.
Ao nível do abdómen:
- Amputação da região glútea e esfacelo da bacia, escalpe da região posterior lombar com ausência de rim esquerdo;
- Ausência da cavidade retroperitoneal;
- Múltiplas fraturas a mais de um nível do fígado;
- Baço fraturado e difluente;
- Amputação de metade do rim esquerdo preso na pele;
- Amputação dos órgãos genitais;
- Laceração e esfacelo da aorta abdominal e ilíacas;
- Amputação dos ossos da bacia com retalho de pele com 80cm.
Ao nível da coluna vertebral:
- Fratura do corpo vertebral de L1-L2, com luxação completa, amputação ao nível da L5, esfacelo de sacro e ilíaco;
- Laceração e esfacelo das meninges;
- Laceração e esfacelo da coluna dorso lombar com secção da medula.
Ao nível dos membros:
- Amputação de metade do braço direito;
- Amputação parcial da coxa direita e amputação ao nível da coxa esquerda.

13. Os ferimentos descritos em 12 resultaram em lesões traumáticas raqui-medulares abdominais, do tronco e membros, as quais, por sua vez, vieram a provocar a morte de AA no dia 19.06.2015, verificada às 00:00 horas, no local do acidente.

14. No veículo -FE- eram ainda transportados pelo arguido os passageiros DD, AS, CA, AT, LF, JO e MA.

15. DD seguia sentada na quarta carreira de bancos de trás, do lado direito, junto da janela do veículo FE- e, em consequência do acidente de viação descrito, veio a sofrer traumatismo crânio-encefálico, com escoriações múltiplas no couro cabeludo, região occipital direita, mãos, bilateral e antebraço direito, ombro direito com fratura da clavícula direita, esfacelo do cotovelo direito com secção completa do nervo cubital e parcial do tricípite e ferida no cotovelo direito com 30 cm de comprimento, lesões estas que lhe determinaram um período 604 dias de para a consolidação médico-legal: com afetação para o trabalho geral (270 dias) e com afetação para o trabalho profissional (604 dias).

16. As lesões descritas em 15 causaram em DD uma diminuição permanente da mobilidade de flexão/extensão do ombro, e diminuição acentuada da flexão dos 3.º, 4.º e 5.º dedos e ligeira dos 1.º e 2.º dedos, cicatriz de características operatórias da face posterior do cotovelo e terço superior da face posterior do antebraço, nacarada, arciforme de convexidade esquerda medindo 13 cm de comprimento e dores, que se traduzem em afetação grave da possibilidade de utilizar o membro superior direito.

17. LF seguia sentado no banco junto à porta da retaguarda do veículo -FE-, do lado esquerdo, e, em consequência do acidente de viação descrito, veio a sofrer traumatismo do joelho esquerdo e escoriações nas costas e na nádega esquerda e no maléolo externo do pé esquerdo, e dores, o que lhe determinou um período de 7 dias de doença, 4 dos quais com afetação para a capacidade de trabalho geral e 7 com afetação apenas para a capacidade de trabalho profissional.

18. CA seguia sentado no lugar n.º 10 do veículo -FE-, correspondente à terceira cadeira atrás do condutor, e, em consequência do acidente de viação descrito, veio a sofrer ferida traumática do cotovelo esquerdo e dores, o que lhe determinou um período de 22 dias de doença, todos sem afetação para a capacidade trabalho.

19. AS seguia sentada a meio do veículo -FE-, do lado direito junto à janela, e, como consequência do acidente de viação descrito, veio a sofrer traumatismo da anca direita com equimose de grandes dimensões e dores, o que lhe determinou um período de 15 dias de doença, todos sem afetação para a capacidade de trabalho geral ou profissional.

20. JO seguia sentada no lugar n.º 9 do veículo -FE- e, em consequência do acidente de viação descrito, veio a sofrer traumatismo crânio-encefálico com hematoma, e dor moderada na região parieto-occipital direita e cervicalgia e escoriação do joelho, tendo ainda resultado para aquela cicatriz linear com cerca de 2 cm na região lombar, o que lhe determinou um período de 7 dias de doença, 1 dos quais com afetação da capacidade de trabalho em geral e 3 com afetação apenas da capacidade de trabalho profissional.

21. MA seguia sentada no lugar n.º 33 do veículo -FE-, e, em consequência do acidente de viação descrito, veio a sofrer ferimento no membro superior direito, escoriações e feridas abrasivas no ombro direito, ferida incisa interparietal, dor a lateralização direita forçada do pescoço e traumatismo craniano, o que lhe determinou um período de 87 dias de doença, 12 dos quais com afetação para a capacidade de trabalho geral e profissional.

22. As lesões sofridas por MA descritas em 21, resultaram, ao nível do membro superior direito, em cicatriz nacarada, ligeiramente hipopigmentada, plana com 8 cm de diâmetro na face lateral do ombro, cicatrizes hipopigmentadas lineares em área com 11 por 12 cm de maiores dimensões na face lateral e posterior do terço superior médio do braço, de tamanhos diversos, sendo a maior com 3 cm de comprimento e a menor com 0,5 cm de comprimento.

23. AT seguia sentado a meio do veículo –FE-, e, como consequência do acidente de viação descrito, veio a sofrer escoriações do membro superior direito e dores.

24. A faixa de rodagem onde o veículo -FE- circulava era uma reta, constituída por duas vias de trânsito no sentido sul/norte e uma via de aceleração no mesmo sentido, com 8,30 metros de largura, separadas as vias normais de circulação e via de aceleração por linha longitudinal descontinua, e ladeadas por linha longitudinal contínua, marcas essas brancas e bem visíveis no pavimento que, por sua vez, se encontrava seco, limpo, em bom estado de conservação e manutenção.

25. A via em causa dispunha ainda de berma asfaltada, em bom estado de conservação e manutenção, no lado direito, atendo o sentido sul/norte, com 2,70 metros de largura.

26. No momento do acidente de viação, existia ainda luz natural e a visibilidade da via de circulação era boa.

27. No dia 19.06.2017, o arguido iniciou a sua jornada de trabalho às 07:17 horas, com a introdução do seu cartão de condutor do tacógrafo digital que equipava o veículo -FE-, comutando o mesmo para a posição de outros trabalhos durante 2 minutos, efetuado um período de condução de 3 minutos entre as 07:19 horas e as 17:22 horas, hora em que comutou o aparelho para repouso, por 16 minutos, até às 07:38 horas.

28. Pelas 07:38 horas, o arguido iniciou um período de condução de 19 minutos até às 07:57 horas, comutando o aparelho para a posição de repouso por um período de 33 minutos, até às 08:30 horas, hora em que comutou o aparelho para a posição de outros trabalhos durante 2 minutos, até às 08:32 horas.

29. Pelas 08:32 horas, o arguido iniciou um período de condução de 01:13 hora, até às 09:45 horas, hora em que comutou o aparelho para a posição de repouso por 19 minutos, até às 10:04 horas.

30. Pelas 10:04 horas, o arguido iniciou um período de condução de 01:26 hora, até às 11:30 horas, hora em que comutou o aparelho para a posição de outros trabalhos durante 6 minutos, até às 11:36 horas, reiniciando a condução por um período de 01:33 hora até às 13:09 horas, hora em que comutou o aparelho para a posição de repouso por 02:31 horas.

31. Pelas 15:40 horas, o arguido iniciou um período de condução de 01minuto, até às 15:41 horas, comutando o aparelho para a posição de descanso durante 16 minutos, até às 15:57 horas, iniciando novamente a condução, por um período de 5 minutos até às 16:02 horas, comutando o aparelho para a posição outros trabalhos, por um período de 11 minutos, até às 16:13 horas.

32. Pelas 16:13 horas, o arguido iniciou um período de condução por 01:30 horas até às 17:13 horas, comutando o aparelho para a posição de outros trabalhos, durante 10 minutos, até às 17:53 horas, hora em que reiniciou a condução por um período de 37 minutos até às 18:30 horas, hora em que ocorreu o acidente de viação.

33. No dia 17.06.2015, o arguido iniciara a sua jornada de trabalho pelas 07:54 horas, tendo terminado a mesma pela 01:18h do dia 18.06.2015.

34. No dia 18.06.2015, o arguido iniciara a sua jornada de trabalho pelas 09:06 horas, iniciando o período de condução ininterruptamente até às 13:42 horas daquele mesmo dia, num total de 04:36 horas.

35. Entre as jornadas de trabalho referidas em 33 e 34, o arguido repousou por um período de 07:48 horas, assim desrespeitando o período mínimo obrigatório de repouso diário de 9 horas.

36. Na jornada de trabalho aludida em 34, o arguido desrespeitou o período mínimo obrigatório de repouso de 45 minutos.

37. O arguido não prestou a necessária atenção à estrada e à condução que efetuava no momento do acidente, permitindo que o veículo -FE- saísse da sua faixa de rodagem nos termos e com as consequências supra descritas.

38. Ao conduzir veículo -FE- sem a atenção necessária para evitar que o veículo saísse da faixa de rodagem, o arguido agiu sem a precaução devida e de que era capaz, sendo que a conduta devida e exigível era-lhe acessível, possuindo capacidade para se determinar de acordo com esse conhecimento, o que não fez.

Mais se provou relativamente aos pedidos de indemnização civil:

39. Através da apólice n.º 9084---- a B. Transportes S.A. havia transferido para a demandada “A. – Companhia de Seguros S.A. a responsabilidade civil emergente da circulação do veículo automóvel de matrícula -FE-.

40. Após o embate foram transportadas para a Unidade Local de Saúde de Beja EPE as vítimas JA e AS, onde foram assistidas.

41. Da assistência hospitalar prestada a JA resultou um débito não liquidado no valor de € 51,00.

42. Da assistência hospitalar prestada a AS resultou um débito não liquidado no valor de € 51,00.

43. A demandante DD apercebeu-se da gravidade do acidente ao ver o estado das vítimas que se encontravam no local e atendendo às suas próprias lesões.

44. Foi socorrida por outra das vítimas e esteve no local durante mais de duas horas.

45. Atendendo à gravidade das lesões da demandante, a mesma foi transportada de urgência para o Hospital de Faro, onde deu entrada pelas 21h17 com traumatismo crânio-encefálico, com múltiplas escoriações do couro cabeludo, feridas abrasivas dos membros superiores, fratura da clavícula direita e esfacelo do cotovelo direito do antebraço direito com diminuição da sensibilidade e mobilidade do 4º e 5º dedos.

46. A demandante veio depois a ser transferida, no dia 20/06/2015, para o Centro Hospitalar de Lisboa Norte, E.P.E., - Hospital de Santa Maria, ao cuidado da Cirurgia Plástica onde foi submetida a neurorrafia cubital direita, encerramento sob drenagem e imobilização com tala gessada.

47. A 22/06/2015 foi transferida para o Hospital da área de residência, nomeadamente, o Hospital de Vila Franca de Xira, onde foi observada em Ortopedia.

48. A demandante nasceu a 09 de Julho de 1958, pelo que à data do acidente tinha 56 anos.

49. Em 08 de Fevereiro de 2017 a Demandante foi submetida a exame de avaliação de dano corporal pela Demandada, tendo os serviços clínicos da Demandada concluído que do acidente resultaram sequelas de “Rigidez do ombro direito, cotovelo direito doloroso com mobilidades completas e dismorfias cicatriciais no membro superior direito”, conforme documento junto a fls. 1385, que se dá por integralmente reproduzido.

50. Nessa mesma avaliação aqueles serviços clínicos atribuíram à demandante:

- Um dano biológico de 10 pontos;
- Um Quantum doloris de 4 pontos em 7;
- Um dano estético de 2 pontos em 7.

51. Considerou ainda a mesma avaliação médica como data da alta o dia 13 de Fevereiro de 2017.

52. A 02 de Agosto de 2017 a Demandada, a suas expensas, submeteu-se a consulta de Avaliação do dano corporal em direito civil pelo Médico Especialista em Medicina-Legal, Dr. GC – conforme documento de fls. 1386 e seguintes, que se dá por integralmente reproduzido.

53. Tendo aquela avaliação concluído que a demandante Dina padece das seguintes sequelas permanentes:

- Stress pós-traumático;
- Rigidez do ombro direito;
- Cotovelo direito doloroso;
- Dismorfias cicatriciais dispersas;

54. A referida avaliação formulou as conclusões que se encontram descritas a fls. 1388 tendo atribuído à demandante:

- Um Quantum doloris de 5 pontos em 7;
- Défice Funcional Permanente da Integridade Físico-Psíquica: 19 pontos + dano futuro:
- repercussão Permanente na Atividade Profissional: as sequelas que apresenta não são compatíveis com a profissão de lojista;
- dano estético de 4 pontos em 7.
- repercussão Permanente nas atividades desportivas e de lazer: 5/7;
- Ajudas Permanentes: necessidade de ajuda de 3ª pessoa (empregada doméstica) para as lides mais exigentes, fixável em duas horas diárias, todos os dias da semana, de forma vitalícia; consulta anual de Medicina Física e Reabilitação e tratamentos periódicos de fisioterapia de acordo com prescrição da referida consulta.

55. A demandante DC teve 4 dias de internamento hospitalar.

56. Acresce que, após o acidente, e dadas as sequelas que resultaram do mesmo, designadamente no cotovelo e ombro direitos a demandante DC deixou de poder realizar as tarefas simples do dia-a-dia, como sejam:

- As tarefas domésticas básicas que impliquem movimentos com o braço direito, como estender a roupa, varrer, passar ou lavar, para o que necessita do auxílio de terceira pessoa;

- Ir ao supermercado fazer as compras para a casa pois não tem força e sensibilidade na mão e braço direitos, o que faz com que não consiga pegar em sacos.

- Não consegue agarrar os talheres para tomar as suas refeições, carecendo por isso do auxílio de 3ª pessoa para ingerir alguns alimentos.

- Tem dificuldade em tomar banho sozinha.

57. Não consegue andar de autocarro porque tem fobia, não consegue conduzir em condições normais nem pegar nos netos ao colo.

58. Devido às circunstâncias do acidente, a sinistrada temeu pela própria vida, tanto assim que o acidente acabou por vitimar outros passageiros, alguns dos quais, cuja agonia a sinistrada assistiu e uma das quais acabou por falecer ao seu lado, facto que provoca insónias à sinistrada.

59. À data do acidente a Demandante exercia a atividade profissional de lojista (funcionária de ótica).

60. A demandante DD não fazia uso do cinto de segurança.

61. AA tinha 49 anos de idade.

62. Era uma pessoa alegre e divertida, estimada pelos seus familiares, amigos e colegas, era saudável e gostava de viver.

63. Era excelente profissional, ocupando, à data da morte, o cargo de Senior Contract Manager na empresa DER Touristik Koln, GmbH, sendo a funcionária com o nível hierárquico mais alto da empresa em Portugal, representando-a no nosso país.

64. Era muito reputada no seu meio profissional e pessoal.

65. Estava no momento auge da sua carreira e da sua vida pessoal.

66. A Assistente é mãe da vítima AA.

67. A vítima AA era a única filha do sexo feminino da Assistente.

68. A Assistente tem 76 anos e tem uma saúde frágil, nomeadamente tendo dificuldades de locomoção.

69. A notícia do falecimento da filha foi devastadora para a Assistente.

70. Provocando-lhe um enorme desgosto pela perda da sua filha, um profundo sofrimento e angústia.

71. Tal é agravado tendo em conta o contexto em que sucedeu, as lesões gravíssimas que a vítima sofreu, o estado em que ficou o corpo da vítima, de que teve conhecimento provocando-lhe um enorme sofrimento, angústia e dor.

72. Que foi principalmente difícil de suportar nos dias que se seguiram ao falecimento, mas que perdura até hoje.

73. A esta angústia, sofrimento e desgosto acresce o facto de, devido à necessidade de perícias médico-legais e à necessidade de transporte dos restos mortais para a Alemanha, país natal da vítima e da Assistente, apenas foi possível realizar um funeral à vítima no dia 17 de Julho de 2015.

74. A Assistente ainda sofre sempre que pensa na filha e na sua morte.

75. A vítima AA antecipou a real possibilidade da sua morte durante o acidente, nomeadamente durante o período de despiste, de capotamento do veículo para o lado onde a vítima estava sentada e no da sua projeção para o exterior do veículo.

76. JT é filho de JM frequenta o 11º ano de escolaridade na Escola Secundária Francisco de Holanda em Guimarães, tendo bom aproveitamento escolar e pretendendo prosseguir estudos universitários.

77. Após a morte do pai, foi-lhe diagnosticado Diabetes do tipo 1, tendo que se injetar várias vezes ao dia com insulina para o resto da vida.

78. O menor para se alimentar, calçar, despesas de medicação, médicas, livros e material escolar e transportes carece de €500,00 mensais.

79. Na sequência das negociações entre a demandada e os herdeiros do falecido JM, foi pela Demandada paga a quantia de €: 112.295,05 (cento e doze mil duzentos e noventa e cinco euros e cinco cêntimos) referente a:

- danos morais da própria vítima: € 2.201,86;

- danos morais dos herdeiros: viúva € 22.08,64; filho PT € 16.513,98 e filho JT € 16.513,98;

- Direito Vida: € 55.046,59.

80. Com o recebimento da aludida quantia, MM, em nome próprio e em representação do filho menor JT deu total quitação, considerando-se integralmente ressarcidos de todos os danos patrimoniais e não patrimoniais, sofridos em consequência do sinistro”.

81. Tendo ficado acordado que os danos patrimoniais seriam ressarcidos ao abrigo da apólice de Acidentes de Trabalho, cujo reembolso é posteriormente processado pela Demandada diretamente à congénere, tendo já sido liquidada à Companhia de Seguros A. a quantia de €: 82.964,22 (oitenta e dois mil novecentos e sessenta e quatro euros e vinte e dois cêntimos).

82. O Instituto de Segurança Social, I.P., através do Centro nacional de Pensões (ISS/CNP), relativamente ao beneficiário JM pagou pensões de sobrevivência a MT no valor total de € 4.875,23.

83. O Instituto de Segurança Social, I.P., através do Centro Nacional de Pensões (ISS/CNP), relativamente à beneficiária MM pagou despesas de funeral a DC no valor de € 1.257,66.

84. Pela demandada foi pago a DC a quantia de € € 4.475,52 a título de reembolso integral das despesas do funeral de MM.

Mais se provou relativamente ao arguido:
85. O arguido é motorista de pesados há mais de 20 anos, tendo tido sempre um comportamento exímio sem qualquer registo de acidentes ou queixas, ou seja, um funcionário por excelência.

86. Sempre exerceu a sua profissão com zelo e urbanidade, sendo respeitador dos horários a cumprir, tendo tido sempre consciência da responsabilidade do seu cargo.

87. Na entrada do veículo existe uma funcionária da RENEX, empresa que fretou este serviço, que tem como função indicar os respetivos lugares aos passageiros e adverti-los para a obrigatoriedade do uso do cinto de segurança.

88. Como habitualmente, todos estes procedimentos foram cumpridos, não obstante no interior do veículo existir diversa sinalização da obrigatoriedade do uso de cinto de segurança.

89. Assim, todos os passageiros que seguiam sem cinto encontravam-se devidamente informados desse dever de proteção e utilização.

90. O arguido tinha boa visibilidade, sentia-se em perfeitas condições, circulava a 97 KM/hora.

91. O arguido usava o cinto de segurança.

92. O arguido, na tentativa de estabilizar e equilibrar o veículo após ter saído da faixa de rodagem, guinou para a esquerda.

93. O arguido não apresentava álcool no sangue.

94. O Teste de Álcool e de Substâncias Psicotrópicas ou Estupefacientes, analisado pelo Hospital de Beja deu negativo, pese embora tenha sido detetada a presença de benzodiazepinas.

95. O arguido atualmente encontra-se de baixa médica pois continua a ter graves dificuldades em dormir, vivendo atormentado com o acidente, não conseguindo livrar-se das memórias desse dia.

96. Após o acidente o arguido continuou a exercer a sua profissão de motorista e que a sua entidade empregadora não requereu a sua suspensão.

97. Realizado relatório social pelos serviços da DGRSP, do mesmo consta:

I – Dados relevantes do processo de socialização

JM é filho único de um casal em que os pais, ambos metalúrgicos, eram emigrantes na Alemanha, país onde esteve dos sete aos nove anos. Nos períodos em que ficou em Portugal viveu com a madrinha, tendo, aquando dos seus dezoito passado a viver com a mãe, a qual, nesta altura, regressou definitivamente para o seu país de origem. A relação com os pais, pela ausência, surge intermitente, tendo a madrinha se constituído como a figura educativa privilegiada, a qual lhe transmitiu valores consonantes com a adequação social.

Foi num registo económico marcado pela modéstia, mas em que as suas necessidades foram asseguradas que se processou o crescimento do arguido.

Tem como escolaridade o nono ano de escolaridade, tendo com dezoito anos começado a trabalhar na área da serralharia civil, atividade que manteve até aos vinte e um anos. De seguida, passou a trabalhar como motorista, primeiro em várias empresas e desde os trinta e cinco anos que exerce funções nos transportes públicos “B”.

No campo afetivo relacional, no ano de 1997, contraiu matrimónio com o seu atual cônjuge, união da qual nasceram dois filhos.

II – Condições sociais e pessoais
JM reside com a sua família constituída, cônjuge e filhos, numa habitação cujo montante em divida já foi liquidado e que desde há sensivelmente um ano foi colocada em nome dos filhos. A dinâmica relacional surge descrita como coesa e assente na afetividade, ainda que desde a data dos factos se assista a alguma destabilização emocional em todos os elementos.

À data das circunstâncias que deram origem ao presente processo, o arguido trabalhava como motorista na empresa de transportes barraqueiro, tendo no dia em causa efetuado o expresso Lisboa-Lagos e vice-versa. De seguida, esteve de baixa médica durante quatro meses e retornado a atividade até janeiro de 2015, altura em que foi sujeito a uma intervenção cirúrgica.

Pese embora, tenha voltado novamente a trabalhar, desde há cerca de seis meses, como consequência das circunstâncias que deram origem ao presente processo, está de baixa psiquiátrica, sendo acompanhado no Hospital Beatriz Ângelo nas especialidades de psicologia e psiquiatria, onde lhe é prescrita medicação. O arguido aludiu a um estado depressivo, expresso num estado de astenia, tendência para o isolamento, baixa expressão emocional e associadas dificuldades, que até então não detinha, em assumir as responsabilidades profissionais.

Conforme recibo que apresentou o arguido aufere 641€ e o cônjuge, auxiliar de ação educativa, aufere o ordenado mínimo. A situação económica foi caraterizada como contida, mas suficiente para fazer face às despesas que detém.

Dos dados que dispomos, tudo indica que JM sempre manteve um modo de vida de acordo com a normatividade, tendo o mesmo decorrido em torno da sua atividade profissional e do domínio familiar.

III – Impacto da situação jurídico-penal
O presente processo acarretou consequências negativas no arguido, sendo que o mesmo destaca que o quadro depressivo em que se encontra emergiu, em muito, dos sentimentos de sofrimento que sente em relação ao facto de terem falecido três pessoas, mostrando sentimentos empáticos perante os mesmos e família. Ainda assim, não faz referência a sentimentos de culpabilidade, porquanto projeta os acontecimentos associados à situação jurídico-penal em fatores externos a si, como sejam, no facto da viatura não estar em devidas condições mecânicas.

A nível familiar a situação processual do arguido é sentida com angústia pela mulher e filhos devido à preocupação que sentem com a mesma e com as consequências que daí possam advir.

IV – Conclusão
A relação do arguido com as figuras parentais, em virtude dos mesmos serem emigrantes, surge marcada pelo afastamento, condição, contudo, minorada pela integração no agregado familiar de uma madrinha em que lhe foram transmitidos valores consonantes com a adequação. Deste contexto, sobreveio a ligação do arguido, ao longo da sua trajetória de vida, a motivações prosociais, sendo de relevar o enquadramento profissional e familiar de que sempre beneficiou.

Inerente às circunstâncias que deram origem ao presente processo, JM manifesta um estado de ansiedade e sintomatologia depressiva, motivo pelo qual se encontra de baixa médica e a ser acompanhado nas áreas da psicologia e da psiquiatria, mostrando-se preocupado com a decisão que vier a recair sobre si.

98. O arguido não tem antecedentes criminais.

Factos não provados:
- O incumprimento dos períodos mínimos de repouso por parte do arguido levou a que o mesmo não prestasse, por falta de condições físicas, atenção à condução;

- O desrespeito pelos períodos mínimos obrigatórios de repouso determinou que o arguido agisse sem a precaução devida.

- Najum foi assistido na pela Unidade Local de Saúde em virtude do acidente em discussão dos autos.

- Os 4 dias de internamento de DD causaram-lhe um prejuízo patrimonial de € 123,12.

- A demandante DC vê-se em situação de grande dificuldade financeira e dependente de terceiros, tendo-se socorrido de familiares e amigos para fazer face às suas despesas essenciais, nomeadamente com alimentação, água, luz, gás, telecomunicações, etc...

- O contrato de trabalho da demandante DC acabou por cessar em virtude da inadaptação superveniente ao mesmo.

- A demandante iria ser colocada pela sua empregadora na direção de uma das dez lojas do grupo onde auferiria cerca de € 900,00 mensais.

- Subsistindo o seu agregado familiar apenas com a parca reforma do seu marido, no valor de cerca de 700 Euros.

- Circunstância que causou grande desgaste emocional, com sentimentos de angústia, ansiedade e tristeza acentuada.

- A demandante irá necessitar de tratamentos periódicos de fisioterapia.

- A vítima AA veio a falecer no local pelas 00.00 horas.

- A mãe do menor JT não trabalha, padecendo de epilepsia.

- Vive apenas das economias que o casal tinha amealhado antes de falecer e do montante de €504,75, uma vez que recebe uma pensão da Segurança Social do montante de €140,23 e €364,52 da pensão da requerida A.

- A conduta dos demandantes/lesados contribuiu, necessária e determinantemente, para os danos ocorridos, porquanto os danos jamais se teriam verificado se fizessem uso do cinto de segurança

- O arguido conduzia de forma tranquila, sem percalços e de forma estável e atenta.

- Após a passagem da área de serviço de Almodôvar, ao km 192,884, quando se registou o acidente e o veículo desviou a sua marcha para a direita, não se deveu a qualquer incúria ou falta de cuidado por parte do arguido.

- O arguido conduzia normalmente e, quando se apercebeu, o despiste do veículo estava iminente, porque inusitadamente o sentiu virar para a direita.

- Ao tentar estabilizar o veículo, desacelerou e tentou travar a viatura que obedeceu, pois não se encontrava em excesso de velocidade.

- Quando o arguido se apercebe que o veículo estava prestes a tombar para a direita, tentou guiná-lo e virá-lo à esquerda, mas este não obedeceu porque apresentava uma deficiência.

- A projeção só ocorreu porque os passageiros não usavam o cinto de segurança.

- O arguido não repousou nos períodos alegados nos autos, não por sua vontade, mas porque a entidade empregadora o permitiu e assim o pretendeu.

Não deixaram de se provar quaisquer outros factos com interesse para a boa decisão da causa. De salientar ainda que não foram tidas em consideração alegações conclusivas ou de direito, que serão ponderadas em sede própria.

Motivação:
A audiência de julgamento decorreu com o registo da prova nela produzida. Tal circunstância, que também nesta fase se deve revestir de utilidade, dispensa o relatório das declarações e depoimento nela prestados.

O decidido funda-se na análise crítica da prova produzida em audiência de julgamento, livremente apreciada e valorada na sua globalidade de acordo com as regras da experiência comum.

Assim e em concreto, o Tribunal considerou:
Prova Documental:
- Exame ao hábito externo de fls. 20 a 27, 38 a 40, 47 a 52
- Fotografias de fls. 29 a 36;
- Detalhes decadactiloscópico de fls. 37, 46;
- Fotografias de fls. 42 a 45;
- Participação de acidente de fls. 186 a 188;
- Fichas Codu de fls. 189 a 190;
- Folha de suporte de fls. 195 a 207
- Auto de conhecimento e comparência no local de fls. 170 a 171;
- Exame direto ao local de fls. 172 a 181;
- Auto de exame ao veículo de fls. 182 a 185;
- Registo individual do condutor de fls. 340;
- Documentos de fls. 488 a 514;
- Registo de atividade de fls. 536 a 549, 554 a 562;
- Mapa do interior do autocarro de fls. 563;
- Episódio de urgência de fls. 581 a 584, 588 a 589, 593 a 596, 630 a 634, 668 a 670, 687, 692 a 698, 702 a 704
- Informação clínica de fls. 708 a 709, 713 a 716
- Exame a folhas de registo de fls. 718 a 721;
- Relatório fotográfico de fls. 769 a 794;
- Croquis do acidente de fls. 795 a 796;
- Evolução do acidente de fls. 797 a 798;
- Relatório final de fls. 799 a 817;
- Certidão de óbito de fls. 383;
- Informação clínica de fls. 974 a 985, 1012 a 1013, 1017 a 1018, 1023 a 1024, 1026, 1044 a 1048

Prova Pericial:
Relatórios de autópsia de fls. 98 a 100, 106 a 108 e 111 a 113;
Exame toxicológico de fls. 103, 259;
Exame pericial de fls. 890 a 892, 911 a 913, 961 a 962, 966 a 968, 971 a 973, 989 a 992, 1055 a 1057, 1061 a 1062, 1111 a 1114, 1128 a 1130

Quanto à forma com o ocorreu o acidente, além dos factos já resultantes dos supracitados documentos, designadamente quanto às dimensões da via e local do acidente, o Tribunal valorou as declarações do arguido, na parte em que as mesmas não foram contrariadas pela restante prova produzida e pelas regras de experiencia comum.

O arguido descreveu a forma como iniciou e se desenvolveu a viagem até ao momento em que se deu o acidente, as paragens que efetuou e os procedimentos adotados. Confirmou os períodos de descanso e de repouso e negou perentoriamente sentir-se cansado ou com sono e ainda que circulasse desatento contribuindo assim para a ocorrência do evento. Mais referiu que durante o percurso já tinha sentido o veículo desviar-se para a direita mas atribuiu tal circunstância ao vento que habitualmente se faz sentir no local. Continuou a condução e ao chegar ao local onde tudo ocorreu a viatura começou a “fugir” para a berma, tendo o rodado do lado direito ficado na terra. Instintivamente guinou para a esquerda de forma a trazer a viatura de novo para esquerda mas já não conseguiu tendo a mesma acabado por capotar. E nesta fase começou a insinuar suspeitas de que a causa do acidente não foi o seu comportamento mas sim uma avaria no veículo, lançando suspeitas de que teria existido um complot entre as autoridades e a sua entidade patronal, que teria levado que a viatura fosse desde logo entregue àquela, evitando assim ser submetida às necessárias inspeções que iriam detetar tal avaria!

Ora, após produzida toda a prova, nenhum elemento foi trazido aos autos que, de alguma forma, permitisse corroborar as suspeitas do arguido que, a nosso ver, não foram mais do que uma vã tentativa de ocultar o que na realidade aconteceu, ou seja, o acidente ficou-se a dever à sua incúria e falta de atenção.

Conforme resulta dos autos, foi efetuado um exame ao veículo logo após o acidente, não tendo sido apontada qualquer deficiência – cfr. fls. 182 a 185. Acresce que resulta dos documentos juntos aos autos que o mesmo tinha sido sujeito à inspeção obrigatória, nenhuma anomalia tendo sido detetada. Finalmente, não pode deixar de se afirmar que não basta uma qualquer insinuação, sem qualquer indício de prova nesse sentido, para que se possa concluir que a viatura passou a circular na berma porque ocorreu uma avaria.

Além disso, resulta das declarações das testemunhas AS, AT, MP e DD que já anteriormente o veículo tinha pisado as guias sonoras. Uma vez que tal já tinha acontecido anteriormente, e afirmando o arguido que sentia que a viatura se desviava, então seguramente teria interrompido a marcha e não prosseguiria naquelas situações.

Da conjugação de tais declarações com as regras da experiência comum, resulta, claramente, que o arguido, por seguir desatento, permitiu que a viatura saísse da faixa de rodagem.

A desatenção do arguido foi tal que não se limitou a permitir que o veículo pisasse a berma. Como resulta evidente das fotografias de fls. 774 e seguintes, secundadas pelos relatos dos militares da GNR, o arguido permitiu que o veículo pesado passasse a circular por completo na berma, em plano inclinado para a direita (escoamento de águas pluviais) e, ao guinar para a esquerda, fê-lo capotar.

Os militares da GNR que compareceram no local, MS e FP, confirmaram que o acidente ocorreu porque a viatura saiu da faixa de rodagem atingindo a vala para escoamento das águas pluviais. Quando o condutor guinou para a esquerda para o tentar trazer para a faixa de rodagem, causou o seu capotamento. Estas testemunhas descreveram ainda o cenário que era visível no local, a violência do embate, o elevado número de vítimas e a gravidade das lesões. A reportagem fotográfica junta aos autos é esclarecedora acerca da violência do embate e das suas consequências catastróficas.

As restantes testemunhas que circulavam como passageiros LF e JO pouco mais souberam acrescentar, encontrando-se o primeiro a ouvir música e a segunda a dormir, aquando do acidente.

Importa ainda referir que a testemunha JS se revelou absolutamente parcial, apresentando uma teoria da conspiração por parte da entidade patronal do arguido, afirmando possuir provas de que o autocarro em questão tinha uma avaria e acabando por referir que nunca o tinha conduzido, sendo que as suas provas mais não eram do que notícias de jornal.

Importa agora referir o motivo pelo qual o Tribunal não considerou provado que a causa da desatenção do arguido foi o desrespeito pelos horários de repouso. Em primeiro lugar, porque o arguido sempre o negou. Por outro lado, estamos na presença de infrações ao tempo regulamentar reduzidas, que seguramente não teriam influência no estado do arguido, além do mais porque não ocorreram logo na noite antes do acidente mas em datas anteriores.

Quanto ao facto de os passageiros não usarem cinto de segurança, o Tribunal considerou como não provado que tal circunstância tivesse contribuído para o resultado. Com efeito, atenta a violência do acidente, a localização dos passageiros foi seguramente a causa da maior ou menor gravidade das lesões por eles sofridas. E tanto assim é que, embora a quase totalidade não usasse cinto de segurança, três acabaram por morrer e os restantes tiveram lesões de grau distinto. Aliás, a testemunha AS foi perentória em afirmar que, se fizesse uso do cinto, seguramente teria morrido, porque não teria tido a possibilidade de ficar de pé, como ficou após o capotamento.

No mais, e no que concerne aos pedidos de indemnização civil, o Tribunal considerou os documentos e certidões juntas com os articulados respetivos.

O Tribunal teve em consideração o depoimento da testemunha Juergen (irmão da vítima AA e filho da assistente EE), o qual, de uma forma isenta e sincera, descreveu o desgosto sentido pela sua mãe e a pessoa que era a sua irmã. As testemunhas RO, VB e AM descreveram a vítima como uma pessoa alegre, trabalhadora e responsável. O seu depoimento nenhuma reserva suscitou a este Tribunal. Quanto à hora da morte, dos documentos resulta que o óbito foi verificado às 00h00. Contudo, atenta a extensão e gravidade das lesões sofridas não se mostra possível que a mesma tenha sobrevivido ao embate.

No que concerne ao pedido de indemnização deduzido por DD, o Tribunal teve desde logo em consideração as suas declarações, que descreveu a forma como se sentiu durante e após o acidente.

As testemunhas CL, seu marido, PL, sua filha e JB, seu genro, descreveram o estado em que a mesma se encontra, as limitações de que padece, as dores e as insónias. Referiram ainda que a mesma se encontrava numa situação de baixa médica à data do acidente, sendo que o contrato cessou por mútuo acordo (razão pela qual o Tribunal considerou como não provado que tal contrato tivesse cessado em virtude da inadaptação decorrente do acidente). Quanto às lesões e incapacidade de que padece a demandante, o Tribunal teve em consideração não só o que resulta da perícia médico-legal respeitante à parte criminal como as avaliações do dano que lhe foram efetuadas por dois médicos distintos, os quais prestaram declarações em sede de audiência de julgamento (Dr. JO e Dr. GC), sustentando o teor dos relatórios por si elaborados. E embora os mesmos não sejam coincidentes, dúvidas não restaram de que efetivamente a demandante ficou a padecer de uma incapacidade que a limita nas suas atividades do dia-a-dia, implicando o auxílio de terceira pessoa. A testemunha ML e Aurora confirmaram a necessidade de ajuda por terceiros. Já quanto à necessidade de tratamentos médicos futuros, não foi feita prova suficiente a esse respeito, resultando do relatório junto pela própria que se trata de uma mera possibilidade. Igualmente não logrou esta demandante demonstrar qual seria o seu emprego futuro e o valor da remuneração a auferir uma vez que não foi feita prova suficiente neste sentido.

O Tribunal teve ainda em consideração o depoimento da testemunha PT, irmão do assistente JT, que descreveu de uma forma isenta e desinteressada os atuais rendimentos do agregado e necessidades do seu irmão.

A testemunha DC veio confirmar ter recebido uma quantia por parte da demandada a título de despesas de funeral (o que foi confirmado pela testemunha EC funcionário da demandante) e ter igualmente recebido subsídio de funeral pago pela Segurança Social.

As testemunhas indicadas pelo arguido, MO, JA, FP, MN, JM, AB, António S. e George não revelaram nenhum conhecimento direto acerca do acidente em causa nos presentes autos, apenas descrevendo o arguido como um bom trabalhador. As condições pessoais do arguido resultaram provadas em face do teor do relatório social. Foi igualmente valorado o C.R.C. junto aos autos”.

3 - Apreciação do mérito dos recursos.

A - RECURSO DO ARGUIDO.

a) Do vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada.

Alega o arguido que o acórdão revidendo padece do vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada (vício prevenido no artigo 410º, nº 2, al. a), do C. P. Penal), porquanto certos factos dados como provados e certos factos tidos como não provados no acórdão sub judice estão indevidamente considerados como tal (o que resulta do texto do acórdão em análise), face à prova produzida em audiência de discussão e julgamento.

Dito de outro modo (mais simples): entende o arguido que, com base na prova produzida, foi indevidamente condenado no acórdão recorrido.

Cumpre decidir.
Dispõe o artigo 410º, nº 2, do C. P. Penal: “mesmo nos casos em que a lei restrinja a cognição do tribunal de recurso a matéria de direito, o recurso pode ter como fundamentos, desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum:
a) A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada;
b) A contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão;
c) Erro notório na apreciação da prova”.

Como decorre expressamente da letra da lei, qualquer um dos elencados vícios tem de dimanar da complexidade global da própria decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, sem recurso, portanto, a quaisquer elementos que à dita decisão sejam externos, designadamente declarações ou depoimentos exarados no processo durante o inquérito ou a instrução, ou até mesmo o julgamento, salientando-se também que as regras da experiência comum não são senão as máximas da experiência que todo o homem de formação média conhece.

A insuficiência a que se reporta a citada al. a) é um vício que ocorre quando a matéria de facto é insuficiente para a decisão de direito, o que se verifica porque o tribunal deixou de apurar a matéria de facto que lhe cabia apurar dentro do objecto do processo, tal como este está circunscrito pela acusação e pela defesa, sem prejuízo do mais que a prova produzida em audiência justifique. Tal vício consiste na formulação incorrecta de um juízo: a conclusão extravasa as premissas; a matéria de facto provada é insuficiente para fundamentar a solução de direito encontrada.

Percorrendo a motivação do recurso do arguido, facilmente se vislumbra que, em substância, o arguido questiona, não o texto da decisão recorrida, mas sim o modo como o tribunal procedeu à apreciação da prova que foi produzida em audiência de discussão e julgamento.

Ou seja, e em todo este segmento, as alegações do arguido apenas traduzem uma desconformidade entre a decisão de facto do tribunal a quo e aquela que no caso teria sido a do próprio arguido.

Alega o arguido, neste aspeto, que a prova produzida não autoriza as conclusões vertidas no acórdão, isto é, que a prova não foi adequada para fundamentar a decisão de facto tomada pelo tribunal a quo.

Ora, assim sendo, em grande confusão, salvo o devido respeito, incorre o arguido, porquanto tais alegações não configuram, manifestamente, o vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada.
Com efeito, o arguido não invoca a falta de factos necessários para a decisão, que o tribunal devesse averiguar, desta forma confundindo (estranhamente, diga-se) uma situação de apreciação da prova com o vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada.

Como bem esclarecem Simas Santos e Leal Henriques (in “Recursos em Processo Penal”, 7ª ed., 2008, Editora Rei dos Livros, págs. 72 e 73), ocorre o vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada quando existe uma “lacuna no apuramento da matéria de facto indispensável para a decisão de direito, isto é, quando se chega à conclusão de que com os factos dados como provados não era possível atingir-se a decisão de direito a que se chegou, havendo assim um hiato nessa matéria que é preciso preencher”.

Verifica-se tal vício quando, no dizer dos mesmos autores (ob. e local citados), “a matéria de facto provada é insuficiente para fundamentar a solução de direito e quando o tribunal deixou de investigar toda a matéria de facto com interesse para a decisão final”.

Nada disto se verifica na situação exposta pelo arguido, como acima já referimos, pelo que não ocorre o vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada (o arguido, repete-se, limita-se a invocar um dos vícios previstos no artigo 410º, nº 2, do C. P. Penal, tão-só por discordar da valoração feita pelo tribunal a quo relativamente à prova produzida em audiência de discussão e julgamento).

Em face do exposto, o acórdão recorrido não enferma do apontado vício (insuficiência para a decisão da matéria de facto provada), pois o conspecto fáctico vertido em tal acórdão é suficiente para a decisão de direito.

Por conseguinte, improcede, manifestamente, esta primeira vertente do recurso do arguido.

b) Da impugnação (alargada) da matéria de facto.
O arguido impugna a matéria de facto dada como provada no acórdão revidendo sob os nºs 4, 5, 37, 38 e 92 dos factos provados, ou seja, e em muito breve síntese, entende que o veículo por si conduzido não desviou a respetiva trajetória para a direita (saindo da faixa de rodagem e ficando a circular na vala de escoamento das águas pluviais) por desatenção, descuido ou imperícia suas.

Entende o arguido que não há nenhuma prova direta, clara e uniforme, sobre tais factos, baseando-se o tribunal a quo em meras probabilidades, suposições e presunções.

Pelo contrário, na opinião do arguido deve dar-se por assente (em resumo):

- Que o veículo desviou a trajetória por avaria mecânica do mesmo;
- Que o arguido foi acometido de “adormecimento” súbito, devido a doença de que padece (apneia de sono), e sendo certo que, na altura dos factos, o arguido desconhecia que sofria de tal patologia;
- Que as projeções de passageiros para fora do autocarro em causa e, bem assim, as mortes e lesões corporais verificadas derivaram do facto de tais passageiros não usarem (na altura do acidente) os respetivos cintos de segurança.

Cumpre apreciar e decidir.
A fundamentar a sua pretensão, o arguido cita, no essencial, passagens das suas declarações e dos depoimentos de algumas testemunhas ouvidas na audiência de discussão e julgamento, declarações e depoimentos esses que, conjugados com a aplicação do princípio in dubio pro reo, imporiam que o tribunal a quo decidisse como por si preconizado.

Porém, cabe a este tribunal ad quem proceder não só à ponderação das passagens indicadas na motivação do recurso, como também à consideração de todas as outras que sejam relevantes para a descoberta da verdade e a boa decisão da causa, conforme disposto no artigo 412º, nº 6, do C. P. Penal.

Do mesmo modo, não está afastada a possibilidade de nos socorrermos do princípio da livre convicção na apreciação/valoração das provas.

Perante o que vem alegado no recurso do arguido, e após sopesar toda a prova produzida em sede de audiência de discussão e julgamento, concluímos que a nossa convicção acerca dos factos sob julgamento não diverge daquela que o tribunal de primeira instância alcançou e exprimiu no acórdão recorrido.

Desde logo, e ao contrário do alegado na motivação do recurso, as próprias declarações do arguido, prestadas na audiência de discussão e julgamento, afastam claramente, a nosso ver, a hipótese de avaria mecânica do autocarro, bem como a possibilidade do invocado “adormecimento” súbito (por apneia de sono).

Com efeito, ainda que de modo não totalmente explícito (por ser incriminador), o arguido admitiu que guinou o autocarro, na tentativa de trazê-lo de volta para a autoestrada, estando sempre consciente da situação (nunca tendo, pois, “adormecido”) e dando a entender, sem mais, que nenhuma avaria mecânica.

Senão vejamos as seguintes declarações do arguido: “(…) quando venho a passar na área de serviço de Almodôvar, o carro começa-me a fugir para a direita, não vai à vala de escoamento, se não nunca mais o tirava de lá. Fica com os rodados entre o alcatrão, já na faixa, aquela faixa de segurança entre a vala de escoamento de água, a faixa de emergência, fica com o rodado do lado esquerdo aí e com o outro rodado na terra e eu sempre a fazer esforço no volante para trazer o carro para a estrada, (…) para a faixa de rodagem outra vez. O carro não obedeceu. Ao fim de duzentos e tal metros, o carro guina-me de repente, derivado à força que eu estava a fazer, a exercer sobre o volante. (…) O carro não me obedece. (…) Ou um problema de direção ou um problema. (…) Ainda vai um grande bocado, e depois é que vira de repente”.

Daqui resulta, em nosso entender, que o autocarro não teve nenhum problema na “direção”, porquanto obedeceu ao ato de o arguido o “guinar”, que não existiu qualquer outro problema mecânico (o arguido nem sequer travou e falharam os travões, nem rebentou um pneu, etc.), e, ainda, que o arguido não teve qualquer “adormecimento”, mas, isso sim, uma desatenção que fez com que o autocarro saísse da faixa de rodagem e passasse a circular na vala de escoamento das águas pluviais, o que desencadeou o subsequente “despiste” de tal veículo.

Esta nossa conclusão é, também, confirmada pelos depoimentos das testemunhas AT, LF e DD (passageiros do autocarro), as quais, no essencial, confirmaram que o arguido “deixou” ir o autocarro à “vala” (de escoamento das águas), guinando-o, de seguida, por mais de uma vez, para o tentar “endireitar”, o que não conseguiu e o que fez com que o veículo tombasse em plena autoestrada.

Com o devido respeito, a “tese” da avaria mecânica, tão desenvolvida na motivação do recurso, é ainda infirmada pelas próprias declarações do arguido, prestadas na audiência de discussão e julgamento, quando o mesmo reconhece que o autocarro lhe “fugia” devido ao vento, que os travões estavam bons, que os pneus eram novos, que não se apercebeu de qualquer anomalia e que não sabe explicar como o autocarro “fugiu” para a direita.

Aliás, e sempre com o devido respeito, as “teses” explicativas do acidente explanadas na motivação do recurso, além de não terem o mínimo suporte probatório, excluem-se mutuamente, sendo contraditórias entre si.

Senão vejamos: o acidente foi devido a avaria mecânica do autocarro ou ao “adormecimento” súbito (e não culposo) do seu condutor?

Na verdade, nada disso faz qualquer sentido, nem milita a favor de qualquer dessa duas “teses” o mínimo elemento de prova.

Mais: a testemunha FP (militar da GNR, chamado ao local do acidente após o mesmo), confirmou que o arguido, ali presente, logo lhe disse que não tinha havido qualquer “problema mecânico”, não sabendo o arguido explicar, pura e simplesmente, a razão pela qual o veículo lhe tinha “fugido” (pois, além do mais, a faixa de rodagem era larga, o piso era bom e o tempo estava também bom).

Em suma: o arguido “deixou ir” o autocarro à vala de escoamento das águas pluviais por distração e descuido, e, após, tentou daí retirá-lo guinando para a esquerda, o que levou ao despiste/tombamento de tal autocarro.

Numa outra vertente, invoca o arguido que as projeções de passageiros para fora do autocarro em causa e, bem assim, as mortes e lesões corporais verificadas derivaram do facto de tais passageiros não usarem (na altura do acidente) os respetivos cintos de segurança.

Também aqui, em nosso entender, não assiste razão ao arguido.

Desde logo, e no caso concreto, nada nos indica que o não uso do cinto de segurança haja sido causal do acidente (ainda que apenas no tocante às mortes verificadas e às lesões sofridas pelos passageiros do autocarro).

Depois, o arguido não pode deixar de ser responsável, em primeiro grau, pela produção do evento danoso em análise, porquanto foi ele que provocou o “despiste” do autocarro.

Por outras palavras: as mortes e os ferimentos causados são imputáveis a conduta do próprio arguido, pois que a não utilização dos cintos de segurança, por banda de (apenas) alguns passageiros, só por si e sem mais, nunca poderia ter causado as mortes e/ou as lesões físicas em questão.

E, assim, após ponderação e convicção autónomas, e autonomamente formuladas nesta instância recursória, subscreve-se inteiramente a seguinte passagem do acórdão recorrido: “quanto ao facto de os passageiros não usarem cinto de segurança, o tribunal considerou como não provado que tal circunstância tivesse contribuído para o resultado. Com efeito, atenta a violência do acidente, a localização dos passageiros foi seguramente a causa da maior ou menor gravidade das lesões por eles sofridas. E tanto assim é que, embora a quase totalidade não usasse cinto de segurança, três acabaram por morrer e os restantes tiveram lesões de grau distinto. Aliás, a testemunha AS foi perentória em afirmar que, se fizesse uso do cinto, seguramente teria morrido, porque não teria tido a possibilidade de ficar de pé, como ficou após o capotamento”.

Posto tudo o que precede, o acervo factual tem de haver-se por definitivamente fixado nos precisos termos em que o tribunal de primeira instância o definiu, improcedendo, em todo este segmento, o recurso do arguido.

c) Da violação do princípio in dubio pro reo.
Invoca o arguido que o tribunal a quo, ao proferir a respetiva decisão fáctica, violou o princípio in dubio pro reo, porquanto, sem prova suficiente, acolheu a versão, relativa ao modo de produção do acidente de viação em causa, que mais desfavorece o arguido.

Há que decidir.
O princípio in dubio pro reo (um dos princípios básicos do processo penal) significa, em breve síntese, que, para conduzir à condenação, a prova deve ser plena, sendo imprescindível que o tribunal tenha formado convicção acerca da verdade dos factos para além de toda a dúvida razoável, isto é, a formação da convicção é um processo que “só se completará quando o tribunal, por uma via racionalizável ao menos a posteriori, tenha logrado afastar qualquer dúvida para a qual pudessem ser dadas razões, por pouco verosímil ou provável que ela se apresentasse” (Prof. Figueiredo Dias, in “Direito Processual Penal”, 1981, Vol. I, pág. 205).

Quando o tribunal não forma convicção, a dúvida determina inelutavelmente a absolvição, de harmonia com o princípio in dubio pro reo, o qual consubstancia princípio de direito probatório decorrente daqueloutro princípio, mais amplo, da presunção da inocência (constitucionalmente consagrado no artigo 32º da C.R.P.).

Com efeito, dispõe a Constituição da República Portuguesa (no nº 2 do seu artigo 32º) que “todo o arguido se presume inocente até ao trânsito em julgado da sentença de condenação, devendo ser julgado no mais curto prazo compatível com as garantias de defesa”, preceito que se identifica genericamente com as formulações do princípio da presunção de inocência constantes, além do mais, do artigo 11º, nº 1, da Declaração Universal dos Direitos Humanos, e do artigo 6º, nº 2, da Convenção Europeia para a Proteção dos Direitos humanos e das Liberdades Fundamentais.

Assim, “o princípio da presunção de inocência surge articulado com o tradicional princípio in dubio pro reo. Além de ser uma garantia subjetiva, o princípio é também uma imposição dirigida ao juiz no sentido de este se pronunciar de forma favorável ao réu, quando não tiver a certeza sobre os factos decisivos para a solução da causa” (Gomes Canotilho e Vital Moreira, in “Constituição da República Portuguesa Anotada”, 3ª ed., pág. 203).

Este princípio tem aplicação na apreciação da prova, impondo que, em caso de dúvida insuperável e razoável sobre a valoração da prova, se decida sempre a matéria de facto no sentido que mais favorecer o arguido.

É evidente que as dúvidas do julgador quanto à prova produzida têm de ser racionais, por forma a ilidirem a certeza contrária (cfr. Ac. do S.T.J. de 01-07-2004, Processo nº 4P2791, in www.dgsi.pt), jamais podendo assentar na mera existência de versões contraditórias entre si ou na mera negação dos factos por parte dos arguidos.

Retomando o caso em apreço, e apesar das considerações do arguido explanadas na motivação do seu recurso, o tribunal a quo não ficou com qualquer dúvida quanto à prática pelo arguido/recorrente da totalidade dos factos que foram dados por provados no acórdão recorrido, bem como também este tribunal de recurso, perante a prova produzida em audiência, com nenhuma dúvida fica relativamente à prática dos factos em causa por parte do arguido (conforme acima exposto).

Dito de outro modo: a fundamentação da decisão de facto constante do acórdão revidendo não evidencia a existência de qualquer dúvida que tenha sido solucionada em desfavor do arguido, e, por outro lado, face à prova produzida em audiência de discussão e julgamento, resulta, também para nós, a certeza da prática pelo arguido/recorrente dos factos delitivos pelos quais vem condenado em primeira instância.

Assim sendo, não existindo dúvidas no espírito do julgador, afastada está, obviamente, a possibilidade de aplicação do princípio in dubio pro reo.

Em consequência, o acórdão recorrido não merece, também neste aspeto, a censura que lhe foi dirigida pelo recorrente (violação do princípio in dubio pro reo), improcedendo o recurso nesta matéria.

d) Da violação do princípio da livre apreciação da prova.
Alega o arguido que, ao proferir a decisão fáctica nos termos em que o fez (e já acima por nós analisados), o tribunal de primeira instância violou o princípio da livre apreciação da prova.

Cabe decidir.
Dispõe o artigo 127º do C. P. Penal que “salvo quando a lei dispuser diferentemente, a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente”.

A propósito desse princípio da livre apreciação da prova, refere o Prof. Figueiredo Dias (ob. citada, Vol. I, pág. 202) que “o princípio não pode de modo algum querer apontar para uma apreciação imotivável e incontrolável - e portanto arbitrária - da prova produzida”.

E acrescenta o mesmo autor (ob. citada, págs. 202 e 203) que a liberdade de apreciação da prova tem limites inultrapassáveis: “a liberdade de apreciação da prova é, no fundo, uma liberdade de acordo com um dever – o dever de perseguir a chamada «verdade material» – , de tal sorte que a apreciação há de ser, em concreto, recondutível a critérios objetivos e, portanto, em geral suscetível de motivação e de controlo”.

Como bem diz Maia Gonçalves (in "Código de Processo Penal Anotado", 9ª ed., pág. 322), “a livre apreciação da prova não se confunde de modo algum com apreciação arbitrária da prova nem com a mera impressão gerada no espírito do julgador pelos diversos meios de prova; a prova livre tem como pressupostos valorativos a obediência a critérios da experiência comum e da lógica do homem médio suposto pela ordem jurídica”.

Por outras palavras: a livre apreciação da prova tem de se traduzir numa valoração racional e crítica dos diversos elementos de prova, feita de acordo com as regras comuns da lógica, da razão, das máximas da experiência e dos conhecimentos científicos, de tal modo que seja possível objetivar tal valoração (requisito necessário para uma efetiva motivação da decisão).

Ora, no caso destes autos, o tribunal a quo, para decidir da matéria de facto, ponderou todas as provas de que dispunha, e avaliou-as à luz das regras da experiência comum, de acordo com juízos de normalidade, com a lógica das coisas e com a experiência da vida.

Como bem se salienta no acórdão do S.T.J. de 08-11-1995 (in BMJ, nº 451, pág. 86), “um juízo de acertamento da matéria de facto pertinente para a decisão releva de um conjunto de meios de prova, que pode inclusivamente ser indiciária, contanto que os indícios sejam graves, precisos e concordantes”. E acrescenta o mesmo acórdão que “as regras da experiência a que alude o artigo 127º têm um importante papel na convicção do Tribunal”.

O arguido considera ter existido errada apreciação da prova, uma vez que o tribunal recorrido não valorou certos aspetos nos termos em que o devia ter feito.

Simplesmente, com tal invocação o arguido limita-se a trazer aos autos a perceção que ele próprio teve da prova.

Da leitura do acórdão revidendo verifica-se ter sido seguido um processo lógico e racional na apreciação da prova, não surgindo a decisão como uma conclusão ilógica, arbitrária, ou violadora das regras da experiência comum na apreciação das provas.

Assim, não foi violado o princípio da livre apreciação da prova, pelo que, também neste aspeto, o recurso do arguido é de improceder.

e) Da valoração de prova não produzida na audiência.
Alega o arguido que o tribunal recorrido se baseou, para fixar os factos, em meras suposições e deduções, e não, como devia, em provas produzidas na audiência de discussão e julgamento.

Entende o arguido, por outras palavras, que tem de ser absolvido, por não ter sido produzida qualquer prova direta, clara e uniforme, sobre o desenrolar do acidente de viação em causa (“não há registos de vídeo, nem testemunhas presenciais que tenham estado fora do veículo automóvel de passageiros interveniente, que tivessem visto todo o filme do acidente” - cfr. conclusão III extraída da motivação do recurso -).

Cumpre decidir.
É certo, como alega o recorrente, que não existem registos de vídeo ou testemunhas presenciais (situadas “fora” do autocarro acidentado).

Porém, na audiência de discussão e julgamento foi produzida “prova direta” quanto ao modo de produção do acidente (conforme acima já por nós analisado), nomeadamente as declarações do arguido e os depoimentos de diversas testemunhas, algumas delas presenciais dos factos (porquanto eram passageiros do veículo).

Além disso, e ao contrário do que parece entender-se na motivação do recurso, para a condenação não é necessária a existência de “prova direta”.

Com efeito, o julgador pode (e deve) recorrer à prova por presunção judicial (ilações que o julgador tira de um facto conhecido para firmar um facto desconhecido - artigo 349º do Código Civil).

Como bem escreve o Prof. Cavaleiro Ferreira (in “Curso de Processo Penal”, 1986, Vol. II, págs. 289 e 290), “(...) a verdade final, a convicção, terá que se obter (neste caso) através de conclusões baseadas em raciocínios, e não diretamente verificadas; a conclusão funda-se no juízo de relacionação normal entre o indício e o facto probando (…). Por outro lado, um indício revela com tanto mais segurança o facto probando, quanto menos consinta a ilação de factos diferentes".

O juízo sobre a valoração da prova tem diferentes níveis:
Num primeiro aspeto, trata-se da credibilidade que merecem ao tribunal os meios de prova. Tal depende substancialmente da imediação e aqui intervêm elementos não racionalmente explicáveis (por exemplo, a credibilidade que se concede a um certo meio de prova).

Num segundo nível, referente à valoração da prova, intervêm as deduções e induções que o julgador realiza a partir dos factos probatórios. Agora, as inferências não dependem substancialmente da imediação, mas hão de basear-se nas regras da lógica, princípios da experiência e conhecimentos científicos, tudo se podendo englobar na expressão “regras da experiência”.

Neste segundo nível, é legítimo o recurso às referidas presunções, uma vez que são admissíveis em processo penal as provas que não forem proibidas por lei (artigo 125º do C. P. Penal), e o artigo 349º do Código Civil prescreve que as presunções são as ilações que a lei ou o julgador tira de um facto conhecido para firmar um facto desconhecido, sendo admitidas as presunções judiciais nos casos e termos em que é admitida a prova testemunhal (artigo 351º deste mesmo diploma legal).

Depois, as presunções simples ou naturais (as aqui em causa) são meros meios de convicção, pois que se encontram na base de qualquer juízo. O sistema probatório alicerça-se em grande parte no raciocínio indutivo de um facto desconhecido para um facto conhecido; toda a prova indireta se faz valer através desta espécie de presunções.

As presunções simples ou naturais são, assim, meios lógicos de apreciação das provas, são meios de convicção.

As presunções naturais são, afinal, o produto das regras de experiência. O juiz, valendo-se de um certo facto e das regras da experiência, conclui que esse facto denuncia a existência de outro facto.

No lapidar dizer do Prof. Vaz Serra (in “Direito Probatório Material”, B.M.J. nº 112, pág. 190), “ao procurar formar a sua convicção acerca dos factos relevantes para a decisão, pode o juiz utilizar a experiência da vida, da qual resulta que um facto é a consequência típica de outro; procede então mediante uma presunção ou regra da experiência (...) ou de uma prova de primeira aparência".

A presunção permite, deste modo, que perante os factos (ou um facto preciso) conhecidos, se adquira ou se admita a realidade de um facto não demonstrado, na convicção, determinada pelas regras da experiência, de que normal e tipicamente (id quod plerumque accidit) certos factos são a consequência de outros.

No valor da credibilidade do “id quod”, e na força da conexão causal entre dois acontecimentos, está o fundamento racional da presunção, e na medida desse valor está o rigor da presunção. A consequência tem de ser credível; se o facto base ou pressuposto não é seguro, ou a relação entre o indício e o facto adquirido é demasiado longínqua, existe um vício de raciocínio que inutiliza a presunção (cf. Prof. Vaz Serra, ibidem).

Deste modo, na passagem do facto conhecido para a aquisição (ou para a prova) do facto desconhecido, têm de intervir, pois, juízos de avaliação através de procedimentos lógicos e intelectuais, que permitam fundadamente afirmar, segundo as regras da experiência, que determinado facto, não anteriormente conhecido nem diretamente provado, é a natural consequência, ou resulta com toda a probabilidade próxima da certeza, ou para além de toda a dúvida razoável, de um facto conhecido.

A presunção intervém, assim, quando as máximas da experiência, da vida e das coisas, baseadas também nos conhecimentos retirados da observação empírica dos factos, permitem afirmar que certo facto é a consequência típica de outro ou outros. A ilação derivada de uma presunção natural não pode, porém, formular-se sem exigências de relativa segurança, especialmente em matéria de prova em processo penal, em que é necessária a comprovação da existência dos factos para além de toda a dúvida razoável.

Há de, pois, existir e ser revelado um percurso intelectual, lógico, sem soluções de continuidade, e sem uma relação demasiado longínqua entre o facto conhecido e o facto adquirido. A existência de espaços vazios no percurso lógico de congruência segundo as regras de experiência determina um corte na continuidade do raciocínio, e retira o juízo do domínio da presunção, remetendo-o para o campo já da mera possibilidade física mais ou menos arbitrária ou dominada pelas impressões.

No caso sub judice, todos os raciocínios formulados pelo tribunal a quo, ao fundamentar a decisão de facto, obedecem aos pressupostos acabados de expor relativos à validade e legitimidade do uso de presunções.

Também este tribunal de recurso, como, aliás, qualquer cidadão de média formação e de são entendimento, subscreve, com total segurança, as conclusões que foram retiradas na decisão recorrida quanto à desatenção e ao descuido do arguido na condução que ia empreendendo.

Com efeito, e a nosso ver, as “explicações” adiantadas pelo arguido (quer nas declarações prestadas na audiência de discussão e julgamento, quer nas alegações constantes da motivação do eu recurso) - relativas ao modo de produção do acidente - não possuem qualquer verosimilhança, constituindo uma inócua tentativa de esconder aquilo que na realidade aconteceu, ou seja, que o acidente se ficou a dever à desatenção, descuido e incúria do arguido.

As “explicações” trazidas as autos pelo arguido, e repete-se, visam apenas, salvo o devido respeito, criar a dúvida no espírito do julgador por forma a conseguir uma absolvição contra todas as evidências.

Perante o que vem de dizer-se, é de improceder o recurso do arguido também neste segmento.

f) Do enquadramento jurídico-penal dos factos.
Questiona o arguido o número de crimes cometidos.

O tribunal recorrido condenou-o pela prática de tantos crimes quantos os resultados produzidos.

Na motivação do recurso, o arguido pugna pela existência de um só crime (invocando, a favor dessa posição, o Ac. do S.T.J. de 13-07-2011, relatado pelo Conselheiro Henriques Gaspar).

Cumpre apreciar e decidir.
A propósito da questão agora em apreciação, e desenvolvidamente, pronunciou-se o Ac. deste T.R.E. de 18-11-2008 (relator António Latas, disponível in www.dgsi.pt), proferindo decisão que subscrevemos.

Em tal acórdão se explicita, citando inúmeros acórdãos em cada um dos sentidos, que a questão em apreço tem três posições jurisprudenciais diferentes:

1ª - A primeira, considera que existe sempre concurso ideal ou aparente nos crimes negligentes, por entender que a conduta censurada - violação de dever de cuidado - corresponde a um só ato (omissivo) de vontade, em relação ao qual as consequências plúrimas não são previstas e não se deviam prever. Então, o juízo de censura não pode ultrapassar a unidade, relevando a pluralidade de vítimas apenas em sede de medida da pena, aumentando o grau de ilicitude do facto.

2ª - A segunda, considera que o agente comete tantos crimes negligentes quantos os resultados que previu e, injustificadamente, confiou que não se produziriam. Nessa posição, a censura penal é alargada à verificação de um elo de ligação do resultado ao agente, enquanto elemento da culpa, através da efetiva previsão das consequências da violação do dever de cuidado. Mas, inerentemente, considera-se que o concurso efetivo apenas tem lugar quando estamos perante negligência consciente, existindo sempre concurso aparente nas situações de negligência inconsciente.

3ª - A terceira, considera que, mesmo nos casos de negligência inconsciente, encontra-se nos tipos penais negligentes de homicídio e de ofensa à integridade física um desvalor do resultado, pelo que sempre cumpre determinar se a conduta do agente tinha ou não a virtualidade de produzir os eventos efetivamente verificados e, se tiver, então a conduta é passível de tantos juízos de censura quantas as lesões jurídicas que o agente devia ter previsto que se produziriam e, efetivamente, se produziram como consequência direta e adequada da sua falta de cuidado.

É esta última a posição que sufragamos, em conformidade, repete-se, com os fundamentos aduzidos no aludido acórdão deste T.R.E. de 18-11-2008.

Com efeito, pese embora o conteúdo pessoal do crime negligente assentar fundamentalmente no desvalor de ação, a esse desvalor acresce um desvalor, hoc sensu, de “resultado”, traduzido, por regra, na produção, causação e previsibilidade do evento típico e, excecionalmente, na própria realização típica integral. Ora, esse “resultado” não tem uma função somente limitadora, mas, também, constitutiva do desvalor unitário do crime negligente, sendo a partir do desvalor do “resultado” que se compreende a finalidade da norma, como é a partir dele que se determina a medida do cuidado devido (cuidado que foi omitido pelo agente).

Dito de outro modo: o conteúdo material da culpa presente no crime negligente de “resultado” não se esgota na violação do dever objetivo de cuidado, e, por isso, a pluralidade de sentidos sociais de ilicitude impõe o concurso efetivo nos tipos legais de crime que protegem bens de carácter eminentemente pessoal, como é o caso dos tipos legais que protegem a vida ou a integridade física, sempre que haja pluralidade das vítimas.

Na situação posta nestes autos, e face ao predito, são individualizáveis tantos sentidos de ilícito quantas as vítimas da lesão do dever objetivo de cuidado (dever tipicamente corporizado em cada um dos resultados ou eventos típicos), e, em consequência, o arguido praticou tantos crimes quantas as diferentes vítimas, em concurso efetivo.

Pelo exposto, o recurso do arguido não merece, também aqui, provimento, sendo de manter a sua condenação pelos diferentes crimes (e não apenas por um crime), em conformidade com o decidido no acórdão recorrido.

g) Da escolha da pena (principal).
Alega o arguido que, face à ausência de antecedentes criminais, ponderando a sua boa integração social e familiar, e olhando às circunstâncias dos factos delitivos em apreço, deve ser condenado em pena de multa e não em pena de prisão (ainda que suspensa na sua execução).

Há que decidir.
No seguimento da orientação inserta no artigo 70º do Código Penal, o critério legal a seguir é simplesmente este: o tribunal deve preferir à pena privativa de liberdade uma pena alternativa (no caso, pena de multa) sempre que, verificados os respetivos pressupostos de aplicação, a pena alternativa se revele adequada e suficiente à realização das finalidades da punição.

Ora, afigura-se-nos que, não obstante o passado imaculado do arguido (sem condenações criminais anteriores e com boa integração social, familiar e laboral), a pena de multa se revela, no caso vertente, inadequada e ineficaz face às necessidades de reprovação e prevenção, gerais e concretas, mostrando-se incapaz de realizar de forma suficiente as finalidades da punição.

Com efeito, tendo em atenção os alarmantes índices de criminalidade verificada em Portugal no tocante a ilícitos do mesmo tipo dos aqui em causa (crimes relacionados com a circulação rodoviária), sendo os mesmos de frequente ocorrência e com nefastas consequências, é de concluir que se mostram elevadas as necessidades de prevenção geral, positiva e negativa.

Além de que, no caso destes autos, estamos perante diversos crimes com irreparáveis e graves consequências, geradores de justificado e relevante alarme social.

Relativamente às necessidades de prevenção especial que neste caso se verificam, as mesmas não são, ao contrário do que parece à primeira vista, irrisórias ou irrelevantes, tendo em conta a ausência de sensibilidade e de autocensura demonstradas pelo arguido quanto à censurabilidade penal da sua conduta (o arguido não confessou os factos, procurando, para os mesmos, diversas versões, tentando, sempre, alijar a respetiva culpa).

Crê-se, por tudo isso, que só a imposição de uma pena privativa de liberdade (ainda que suspensa na respetiva execução) se mostra capaz de lhe fazer sentir o desvalor da sua conduta.

Pelos fundamentos expostos, estamos de acordo com a opção feita pelo tribunal a quo (quanto à pena principal), a qual nenhuma censura nos merece.

Improcede, assim, a pretensão do arguido visando a aplicação de penas de multa, não merecendo provimento, nesta vertente, o recurso interposto pelo mesmo.

h) Da aplicação da pena acessória de proibição de conduzir.
Alega o arguido que não existe qualquer fundamento legal pra ser condenado (como o foi no acórdão recorrido) numa pena acessória de proibição de conduzir.

Cabe decidir.
Sob a epígrafe “proibição de conduzir veículos com motor”, estabelece o artigo 69º, nº 1, do Código Penal:

1 - É condenado na proibição de conduzir veículos com motor por um período fixado entre três meses e três anos quem for punido:

a) Por crimes de homicídio ou de ofensa à integridade física cometidos no exercício da condução de veículo motorizado com violação das regras de trânsito rodoviário e por crimes previstos nos artigos 291º e 292º;

b) Por crime cometido com utilização de veículo e cuja execução tiver sido por este facilitada de forma relevante; ou

c) Por crime de desobediência cometido mediante recusa de submissão às provas legalmente estabelecidas para deteção de condução de veículo sob efeito de álcool, estupefacientes, substâncias psicotrópicas ou produtos com efeito análogo”.

Decorre deste preceito legal, inequivocamente, que quem for condenado pela prática de crimes de homicídio ou de ofensa à integridade física cometidos no exercício de condução com violação das regras de trânsito rodoviário, como sucede in casu, é também condenado, para além da pena principal, na pena acessória de proibição de conduzir.

Por outras palavras: operada a condenação pela prática de crimes de homicídio e/ou de ofensa à integridade física por negligência, com uso de veículo motorizado e em violação das regras de condução, é obrigatória a aplicação da pena acessória de proibição de conduzir, conforme disposto no artigo 69º, nº 1, al. a), do Código Penal.

Assim sendo, e com o devido respeito pelo alegado na motivação do recurso, não assiste qualquer razão ao arguido em todo este segmento recursivo (quando alega que não pode ser condenado na pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor).

Por conseguinte, nenhuma censura nos merece, neste aspeto, o decidido no acórdão revidendo, sendo o recurso do arguido, nesta parte, manifestamente de improceder.

i) Da determinação da medida concreta da pena acessória de proibição de conduzir.

Alega o arguido, em breve resumo, que é motorista profissional, utilizando os veículos automóveis como instrumento de trabalho (pelo que a pena de proibição de conduzir lhe causará inúmeros prejuízos, podendo até colocá-lo numa situação de absoluta carência económica - a ele e ao seu agregado familiar -), que não possui antecedentes criminais, que possui boa integração social e profissional, e que nada justifica a aplicação de um pena acessória de proibição de conduzir fixada em um ano.

Em conformidade, entende o arguido que a medida concreta da pena acessória deve ser reduzida para o seu limite abstrato mínimo (3 meses).

Cumpre decidir.
Preceitua o artigo 40º do Código Penal que “a aplicação de penas e de medidas de segurança visa a proteção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade” (nº 1), sendo que “em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa” (nº 2).

O artigo 71º do mesmo diploma estipula, por outro lado, que “a determinação da medida da pena, dentro dos limites definidos na lei, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção” (nº 1), atendendo-se a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, deponham a favor ou contra ele (nº 2 do mesmo dispositivo).

Dito de uma outra forma, a função primordial de uma pena, sem embargo dos aspetos decorrentes de uma prevenção especial positiva, consiste na prevenção dos comportamentos danosos incidentes sobre bens jurídicos penalmente protegidos.

O seu limite máximo fixar-se-á, em homenagem à salvaguarda da dignidade humana do condenado, em função da medida da culpa revelada, que assim o delimitará, por maiores que sejam as exigências de carácter preventivo que social e normativamente se imponham.

O seu limite mínimo é dado pelo quantum da pena que em concreto ainda realize eficazmente essa proteção dos bens jurídicos.

Dentro destes dois limites, situar-se-á o espaço possível para resposta às necessidades da reintegração social do agente.

Como refere Claus Roxin (in “Derecho Penal - Parte General”, Tomo I, tradução da 2ª edição alemã e notas por Diego-Manuel Luzón Penã, Miguel Díaz Y García Conlledo e Javier de Vicente Remesal, Civitas, págs. 99 e 100), em asserção perfeitamente consonante com os princípios basilares do direito penal português, “a pena não pode ultrapassar na sua duração a medida da culpabilidade mesmo que interesses de tratamento, de segurança ou de intimidação revelem como desenlace uma detenção mais prolongada”.

Mais refere o mesmo autor (ob. citada, pág. 101) que “a pena não pode ultrapassar a medida da culpabilidade, mas pode não alcançá-la sempre que isso seja permitido pelo fim preventivo. Nele radica uma diferença decisiva frente à teoria da retribuição, que também limita a pena pela medida da culpabilidade, mas que reclama em todo o caso que a dita pena àquela corresponda, com independência de toda a necessidade preventiva”.

Por fim, escreve ainda Claus Roxin (ob. citada, pág. 103), “a pena serve os fins de prevenção especial e geral. Limita-se na sua magnitude pela medida da culpabilidade, mas pode fixar-se abaixo deste limite em tanto quanto o achem necessário as exigências preventivas especiais e a ele não se oponham as exigências mínimas preventivas gerais”.

No tocante à pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor, a mesma tem como suporte a prática de crime, in casu, o cometimento de diversos crimes de homicídio e de ofensas à integridade física negligentes, e, como verdadeira pena que é, submete-se às regras gerais de determinação das penas, ressalvando-se a finalidade a atingir, que se revela mais restrita, porquanto a pena em causa visa primordialmente prevenir a perigosidade do agente, ainda que se reconheçam também necessidades de prevenção geral positiva ou de integração, através da tutela das expectativas comunitárias na manutenção (e reforço) da validade das normas violadas pela conduta do agente.

No caso em apreciação, há que considerar:

- O grau de ilicitude dos factos, que se mostra elevado, atenta a intensa violação dos deveres de cuidado a que o arguido estava adstrito (note-se, além do mais, que o arguido era, e é, motorista profissional, e, na altura do acidente em apreço, transportava 19 pessoas no interior do autocarro por si conduzido).

- As necessidades de prevenção geral, que se revelam também muito elevadas (conforme já acima explicitámos - aquando do tratamento da questão relativa à escolha da pena principal -);

- A condição, quer pessoal, quer profissional, quer económica, do arguido;

- A conduta anterior do arguido (passado sem condenações).

Da análise conjugada de todos os descritos elementos, afigura-se-nos que a pena acessória em causa está criteriosamente fixada pelo tribunal a quo (proibição de conduzir pelo período de um ano), não merecendo, deste modo e nesta vertente, a decisão recorrida qualquer censura.

Face a tudo quanto ficou dito, é totalmente de improceder o recurso interposto pelo arguido.

B - RECURSO DA DEMANDADA.

a) Da impugnação alargada da matéria de facto.
Alega a demandada, em muito breve resumo, que o tribunal a quo procedeu a um errado julgamento da matéria de facto, ao considerar como não provado que a conduta dos demandantes contribuiu, necessária e determinantemente, para os danos ocorridos (porquanto tais danos jamais se teriam verificado se os demandantes fizessem uso do cinto de segurança) e, ainda, ao considerar como não provado que a projeção só ocorreu porque os passageiros não usavam o cinto de segurança.

Cumpre decidir.
Em primeiro lugar, compulsados os autos, verifica-se que os factos ora em discussão foram trazidos aos autos pela demandada, que os alegou na respetiva contestação aos pedidos de indemnização civil.

Ora, assim sendo, e apesar de não se aplicarem em processo penal as regras do processo civil relativas à distribuição do ónus da prova, caberia, por princípio, à demandada carrear para os presentes autos provas concretas em suporte dos invocados factos.

Ou seja, a demandada teria de fazer prova (ou, no mínimo, contribuir para a elaboração da mesma pelo tribunal) de que, caso utilizassem o cinto de segurança no momento do acidente, os demandantes não teriam sofrido os danos que sofreram.

Para esse efeito, e como se nos afigura óbvio, não basta à demandada a simples alegação de que existem “estudos” que o comprovam, ou de que existem campanhas de prevenção rodoviária que o demonstram, ou que tal facto é do senso comum (em asserções segundo as quais o cinto de segurança salva vidas, etc.).

Exigia-se à demandada, isso sim, como forma válida para provar tais factos (assim impedindo o ressarcimento dos danos sofridos pelos lesados - ou, pelo menos, reduzindo o montante desse ressarcimento -), uma prova cabal, concretizada e fora de qualquer dúvida, a partir da qual fosse possível concluir, neste caso concreto, e relativamente a determinadas vítimas em concreto, que a conduta destas contribuiu, necessária e determinantemente, para os danos ocorridos, ou que os danos jamais se teriam verificado se fizessem uso do cinto de segurança, ou, ainda, que tais danos seriam menores caso utilizassem o referido cinto de segurança.

Os mesmos raciocínios se aplicam ao facto alegado pela demandada (e dado como não provado no acórdão revidendo - e bem -) de que a projeção só ocorreu porque os passageiros não usavam o cinto de segurança.

Em suma: a prova de todos esses factos não foi realizada, pelo que bem andou o tribunal de primeira instância ao considerá-los como não provados.

Em segundo lugar, e conforme já acima decidido (quando apreciámos o recurso do arguido), o facto que provocou a projeção de alguns passageiros e os danos (morte e lesões físicas) causados em diversos passageiros do autocarro (e não apenas naqueles que foram projetados para fora do veículo) foi a atuação descuidada, desatenta e negligente do arguido.

Esse, a nosso ver, foi o único facto causal do acidente e adequado à produção dos danos decorrentes do mesmo, sem que existisse qualquer outro facto que, de alguma forma, grande ou pequena, concorresse, perturbasse ou interrompesse tal causalidade.

Aliás, verificando-se que, num autocarro onde seguiam dezanove passageiros (apenas dois deles utilizando cinto de segurança), questiona-se, legitimamente, por que motivo apenas três passageiros foram projetados para fora de tal veículo.

É que, se a causa da projeção dos passageiros fosse o não uso do cinto de segurança, muitos outros passageiros deveriam ter sido projetados para o exterior do autocarro e, consequentemente, muitos outros passageiros teriam tido consequências mais nefastas para a sua vida ou integridade física.

Note-se até, como bem se assinala no acórdão revidendo, que a testemunha AS (passageira do autocarro, com 24 anos de idade e com a profissão de terapeuta ocupacional) afirmou, na audiência de discussão e julgamento, que, se fizesse uso do cinto de segurança, talvez não tivesse sobrevivido, porquanto o seu instinto de sobrevivência a fez colocar-se de pé quando o autocarro ia a tombar.

Em terceiro lugar, tratando-se de facto negativo, a prova de que os danos só ocorreram por não serem utilizados os cintos de segurança não seria passível de ser feita pelos demandantes (ou, no mínimo, seria intoleravelmente difícil), constituindo uma autêntica “prova diabólica”.

Assim, e em nosso entender, obrigar os lesados a provarem que o facto de não usarem o cinto de segurança em nada contribuiu para as lesões (ou para o agravamento das mesmas) atentaria contra as mais elementares regras processuais e violaria os princípios norteadores do Direito.

Por último, a circunstância de os passageiros do autocarro (ou, pelo menos, alguns deles) não usarem o cinto de segurança também decorre, em bom rigor, de conduta omissiva e descuidada do próprio arguido.

Na verdade, estamos perante uma atividade (profissional) de transporte público de passageiros, o que implica a existência da obrigação de fiscalização do cumprimento das normas de segurança por parte dos utentes de tal transporte, nomeadamente da norma que impõe o uso dos cintos de segurança (do mesmo modo que existem diversos outros normativos legais cuja aplicação incumbe a quem procede ao transporte dos passageiros, com sejam, por exemplo, a proibição de fumar, a proibição de viajar em pé, etc.).

Ora, no caso dos autos, não existindo um “assistente” (um outro funcionário ou um outro “responsável” da empresa transportadora) a bordo do autocarro em causa, ao arguido caberia proceder à fiscalização do cumprimento das regras, nomeadamente “obrigando” os passageiros ao cumprimento das mesmas, podendo até, caso tal não acontecesse, parar o autocarro e não prosseguir a marcha até que as normas fossem cumpridas (aliás, e como é consabido, o arguido poderia até, no limite, chamar as autoridades policiais para conseguir tal desiderato).

Estas nossas considerações são tão mais evidentes quando é certo que o arguido era motorista profissional, com larga experiência, procedendo ao transporte público de passageiros, o que, como nos parece óbvio, acarretava para o arguido redobrados cuidados e acrescidas responsabilidades.

A esta luz, podemos concluir, sem exagero, que o comportamento omissivo do arguido na fiscalização do uso, pelos passageiros, do cinto de segurança, implicou, também ele, a produção do resultado morte e lesões corporais in casu verificado.

Ou, por outras palavras, o risco potencial decorrente do não uso do cinto de segurança não foi criado apenas pelos passageiros, mas também, e talvez em maior escala, pelo próprio arguido.

Em consequência, e com o devido respeito, carece de sentido invocar-se que foi a falta de uso dos cintos de segurança a causa do acidente e dos danos, ou, o mesmo é dizer, revela-se absurdo o entendimento segundo o qual, por via do não uso dos cintos de segurança, deve ser imputada aos lesados a culpa na produção dos danos ocorridos (culpa total ou alguma culpa).

Posto tudo o que precede, é de improceder o recurso da demandada, em toda esta primeira vertente.

b) Da exclusão ou redução das indemnizações (por culpa dos lesados).

Alega a demandada que, não se podendo afastar a culpa dos lesados (no caso, as três vítimas mortais: JM, MM e AA), a indemnização deve ser excluída, ou, caso assim não se entenda, deve essa indemnização ser reduzida por referência à contribuição dos lesados para o agravamento dos danos.

Igualmente, e no que concerne à demandante DD, deve proceder-se a uma redução da indemnização, com base na culpa por falta de utilização do cinto de segurança, redução nunca inferior a 50%, uma vez que tal falta de utilização foi necessariamente determinante para a produção e agravamento dos danos por si sofridos.

Cabe decidir.
O conhecimento da questão agora em análise ficou, na sua maior parte, precludido pelo decidido na alínea anterior, onde concluímos, em sede fáctica, que a falta de uso dos cintos de segurança não foi determinante para a produção e/ou para o agravamento dos danos sofridos pelos lesados.

Porém, as questões suscitadas a propósito da existência de um nexo de causalidade entre um determinado facto e os danos que dele emergem não se prefiguram, pelo menos em toda a sua possível extensão, como meras questões de facto.

Só que, e também na perspetiva do Direito, não vislumbramos, minimamente, como possa deixar de imputar-se, exclusivamente, o evento danoso em apreciação nestes autos à conduta do arguido (condutor do autocarro acidentado).

Com efeito, e conforme se assinala no Ac. deste T.R.E. de 05-06-2018 (relatora Ana Brito, disponível in www.dgsi.pt): “a causalidade (como problema de facto) nunca esgota a matéria da (e a decisão sobre a) imputação. E não se resolve, por isso, no estrito plano da factualidade, transportando sempre um problema de direito. (…) Independentemente de a vítima ter ou não cinto de segurança colocado, o resultado morte, do modo como se deu, manter-se-ia como concretização do risco criado pelo arguido e pelo qual ele deveria ser sempre responsável. Pois o arguido sempre teria aceitado transportar a vítima sem aquela proteção e o risco criado por ele teria passado a abranger o processo causal pelo qual a morte veio a acontecer. O que permitiria sempre afirmar a imputação. (…). A morte não decorreu de nenhuma outra intervenção ou comportamento anormal de terceiros, nem de nenhum evento inesperado e imprevisível e, como tal, inseriu-se dentro do quadro de riscos que o arguido criou”.

Assim sendo, e no caso posto nos presentes autos, a verificação do resultado (morte e/ou lesões corporais) foi, exclusivamente, consequência da omissão da diligência devida por parte do arguido.

Ou seja, e utilizando as palavras de Cuello Calón (in “Derecho Penal”, Tomo I, Parte General, Vol. 1º, Bosch Editorial, Barcelona, 1980, pág. 468), “entre o ato inicial e o resultado danoso existe uma relação de causa e efeito”.

A nosso ver, e sem hesitações, o resultado que se verificou podia ser evitado pelo arguido, conduzindo a violação do dever de cuidado por parte do arguido ao posterior e efetivo desenvolvimento dos acontecimentos, incluída nesse desenvolvimento, e sem mais, a produção do resultado.

A questão em apreço pode ser perspetivada, de modo aceitável, com recurso à fórmula da teoria da adequação, sobre a base de uma prognose objetiva e efetuada a posteriori, mediante o juízo atento de um observador (objetivo) que estabeleça se cabe contar com o resultado efetivamente produzido enquanto realização do perigo criado pelo sujeito atuante.

Ora, a esta luz (teoria da causalidade adequada), é de concluir, em nosso entender (e com o devido respeito por diferente opinião), que foi, exclusivamente, pelo facto de o arguido ter incumprido as regras de cuidado a que estava obrigado que as mortes e as lesões corporais das vítimas sobrevieram.

Por conseguinte, afastada está a culpa dos lesados, e, em consequência, a indemnização devida aos mesmos não pode ser excluída ou reduzida.

E, por isso, o recurso da demandada não merece, também nesta parte, provimento.

c) Dos montantes indemnizatórios.
Alega a demandada que a indemnização fixada à demandante DD por danos não patrimoniais (40.000 euros) é excessiva, tendo presente que tal demandante esteve internada apenas durante 4 dias (entre 19-06-2015, data do acidente, e 23-06-2015), e que, das avaliações clínicas a que foi submetida, uma atribuiu um dano estético de 2 pontos (em 7 possíveis) e outra de 4 pontos (em 7 possíveis).

Na opinião da demandada, atentos os danos demonstrados, o valor da indemnização a atribuir à demandante DD deve ser fixado em valor não superior a 25.000 euros.

Mais alega a demandada que a condenação operada em primeira instância relativamente à demandante DD vai para além do pedido, violando, desse modo, o disposto no artigo 609º do C. P. Civil.

Cumpre decidir.
Começando pela condenação fora (ou para além) do pedido, verifica-se que nenhuma razão assiste à demandada/recorrente.

Com efeito, se é certo que “a sentença não pode condenar em quantidade superior ou em objeto diverso do que se pedir” (artigo 609º, nº 1, do C. P. Civil), não é menos certo que a demandante DD formulou, nos autos, um pedido de indemnização no valor total de € 140.274,04, pelo que, manifestamente, a quantia fixada no acórdão revidendo (€ 40.000 - a título de danos não patrimoniais -) fica dentro dos limites do pedido, carecendo de sentido, com o devido respeito, as alegações vertidas, neste segmento, na motivação do recurso da demandada.

Importa, pois, aquilatar do montante a fixar à demandante DD a título de indemnização por danos não patrimoniais.

No acórdão revidendo, e relativamente à referida demandante, foi dado como provado (naquilo que se nos afigura essencial):

- À data do acidente, a demandante DD tinha 56 anos de idade e exercia a atividade profissional de lojista (funcionária de ótica);

- A demandante apercebeu-se da gravidade do acidente, ao ver o estado das vítimas que se encontravam no local e atendendo às suas próprias lesões;

- Esteve no local do acidente, após o mesmo, durante mais de duas horas;

- Atendendo à gravidade das lesões da demandante, esta foi transportada de urgência para o Hospital de Faro, onde deu entrada pelas 21h17, com traumatismo crânio-encefálico, com múltiplas escoriações do couro cabeludo, feridas abrasivas dos membros superiores, fratura da clavícula direita e esfacelo do cotovelo direito do antebraço direito com diminuição da sensibilidade e mobilidade do 4º e 5º dedos;

- A demandante veio depois a ser transferida, no dia 20/06/2015, para o Centro Hospitalar de Lisboa Norte, E.P.E. - Hospital de Santa Maria, ao cuidado da Cirurgia Plástica, onde foi submetida a neurorrafia cubital direita, encerramento sob drenagem e imobilização com tala gessada;

- Em 22/06/2015 foi transferida para o Hospital de Vila Franca de Xira, onde foi observada em Ortopedia;

- Em 08 de fevereiro de 2017, a demandante foi submetida a exame de avaliação de dano corporal pela demandada, tendo os serviços clínicos da demandada concluído que, do acidente, resultaram as seguintes sequelas: rigidez do ombro direito, cotovelo direito doloroso com mobilidades completas e dismorfias cicatriciais no membro superior direito;

- Nessa mesma avaliação, tais serviços clínicos da demandada atribuíram à demandante: um dano biológico de 10 pontos; um quantum doloris de 4 pontos em 7; um dano estético de 2 pontos em 7;

- Em 02 de agosto de 2017, uma nova avaliação médica concluiu que a demandante padece das seguintes sequelas permanentes: stress pós-traumático; rigidez do ombro direito; cotovelo direito doloroso; dismorfias cicatriciais dispersas;

- Nesta mesma avaliação foi atribuído à demandante: um quantum doloris de 5 pontos em 7; défice Funcional Permanente da Integridade Físico-Psíquica: 19 pontos – mais dano futuro; repercussão Permanente na Atividade Profissional; as sequelas que apresenta não são compatíveis com a profissão de lojista; dano estético de 4 pontos em 7; repercussão Permanente nas atividades desportivas e de lazer: 5/7; Ajudas Permanentes: necessidade de ajuda de 3ª pessoa (empregada doméstica) para as lides mais exigentes, fixável em duas horas diárias, todos os dias da semana, de forma vitalícia; consulta anual de Medicina Física e Reabilitação e tratamentos periódicos de fisioterapia de acordo com prescrição da referida consulta.

- A demandante deixou de conseguir andar de autocarro, porque ficou com fobia, não consegue conduzir em condições normais, nem consegue pegar nos netos ao colo.

- Na altura do acidente, a demandante temeu pela sua vida, viu passageiros do autocarro mortos, e ainda hoje, por todas essas razões, tem dificuldade em dormir (insónias).

Face a tais elencados elementos, e ao contrário do que parece entender-se na motivação do recurso agora em apreciação, os danos (não patrimoniais) sofridos pela demandante DD não se limitam ao respetivo internamento hospitalar (que, efetivamente, durou apenas 4 dias), nem, muito menos ainda, se reconduzem a simples “dano estético”.

Bem pelo contrário: a demandante DD sofreu lesões graves, suportou dores, teve sofrimento (físico e psicológico), ficou com cicatrizes, e, ainda hoje, é portadora de sequelas decorrentes do acidente de viação em apreço (sequelas físicas e psicológicas - tais como fobias e insónias -), tendo, além disso, limitações permanentes decorrentes desse mesmo acidente.

Numa outra ordem de ideias, cumpre salientar que, no que concerne aos danos não patrimoniais, não estamos perante uma verdadeira indemnização, antes havendo uma atribuição de certa soma pecuniária que se mostre adequada a compensar as dores e os sofrimentos através do proporcionar de um dado número de alegrias e satisfações que os minorem ou façam esquecer.

O seu montante deve ser proporcionado à gravidade do dano, devendo ter-se em conta na sua fixação todas as regras da justa medida das coisas e da criteriosa ponderação das realidades.

Ora, ponderados os factos dados como provados no acórdão revidendo relativamente à demandante DD (e que se deixaram resumidos), demonstrativos da gravidade e da extensão das lesões e dos padecimentos (físicos e psicológicos) pela mesma suportados, afigura-se-nos adequada, a título de ressarcimento por todos os danos não patrimoniais em questão, a quantia fixada no acórdão recorrido (quarenta mil euros).

Perante o que vem de dizer-se, e nesta vertente, o recurso da demandada é de improceder.

d) Do pedido do Centro Nacional de Pensões.
Alega a demandada que o tribunal a quo errou ao julgar procedente o pedido do Centro Nacional de Pensões, olhando a que o Centro Nacional de Pensões não pode ficar sub-rogado num direito que já não existia na esfera das lesadas, não havendo qualquer fundamento legal para se exigir da demandada o pagamento, em duplicado, dos mesmos danos.

Há que decidir.

O Centro Nacional de Pensões deduziu contra a demandada (ora recorrente) pedido de reembolso das prestações pagas a MT (pensão de sobrevivência relativamente ao beneficiário JM), no montante de € 4.875,23, e das despesas de funeral pagas a DC (relativas à beneficiária MM), estas no montante de € 1.257,66.

A demandada entende, no seu recurso, que já ressarciu totalmente essas lesadas, as quais lhe passaram “recibos de quitação”, após chegar a acordo com as mesmas sobre os valores a pagar-lhes, e tendo-lhes pago as quantias acordadas, pelo que não pode agora, de novo, ressarcir, relativamente aos mesmos danos, o Centro Nacional de Pensões.

Com o devido respeito, tais alegações da demandada carecem de sentido, porquanto, para a decisão da questão em apreço, de nada vale saber se as lesadas passaram (ou não) “recibos de quitação” e/ou se se consideraram (ou não) já plenamente ressarcidas dos danos sofridos (como veremos mais adiante).

A questão que se coloca consiste, isso sim, em saber se o Centro Nacional de Pensões tem ou não direito de sub-rogação sobre as quantias por si pagas aos familiares das vítimas mortais do acidente em causa.

Entendemos que a referida instituição goza deste direito de sub-rogação.

Fundamentamo-nos na consideração de que tal direito resulta, claramente, do disposto no artigo 70º da Lei nº 4/2007, de 16/01, e nos artigos 1º, 2º, 3º e 4º do D.L. nº 59/89, de 22/02.

Nos artigos 1º e 2º do D.L. nº 59/89, de 22/02, prevê-se a “citação” das instituições de segurança social para que estas possam deduzir o “pedido de reembolso de montantes que tenham pago em consequência de acidente de trabalho ou ato de terceiro”.

Este diploma disciplinava o exercício da sub-rogação legal prevista no artigo 16º da Lei nº 28/84, de 14/08 (entretanto revogada), a que hoje corresponde o artigo 70º da Lei nº 4/2007, de 16/01, atualmente em vigor (bem como à data do acidente dos autos).

Aí se prevê, no tocante à responsabilidade civil de terceiros: “no caso de concorrência pelo mesmo facto do direito a prestações pecuniárias dos regimes de segurança social com o de indemnização a suportar por terceiros, as instituições de segurança social ficam sub-rogadas nos direitos do lesado até ao limite do valor das prestações que lhes cabe conceder”.

O terceiro que cumpre a obrigação, só fica sub-rogado nos direitos do credor quando tiver garantido o cumprimento, ou quando, por outra causa, estiver diretamente interessado na satisfação do crédito, (cfr. o disposto no artigo 592º, nº 1, do Código Civil).

Nos termos do preceituado no artigo 593º do mesmo diploma legal, o sub-rogado adquire, na medida da satisfação dada ao direito do credor, os poderes que a este competiam.

Ou seja, com a sub-rogação, o interveniente adquire a posição de credor e fica com as garantias e acessórios do seu direito, tal como se houvesse cessão do crédito.

Ora, o transcrito artigo 70º da Lei nº 4/2007, de 16/01, que estabelece as bases gerais da Segurança Social, refere que, no caso de concorrência, pelo mesmo facto, do direito a prestações pecuniárias dos regimes de segurança social com o de indemnização a suportar por terceiros, as instituições de segurança social ficam sub-rogadas nos direitos do lesado até ao limite do valor das prestações que lhes cabe conceder.

Por seu lado, o artigo 2º, nº 2, do D.L. nº 59/89, de 22/02, que regulamenta o pedido de reembolso de prestações, quer em ação cível quer em processo penal, estabelece que as instituições de segurança social, nos casos abrangidos por este diploma, são tidas como lesadas, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 74º do C. P. Penal.

Aliás, no preâmbulo desse D.L. nº 59/89, de 22/02, menciona-se, expressamente, que a Segurança Social “assegura provisoriamente a proteção do beneficiário, cabendo-lhe, em conformidade, exigir o valor dos subsídios ou pensões pagos”.

No sentido de que o Centro Nacional de Pensões tem direito de sub-rogação legal das quantias que pagou, designadamente a título de subsídio por morte e de pensões de sobrevivência, pronunciou-se já, em termos largamente maioritários (ao que pensamos), a jurisprudência dos tribunais superiores portugueses (veja-se, sem a preocupação de sermos exaustivos, os Acs. do S.T.J. de 05-01-1995, in CJ, Ano III, Tomo I, pág. 164; de 01-06-1995, in CJ, Ano III, Tomo II, pág. 223; deste T.R.E., de 17-05-1994, in CJ, Ano XIX, Tomo III, pág. 289; e os Acs. do T.R.P. de 25-06-2013 e de 14-09-2016, ambos disponíveis in www.dgsi.pt).

Este último Ac. do T.R.P. (de 14-09-2016 - relator Vítor Morgado -), que está parcialmente transcrito no acórdão recorrido, encontra-se exaustivamente fundamentado (fundamentação que merece a nossa inteira concordância), pelo que, sem necessidade de mais desenvolvidos considerandos, para ele se remete, sem, contudo, omitir aqui a exposição da parte mais significativa do mesmo: “o pedido de reembolso pela demandante foi efetuado ao abrigo do disposto no artº 70º da Lei nº 4/2007, de 16.01, e arts. 1º e 3º do DL nº 59/89, de 22.02 (…). Este último diploma disciplinava a sub-rogação legal prevista no artº 16º da Lei nº 28/84, de 14.08 (entretanto revogada) e a que hoje corresponde o aludido artº 70º da Lei nº 4/2007, de 16.01. Ali se prevê que, no caso de concorrência pelo mesmo facto do direito a prestações pecuniárias dos regimes de segurança social com o de indemnização a suportar por terceiros, ficam sub-rogadas nos direitos do lesado até ao limite do valor das prestações que lhes cabe conceder. A sub-rogação dos direitos do lesado (neste caso filhos da vítima) dá-se na mesma medida em que o crédito tiver sido cumprido pela demandante perante aqueles (cfr. artgs 592º, nº 1, e 593º do CC). Assim, com a sub-rogação, a demandante adquiriu a posição do credor da indemnização, ficando com as suas garantias e acessórios (cfr. artº 582º, ex vi do artº 594º, ambas as disposições do CC). Como que existe uma relação de solidariedade imprópria entre o demandante e a demandada nas relações com o lesado (neste caso os filhos da vítima), visto ser a fonte da obrigação solidária diversa, assume-se a demandada como o principal pagador e o demandante com função meramente supletiva, subsidiária ou provisório, razão pela qual a demandante tem o inerente direito de regresso (cfr. o artº 516º do CC). Veja-se que, a dado passo, no preâmbulo do DL nº 59/89, de 22.02, se menciona expressamente que a Segurança Social “assegura provisoriamente a proteção do beneficiário, cabendo-lhe, em conformidade, exigir o valor dos subsídios ou pensões pagos.” O mesmo se diga no que respeita ao subsídio por morte, cuja função é a de facilitar a reorganização da vida familiar decorrente da morte da vítima falecida (cfr. artº 4º do DL nº 32/90, de 18.10). Também aqui a Segurança Social assume uma posição de garante, sem prejuízo do seu direito de reembolso perante o terceiro responsável. No sentido por nós propalado, vejam-se ainda os acs do STJ de 15.12.98, 21.10.99, 25.03.2003 e de 03.07.2002, todos com texto em www.dgsi.pt”.

Ora, no caso em apreço, a matéria de facto provada (e não questionada, neste ponto, pela demandada/recorrente) permite concluir que o Centro Nacional de Pensões pagou as quantias peticionadas nos autos, e, assim sendo, face ao que vem de dizer-se, tal instituição ficou sub-rogada nos direitos das lesadas, assistindo-lhe, pois, o direito a ser reembolsada das quantias pagas.

A esta nossa conclusão não obsta, obviamente, a circunstância de a demandada ter chegado a acordo com as lesadas e de estas lhe terem passado “recibos de quitação” (nos quais declararam que se consideravam integralmente ressarcidas de todos os danos, nada mais tendo a reclamar).

Com efeito, a sub-rogação em questão opera ope legis, não podendo ser afastada por acordo entre as lesadas e o terceiro responsável pelo ressarcimento dos danos.

Se a demandada celebrou um acordo com as lesadas em questão, abrangendo também os danos ressarcidos pelo Centro Nacional de Pensões, sem se assegurar previamente de que o Centro Nacional de Pensões estaria a pagar (ou iria pagar) as quantias em causa, a sua obrigação não se extingue perante tal instituição, impondo-se, sempre, a condenação da demandada, sem prejuízo de, posteriormente, a demandada poder acionar, junto das referidas lesadas, os meios legais com vista a reaver as quantias que as mesmas tenham, eventualmente, recebido em duplicado (ou seja, quantias que não lhes eram devidas e das quais se apropriaram por “enriquecimento ilegítimo”).

Assim, também nesta última vertente (pedido formulado pelo Centro Nacional de Pensões) o recurso da demandada não merece provimento.

Posto tudo o que precede, ambos os recursos (o do arguido e o da demandada) são de improceder.

III - DECISÃO

Nos termos expostos, nega-se provimento aos recursos, mantendo-se, consequentemente, o douto acórdão recorrido.

Custas pelos recorrentes, fixando-se a taxa de justiça em 4 (quatro) UCs.

Texto processado e integralmente revisto pelo relator.

Évora, 22 de outubro de 2019

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(João Manuel Monteiro Amaro)

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(Laura Goulart Maurício)