Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
7565/22.4T8STB.E1
Relator: SÓNIA MOURA
Descritores: MÚTUO
NULIDADE
OBRIGAÇÕES PLURAIS
Data do Acordão: 11/21/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário:
1. A declaração de nulidade de um contrato de mútuo por falta de forma determina a obrigação de restituição de tudo o que tiver sido prestado, nos termos do artigo 289.º, n.º 1 do Código Civil.
2. Da afirmação excecional do regime da solidariedade nas obrigações plurais, constante do artigo 513.º do Código Civil, decorre a consagração indireta do regime da conjunção como regra.
3. Sendo dois os obrigados à restituição e não se encontrando legalmente prevista a solidariedade com respeito à restituição operada no âmbito dos negócios inválidos, importa procurar uma referência, a esse respeito, no conteúdo do próprio negócio inválido, à semelhança do que se faz para apurar o valor a restituir.
4. Tendo os empréstimos sido concedidos por familiares diretos de um dos mutuários e havendo sido consignado, em escrito elaborado relativamente a um dos empréstimos, que caso existisse impedimento à sua restituição, os dois obrigados procederiam à transmissão da propriedade do imóvel que, com os valores emprestados, adquiriram em regime de compropriedade, conclui-se que o regime de vinculação dos obrigados é a conjunção, respondendo cada um pelo valor em dívida na proporção de metade.
(Sumário elaborado pela relatora)
Decisão Texto Integral:
Apelação n.º 7565/22.4T8STB.E1

(1ª Secção)

Relatora: Sónia Moura

1º Adjunto: Manuel Bargado

2ª Adjunta: Maria João Sousa e Faro


***

Acordam na 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora:

I – Relatório

1. AA e BB propuseram a presente ação declarativa de condenação contra CC, pedido a condenação do R. no pagamento da quantia de € 35.000,00, acrescidos de juros de mora à taxa legal de 4%, sobre o valor de € 22.500,00, contabilizados desde 22.05.2019 até à data de entrada da ação e juros já vencidos à taxa legal de 4% sobre o montante de € 12.500,00, acrescido dos juros vincendos até efetivo e integral pagamento ou, caso assim não se entenda, que seja declarada a nulidade do contrato de mútuo entre ambos ajustado e, consequentemente, seja o R. condenado a proceder à devolução aos AA. dos valores referidos ou, caso assim não se entenda, que seja o R. condenado a restituir os ditos valores ao abrigo do enriquecimento sem causa.

Alegaram que entregaram à sua filha e ao R., sua companheira à data, a quantia de € 45.000,00, com a obrigação destes lhes restituírem tal valor. Fizeram-no a pedido destes e com o objetivo de lhes permitir que adquirissem um prédio para nele edificarem uma construção. Com o mesmo propósito de auxiliarem na concessão de crédito para construção da habitação, entregaram posteriormente ao referido casal o valor de € 15.000,00, cuja restituição haveria de ter lugar uma vez concedido o crédito bancário.

Todavia, tendo o casal extinguido o seu relacionamento conjugal, o R. fez suas as quantias entregues e nada devolveu, apesar de interpelado para o efeito. Doutro passo, sustentam que a ex-companheira do R., filha dos AA., lhes pagou o valor de € 22.500,00, por referência a metade do valor inicialmente emprestado, acrescido de € 2.500,00 da parcela do reforço que lhe foi entregue, saldando a sua parte da dívida.

2. Regularmente citado, o R. contestou, pugnando pela improcedência da ação.

Alegou que os AA. concederam-lhe, solidariamente a si e à sua ex-companheira, filha dos AA., a quantia de € 45.000,00, que se comprometeram a pagar quando lhes fosse concedido o empréstimo para compra de um terreno destinado à construção de moradia, sendo que em relação à quantia recebida de € 15.000,00, a mesma correspondeu a uma doação feita pelos AA. ao então casal.

Contudo, o empréstimo que veio a ser concedido teve que ser restituído à instituição bancária que o concedeu, por responsabilidade da filha dos AA., que extinguiu o relacionamento conjugal, pelo que a condição acordada para a devolução do valor não foi concretizada única e exclusivamente por culpa e vontade desta, recaindo então sobre esta a responsabilidade exclusiva de devolver as quantias que lhes foram entregues.

De todo o modo, como só seriam devedores da quantia de € 45.000,00, a mesma já se mostra liquidada, até em excesso, pelo pagamento feito aos AA. pela sua excompanheira, que lhes terá entregue (como sustentado pelos AA.) a quantia de € 25.000,00, sendo que a mesma ainda lhes doou parte do prédio adquirido, doação à qual foi atribuído o valor de € 26.415,38, sendo que o terreno valia até mais do que tal valor, por ter sido valorizado com as despesas feitas pelo R. no mesmo.

3. Após saneamento e condensação da causa, realizou-se a audiência de julgamento, tendo a final sido proferida sentença com o seguinte dispositivo:

“Face às razões de facto e de direito supra indicadas, decido julgar a acção parcialmente procedente e, em consequência:

a) Declaro nulos, por vício de forma, os mútuos ajustados entre os Autores e o Réu; e

b) Condeno o Réu, CC, a restituir aos Autores, AA e BB, a quantia de €30.000,00 (trinta mil euros), acrescido de juros vencidos desde a data da citação para a acção (29/11/2022) e dos vincendos até efectivo e integral pagamento, todos à taxa legal de 4%.”

4. Inconformado com a sentença, veio o R. dela apelar, terminando as suas alegações com as seguintes conclusões:

“A)- A douta sentença recorrida deu como provado, o que para aqui interessa, o facto seguinte:

“8) Obrigaram-se perante os Autores a restituir tal valor quando viesse a ser aprovado o crédito bancário solicitado para construção do imóvel.”

B)- A douta sentença recorrida deu como não provados, os seguintes fatos:

“b) Os Autores pretenderam, sem qualquer contrapartida ou obrigação de restituição, entregar ao Réu e a DD os valores mencionados em 9) para estes os fazerem seus.

c) A doação referida em 13) teve lugar com vista a saldar o valor não restituído aos Autores.”

C) O tribunal fundamenta a sua decisão nas declarações dos AA. AA, BB e da testemunha DD, interessados diretos no desfecho desta demanda (pais e filha).

D)- Mas em declarações de parte, o A. AA afirma perentoriamente que a filha de ambos, DD, havia outorgado a escritura de doação da metade dela do imóvel, aqui em causa, para pagamento da divida que ela tinha para com os AA, os tais 45.000€, acrescidos de 15000€.

E)- Ainda em declarações, o A. AA afirma desconhecer se a filha lhes havia restituído algum valor em dinheiro, mas garante que a filha devolveu metade do terreno que era dela.

F)- Em declarações, o A. AA afirma que dos 60.000€ que ele e a sua esposa, a A. BB, haviam emprestado ao R. e à filha de ambos, DD, recebeu desta a metade dela do terreno.

Tudo gravado no sistema habilus do dia 13/12/2023, das 09:59h, às 10:14h.

G)- A respeito da outorga da escritura de doação, a A. BB, donatária na mesma, afirma que a filha lhe doou metade do imóvel aqui em causa, para não entrar em conflito direto com o R, pai do seu filho, referindo ainda que, “os frutos” que provierem da divisão de coisa comum, que corre termos neste tribunal, serão para ela e para o marido. Ou seja, serão eles quem beneficiarão do resultado da ação de divisão de coisa comum do imóvel que lhes foi doado, e não a doadora DD-depoimento gracado no habilus, no dia 13/12/2023, das 10:26h às 10:54h.

H)- A A., nas suas declarações refere ainda que a filha DD a restitui de 25.000€ em dinheiro.

I)- Já a testemunha e doadora DD, refere que que pagou aos pais a quantia de

25.000€, com dinheiro que os próprios pais lhes deram.

J)- Esta testemunha afirma que doou metade do imóvel de que é coproprietária co o R, aos AA, mas para não entrar em confronto direto com este, que é pai do seu filho, mas não se coibiu em referir que retirava a doação aos pais e intentava ela uma ação contra o R.

K)- A testemunha e doadora DD assegurou que o que advier do desfecho da ação de divisão da coisa comum, do prédio cuja metade doou à A. sua Mãe será para os “lesados” (palavra dela mesma). Isto é, para beneficiar os seus pais. Tudo gravado no sistema habilus do dia 13/12/2023, das 11:34 às 11:56h

L)- A testemunha EE, relatou ter conhecimento acerca de uma traição por parte de DD, e que por sentir esta culpa a mesma teria assumido com o R. que liquidaria ela a divida para com os seus pais.

M)- Referiu ainda a testemunha EE saber que os AA emprestaram uma verba ao R e a DD e que terão dado outra verba àqueles.

N)- Salvo devido respeito, não se fez prova de que os 15.000€ foram emprestados, até porque dos mesmo não existe qualquer documento ou confissão assinados pelo R, como existia com o valor de 45.000€.

O)- Sendo considerado nulo o contrato de mutuo dos 45.000€, os mesmos deveriam ser restituídos por qualquer um dos devedores (divida solidaria).

P)- A obrigação da restituição estava dependente da aprovação de um credito bancário, credito esse que só não seguiu os seus termos por culpa da DD, que terminou o seu relacionamento com o R.

Q)- Assim será esta quem tem que pagar o referido empréstimo aos seus pais, e não o R.

R)- E pelos vistos pagou.

S)- Pelo teor do documento junto aos autos com a douta PI, sob o nº 1, não é gerada qualquer obrigação do R. pagar aos AA o valor lá quem questão, mas mesmo que se assim não se entendesse (por mera hipótese), essa obrigação recairia apenas sobre a filha dos RR. DD, pois foi por culpa, comportamento e vontade desta que o empréstimo para a execução das obras não se concretizou, como ante já se referiu.

T)- Sendo que a filha dos AA., DD, responsável solidaria pelo total constante do subscrito dos 45.000€, até pagou a mais do que esse valor aos AA. seus pais:

1) os AA. na douta PI afirmam que a filha lhes pagou 25.000€ da divida.

2) E, em 09/11/2022, a DD doa a seus pais metade do imóvel, à, qual atribui o valor de 26415,38€.

U)- A filha dos AA. entregou-lhes a quantia de 25.000€ em dinheiro (segundo assumiram) e a sua metade indivisa do terreno (constante do doc 1 junto com a PI), no valor de 26415,38€ o que perfaz o total de 51415,38€.

V)- Os AA. encontram-se mais do ressarcidos.

X)- A filha dos AA. pagou-lhes, por conta do referido subscrito de 21/08/2021, junto aos autos sob o nº 1 com a PI, o montante global de 51415,38€, isto é, pagou-lhes a mais 6415,38€.

Y)- Não poderia também o meritíssima Juiz “ a quo”, fundamentar a sua convicção quanto à matéria de facto provada e não provada, socorrendo-se de ilações, tendências, presunções, ou a meros juízos de valor;

Z)- Entende, assim, o Recorrente que matéria de facto dada como provada nos pontos 8 e a dada como não provada nas alíneas b) e c) da douta sentença foi incorretamente julgada, não tendo sido devidamente apreciada.

AA.)- Deveria, assim, a presente ação ter sido julgada improcedente por não provada.

AB)- E bem assim, deveria a sentença ser no sentido de:

* dar como provado que :

- os AA pretenderam, sem qualquer contrapartida ou obrigação de restituição, entregar aos R. e a DD os valores mencionado em 9) (15.000€);

- a doação referida em 13) teve lugar com vista a saldar o valor não restituído pelos AA.

* e dar como não provado que:

- o R e DD, se obrigaram, perante os AA., a restituir o tal valor de 10.000€, mais 5.000€, quando viesse a ser aprovado o credito bancário solicitado para construção do imóvel.

Nestes termos, e nos demais de direito, que V. Exas doutamente suprirão, deverá dar-se provimento ao recurso interposto, e, por via dele, anular-se ou revogar-se a douta sentença recorrida, devendo, em consequência, ser substituída por uma outra, que, alterando a matéria de facto dada como provada na douta sentença recorrida, e com base nas alegações e conclusões que antecedem, decida pela improcedência da ação por não provada e consequentemente, absolva o R..”

5. Os AA. contra-alegaram, pugnando pela improcedência do recurso, alegando preliminarmente que o R. não cumpriu o ónus vertido no artigo 640.º do Código de Processo Civil.

6. Foi admitido o recurso, tendo no respetivo despacho sido declarado, entre o mais, que se mostra preenchido o ónus vertido no artigo 640.º do Código de Processo Civil.

7. Nesta sequência vieram os AA. arguir a nulidade do despacho de admissão do recurso, por extravasar o poder jurisdicional, na parte atinente ao referido artigo 640.º do Código de Processo Civil, uma vez que deve aquela questão ser apreciada pelo Tribunal da Relação.

8. Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.

II – Questões a Decidir

O objeto do recurso está delimitado pelas conclusões da apelação, não sendo objeto de apreciação questões novas suscitadas em alegações, exceção feita para as questões de conhecimento oficioso (artigos 608.º, n.º 2, 635.º, n.º 4 e 639.º, n.º 1 do Código de Processo Civil).

Não se encontra também o Tribunal ad quem obrigado a apreciar todos os argumentos apresentados pelas partes, sendo livre na interpretação e aplicação do direito (artigo 5.º, n.º 3 do Código de Processo Civil).

Ora, no seu recurso o R. declara impugnar a decisão da matéria de facto, identificando com precisão o ponto 8 dos factos provados e as alíneas b) e c) dos factos não provados como constituindo o objeto da sua discordância.

Porém, no introito das alegações, refere o R. que “Aliás, a douta sentença padece de varias contradições que, como adiante iremos verificar, implicam a nulidade da mesma.”

Compulsadas as alegações na íntegra verificamos, no entanto, que nem no corpo das mesmas, nem nas conclusões o R. aponta quaisquer nulidades concretas de que padeça a sentença, nada mais dizendo a este propósito.

Entendemos, consequentemente, que nada temos a apreciar a este título.

No mais, isto é, quanto à questão atinente ao disposto no artigo 640.º do Código de Processo Civil, deve semelhante questão ser analisada em sede de apreciação do pedido de modificação da decisão de facto.

Assim, cumpre apreciar:

a) se deve ser modificada a decisão de facto quanto ao ponto 8) dos factos provados e às alíneas b) e c) dos factos não provados;

b) se deve ser alterada a decisão de direito.

III – Fundamentação

A) Impugnação da decisão sobre a matéria de facto

1. No n.º 1 do artigo 662.º do Código de Processo Civil, norma atinente à “modificabilidade da decisão de facto”, prescreve-se que “a Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa.”

E no artigo 640.º do Código de Processo Civil, sob a epígrafe “ónus a cargo do recorrente que impugne a decisão relativa à matéria de facto”, estabelece-se que:

“1 - Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:

a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;

b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;

c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.

2 - No caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte:

a) Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes;

b) Independentemente dos poderes de investigação oficiosa do tribunal, incumbe ao recorrido designar os meios de prova que infirmem as conclusões do recorrente e, se os depoimentos tiverem sido gravados, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda e proceder, querendo, à transcrição dos excertos que considere importantes.”

Antes de mais saliente-se que a decisão sobre o cumprimento do ónus imposto na norma ora citada compete ao Tribunal ad quem e não ao Tribunal a quo, pelo que as considerações tecidas a este respeito no despacho que admitiu o recurso não encontram suporte legal.

Com efeito, como decorre do disposto nos artigos 641.º, n.º 2 e 642.º, n.º 2 do Código de Processo Civil, o Tribunal a quo deve avaliar da recorribilidade da decisão impugnada; da tempestividade do recurso; da legitimidade do recorrente; da junção de alegações com o requerimento de interposição do recurso e da existência de conclusões nas alegações; e do pagamento da taxa de justiça devida pela interposição do recurso (sem prejuízo de outras questões que possam carecer de apreciação, designadamente, a representação forense do recorrente).

E não obstante dever o Tribunal a quo admitir o recurso e fixar a respetiva espécie, modo de subida e efeito, a decisão final sobre estes aspetos é sempre do Tribunal ad quem, conforme preceitua o n.º 5 do artigo 641.º do Código de Processo Civil.

Deste modo, quando, no despacho de admissão do recurso, o Tribunal a quo se pronunciou sobre o cumprimento do ónus previsto no artigo 640.º do Código de Processo Civil, excedeu a sua competência em razão da hierarquia, circunstância que determina que naquela parte o despacho de admissão do recurso não possa subsistir, por padecer de nulidade.

Como se assinala no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 26.10.2022 (José Rainho) (Processo n.º 2139/20.7T8BRG.G1.S1, in http://www.dgsi.pt/),
relativamente a um caso diferente do nosso, mas cuja argumentação é aqui aplicável, “não está em causa uma demanda proposta perante tribunal incompetente, mas sim o exercício de uma competência por parte do tribunal que dela não dispõe na ordem hierárquica”.

Sendo, porém, este o lugar e o momento próprios para efetuar a apreciação do cumprimento do ónus previsto no artigo 640.º do Código de Processo Civil, não há qualquer outra consequência a extrair da inadmissibilidade legal daquele despacho senão a de que o mesmo não produz efeitos.

2. Ora, a ideia fundamental que se extrai do citado artigo 640.º do Código de Processo Civil é a de que deve o recorrente delimitar de forma clara o objeto do recurso, identificando os segmentos da decisão de facto que pretende impugnar e os meios de prova que impõem decisão diversa.

A razão desta exigência encontra-se na circunstância dos recursos se destinarem à reapreciação das decisões proferidas em 1ª instância e não à prolação de uma decisão inteiramente nova (entre outros, os Acórdãos do Tribunal da Relação de Guimarães de 28.06.2018 (Jorge Teixeira), Processo n.º 123/11.0TBCBT.G1, e do Tribunal da Relação do Porto de 08.03.2021 (Fátima Andrade), Processo n.º 16/19.3T8PRD.P1, ambos in http://www.dgsi.pt/).

Consequentemente, o referido n.º 1 do artigo 662.º do Código de Processo Civil aplica-se no estrito âmbito delimitado pelas alegações do recorrente, o que equivale a dizer que não compete ao Tribunal da Relação reexaminar todo o processo e sindicar indiscriminadamente todos os factos e todos os meios de prova, como se de um segundo julgamento completo se tratasse.

Antes compete ao tribunal de recurso tão somente reapreciar os específicos factos identificados pelo recorrente, atentando nos meios de prova concretos que, de acordo com o recorrente, impõem decisão diversa, sem prejuízo de dever tomar em consideração outros meios de prova que, conjugadamente, imponham decisão diversa.

Exige-se ao recorrente, no que tange à indicação dos concretos meios probatórios, aludida na al. b) do n.º 1 do artigo 640.º do Código de Processo Civil, que reporte a cada um dos factos provados ou não provados o meio de prova ou os meios de prova que impõem decisão diversa, sejam documentos ou depoimentos, referindo, quanto a estes, as passagens que são relevantes para o efeito.

No caso em apreço constata-se que o Recorrente indicou os pontos de facto de cuja decisão discorda, bem como os meios de prova que, no seu entendimento, impõem decisão diversa, apontando ainda a decisão que se lhe afigura que seria a mais correta em face desses meios de prova.

A correspondência entre os factos e os meios de prova foi feita em bloco, mas os três factos especificamente sindicados pelo R. estão interligados, pelo que se trata de procedimento legalmente admissível.

Aceita-se, com efeito, que a indicação dos meios de prova se possa dirigir a um conjunto de factos, em lugar da consideração atomística de cada facto, “quando os pontos integrantes de cada um desses blocos apresentem entre si evidente conexão e, para além disso - tendo em conta as circunstâncias do caso concreto, nomeadamente, o número de factos impugnados e a extensão e conexão dos meios de prova -, o conteúdo da impugnação seja perfeitamente compreensível pela parte contrária e pelo tribunal, não exigindo a sua análise um esforço anómalo, superior ao normalmente suposto” (Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 12.04.2024 (Mário Belo Morgado), Processo n.º 823/20.4T8PRT.P1.S1, in http://www.dgsi.pt/).

Por outro lado, quanto à concreta indicação dos meios de prova, decorre do corpo das alegações que o Recorrente reportou o início e o termo de cada um dos depoimentos que na sua ótica motivam decisão diversa, o que se confirma quando se acede à ferramenta do Citius - Windows Media Studio, tendo ainda transcrito esses depoimentos nas partes que julgou relevantes para a impugnação, com referência, quanto a uma das transcrições, do pertinente tempo de registo (fls. 127).

Ora, a este propósito já foi decidido que “I. Para efeitos do disposto nos artigos 640º e 662º, nº1, ambos do Código de Processo Civil, impõe-se distinguir, de um lado, a exigência da concretização dos pontos de facto incorretamente julgados, da especificação dos concretos meios probatórios convocados e da indicação da decisão a proferir, previstas nas alíneas a), b) e c) do nº1 do citado artigo 640º, que integram um ónus primário, na medida em que têm por função delimitar o objeto do recurso e fundamentar a impugnação da decisão da matéria de facto.

E, por outro lado, a exigência da indicação exata das passagens da gravação dos depoimentos que se pretendem ver analisados, contemplada na alínea a) do nº 2 do mesmo artigo 640º, que integra um ónus secundário, tendente a possibilitar um acesso mais ou menos facilitado aos meios de prova gravados relevantes para a apreciação da impugnação deduzida.

II. Na verificação do cumprimento dos ónus de impugnação previstos no citado artigo 640º, os aspetos de ordem formal devem ser modelados em função dos princípios da proporcionalidade e da razoabilidade.

III. Nesta conformidade, enquanto a falta de especificação dos requisitos enunciados no nº1, alíneas a), b) e c) do referido artigo 640º implica a imediata rejeição do recurso na parte infirmada, já, quanto à falta ou imprecisão da indicação das passagens da gravação dos depoimentos a que alude o nº 2, alínea a) do mesmo artigo, tal sanção só se justifica nos casos em que essa omissão ou inexatidão dificulte, gravemente, o exercício do contraditório pela parte contrária e/ou o exame pelo tribunal de recurso.

IV. Tendo o recorrente, indicado, nas conclusões das alegações de recurso, o início e o termo de cada um dos depoimentos das testemunhas ou indicado o ficheiro em que os mesmos se encontram gravados no suporte técnico e complementado estas indicações com a transcrição, no corpo das alegações, dos excertos dos depoimentos relevantes para o julgamento do objeto do recurso, tanto basta para se concluir que o recorrente cumpriu o núcleo essencial do ónus de indicação das passagens da gravação tidas por relevantes, nos termos prescritos no artigo 640º, nº 2, al. a) do CPC, nada obstando a que o Tribunal da Relação tome conhecimento dos fundamentos do recurso de impugnação da decisão sobre a matéria de facto.”” (Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 21.03.2019 (Rosa Tching), Processo n.º 3683/16.6T8CBR.C1.S2; no mesmo sentido, os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 15.09.2022 (Fernando Baptista), Processo n.º 556/19.4T8PNF.P1.S1, e de 14.05.2024 (Luís Espírito Santo), Processo n.º 1408/17.8T8OLH-H.E1.S1, todos in http://www.dgsi.pt/, bem como o acima citado Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 12.04.2024).

Considerando que estamos em presença de depoimentos muito curtos (15 minutos as declarações do A., 30 minutos as declarações da A., 22 minutos o depoimento da testemunha DD e 6 minutos o depoimento da testemunha EE), sendo bastante reduzido o acervo factual a apreciar, entendemos que o modo de indicação da prova a reapreciar que foi adotado pelo Recorrente não representa omissão cuja ultrapassagem, quer sob a perspetiva do exercício do contraditório, que na ótica do exame em sede de recurso, exija esforço que se revele desproporcional ou desrazoável, pelo que passará a apreciar-se da mesma.

3. O Tribunal a quo julgou provados e não provados os seguintes factos:

“IV – A) FACTOS PROVADOS COM INTERESSE PARA A CAUSA

1) Em data não concretamente apurada, mas anterior a 21/05/2019, o Réu e DD, filha dos Autores, solicitaram a estes últimos a entrega da quantia de €45.000,00 (quarenta e cinco mil euros), com vista a adquirirem um lote para construção de imóvel.

2) Obrigaram-se perante os Autores a restituir-lhes tal valor quando viesse a ser aprovado o crédito bancário solicitado para construção do imóvel.

3) Em execução desse acordo, no dia 21/05/2019, os Autores, através de uma conta titulada por FF, transferiram para uma conta bancária titulada pelo Réu e por DD, a quantia de €30.000,00 (trinta mil euros).

4) Com o mesmo motivo, no dia 22/05/2019, os Autores transferiram, de uma conta titulada pelo Autor marido para a conta do Réu e de DD, a quantia de €15.000,00 (quinze mil euros).

5) No dia 23/05/2019, o Réu e DD adquiriram, pelo preço de €45.000,00 (quarenta e cinco mil euros), sem determinação de parte ou direito, o prédio urbano composto de lote de terreno para construção urbana, denominado Lote ...96, sito em Local 1, GâmbiaPontes-Alto da Guerra, concelho de Local 2, descrito na CRP com o n.º ...05, da referida freguesia.

6) Em 21 de Agosto de 2021, o Réu e DD, assinaram um documento particular, que entregaram aos Autores, com os seguintes dizeres:

“(…)

Declaramos que nos foi concedido um empréstimo para compra de um terreno em Local 2, no valor de 45.000,00€ (quarenta e cinco mil euros), por parte de AA (…) e BB

(…).

Mais se declara que nos comprometemos a efectuar o pagamento do valor referido quando nos seja concedido o empréstimo para a execução da obra e, caso haja algum impedimento para o pagamento da dívida em causa nos comprometemos a celebrar escritura do referido terreno passando o mesmo para o nome de:

AA e BB (…).
Por ser verdade assinamos a presente declaração.”

7) Em data não concretamente apurada, mas anterior a 04/01/2022, o Réu e DD solicitaram aos Autores a entrega da quantia de €15.000,00 (quinze mil euros).

8) Obrigaram-se perante os Autores a restituir tal valor quando viesse a ser aprovado o crédito bancário solicitado para construção do imóvel.

9) Nos dias 4 e 5 de Janeiro de 2022, os Autores efectuaram transferência bancária para a conta titulada pelo Réu e DD, respectivamente, dos valores de €10.000,00 e de €5.000,00.

10) Nesse mesmo dia 5 de Janeiro de 2022, o crédito solicitado à instituição financeira pelo Réu e DD, foi creditado na conta de ambos.

11) Em momento não concretamente definido, mas posterior a tais transferências, o Réu e DD cessaram o relacionamento conjugal que até então mantinham.

12) No dia 28 de Fevereiro de 2022, o Réu realizou duas operações de transferência do valor de €5.000,00 (cinco mil euros), cada uma, de conta conjuntamente titulada por si e por DD, para uma outra conta não titulada por DD ou pelos Autores.

13) Em 09 de Novembro de 2022, DD outorgou escritura pública de doação, através da qual declarou doar à Autora, BB, metade indivisa do referido em 5), com o valor patrimonial de €52.830,75, na qual atribuiu o valor de €26.415,38 à referida doação.

14) Em data não concretamente apurada, por conta do referido em 2) e 8), DD entregou aos Autores as quantias de €22.500,00 (vinte e dois mil e quinhentos euros) e de €2.500,00 (dois mil e quinhentos euros).


***

IV – B) FACTOS NÃO PROVADOS COM INTERESSE PARA A CAUSA

a) Os Autores foram solicitando ao Réu, o pagamento de metade dos €45.000,00 e ainda €12.500,00 do valor referido em 9).

b) Os Autores pretenderam, sem qualquer contrapartida ou obrigação de restituição, entregar ao Réu e a DD os valores mencionados em 9) para estes os fazerem seus.

c) A doação referida em 13) teve lugar com vista a saldar o valor não restituído aos Autores.”

4. Impugna, então, o R. o facto provado 8), e os factos não provados b) e c), cuja motivação aqui transcrevemos, incluindo ainda a motivação relativa ao facto provado 14), atenta a manifesta correlação deste facto com o facto não provado c):

“(…) A respeito dos factos 7) e 8), que respeitam aos preliminares do facto 9), o Tribunal formou a sua convicção com base nos depoimentos dos intervenientes directos no negócio que assim atestaram de forma corroborante entre si. De facto, em declarações de parte, os Autores declararam ter emprestado €15.000,00 à sua filha DD e ao Réu por alturas do empréstimo bancário, o que fizeram a pedido do Réu, dada a por este invocada exigência do banco para a conta se encontrar provisionada com o montante de €30.000,00, sendo que da parte do Réu, não veio a ser depositado qualquer valor, ainda que o mesmo se tenha comprometido a depositar (por apoio ou auxílio dos pais a transferir igualmente €15.000,00 para a referida conta).

E, como explicou a Autora BB, não foi feito qualquer documento como aquele de 21/08/2021, posto que ficou acordada a devolução imediata do montante após o acto de concessão do empréstimo bancário.

De um modo geral, foi exactamente isto que explicou DD, filha dos Autores e igual beneficiaria daquele negócio.

Nesta sede, o Tribunal considerou irrelevantes os depoimentos de GG e de EE, pois o que depuseram foi de ouvir dizer dos intervenientes processuais, sem que tenham intervindo a título pessoal e directo, nos termos em que os negócios tiveram lugar. (…)

Por fim, em relação ao facto 14), o pagamento em causa, enquanto facto extintivo da obrigação invocada (art.º 342.º n.º 2 do CCiv.), comprovou-se mercê da confissão dos Autores em articulado (e posteriormente retomada nas declarações de parte), valorada nos termos do art.º 356.º n.º 1 e 358.º n.º 1 do CCiv. e art.º 46.º do CPC.

(…)

No que concerne ao facto sob a alínea b), tratando-se de facto impeditivo do direito invocado, o ónus da sua demonstração competia ao Réu (art.º 342.º n.º 2 do CCiv.), ónus esse que não veio a ser cumprido, já que os depoimentos que a tal se referiram, como o de EE ou GG, foram indirectos, com base no ouvir dizer, neles inexistindo ausência de segurança hábil a demonstrar um animus donandi em relação à entrega da quantia de €15.000,00 como se doação ao casal se tratasse, o que em todo o caso foi negado não só pelos Autores nas declarações de parte que prestaram, como pela testemunha DD.

Com efeito, as presunções judiciais (art.º 349.º do CCiv.), baseiam-se na inferência de factos conhecidos para sedimentar a convicção de factos desconhecidos. Neste caso, a simples razão de não ter sido firmado nenhum documento particular, pelo Réu, como aqueloutro de 21/08/2021 em que foi declarada a razão de recebimento dos então €45.000,00, não é sintomático de qualquer animus donandi. Note-se que aquele documento foi feito mais de dois anos após a concessão do mútuo e nesse período ninguém colocou em causa que se tratasse de um mútuo.

Por último, o facto não provado sob a alínea c), derivou da comprovação da existência de uma dação em pagamento. Com efeito, uma coisa é um negócio de doação, que corresponde ao “contrato pelo qual uma pessoa, por espírito de liberalidade e à custa do seu património, dispõe gratuitamente de uma coisa ou de um direito, ou assume uma obrigação, em benefício do outro contraente” (n.º 1 do art.º 940.º do CCiv.). Outra, bem diferente, é a dação. A dação em pagamento não tem uma definição legal, mas no seu cerne corresponde à prestação de coisa diversa da que for devida, embora de valor superior, a qual só exonera o devedor se o credor der o seu assentimento (cf. art.º 837.º do CCiv.).

Assim, em termos dogmáticos, pode ser entendida como um “contrato oneroso, pelo qual se extingue uma obrigação através da realização perante o credor de uma prestação diferente da devida como contrapartida da sua renúncia a receber a prestação primitiva.”

Ocorreria uma dação em pagamento se o devedor que dá em cumprimento certo bem, o faz para extinção da obrigação. Por isso, seria dação se aquele negócio de 09 de Novembro de 2022, pelo qual DD transferiu para a Autora, BB, metade indivisa do referido em 5), servisse, nomeadamente, o propósito de saldar a dívida.

Pois bem, DD foi inquirida por diferentes formas, sobre a razão de ser daquele negócio, desde logo a ver pelo conteúdo do doc. 3 junto com a P.I. (vertido no facto 6), no qual declarou, conjuntamente com o Réu, que “caso haja algum impedimento para o
pagamento da dívida em causa nos comprometemos a celebrar escritura do referido terreno passando o mesmo para o nome de AA e BB
BB.”

Todavia, a referida testemunha manteve o depoimento no sentido de que pretendeu mesmo doar o imóvel à sua mãe, mas que essa doação até poderia vir a ser revogada. Sustentou, para tanto, que não o fez por lhe dever seja o que for, mas “com o intuito de não ter confronto directo com o CC” (Réu), dado que têm um filho em comum.

De outro passo, se o mútuo foi concedido pelos pais (não só pela sua mãe), uma eventual extinção da dívida (por dação em cumprimento), igualmente que haveria de ser feita junto dos seus pais e não somente em relação à sua mãe.

Deste modo, não resultou claro que aquele negócio tenha servido o propósito de exonerar uma dívida, tanto mais que ninguém o atestou nesse sentido, sendo que a prova dessa ocorrência competiria ao Réu e mesmo na ausência de prova segura de que fosse esse o propósito (pois além do doc. 3 junto com a P.I., nada mais nos sinaliza semelhante razão), o ónus de prova indica que o facto haveria de ser resolvido contra o Réu, isto é, não demonstrando que esse negócio tenha ocorrido por causa ou por força a exonerar a dívida de qualquer dos empréstimos (art.º 342.º n.º 2 do CCiv. e 414.º do CPC).

Por isto, o Tribunal ficou convencido da prova dos factos nos termos em que supra fez constar.”

5. Nas suas alegações sustenta o R. que as declarações de parte dos AA. e os depoimentos da sua filha e da testemunha EE impõem decisão diversa. Ouvimos as declarações e depoimentos indicados na íntegra.

Tal como se afirma na motivação, a testemunha EE não tem

conhecimento pessoal e direto dos factos, apenas sabe o que lhe foi transmitido pelo R., do qual a testemunha é amigo e confidente, tendo declarado que falam diariamente.

Importa aqui sublinhar que não está legalmente vedado valorar depoimentos indiretos, os quais estão sujeitos ao princípio geral da livre apreciação da prova (neste sentido, o Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 11.07.2017, (António Figueiredo de Almeida), Processo n.º 3388/15.5T8BRG.G1, in http://www.dgsi.pt/), mas nessas circunstâncias deve apurar-se com particular cuidado a razão de ciência da testemunha, de molde a verificar da credibilidade da origem do conhecimento.

Sendo o R. uma parte interessada na causa, pode sempre dizer-se que existe o risco de parcialidade na transmissão da informação por parte deste a terceiros, porém, o mesmo risco existe nas declarações ou depoimentos prestados em audiência pelos interessados.

Há, no entanto, uma diferença substancial entre as duas situações, que reside na possibilidade de sindicar o teor das declarações e depoimentos prestados em audiência, enquanto que um depoimento indireto traduz a mera reprodução acrítica do que foi dito à testemunha, não viabilizando o confronto com a fonte das suas afirmações.

Ora, a testemunha EE refere que o R. lhe disse que ambos os pais, quer dizer, tanto os AA., pais da companheira do R., quanto os pais do R., emprestaram dinheiro ao casal, para além de que os AA. lhes doaram dinheiro, mas não sabia quaisquer pormenores, desconhecendo, inclusivamente, as quantias envolvidas.

Este depoimento mostra-se contrariado pelas declarações dos AA. e o depoimento da sua filha, tendo a A., em particular, descrito a situação de forma detalhada e precisa.

Explicou, assim, que o R. lhes transmitiu que o Banco aprovaria o empréstimo pedido pelo casal, mas com a condição de terem na conta 30 mil euros de capitais próprios.

A A. respondeu ao R. que não tinham 30 mil euros para lhes emprestar, mas podiam emprestar 15 mil euros, se os pais do R. aceitassem emprestar os outros 15 mil euros, tendo o R. informado posteriormente que os seus pais concordaram com esta solução. O dinheiro seria devolvido logo após a escritura.

Acrescentou a A. que mais tarde a A. contactou o Banco, tendo então percebido que aquilo que o R. lhes transmitiu não era correto, pois do gestor bancário colheu a informação de que só no fim da construção tinham de se encontrar na conta os sobreditos 30 mil euros, para libertação da última tranche.

E referiu ainda que depois da separação do casal, quando a filha dos AA. consultou o extrato da conta, constatou que, ao contrário do que o R. havia afirmado – que os seus pais tinham emprestado inclusivamente um valor superior a 15 mil euros -, o R. não efetuou qualquer depósito na conta do casal, e retirou daí 10 mil euros para uma conta “denominada A...”, que não sabiam concretamente a quem pertencia.

É verdade que a A. tem interesse na causa, mas isso é o que sucede relativamente a todas as partes, e tal circunstância não obstou a que fosse legalmente prevista a possibilidade de prestação de depoimento de parte e de declarações de parte, que são livremente apreciadas, salvo na parte em que constituam confissão (artigos 452.º e 466.º do Código de Processo Civil).

Temos vindo, assim, a perfilhar o entendimento de que constituem um meio de prova que, à semelhança dos demais, carece de análise crítica e conjugada com os outros meios de prova produzidos nos autos, de acordo com parâmetros de verosimilhança e razoabilidade que presidem à livre apreciação da prova.

Deverá, deste modo, averiguar-se se pela sua espontaneidade, fluidez, lógica, coerência, as declarações de parte devem merecer o acolhimento da convicção do Tribunal, como tem sido assinalado, em particular, por Luís Filipe Pires de Sousa, designadamente, no Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 26.04.2017 (Processo n.º 18591/15.0T8SNT.L1-7, in http://www.dgsi.pt/):

“I.–No que tange à função e valoração das declarações de parte existem três teses essenciais: (i) tese do caráter supletivo e vinculado à esfera restrita de conhecimento dos factos; (ii) tese do princípio de prova e (iii) tese da autossuficiência das declarações de parte.

II.–Para a primeira tese, as declarações de parte têm uma função eminentemente integrativa e subsidiária dos demais meios de prova, tendo particular relevo em situações em que apenas as partes protagonizaram e tiveram conhecimento dos factos em discussão.

III.–A tese do princípio de prova defende que as declarações de parte não são suficientes para estabelecer, por si só, qualquer juízo de aceitabilidade final, podendo apenas coadjuvar a prova de um facto desde que em conjugação com outros elementos de prova.

IV.–Para a terceira tese, pese embora as especificidades das declarações de parte, as mesmas podem estribar a convicção do juiz de forma autossuficiente.

V.–É infundada e incorreta a postura que degrada – prematuramente - o valor probatório das declarações de parte só pelo facto de haver interesse da parte na sorte do litígio. O julgador tem que valorar, em primeiro lugar, a declaração de parte e, só depois, a pessoa da parte porquanto o contrário (valorar primeiro a pessoa e depois a declaração) implica prejulgar as declarações e incorrer no viés confirmatório.

VI.–É expectável que as declarações de parte primem pela coerência e pela presença de detalhes oportunistas a seu favor (autojustificação) pelo que tais caraterísticas devem ser secundarizadas.

VII.–Na valoração das declarações de partes, assumem especial acutilância os seguintes parâmetros: contextualização espontânea do relato, em termos temporais, espaciais e até emocionais; existência de corroborações periféricas; produção inestruturada; descrição de cadeias de interações; reprodução de conversações; existência de correções espontâneas; segurança/assertividade e fundamentação; vividez e espontaneidade das declarações; reação da parte perante perguntas inesperadas; autenticidade.” (acompanhando esta orientação, v. os Acórdãos do Tribunal da Relação de Lisboa de 26.04.2022 (Conceição Saavedra), Processo n.º 117793/18.5YIPRT-A.L1-7, e do Tribunal da Relação de Évora de 11.01.2024 (Tomé de Carvalho), Processo n.º 129/21.7T8SLV.E1, ambos in http://www.dgsi.pt).

Ora, as declarações de parte da A. contêm pormenores, são fluídas, assertivas, contrastando com o depoimento vago da testemunha EE, o qual não é, por isso, idóneo a afastar a convicção formada com base nas declarações da A., do seu marido e da sua filha, que são todas convergentes nesta parte.

Quanto ao argumento do R. no sentido de que se a entrega dos 15 mil euros consubstanciasse um empréstimo teria sido reduzido a escrito, reconhecemos que se a razão para escrever a declaração de dívida atinente ao empréstimo dos 45 mil euros foi a grande discussão do casal a que a A. assistiu e que a fez prever um mau desfecho para aquela relação, então a mesma preocupação teria levado a que também o empréstimo dos 15 mil euros devesse ser formalizado.

Afigura-se, contudo, que a descrição pormenorizada efetuada pela A. permite esclarecer este aspeto, porquanto a dado passo das suas declarações, precisamente quando confrontada com a questão da falta de redução a escrito do empréstimo de 15 mil euros, a A. estabeleceu a distinção entre os dois empréstimos, justificando o diferente procedimento adotado com respeito ao segundo.

Diz, então, a A. que “íamos emprestar os 15 mil para o dia da escritura, a seguir eles devolviam, acha que se justificava?”, “esses 15 mil euros era temporário, a partir do momento em que faziam a escritura, devolveriam”, “os 15 mil entravam e saíam na conta deles, entravam na deles e saía para a nossa”.

Já o outro empréstimo dizia respeito à aquisição do terreno, tratando-se de uma situação na qual a filha e o companheiro iriam assumir uma dívida de 225 mil euros para a construção de uma casa, empréstimo bancário da qual, aliás, os AA. iriam ser fiadores.

Esta explicação é coerente com o esclarecimento prestado pela A. sobre as circunstâncias em que ocorreu o empréstimo dos 15 mil euros, concretamente, a informação que lhe havia sido transmitida pelo R. de que para a escritura tinham de estar necessariamente 30 mil euros na conta, pelo que aquela transferência visou tão somente viabilizar a realização da escritura.

Sublinhe-se, adicionalmente, que em momento algum o R. contextualiza a alegada doação dos 15 mil euros, isto é, não diz por que motivo os pais da sua companheira resolveram dar-lhes uma quantia que ainda é avultada, sobretudo quando já lhes tinham entregue outra quantia avultada, mas a título de empréstimo.

Entendemos, em conclusão, não estar demonstrado que os 15 mil euros tenham constituído uma doação, antes tendo ficado provado que essa quantia foi entregue com o compromisso da sua restituição aos AA., quando se fizesse a escritura, pelo que devem manter-se o facto provado sob 8) e o facto não provado sob b).

Relativamente ao facto não provado sob c), é verdade que o A. declarou que a sua filha devolveu o terreno para pagar a dívida e, tendo-lhe sido diretamente perguntado se a filha não tinha também entregue dinheiro, respondeu negativamente, pese embora tenha acrescentado “que eu saiba não, isso de contas…”, explicando que é a sua mulher quem trata destes assuntos.

A A. corroborou esta última afirmação, tendo explicado que apesar da conta bancária e do dinheiro ser dos dois, quem faz as transferências e acompanha os movimentos é a A..

No mais, porém, a A. distanciou-se do depoimento do marido, asseverando que a filha lhes entregou 25 mil euros que tinha depositados numa poupança aberta pelos pais, consubstanciando essa entrega o pagamento de metade do empréstimo de 45 mil euros e metade de € 5.000,00 - parcela que remanesceu na conta depois do R. retirar 10 mil euros, sendo que a A. entende não ser a sua filha responsável pela restituição desta quantia, uma vez que a conta para onde a mesma foi retirada pertenceria a alguém da família do R..

Reconheceu ainda a A. a doação de que foi beneficiária, mas garantiu que o seu escopo não foi o pagamento da dívida, mas tão somente evitar o confronto da filha com o R..

Não obstante, quando questionada sobre o destino do produto da venda do imóvel, no âmbito da ação de divisão de coisa comum que está pendente, retorquiu que era para si, acrescentando “o terreno é meu”, frase que repetiu em mais momentos das suas declarações.

A filha dos AA. prestou um depoimento hesitante, evasivo, contraditório, que continuou a suscitar dúvidas, mesmo após a terceira tentativa de esclarecimento desta precisa questão por parte do Senhor Juiz a quo, como foi sublinhado na ocasião.

Com efeito, a testemunha referiu que fez a doação à sua mãe com a intenção de evitar um conflito com o seu ex-companheiro, uma vez que têm um filho menor, sendo o depoimento nesta parte convergente com o da sua mãe.

Porém, quando questionada sobre o destino a dar ao dinheiro proveniente da venda do imóvel na aludida ação de divisão de coisa comum, começou por referir que o dinheiro era para “os lesados”, confirmando, de seguida, que se estava a reportar aos seus pais – nas palavras da testemunha, “não houve casa, não houve nada, e os meus pais ficaram a perder com tudo” -, mas depois tergiversou e afirmou que não estava desinteressada da ação de divisão de coisa comum e que podia até revogar a doação, “se for preciso”.

Acabou a dizer que queria que este assunto se resolvesse, tendo tido a expectativa de que o R. se entendesse com a sua mãe, mas se não se resolvesse, então a testemunha avançaria com um processo contra o R..

A forma como a testemunha se expressou a final parece apontar no sentido de que a doação à sua mãe visou tão somente repercutir nesta as dificuldades da tramitação da ação de divisão de coisa comum, por causa do conflito da testemunha com o excompanheiro, sem que tenha existido uma verdadeira intenção de lhe dar a sua quota do imóvel.

Sendo assim, dir-se-ia que após a sua mãe lhe resolver o prolema com o excompanheiro, devia transferir-lhe o produto da venda, uma vez que a doação teria visado apenas aquela finalidade prática – quem enfrentava o ex-companheiro e litigava com ele era a mãe e não a filha, mas a interessada era e continuava a ser a filha.

É evidente que esta parte final do depoimento da filha colide frontalmente com as declarações da sua mãe e que acima reportámos.

De todo o modo, nenhum dos dois depoimentos é verosímil quanto à justificação avançada para a doação, pois não é crível que alguém ofereça a sua quota num imóvel apenas porque tem um conflito pessoal com o outro comproprietário – desde logo, a filha dos AA. não tinha que ir pessoalmente ao tribunal, mandatava um advogado para a representar, e se quisesse manter-se afastada da tramitação do litígio, podia encaminhar o assunto para a sua mãe, de modo informal ou mediante a outorga de uma procuração que lhe conferisse poderes para resolver todos os assuntos relacionados com o imóvel.

No limite, podia ser exigida à filha dos AA. a sua presença para prestação de depoimento de parte, mas a verdade é que esta disponibilizou-se para prestar depoimento na qualidade de testemunha no âmbito dos presentes autos, pelo que aquela circunstância não constituiria certamente um obstáculo.

No demais, a posição assumida pela A. não é, de igual modo, coerente.

Com efeito, a A. manifestou bastante indignação com o facto do R. reivindicar metade do imóvel, porquanto foram os AA. que compraram o terreno e o R. em nada contribuiu para a aquisição, tendo inclusivamente apelidado o R. de “desonesto” por virtude desta sua pretensão de ser proprietário de metade do imóvel só com fundamento na circunstância de ter sido adquirido em seu nome.

À luz desta indignação dir-se-ia que, para a A., a doação consubstanciou uma compensação pelo esforço financeiro feito para a aquisição do terreno, o que corresponderia, inclusivamente, ao que se mostra consignado no escrito elaborado pela A. com respeito a este empréstimo de 45 mil euros, onde se especificou que se houvesse algum impedimento à sua restituição, a filha dos AA. e o seu companheiro celebrariam escritura destinada a transferir o imóvel para os AA..

Tanto a A., quanto a filha reiteraram que o R. insiste em que o imóvel é seu, pretendendo receber a sua parte na venda, ou seja, o R. não se mostrou disponível para transferir a sua metade do imóvel para os AA..

Esta indignação só se compreende, assim, se se tratar de alguém que ainda se sente prejudicada, o que confere, aliás, com a referência da filha dos AA. aos seus pais como “lesados”.

Tudo apontaria, deste modo, para que a doação constituísse o pagamento do empréstimo.

Porém, a A. reiterou no seu depoimento que a filha nada lhe deve.

Ora, se a filha da A. nada lhe deve e se a intenção da doação não foi a de conceder um benefício patrimonial à A., então não faz sentido que a A. declare que o produto da venda de metade do imóvel lhe pertence, pois isso equivale a enriquecer à custa da filha, dela recebendo uma quantia equivalente ao dobro do valor da dívida.

Também o depoimento da filha não faz sentido, pois estando a correr termos processo de divisão de coisa comum necessariamente o problema vai ser resolvido, na medida em que se não houver acordo para a adjudicação, avança-se para a venda e reparte-se o produto respetivo na proporção das quotas. Não se vislumbra, deste modo, o que queria a testemunha dizer quando afirmou que revogaria a doação se fosse preciso.

Ou seja, as versões de cada um dos AA. e da sua filha são contraditórias entre si:

- o A. aponta a doação como pagamento da dívida e declara desconhecer qualquer transferência de dinheiro efetuada pela filha a este respeito;

- a A. recusa que a doação se tenha destinado ao pagamento da dívida, afirmando que a dívida foi paga em dinheiro, com as poupanças da filha, mas apesar de referir também que a doação visou apenas evitar o confronto entre a sua filha e o R. no processo de divisão de coisa comum, respondeu que o produto da venda da respetiva quota lhe pertence;

- a filha declarou, de igual modo, que a doação foi feita apenas para evitar o confronto com o R., porém, afirmou simultaneamente que o produto da venda da metade do imóvel doada à mãe, no âmbito da ação de divisão de coisa comum, pertence à mãe, e a final acabou por referir que ainda pode vir a revogar a doação.

Em face de todo o exposto, afigura-se que o único depoimento integralmente coerente é o do A., o qual, apesar de não acompanhar os movimentos da sua conta bancária, acompanha os assuntos domésticos, aliás, a A. esclareceu que dava conhecimento de todos os assuntos ao marido, o que corresponde à normalidade da vida das famílias.

E se perante questões menores será credível que possam não ser discutidas em família, já assim não sucederá quando estão em jogo quantias avultadas de dinheiro, que possuem grande impacto na vida destas pessoas – veja-se que os AA. não tinham 30 mil euros para emprestar à filha e ao R., pelo que não lhes era certamente indiferente ou pouco relevante o dinheiro de que se privavam para o emprestarem à filha e ao R..

Nestas circunstâncias, não é verosímil que o A. não soubesse que a filha já havia restituído 25 mil euros.

Acresce que apesar dos AA. terem junto aos autos múltiplos extratos bancários, não há qualquer comprovativo da transferência dos referidos 25 mil euros, sendo certo que uma quantia destas não se paga em dinheiro vivo, até porque foi dito em audiência que se tratava de dinheiro existente numa conta poupança aberta pelos AA. em nome da filha.

Nem sequer a A. ou a filha situaram no tempo, com exatidão, este alegado pagamento de 25 mil euros, desconhecendo-se, desde logo, se foi efetuado antes ou depois da doação, o que reforça a falta de credibilidade destas afirmações.

Afigura-se, deste modo, que a realidade dos factos é aquela que foi espontaneamente transmitida pelo A.: a filha doou aos pais a sua metade no imóvel, para os compensar da falta de restituição do dinheiro emprestado, pois nem a filha, nem o R. pagaram qualquer quantia a este respeito. Atenta a recusa do R. de transferir a sua quota no imóvel para os AA., restou-lhes o caminho de solicitarem através de ação judicial o pagamento da parte que entendem que o R. lhes deve, sendo esta a ação erigida para o efeito.

Diz-se, na motivação, que os AA. confessaram o recebimento dos 25 mil euros, mas neste segmento divergimos do entendimento do Tribunal a quo, pois este alegado pagamento não é um facto desfavorável aos AA. (artigo 352.º do Código Civil), antes constitui um facto que lhes permite argumentar que a filha já pagou a sua parte da dívida, pelo que o R. tem igual obrigação, que ainda não cumpriu.

Este facto serve, pois, um propósito útil na sustentação da posição dos AA., ainda que meramente instrumental, uma vez que estes não demandaram a filha, pelo que não está aqui em causa a condenação desta no pagamento de qualquer quantia.

Tudo visto, deve julgar-se provado o facto descrito sob c) e não provado o facto descrito sob 14) (artigo 662.º, n.º 1 do Código de Processo Civil).

Uma última nota a este respeito apenas para sublinhar que apesar do Recorrente indicar que a testemunha EE referiu que a filha dos AA. teria assumido, perante o R., que suportaria sozinha a restituição destes valores aos pais, por ser ela a culpada da separação, nenhuma outra prova foi produzida neste sentido, afigurando-se insuficiente para este efeito o relato daquela testemunha, que de novo não é circunstanciado.

Acresce que à luz das regras da experiência comum as duas realidades expostas não se confundem, quer dizer, é muito frequente os casais desavindos discutirem questões patrimoniais, mas a forma como o relacionamento amoroso acaba não tem qualquer influência neste domínio.

6. Há, ainda, um segmento da matéria de facto provada que, atento o disposto no artigo 662.º, n.º 1 do Código de Processo Civil, deve o Tribunal alterar, eliminando-o, a saber, a menção contida no facto provado sob 5) de que a filha dos AA. e o R. adquiriram o terreno “sem determinação de parte ou direito”.

Trata-se de uma específica menção usada habitualmente em sede de comunhão hereditária, sendo a expressão completa “em comum e sem determinação de parte ou direito”, com o significado de que nenhum dos herdeiros tem direito a parte especificada de cada um dos bens concretos que integram a herança (v. o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 27.02.2018 (Sílvia Pires), Processo n.º 1927/15.0T8LRA.C1, in http://www.dgsi.pt/).

Porém, esta menção não consta da escritura pública, nem foi vertida na correspondente inscrição da aquisição no registo predial (Ap. ...98, de 09.07.2019), como se verifica ao compulsarmos os referidos documentos (fls. 75-v a 77 e 78-v a 80), sendo certo que não se trata aqui de qualquer caso de comunhão patrimonial, pelo que os documentos juntos aos autos e cuja falsidade não foi arguida determinam a alteração do facto 5), dele se retirando a referida menção.

B) Enquadramento jurídico

1. O percurso lógico do Tribunal a quo assentou nas seguintes ideias chave:

- os AA. emprestaram à sua filha e ao R. € 45.000,00 e € 15.000,00, para estes adquirirem um terreno e construírem uma moradia;

- a filha dos AA. e o R. vieram a terminar o seu relacionamento conjugal;

- após este evento, a filha dos AA. entregou-lhes € 22.500,00 em dinheiro, com vista a saldar os aludidos empréstimos;

- os empréstimos são nulos, por inobservância da forma legal;

- a obrigação de restituição dos valores recebidos, em consequência da nulidade dos negócios, constitui uma obrigação conjunta e não uma obrigação solidária, pelo que cada um dos beneficiários dos empréstimos, a filha dos AA. e o R., tem a pagar o valor de € 30.000,00;

- não estando provado que o R. tenha entregue qualquer quantia aos AA. por conta dos empréstimos, deve o mesmo ser condenado no pagamento dos referidos €
30.000,00.

Dissente o R. da sentença com fundamento em que apenas foram emprestados € 45.000,00, porquanto os € 15.000,00 aludidos pelos AA. consubstanciaram uma doação; a doação do imóvel visou saldar a dívida decorrente do empréstimo; e a obrigação de que se cura é solidária, logo, atendendo a que a filha do casal já satisfez a quantia total de € 51.415,38, correspondente à soma da quantia paga em dinheiro (€ 25.000,00) com o valor da metade do imóvel doado (€ 26.415,38), até já foram pagos € 6.415,38 para além do valor em dívida.

Ora, no que concerne às circunstâncias em que foram entregues € 15.000,00 pelos AA. à sua filha e ao R., da decisão da matéria de facto decorre que não se tratou de uma atribuição patrimonial efetuada sem qualquer contrapartida ou obrigação de restituição (facto não provado b)), antes a filha dos AA. e o R. assumiram o compromisso de restituírem esse valor quando viesse a ser aprovado o crédito bancário solicitado para construção do imóvel (facto provado 8)).

Na sentença discorre-se sobre o enquadramento jurídico do caso, posicionando as duas entregas de dinheiro efetuadas com a obrigação da sua restituição na figura do contrato de mútuo (artigo 1142.º do Código Civil).

Por outro lado, ambos os contratos são nulos, porquanto atentos os valores envolvidos (€ 45.000,00 e € 15.000,00) devia o primeiro ter sido celebrado por escritura pública ou documento particular autenticado e o segundo por documento particular assinado pelo mutuário, sendo certo que se trata de exigências formais ad substantiam (artigos 1143.º e 220.º do Código Civil).

A declaração de nulidade opera retroativamente e determina o dever de restituir o que haja sido prestado, nos termos do artigo 289.º, n.º 1 do Código Civil, colocandose as questões de saber qual o montante a restituir e quem está obrigado a proceder a essa restituição.

Aqui surge a discussão desenvolvida nos autos sobre a natureza conjunta ou solidária da obrigação de restituição, que o Tribunal a quo resolve no primeiro sentido, por entender que não resulta da lei a solidariedade e não decorre também a mesma das circunstâncias do negócio.

Nos termos do artigo 512.º, n.º 1 do Código Civil, “A obrigação é solidária, quando cada um dos devedores responde pela prestação integral e esta a todos libera, ou quando cada um dos credores tem a faculdade de exigir, por si só, a prestação integral e esta libera o devedor para com todos eles.”

E segundo o artigo 513.º do Código Civil, “A solidariedade de devedores ou credores só existe quando resulte da lei ou da vontade das partes.”

Comentando este preceito, explica Ana Afonso (Comentário ao Código civil: direito das obrigações, das obrigações em geral, coord. [de] José Brandão Proença – Lisboa: Universidade Católica Editora, 2018, p. 434) que no Código Civil de 1867 se formulava expressamente a regra da conjunção, constante do respetivo artigo 731.º, que rezava assim:

“Sendo vários os obrigados a prestar a mesma coisa, responderá cada um deles proporcionalmente”.

Não obstante, pode afirmar-se que o atual preceito contém “a consagração da regra geral da parciariedade como resultado indireto da excecional consagração da solidariedade” (idem, p. 435).

Em síntese, existindo pluralidade de devedores, se a obrigação é solidária, o credor pode exigir de qualquer dos devedores o pagamento integral, mas em caso de conjunção passiva apenas lhe é lícito exigir de cada um dos devedores o pagamento da parte pela qual cada um responde (ibidem).

Ora, desde logo, como bem aponta a sentença recorrida, inexiste no caso em apreço norma legal que imponha a solidariedade, pelo que esta só poderia ter suporte no acordo das partes.

O acordo das partes pode ser expresso ou tácito (artigo 217.º do Código Civil), devendo extrair-se dos termos em que a obrigação é contraída, nos casos em que não se consigne no acordo o modo de vinculação dos obrigados.

Na situação vertente não foi afirmado pelas partes que respondesse cada uma proporcionalmente ou pela totalidade da dívida, pelo que não houve acordo expresso.

Entendeu, nesta sequência, o Tribunal a quo que o facto de ter sido estabelecido que, caso ocorresse impedimento à restituição em dinheiro, deveriam ambos os devedores proceder à transmissão da propriedade do imóvel para os AA., permite concluir que se tratava de uma dívida conjunta.

Sustenta, diversamente, o R. que tendo assumido com a filha dos AA. a obrigação de restituírem ambos o valor emprestado, daí deve retirar-se a natureza solidária da dívida.

Na jurisprudência a questão tem sido debatida, localizando-se arestos que se pronunciam sobre a conjunção/solidariedade em presença de contratos de mútuo válidos e um aresto que aborda a questão sob a perspetiva do contrato de mútuo
nulo.

Assim, com respeito a contratos de mútuo válidos:

- no Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 19.05.2011 (Manuel Bargado) (Processo n.º 1585/10.9TBVCT-A.G1, in http://www.dgsi.pt/) decidiu-se ter sido tacitamente estabelecido o regime da solidariedade num caso onde a dívida foi assumida por duas pessoas, as quais se obrigaram “sem descriminação de preço, sem quaisquer diferenças de conteúdo quanto aos montantes que caberia a cada um por virtude dos negócios celebrados” (compra e venda e mútuo com hipoteca, e mútuo com hipoteca), sendo a cobrança das prestações efetuada “numa conta de depósitos à ordem aberta em nome dos dois, a qual se obrigaram a manter aprovisionada para o efeito.”

- no Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 24.02.2015 (Conceição Saavedra) (Processo n.º 4548/08.0TBCSC.L1-7, in http://www.dgsi.pt/), entendeu-se que “I- Uma vez que a solidariedade de devedores só existe quando resulte da lei ou da vontade das partes se, na falta de menção expressa, se concluir que no contrato de financiamento contraído para aquisição de imóvel, em comum e partes iguais, os dois mutuários se obrigaram perante o Banco financiador, de igual forma, como a “Parte Devedora”, sem qualquer independência nas prestações, é de concluir tratar-se de uma obrigação solidária;”

- no Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 28.01.2020 (Alberto Ruço) (Processo n.º 9956/15.8T8CBR-A.C1, in http://www.dgsi.pt/), considerou-se existir obrigação solidária contraída perante o banco financiador por duas pessoas, que se vincularam em simultâneo e da mesma forma, pretendendo alcançar uma finalidade comum (reestruturação da dívida).

- no Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 02.06.2020 (Luís Cravo) (Processo n.º 1990/19.5T8VIS.C1, in http://www.dgsi.pt/) concluiu-se que “É patente no caso ajuizado a existência de acordo no sentido da solidariedade, desde logo porque os valores mutuados pela Autora foram solicitados por ambos os RR., sendo que os referidos valores deviam ser liquidados por força dos valores depositados em conta titulada pelos mesmos RR., ou seja, as quantias mutuadas foram-no sem descriminação de partes, sem quaisquer diferenças de conteúdo quanto aos montantes que caberia a cada um dos RR. por virtude do negócio celebrado com a A., isto é, estes facta concludentia permitem concluir que, de uma forma tácita, os RR. se obrigaram perante a A. a cumprir, de forma solidária, as obrigações resultantes do contrato de mútuo que celebraram.”

E com referência a um contrato de mútuo nulo, considerou-se no Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 12.09.2019 (Ana Margarida Leite) (Processo n.º 308/16.3T8BJA.E1, in http://www.dgsi.pt/), citado na sentença, que “as obrigações plurais de natureza civil são, por regra, parciárias, sendo este o regime regra, o qual é aplicável salvo se o regime excecional da solidariedade resultar da lei ou da vontade das partes.

Não prevendo a lei a solidariedade passiva no caso da obrigação de restituição decorrente da declaração de nulidade do negócio, nem relevando para o efeito a eventual vontade das partes quanto ao cumprimento das obrigações decorrentes do contrato de mútuo – dado não estar em causa o cumprimento da obrigação contratual a que alude o artigo 1142.º do Código Civil, mas da obrigação legal de restituição dessa quantia como consequência da nulidade do contrato –, é de aplicar o regime supletivo e considerar que se trata de uma obrigação parciária.”

A declaração de nulidade tem, efetivamente, como consequência a destruição retroativa do negócio, o que implica a extinção de todos os seus efeitos obrigacionais, abarcando os créditos e as obrigações, assim como os deveres secundários ou acessórios, e ainda a extinção dos efeitos criativos, transmissivos, potestativos, extintivos e modificativos (Carlos Ferreira de Almeida, Contratos V: Invalidade, 6ª ed., Coimbra, 2017, p. 244).

Isso não significa, todavia, a desconsideração absoluta do conteúdo do negócio, pois como afirma Menezes Cordeiro (Tratado de Direito Civil Português, I, Parte Geral, Tomo I, 3ª ed., Coimbra, 2009, p. 873), o negócio nulo “existe: quer social, quer juridicamente. Ele vai produzir alguns efeitos, variáveis consoante as circunstâncias. Tais efeitos são imputáveis à lei. Todavia, devemos estar prevenidos para o facto de eles dependerem, primacialmente, da vontade das partes. Desde logo esta domina os institutos da redução e da conversão, ainda que na versão objectiva da «vontade hipotética». Mas ela condiciona, também, os próprios deveres de restituição, resultantes, no essencial, da conformação do contrato viciado.”

A prestação acordada pelas partes constitui, de facto, a “referência substitutiva da restituição” nos casos de invalidade por insuficiência de forma ou incompletude do conteúdo (Carlos Ferreira de Almeida, ob. cit., p. 245).

A questão reside em saber se podemos colher no conteúdo do negócio inválido outras referências, com vista à delimitação do dever de restituição, tendo sido esse o caminho encetado pelo Tribunal a quo.

A esta luz, constatamos não resultar da matéria de facto provada que o R. e a filha dos AA. fossem casados entre si, pelo que não existe qualquer regime de comunhão de bens a atender.

Assim, estando provado que adquiriram os dois um imóvel, sem que conste da matéria de facto provada que tenham sido estipuladas na escritura quotas diferentes para cada um ou que tenha cada um assumido distintos encargos relativamente à coisa, tornaram-se comproprietários do imóvel, ficando cada um titular de uma quota de metade (artigos 217.º, n.º 1 e 1403.º do Código Civil; Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, vol. III, Coimbra, 1987, p. 349).

As obrigações dos comproprietários caracterizam-se por serem conjuntas, na medida em que participam, na proporção das suas quotas, nas vantagens e encargos da coisa, conforme se dispõe no artigo 1405.º do Código Civil (conjunção “originária”, na designação de Ribeiro de Faria, Direito das Obrigações, vol. II, Coimbra, 1990, p. 165).

É certo que a dívida de que se cura não é um encargo da coisa, antes foi contraída a montante desta situação jurídica, porém, é uma dívida totalmente afeta à constituição da compropriedade, porquanto o preço do imóvel foi satisfeito, na íntegra, com o empréstimo providenciado pelos AA..

Por outro lado, não se tratando de um empréstimo concedido por um banco ou uma entidade financiadora, mas antes por familiares diretos de um dos comproprietários, a questão da proteção dos interesses do credor, que avulta como fator decisivo na instituição do regime da solidariedade (“facilita-se o crédito (…) e , do mesmo passo, protege-se o credor contra o risco de insolvência de qualquer dos obrigados” – Ribeiro de Faria, idem, p. 169), reveste-se aqui de menor impacto, assomando a confiança pessoal como elemento determinante.

Assim, destinando-se o empréstimo a suportar o pagamento do preço do imóvel adquirido em regime de compropriedade, e não intercedendo um regime de comunhão, por virtude dos membros do casal não terem contraído matrimónio, a que acresce o facto dos mutuantes serem pais de um dos mutuários, as circunstâncias do caso justificam que a responsabilidade pela restituição deva ocorrer nos mesmos moldes em que funciona a compropriedade, isto é, proporcionalmente às quotas de que cada um ficou titular no imóvel.

Aliás, como bem sublinha o Tribunal a quo, a forma encontrada pelas partes para solucionar o eventual impedimento da restituição em dinheiro aponta nessa direção, pois foi acordada a transmissão da propriedade do imóvel a favor dos AA., o que implica que cada um declare ceder a sua quota de metade do imóvel.

Deste modo, no plano subjetivo, a restituição derivada da nulidade do mútuo deve seguir o regime da conjunção, respondendo cada um dos obrigados por metade do valor a restituir.

Assim, quanto ao valor a restituir, atendendo a que no total os empréstimos atingem os € 60.0000,00, cada um dos obrigados tem a entregar € 30.000,00 aos AA..

2. Está provado que a filha dos AA. doou à A. a sua quota de metade do imóvel e que o R. nada entregou aos AA. por conta da sua dívida.

As obrigações conjuntas ou parciárias não possuem regime legal próprio, ao contrário do que sucede com as obrigações solidárias, pelo que deve o seu regime ser encontrado a partir das circunstâncias de cada caso (Ana Afonso, ob. cit., ibidem).

Sem prejuízo, é consensual que “cada vínculo obrigacional goza de vida autónoma, sem qualquer relação ou interdependência de uns em relação aos outros, e de forma que os actos ou factos jurídicos praticados por um dos sujeitos ou em relação a cada um deles não repercutem quaisquer efeitos nos restantes sujeitos (cumprimento, declaração de nulidade ou de insolvência)” (Ribeiro de Faria, ob. cit., p. 163).

Assim, porque apenas está aqui em causa a posição do R. relativamente aos AA. e este nada pagou com respeito à dívida dos empréstimos, deve o R. ser condenado no aludido pagamento de € 30.000,00, pelo que deve ser confirmada a decisão recorrida.

C) Custas

As custas são suportadas pelo Recorrente, que fica vencido (artigo 527.º, n.ºs 1 e 2 do Código de Processo Civil).

IV – Dispositivo

Pelo exposto, acordam os Juízes da Secção Cível deste Tribunal da Relação em julgar improcedente o recurso, mantendo a decisão recorrida.

Custas pelo Recorrente.

Évora, 21-11-2024

Sónia Moura

Manuel Bargado

Maria João Sousa e Faro