Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
2554/23.4T8PTM.E1
Relator: SUSANA COSTA CABRAL
Descritores: DOMÍNIO HÍDRICO DO ESTADO
TITULARIDADE
DOMINIALIDADE
ÓNUS DA PROVA
Data do Acordão: 11/21/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: I. No âmbito do regime previsto no artigo 15.º, n.º 2, da Lei n.º 54/2005, de 15 de novembro (que estabelece a titularidade dos recursos hídricos), para que os Autores alcancem o reconhecimento da propriedade sobre um prédio que se insere, em toda a sua extensão, na margem do Rio Arade, no domínio público marítimo, incumbe- lhes alegar e demonstrar, além da titularidade do prédio, que o mesmo era objeto de propriedade particular ou comum, desde antes de 31 de dezembro de 1864, por título legítimo.
II. Não o fazendo, não logram ilidir a presunção de dominialidade a favor do Estado, pelo que improcede a ação.
(Sumário da Relatora)
Decisão Texto Integral: Recurso de Apelação n.º 2554/23.4T8PTM.E1

Tribunal Judicial da Comarca de Faro, Juízo Central Cível de Portimão - Juiz 1
*
SUMÁRIO (artigo 663.º, n.º 7, do CPC): (...)

Acordam os Juízes do Tribunal da Relação de Évora:

1. Relatório:
(…) e mulher (…), propuseram a presente ação declarativa sob a forma de processo comum contra o Estado Português, pedindo que se reconheça e se declare judicialmente que a propriedade do prédio urbano sito na Rua (…), n.º 32 , em (…), Lagoa, melhor identificado no artigo 1.º da petição inicial e que se encontra situado junto à margem do rio, já era privada antes de 31/12/1864, e que assim se tem mantido, por via de sucessivas transmissões de direito privado, até ser adquirida pelos autores, ficando assim ilidida a presunção juris tantum de dominialidade do referido prédio a favor do Estado Português.
O Ministério Público, em representação do Estado Português, contestou, impugnando o trato sucessivo alegado para além de 1955.
As partes prescindiram da prova testemunhal, pelo que foi dispensada a audiência final.
Após as partes terem alegado por escrito, foi proferida sentença que julgou improcedente a ação e, em consequência, absolveu o Estado Português do pedido.
*
Os AA inconformados com o decidido interpuseram o presente recurso, finalizando as suas alegações com a formulação das seguintes conclusões (transcrição parcial):
I. Considerou o Tribunal recorrido que “[A] factualidade dada por provada resultou da análise dos documentos juntos para os quais foi sendo feita referência. As remissões para os documentos serão feitas paras as fls. de processado uma vez que, no citius, os documentos não estão autonomizados. O Tribunal apenas considerou a factualidade que resulta dos documentos, não inferindo a partir dos mesmos, por exemplo que o artigo (…) resulta de parte do artigo (…) da freguesia de (…) – cfr. certidão das Finanças de fls. 129.”
II. Mal andou o Tribunal ao considerar que, “[D]ada a excecionalidade da previsão legal supra (reconhecer como privado prédio que, segundo a lei geral, integra o domínio público), tem se se verificar, a nosso ver, a exata coincidência dos prédios apontados pelos autores de 1976 para trás, até, pelo menos, 31 de dezembro de 1864.”
III. E, por outro lado, incorreu num vício de fundamentação ao considerar que havia de ser apurado “(…) se as diferentes transmissões a que os autores se reportaram dizem respeito ao mesmo objeto, o prédio que está hoje descrito sob o n.º (…) e inscrito na matriz sob o artigo (…), anteriormente descrito com o n.º (…), a fls. 111 do Livro B-4”.
IV. O Tribunal a quo incorreu em erro de julgamento, por duas ordens de razão:
- Primeiro, porque nada resulta da lei ter de verificar-se uma “exacta coincidência dos prédios”, com referência àqueles que foram apontados pelos autores nestes autos.
- Em segundo, a lei também não obriga a que o prédio dos autores, para o êxito da sua
demanda, tivesse que corresponder ao “mesmo objecto” que foi sucessivamente transmitido ao longo do tempo, desde dezembro de 1864 até à data em que o adquiriram (1976).
V. O que os Autores tinham era que demonstrar documentalmente, que o terreno ocupado pelo seu prédio (ainda que fizesse parte integrante de outro prédio com área superior ou distinta que o abrangesse) era, por título legítimo, objeto de propriedade particular ou comum antes de 31 de dezembro de 1864, tal como resulta, expressamente do n.º 2 do artigo 15.º da Lei n.º 54/2005, de 15/11.
VI. Por outro lado, se, porventura, não existirem documentos “(…) suscetíveis de comprovar a propriedade nos termos do número anterior, deve ser provado que, antes das datas ali referidas, os terrenos estavam na posse em nome próprio de particulares ou na fruição conjunta de indivíduos compreendidos em certa circunscrição administrativa” tal como vem previsto no n.º 3 do referido artigo 15.º.
VII. A sentença, ao contrário do que devia, não se refere objectivamente a “terrenos”, que nos parece ser coisa distinta. Se na sentença recorrida se pretende fundamentar que o prédio actual dos autores (tal como hoje é identificado predial e matricialmente) devia corresponder a um prédio que existisse já, anteriormente a 1864, parece, tal fundamento, incorrer em erro de julgamento, uma vez que a lei refere-se a “terrenos”, portanto, a um espaço de terra mais ou menos extenso, objectivamente indefinido, mas concretamente identificável.
VIII. A douta sentença sob recurso concluiu que os prédios (em causa nos autos) situam-se na mesma área geográfica do que agora é dos autores e que podem coincidir em parte com a área do prédio atual, mas já não que aqueles, objeto de transação, têm a mesma localização e correspondem à mesma exata área geográfica do dos autores, ou que correspondam ao que é hoje o descrito com o n.º (…), motivo pelo qual a acção improcedeu.
IX. Ora, com o devido respeito, entendemos que a sentença recorrida incorreu em erro de julgamento da matéria de facto.
X. Incumbia aos Autores a prova documental de que o terreno onde se situa o prédio dos autos era, por título legítimo, objeto de propriedade particular ou comum antes de 31 de Dezembro de 1864. (….)
XI. Mal andou o Tribunal a quo, ao não ter dado como provados determinados factos.
XII. Desde logo, quando concluiu que “Não foi possível fazer corresponder o artigo (…) ao artigo (…) que por sua vez deu origem ao atual (…).”
XIII. Tal factualidade foi alegada pelos Autores, quando referiram no artigo 23º da p.i. que “o Artigo (…) foi implantado na “Courela de (…)” inscrita na matriz predial rústica sob 2/3 do Artigo (…), da freguesia de (…) – cfr. resulta dos doc. 7 e 8 juntos com a p.i..
XIV. Este facto foi dado como não provado, o que contraria a prova documental, pelo que esta matéria de facto está incorretamente julgada.
A referida conclusão a que chegou o Tribunal é, até, contraditória em face da matéria de facto provada.
Efectivamente, provou-se que o Prédio atualmente encontra-se inscrito na matriz sob o artigo (…) da freguesia de (…), o qual provêm do inscrito sob o artigo (…) da mesma freguesia e foi participado como construído de novo em 03/10/1967 – cfr doc. 24 junto com a p.i. – cfr. ponto 32 dos factos provados.
Acresce que resulta inequivocamente dos factos provados – cfr. ponto 7 dos factos provados que o (…) adquiriu, em 1955, o prédio dos autos (actual artigo …, ex artigo …, que fez parte do artigo …), por compra que fez a (…), (…) e (…), que no título – cfr. doc. 8 junto com a p.i. – foi assim descrito: “courela de fazenda no sítio da (…), freguesia de (…), concelho de Lagoa, que confronta do norte com (…), do sul com estrada, do nascente com (…) e poente com (…), o qual corresponde a 2/3 do prédio inscrito na matriz sob o artigo (…)”.
Por conseguinte, ao abrigo do artigo 640.º do CPC, impugna-se esta decisão por erro de julgamento quanto à matéria de facto, uma vez que, tendo em conta o teor dos documentos juntos aos autos com a p.i. sob os n.ºs 7, 8 e 24 e a sua respectiva conjugação e, bem assim, a matéria de facto provada constante dos pontos 7 e 32 do ponto 2.1. da douta fundamentação da decisão recorrida, deve no entender dos Apelantes ser aditada à matéria de facto provada a seguinte factualidade:
- “O Artigo (…) foi implantado na “Courela de (…)” inscrita na matriz predial rústica sob 2/3 do Artigo (…), da freguesia de (…).”
XV. Devia o Tribunal ter concluído através da prova documental junta aos autos e referente ao trato sucessivo das transmissões/transacções que ocorreram ao longo do tempo sobre os prédios referenciados nos autos, que o prédio dos autores se situa em terreno desanexado daquele que outrora fazia parte integrante da anteriormente identificada “Fazenda no Sítio das (...)”.
XVI. Ou seja, a área do prédio dos Autores, antes de obter a sua existência jurídica, integrava o prédio fazia parte integrante da área do terreno de um prédio rústico, objecto de propriedade particular, nomeadamente, o prédio rústico que, em 1839, fora então descrito como “uma Fazenda no Sítio (…), que parte do Nascente com Estrada que vai de (…) para a (…), do Norte, Poente e Sul com os (…)”, que foi adquirido, por compra, por (…), a (…) e (…) , compra essa titulada por escritura datada de 3 de maio de 1839, lavrada de fls. 8 verso a fls. 11, do livro n.º 1 do Tabelião (…), do Cartório de Portimão – cfr. doc. 23 junto com a p.i – conforme resulta do ponto 31 da matéria de facto provada.
XVII. Por conseguinte, atentas as considerações anteriormente vertidas de em 1) a 46) deste ponto recursivo, ao abrigo do artigo 640.º do CPC, impugna-se a decisão por erro de julgamento quanto à matéria de facto, uma vez que a sobredita factualidade resulta provada através da conjugação do teor dos documentos 4, 7, 8, 9, 10, 11, 12, 13, 14, 15, 16, 17, 18, 19, 20, 21, 22, 23, 26, 27, 28 e 29 juntos com a p.i., e que atenta a demais factualidade provada, nomeadamente nos pontos 1, 2, 3, 4, 5, 6, 7, 8, 9, 10, 11, 12 da matéria de facto provada na douta sentença, permite a prova da sucessiva cadeia de transmissões que ocorreram ao longo do tempo, desde 1839, data em que foi titulada a propriedade privada sobre terreno que integrava a área onde hoje se situa o prédio dos Autores, até ao ano de 1976, data em que estes adquiriram a sua propriedade e a registaram em seu nome, devendo, por conseguinte, ser aditada a seguinte factualidade como provada:
“O terreno onde se situa o prédio urbano adquirido pelos Autores a que se refere o ponto 1 dos factos provados, estava integrado no prédio rústico que, em 1839, fora então descrito como “uma Fazenda no Sítio das (…) que parte do Nascente com Estrada que vai de (…) para a (…), do Norte, Poente e Sul com os (…)”, a que se refere o ponto 31 dos factos provados.”
XVIII. Os Autores pretendem o reconhecimento da titularidade de um prédio urbano que confronta com estrada, adjacente à margem do Rio, e que, por conseguinte, está localizado em área que integra o domínio público marítimo.
XIX. Pretendem obter o reconhecimento da propriedade do prédio e invocaram a presunção do registo para prova do direito de propriedade, cuja inscrição foi lavrada em 1976.
XX. De igual forma, alegaram factos no sentido de proceder à reconstituição de todo o historial relativo à situação do prédio em causa, para provar que sempre foi objeto de propriedade particular desde data anterior a 31 de dezembro de 1864 (situando em 1834 o primeiro título legitimo de aquisição), tentando desta forma provar a posse privada até ao momento presente.
XXI. Por outro lado, alegaram factos – e juntaram prova documental – no sentido de demonstrar que o prédio actual dos Autores corresponde a terreno que se integrava em prédio que, em 1834 já era, por título legítimo, objecto de posse e propriedade particular.
XXII. O Tribunal a quo notificou as partes do despacho de fls., de 23/01/2024, com o seguinte teor: “[E]m vista da natureza da acção e de a mesma depender de prova documental, a qual será oportunamente apreciada, é intenção do Tribunal não vir a designar audiência prévia, definir o objeto do processo ou fixar os temas de prova, assim como não designar audiência. (…)”
XXIII. Mal andou o Tribunal recorrido ao considerar ser indispensável e exclusivo o meio de prova documental.
XXIV. Ora, nesta acção está em causa apurar se o prédio, cuja propriedade os Autores visam reconhecer, foi objeto de propriedade particular ou posse em nome próprio de particulares ou esteve na fruição conjunta de indivíduos compreendidos em certa circunscrição administrativa desde data anterior a 31 de dezembro de 1864 (uma vez que não se trata, aqui, de arribas alcantiladas).
XXV. Considerou-se na sentença que: “Os autores pretendem que venha a se reconhecida a titularidade privada do prédio anterior a 31 de dezembro de 1864 (cfr. as alegações de 12 de março) já que, nos termos da lei, o prédio integra o domínio público marítimo. (…)”
XXVI. Para esse efeito, considerou que devia “(…) ser provado documentalmente que tais terrenos [destaque nosso] eram, por título legítimo, objeto de propriedade particular ou comum antes de 31 de dezembro de 1864 ou, se se tratar de arribas alcantiladas, antes de 22 de março de 1868 – artigo 15.º, n.º 2.” (…) E que, “Essa prova documental deverá sustentar não só que a parcela de terreno se encontrava na propriedade de particulares antes de se estabelecer a presunção de dominialidade, mas também que a mesma nunca saiu da esfera privada, atendendo a que a presunção de dominialidade terá de ser afastada relativamente a toda a história do bem (…) a prova (necessariamente documental, como se enfatizou) tem que ser segura, direta e sem margem para qualquer dúvida (…)”.
XXVII. Concluiu-se, ainda, na douta sentença recorrida que:
“- Foram transacionados terrenos privados,
- Os prédios situam-se na mesma área geográfica do que agora é dos autores e que podem coincidir em parte com a área do prédio atual, Mas já não que aqueles, objeto de transação, têm a mesma localização e correspondem à mesma exata área geográfica do dos autores, ou que correspondam ao que é hoje o descrito com o n.º (…).
Assim, a ação improcederá.”
XXVIII. Na posição defendida na sentença a matéria em litígio está sujeita ao regime de prova documental e porque os Autores não lograram estabelecer toda a cadeia de actos reveladores da propriedade até à data da instauração da ação, tal circunstância determina a improcedência da ação.
XXIX. Salvo o devido respeito e melhor opinião em sentido contrário, não concordam os Autores com tal entendimento, uma vez que estando em causa a prova que os terrenos permaneceram ininterruptamente na propriedade privada depois da data de 31 de dezembro de 1864, ou, ainda, a prova da propriedade atual do prédio, não se verificam quaisquer restrições de prova, exceto quanto à confissão.
XXX. O mesmo se diga no que se refere à eventual prova da correspondência da localização dos terrenos, no caso de o prédio actual ter sido desanexado de outro, objecto de propriedade particular, do qual fizesse parte integrante e em relação ao qual esteja alegada a posse ou propriedade particular anterior a 1864, desde que se demonstre ter esta existido por prova documental (ou seja, título legítimo de aquisição).
XXXI. O reconhecimento da titularidade pode ser alcançado mediante a alegação e prova da propriedade (n.º 2) ou da posse (n.º 3).
XXXII. Partindo do elemento literal e teleológico na interpretação da norma, deve considerar-se que para se reconhecer a propriedade privada se mostra suficiente que o autor faça prova da propriedade ou posse no período anterior a 31 de dezembro de 1864 ou antes de 22 de março de 1868, se se tratar de arribas alcantiladas, por título legítimo (à luz do Código Civil de Seabra) e ainda, a prova da propriedade atual da parcela que visa reconhecer como fora do domínio público hídrico, não sendo necessária a prova de toda a história de transmissões do bem e do reatamento do trato sucessivo até ao momento presente.
XXXIII. “O entendimento amplo do preceito, segundo o qual o particular interessado deve fazer prova que o terreno permaneceu na condição de “propriedade privada” desde 1864 até ao momento atual, para além de não ter na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso (artigo 9.º, n.º 2, do Código Civil), não está de acordo com a presunção de que o legislador soube exprimir o seu pensamento em termos adequados (artigo 9.º, n.º 3, do Código Civil), nem é exigido pela razão de ser do regime jurídico em causa, que teve por objetivo a proteção de direitos adquiridos” [Cfr. Ac. STJ, de 30 novembro de 2021, Proc. n.º 2960/14.5TBSXL.L1.S1, acessível em www.dgsi.pt].
XXXIV. Nesse sentido podem consultar-se, entre outros, os Ac. Rel. Évora 08 de novembro de 2018, Proc. n.º 1675/17.7T8PTM.E1, Ac. Rel. Lisboa 20 de outubro de 2016, Proc. 411/13.1TBPTS.L1-2, Ac. Rel. Lisboa 14 de julho de 2020, Proc. 6948/18.9T8SNT.L1-6, Ac. Rel. Lisboa 15 de dezembro de 2020, Proc. 2960/14.5TBSXL.L1-7 e ainda, o Ac. STJ 30 de novembro de 2021, Proc. n.º 2960/14.5TBSXL.L1.S1, acessíveis em www.dgsi.pt.
XXXV. Ora, pelo quanto já ficou exposto supra, não restam dúvidas que os Autores alegaram e s.m.o. provaram a propriedade privada sobre terreno que correspondia ao prédio originário, por justo título, desde 1834, assim como fizeram prova da propriedade privada do prédio actual em causa nos autos, corresponde a terreno que fazia parte integrante daquele, e que adquiriram por compra em 1976, encontrando-se registado na Conservatória em seu nome e, por esse motivo, devia ter procedido a acção.
XXXVI. Caso assim não fosse entendido e tendo os Apelantes alegado factos no sentido de proceder à reconstituição de todo o historial relativo à situação do prédio em causa, para provar que sempre foi objeto de propriedade particular desde data anterior a 31 de dezembro de 1864 (situando em 1834 o primeiro título legitimo de aquisição), tentando desta forma provar a posse privada até ao momento presente e, por outro lado, alegado factos – com prova documental – no sentido de demonstrar que o prédio actual dos Autores corresponde a terreno que se integrava em prédio que, em 1834 já era, por título legítimo, objecto de posse e propriedade particular, considerando a posição defendida na jurisprudência no sentido de recair sobre o autor o ónus de ilidir a presunção de dominialidade, estabelecendo o trato sucessivo do prédio até ao momento presente, não se pode considerar que os factos apurados sejam suficientes para julgar a pretensão dos Autores.
XXXVII. A prova dos factos alegados não depende apenas de prova documental, podendo a autora socorrer-se de outros meios de prova, desde que não seja a confissão.
XXXVIII. A decisão recorrida apreciou do direito, sem permitir a produção de prova sobre matéria controvertida: a prova da propriedade privada ou da posse privada ininterrupta desde data posterior a 31 de dezembro de 1864 e até à data da instauração da ação e a correspondência do terreno do prédio dos Autores com aquele que em 1834 fora objecto de propriedade particular, por título legítimo.
XXXIX. Os factos não estavam sujeitos apenas a prova documental e por isso, o processo não reunia desde logo os elementos de facto necessários para a decisão do litígio em sede de saneador, devendo prosseguir os seus termos com produção de prova.
XL. O legislador apenas fez exigências específicas de prova nos casos do n.º 2 do artigo 15.º, ao exigir que o autor faça prova documental que tais terrenos eram por título legítimo objeto de propriedade particular ou comum antes de 31 de dezembro de 1864 ou antes de 22 de março de 1868, se se tratar de arribas alcantiladas.
XLI. Quanto à prova de que os terrenos permaneceram ininterruptamente na propriedade privada, ou, na posse, em nome próprio de particulares ou na fruição conjunta de indivíduos compreendidos em certa circunscrição administrativa, depois daquelas datas ou atos, mediante reconstituição dos atos transmissivos subsequentes será admissível qualquer meio de prova.
XLII. O mesmo se dizendo quanto à prova da correspondência física dos terrenos que integram a pretensão dos Autores.
XLIII. Deve, assim, concluir-se que se omitiram na apreciação da questão em litígio factos essenciais, sendo certo que a prova produzida se mostra insuficiente para o tribunal de recurso apreciar tal matéria em substituição do tribunal de 1ª instância, o que justifica, em parte, a anulação da sentença, devendo os autos prosseguir os ulteriores termos com apreciação da matéria controvertida relacionada com a posse privada do prédio, sopesando as várias soluções plausíveis de direito.
XLIV. Quanto a este concreto ponto, dispõe o artigo 595.º do CPC que o despacho saneador destina-se a conhecer imediatamente do mérito da causa, sempre que o estado do processo permitir, sem necessidade de mais provas, a apreciação, total ou parcial, do ou dos pedidos deduzidos ou de alguma exceção perentória.
XLV. Enquadram-se na previsão da norma as situações em que não haja necessidade de mais provas do que aquelas que já estão adquiridas no processo [cfr. José Lebre de Freitas, A Ação Declarativa Comum – À luz do Código de Processo Civil de 2013, 3ª edição, Coimbra, Coimbra Editora, 2013, pág. 183], nomeadamente quando:
- toda a matéria de facto se encontre provada por confissão expressa ou tácita por acordo ou documento;
- quando seja indiferente, para qualquer das soluções plausíveis, a prova dos factos que permanecem controvertidos, por serem manifestamente insuficientes ou inócuos –inconcludência do pedido - para apreciar a pretensão do Autor ou a exceção deduzida pelo Réu;
- quando todos os factos controvertidos careçam de prova documental [Cfr. António dos Santos Abrantes Geraldes, Temas da Reforma do Processo Civil , vol. II, 3ª edição revista e atualizada, Coimbra, Almedina, 2000, pág. 138.].
XLVI. No entanto, nas situações em que concluída a fase dos articulados, se conclui, com recurso aos dispositivos de direito probatório material ou formal, pela existência de um leque de factos que ainda permanecem controvertidos, o Tribunal deve fazer prosseguir a ação, ponderando as diversas soluções plausíveis da questão de direito.
XLVII. O conhecimento do mérito da causa, em sede de saneador, deve reservar-se para as situações em que o processo contenha todos os elementos necessários para uma decisão conscienciosa e que não seja apenas aquela que o juiz da causa perfilha, devendo assim atender-se às diferentes soluções plausíveis de direito, facultando sempre a ampla discussão da matéria de facto controvertida.
XLVIII. Como refere Abrantes Geraldes, Juiz Conselheiro do Supremo Tribunal de Justiça: “[a]pesar de o juiz se considerar intimamente habilitado a solucionar o diferendo, partindo apenas do núcleo de factos incontroversos, pode isso não ser suficiente se, porventura, outras soluções jurídicas carecidas de melhor maturação e de apuramento de factos controvertidos puderem ser legitimamente defendidas“ [Cfr. António dos Santos Abrantes Geraldes, Temas da Reforma do Processo Civil, ob. cit., pág. 138. Na jurisprudência, entre outros, seguindo esta orientação pode consultar-se o Ac. da Relação de Coimbra 23.02.2010, Proc. n.º 254/09.7TBTMR-A.C1 – endereço eletrónico: www.dgsi.pt.].
XLIX. Parece-nos ser esta a situação que se verifica na presente ação, no pressuposto de que possa entender-se permanecer por controvertida matéria de facto relevante para a decisão do mérito, ponderando as diferentes soluções plausíveis de direito.
L. Resta salientar que o despacho proferido no qual o juiz do tribunal a quo toma posição sobre a necessidade de apresentar prova documental para prova dos factos e convida os apelantes a apresentar as alegações, não constitui caso julgado em relação à questão que agora se aprecia, porque o tribunal de recurso, pode mesmo oficiosamente, alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa (artigo 662.º do CPC).
LI. A douta sentença recorrida violou o disposto nos n.º 1 e n.º 2 do artigo 15.º da Lei n.º 54/2005, de 15/11.
*
O Réu Estado Português apresentou resposta que termina com as seguintes conclusões:
1 - Pretendendo os AAs. obter o reconhecimento da propriedade, por título legítimo, sobre um prédio parcelas de leitos ou margens das águas do mar ou de quaisquer águas navegáveis ou flutuáveis, tinham que fazer a prova de tais factos por documentos que comprovassem que tais terrenos eram por título legítimo objeto de propriedade particular ou comum antes de 31 de dezembro de 1864 (cfr. artigo 15.º, n.º 2, da Lei n.º 54/2005, de 15 de novembro, a qual foi objeto de alterações pela Lei n.º 78/2013, de 21 de novembro, Lei n.º 34/2014, de 19 de junho e, por último, pela Lei n.º 31/2016, de 23 de agosto.).
2 - Na falta de tais documentos, suscetíveis de comprovar a propriedade nos termos do referido n.º 2, deviam provar que, antes das datas ali referidas, o prédio reivindicado estava na posse, em nome próprio, de particulares ou na fruição conjunta de indivíduos compreendidos em certa circunscrição administrativa (cfr. artigo 15.º/3).
3 - Da prova trazida aos autos não foi possível fazer a correspondência entre o artigo (…) e o artigo (…), que por sua vez deu origem ao atual (…).
4 - Acresce que, o prédio esteve omisso na Conservatória apenas se podendo concluir que o prédio descrito sob o n.º (…) corresponde ao anterior (…), fls. 141, livro (…) e que este resultou da transcrição do descrito na Conservatória do Registo Predial de (,..) com o n.º (…), a folhas 8 verso do livro (…).
5 - Efectuado o estudo sobre as confrontações dos prédios transacionados conforme o trato sucessivo descritos pelos AAs. não se pode concluir que estamos perante o mesmo prédio.
6 - Se é certo e provado que foram transacionados terrenos privados na mesma área geográfica do prédio adquirido pelos AAs. não resultou assente que aqueles correspondem à mesma exata área geográfica deste, hoje o descrito com o n.º (…).
7 - Competia aos AAs. fazer essa prova, já que sobre eles recaia o ónus da prova (cfr. artigos 342.º, n.º 1, 363.º, 369.º, 370.º, n.º 1, 371.º, 393.º, n.º 1 e 2 e 394.º, n.º 1, todos do Código Civil).
8 - Pelo exposto, concluímos que os AAs. não lograram a prova dos factos que invocaram, pelo que, bem esteve a Mma juiz a quo ao julgar improcedente o pedido da ora Recorrente.
*
Após os vistos, cumpre decidir.

2. Âmbito do Recurso:
Sendo o objeto do recurso delimitado pelas conclusões das alegações, sem prejuízo do que seja de conhecimento oficioso (artigos 608.º, n.º 2, 635.º, n.º 4 e 639.º, n.º 1, do CPC), são as seguintes as questões a apreciar:
1.1. Da questão prévia da tempestividade do recurso;
1.2. Da modificação da decisão proferida sobre os factos, com aditamento dos propostos pelos Recorrentes;
1.3. Da insuficiência da prova produzida;
1.4. Decidir se, ao invés do que se entendeu na sentença recorrida, os AA lograram demonstrar que o Prédio identificado em 1, que os AA adquiriram em 1976 e que têm registado a seu favor, já era propriedade privada desde antes de 31-12-1864, e que assim se tem mantido por via de sucessivas transmissões, ilidindo, deste modo a presunção de dominialidade do referido prédio a favor do Estado.
*
3. Fundamentação:
3.1. São os seguintes os factos dados como provados na sentença:
1. Por escritura datada de 6/08/1976, outorgada no extinto Cartório Notarial de Lagoa (Algarve) lavrada de fls. 15 a fls. 16 verso do livro n.º (…), adquiriram os AA., por compra a (…) e mulher (…) o Prédio Urbano, sito na Rua (…), com o n.º (…) de polícia, da freguesia de (…), concelho de Lagoa, composto de edifício com sala comum, 3 quartos, 2 casas de banho, cozinha, com a área coberta de 102,50 m2, marquise com a área de 25,50 m2 e logradouro com a área descoberta de 97 m2 a confrontar do Norte com Herdeiros de (…), do Sul com a Estrada Municipal, do Nascente com (…) e do Poente com (…), descrito na Conservatória do Registo Predial de Lagoa sob o n.º (…), e inscrito na matriz predial Urbana sob o artigo (…), tendo registado tal aquisição a seu favor – fls. 13 verso/18 (artigo 1º da petição inicial).
2. Sendo que a Estrada, com a qual a propriedade confina é adjacente ao rio – fls. 148 verso (artigo 2º da petição inicial).
3. O Prédio dos A.A., descrito na Conservatória do Registo Predial de Lagoa, sob o n.º (…), anteriormente descrito com o n.º (…), a fls. 111 do Livro (…) resultou da transcrição do descrito na Conservatória do Registo Predial de Silves com o n.º (…), a folhas 8 verso do livro (…) – fls. 10/15 verso (artigo 4º da petição inicial).
4. Os suprarreferidos vendedores, (…) e mulher (…), adquiriram o prédio por compra a (…), por escritura lavrada no extinto Cartório Notarial de Lagoa outorgada a 10 de outubro de 1967 de fls. 57 verso a fls. 59 do livro (…), como resulta da inscrição n.º (…), Ap. (…), de 15/10/1975 – fls. 21 verso (artigo 6º da petição inicial).
5. (…) adquiriu o prédio por compra a (…) e mulher, (…), por escritura de compra outorgada a 28 de junho de 1966 lavrada de fls 20 a fls. 21 verso do livro n.º (…) do Extinto Cartório Notarial de Lagoa, a cargo da Notária (…), como resulta da Inscrição n.º (…), de 13 de outubro de 1966, da Conservatória do Registo Predial de Lagoa – fls. 30 verso. Aí foi feita menção de que o prédio estava omisso na Conservatória, mas estava inscrito na matriz com o artigo (…) - fls. 39/39 verso (artigo 5.º do Código de Processo Civil).
6. A 25 de junho de 1966, da Conservatória do Registo Predial de Silves, (…) promove o registo do prédio descrito sob o n.º (…), e declara que o referido edifício foi construído por ele no terreno que havia comprado a (…), viúva e (…) e mulher (…) – fls. 20 (artigo 8º da petição inicial).
7. Por escritura datada de 21 de outubro de 1955, lavrada de fls. 89 a fls. 91 do livro n.º (…) do Cartório Notarial do Concelho de Lagoa, a cargo da Notária (…), (…) comprou a (…), (…) e (…) “courela de fazenda no sítio da (…), freguesia de (…), concelho de Lagoa, que confronta do norte com (…), do sul com estrada, do nascente (…) e poente com (…), o qual corresponde a 2/3 do prédio inscrito na matriz sob o artigo (…) - fls. 32 (artigos 9º e 10º da petição inicial).
8. Para instrução da referida escritura foi apresentada certidão negativa, emitida pela Conservatória do Registo Predial de Silves em 21/10/1955, na qual se atesta que o prédio não se encontra descrito naquela Conservatória – fls. 39 verso (artigo 11º da petição inicial).
9. No requerimento, António Geada declarou como antepossuidor do prédio, (…), morador que foi no povo e freguesia de (…) – fls. 39 (artigo 12º da petição inicial).
10. (…) era viúva de (…), sendo (…) filha do referido casal, conforme resulta do assento de óbito de n.º (…), de 24 de julho de 1991, da Conservatória do Registo Civil de Oeiras e Assento de Nascimento n.º (…), do ano de 2013, da Conservatória do Registo Civil de Lagoa – fls. 40 verso/41 verso (artigo 13º da petição inicial).
11. Por escritura datada de 27 de julho de 1926, outorgada de fls. 20 verso a fls. 21 verso do livro n.º (…), do Cartório Notarial de Portimão, a cargo do Notário (…), (…) vendeu a (…) e marido (…) gleba de terreno de 15 m x 15 m, com a área de 225 m2, da freguesia de (…), a confrontar do nascente com (…), do norte com (…), do poente com (…) e do sul com a estrada, não descrita – fls. 43 (artigos 14º a 15º da petição inicial).
12. (…) é a única herdeira de seu marido, (…), que faleceu a 13 de janeiro de 1926, na freguesia de (…), concelho de Lisboa, conforme escritura datada de 22 de outubro de 1946, lavrada de fls. 11 a fls. 12 verso do livro n.º (…) do Cartório Notarial de Portimão, a cargo do Notário (…) – fls. 47 (artigo 16º da petição inicial).
13. (…), por instrumento de venda, datado de 20 de maio de 1919, lavrado de fls. 15 verso a fls. 16 do livro de escrituras n.º (…) do Cartório Notarial de Lagoa, a cargo do Notário (…), comprou a (…) e marido (…), um prédio rústico, no Sítio da (…), freguesia de (…) a confrontar de Nascente com (…), do Norte com o mesmo, do Poente com a estrada – fls. 52 verso (artigo 17º da petição inicial).
14. O prédio dos autos confronta a Nascente com … (artigo 18º da petição inicial).
15. (…) adquiriu a (…) e mulher (…), “uma pequena gleba de terreno”, no sítio da (…), subúrbios de (…), uma milésima parte do prédio que confronta do Norte e Nascente com os vendedores, Sul com (…) e do Poente com a estrada, por compra titulada por escrito particular datado de 26 de janeiro de 1903 – fls. 55 (artigo 19º da petição inicial).
16. Os referidos vendedores, (…) e mulher, já tinham vendido a (…), também, por escrito Particular, datado de 30 de maio de 1899, um quarto de terra da propriedade inscrita sob o artigo (…), no sítio da (…), subúrbios de (…), a confrontar do nascente, norte e sul com os vendedores e do poente com estrada municipal – fls. 56 verso (artigos 20º e 21º da petição inicial).
17. Por escritura de 20 de maio de 1919, (…) e marido, (…), venderam a (…) prédio rústico no sítio da (…), freguesia de (…), que se compõe de uma figueira e vinha e confronta do nascente com (…), do norte com o mesmo, do poente com estrada -- fls. 52 verso (artigo 22º da petição inicial).
18. A (…) e mulher, (…), moradores em Lagoa, foi adjudicada fazenda no sítio de (…), arredores de (…), por Partilha amigável por óbito de seu pai e sogro, (…), outorgada a 27 de setembro de 1898, no livro de escrituras n.º (…), de fls. 8 verso a fls. 17, do Notário (…) do Cartório Notarial de Silves – fls. 78 verso (artigo 23º da petição inicial).
19. Na referida escritura de Partilha, (…), adquire, entre outros, a verba n.º 3, da qual consta “Uma propriedade … denominada “(…)”, no sítio do (…), freguesia de (…), que confina do Nascente com (…), do Norte com o mesmo, do Poente com o Rio, estrada e bens partilhados, e do Sul com a estrada, Rio” e outros, cfr. fls. 3.
20. Mais se refere na identificada escritura de Partilha que o prédio está registado na Conservatória Privativa da Comarca de Silves sob o artigo (…), no livro (…) - fls. 59 verso (artigo 25º da petição inicial).
21. O Prédio descrito na Conservatória do Registo Predial de Silves com o n.º (…), a fls. 83 do Livro (…), é um “Prédio Rústico – Uma Fazenda no Sítio do “(…)”, de (…), (...) confina pelo Nascente com estrada que vai para os (…), pelo Norte com (…), viúvo; pelo Poente com os (…) que ficam ao Poente do ramal para (…) e pelo Sul com o mesmo Ramal e Regato de (…)” – fls. 78 verso (artigo 26º da petição inicial).
22. Da supra identificada descrição n.º (…) no seu av. n.º 1 (de 20-12-1906) consta que este prédio está compreendido no descrito sob o n.º (…), a fls. 83 do livro (…) - cfr. fls. 1 (artigo 27º da petição inicial).
23. O registo do prédio n.º (…), a fls. 83 do livro (…), foi promovido por (…) pela Ap. (…), de 31 de janeiro de 1901, como consta da inscrição n.º (…) e é descrito como “Prédio Rústico – uma propriedade no Sítio do (…), … denominada “(…)”, que confina do Nascente com (…), do Norte com o mesmo, do Poente com o Rio, estrada e bens do casal de (…) e do Sul – Estrada, Rio, (…), (…) e (…), cfr. fls. 7 (artigo 28º da petição inicial).
24. O prédio n.º (…), a fls. 83 do livro (…), foi inscrito definitivamente a favor do (…), casado, proprietário e residente em Silves, conforme consta da Inscrição n.º (…), de 20 de novembro de 1877, cfr. fls. 4 (artigo 29º da petição inicial).
25. (…) promoveu o registo do prédio pela apresentação n.º (…) do diário de 20 de novembro de 1877 – fls. 79 verso (artigo 30º da petição inicial).
26. Registo esse titulado pela escritura pública de venda e quitação outorgada a 14 de novembro de 1877, lavrada de fls. 42 verso a fls. 44 do livro n.º (…) das Notas do Tabelião (…), do Cartório Notarial de Lagoa, pela qual (…) comprou o prédio a (…) e mulher (…), proprietários, residentes em (…), “Uma Fazenda no sítio do “(…)”, freguesia do povo de (…) que confronta do Nascente com estrada que vai para os (…), do Norte com o prédio de (…), do Poente com os (…) que ficam ao poente do ramal para (…) e do Sul com o mesmo ramal e (…)” – fls. 108 verso (artigo 31º da petição inicial).
27. Arquivado com a suprarreferida escritura encontra-se a Contribuição de Registo por título Oneroso n.º (…) datado de 14 de novembro de 1877, onde pode ler-se: “(...) uma propriedade que consta de moradia, figueiras, amendoeiras, alfarrobeiras e terras de pão, no sítio do “(…)”, freguesia de (…), inscrita na matriz predial sob o n.º (…) e mais cinco foros, impostos em prédios urbanos e terreno para construir mais algumas casas, cujos prédios são próximos da propriedade acima mencionada (...)” cfr. folha 5 (artigo 32º da petição inicial).
28. Por escritura de Venda datada de 4 de dezembro de 1867, lavrada de fls. 47 verso a 49 do livro n.º (…) do Notário (…), do Cartório Notarial de Portimão, o (…), compra a (…) e sua consorte (…), uma fazenda, no sítio do (…), freguesia de (…), que parte do Nascente com estrada que vai para a (…), do Norte com (…), do Poente com os (…) do Rio de Portimão e do Sul com a Praia e Ribeira do povo de (…) – fls. 114 (artigo 33º da petição inicial).
29. Na supra identificada escritura (…) e sua consorte declaram que possuem esta propriedade por legitimo título proveniente de Dotação feita por seus pais e sogros, (…) e (…) por escritura datada de 20 de abril 1867 – fls. 114 verso (artigo 34º da petição inicial).
30. Por escritura Antenupcial lavrada de fls. 95 verso a fls. 97 do livro n.º (…) do Notário (…), do Cartório Notarial de Portimão, os pais de (…) “entregaram a sua dita filha Dona (…), por conta de sua legitima futura duas propriedades rústicas”, situando-se uma delas no “Sítio da (…), próxima do povo de (…), freguesia de (…) e que parte pelo Nascente com a estrada da passagem da (…) e (…), norte com (…), poente com o Rio e Sul com o mesmo povo de (…)” (artigos 35º e 36º da petição inicial).
31. (…) comprou uma Fazenda no Sítio das (…), junto ao povo de (…), que consta de terras de semear e figueiras com um monte dentro, que parte do Nascente com Estrada que vai de (…) para a (…), do Norte, Poente e Sul com os (…), livre e isenta de qualquer Ónus a (…) e mulher (…), (…) e mulher (…) e (…) e marido (…), compra titulada por escritura datada de 3 de maio de 1839, lavrada de fls. 8 verso a fls. 11 do livro n.º 1 do Tabelião (…), do Cartório de Portimão – fls. 123 verso (artigos 37º e 38º da petição inicial).
32. Relativamente à inscrição matricial do Prédio Urbano, verifica-se que o Prédio atualmente encontra-se inscrito na matriz sob o artigo 933.º da freguesia de (...), o qual provêm do inscrito sob o artigo (...), da mesma freguesia e foi participado como construído de novo em 03/10/1967 – fls. 129 (artigos 42º e 43º da petição inicial).
33. No Serviço de Finanças de Lagoa, não existem quaisquer elementos para consulta que possam certificar o teor das matrizes Rústicas, nem o nome dos seus titulares bem como a proveniência dos Artigos Urbanos nem o início de tais inscrições, designadamente por não haver correspondência entre as matrizes atuais e as anteriores a 1986, data da entrada em vigor do Cadastro Geométrico no concelho de Lagoa – fls. 132 (artigos 43º e 44º da petição inicial).
34. O prédio dos A.A. situa-se na atual Rua (…), n.º 32 de polícia, em (…), desta freguesia e concelho de Lagoa. Anteriormente, conhecida por arredores de (…), sítio da (…) ou da (…). Outrora, também designado por sítio do (…), do (…), e ainda do (…), da (…) e das (…), tudo conforme certidão toponímica emitida pela Câmara Municipal de Lagoa – fls. 133 (artigo 49º da petição inicial).
35. O prédio assinalado na imagem de fls. 148 verso insere-se em toda a sua dimensão sob a jurisdição da autoridade marítima e portuária (margem de 50 metros).
*
3.2. Apreciação do Recurso:
Com o presente recurso os AA pretendem a revogação da sentença que julgou improcedente o pedido dos AA de reconhecimento da titularidade do prédio urbano sito na Rua (…), n.º 32, em (…), Lagoa, que adquiriram em 1976, que confronta com Estrada, adjacente à margem do Rio Arade, e que, por conseguinte, está localizado em área que integra o domínio público marítimo.
Apreciaremos, então, cada uma das questões suscitadas no Recurso:
3.2.1. Da tempestividade do recurso

Em sede de resposta ao recurso, o Ministério Público invocou a extemporaneidade do recurso, com fundamento no facto de a sentença ter sido notificada aos AA a 05-06-2024 e as alegações terem dado entrada nos autos apenas em 02-09-2024.

Aquando da admissão do recurso, a Mm.ª Juíza fundamentou a razão de ser da tempestividade do recurso:

- o prazo de recurso iniciou-se apenas no dia 12 de junho porque, nos termos do disposto no artigo 248.º do CPC, a notificação presume-se efetuada a 11 de junho;

- o prazo de interposição de recurso – de 30 dias - terminou, por isso, no dia 11 de julho.

- Atendendo às férias judiciais e ao facto de o ato poder ser praticado dentro dos três primeiros dias úteis, ficando a sua validade dependente de uma multa, atento o disposto no artigo 139.º, n.º 5, do CPC, o requerimento apresentado no dia 2 de setembro mostra-se tempestivo.

- Foi paga a multa.

Atenta a fundamentação exarada e as normas citadas, inexiste razão para reverter a decisão.

Por conseguinte, julga-se tempestivo o recurso.

Improcede, por isso, a questão prévia suscitada pelo Ministério Público.


*

3.2.2. Da modificação da decisão proferida sobre os factos, com aditamento dos propostos pelos Recorrentes;

Os recorrentes pretendem que sejam aditados os seguintes pontos à matéria de facto dada como provada:
a) O Artigo (…) foi implantado na “courela de (…)” inscrita na matriz predial Rústica sob 2/3 do Artigo (…), da freguesia de (…).

b) O terreno onde se situa o prédio urbano adquirido pelos Autores a que se refere o ponto 1 dos factos provados, estava integrado no prédio rústico que, em 1839, fora então descrito como “uma Fazenda no Sítio das (…), (…) que parte do Nascente com Estrada que vai de (…) para a (…), do Norte, Poente Sul com os (…)”, a que se refere o ponto 31 dos factos provados.


*
Quanto ao referido em a):
Dizem os recorrentes que na sentença se concluiu erradamente que não era possível fazer corresponder o artigo (…) ao artigo (…) da matriz, mas que os factos provados e os documentos revelam o contrário. Resulta dos documentos juntos que:
- Na Conservatória do Registo Predial de Lagoa, encontra-se registado, desde 25-06-1966, sob a descrição n.º (…), o prédio urbano no sítio da (…), freguesia de (…), que se compõe de casa térrea com 8 divisões destinada a habitação (…) inscrito na matriz predial sob o artigo (…) – doc. 4
- Este prédio foi inscrito a favor de (…), que o adquiriu por escritura de 21-10-1955 – doc. 4
Estes factos já estavam dados como provados em 6.
- por escritura de 21-10-1955, (…) comprou a (…) e outros “Courela de (…), no sítio da (…), freguesia de (…)”, o qual corresponde a 2/3 do prédio inscrito na matriz sob o artigo (…), o qual não se encontra descrito na Conservatória do registo Predial de Silves (Doc. 8 junto à petição inicial) – facto dado como provado em 7 (da factualidade provada).
Destes factos conclui-se que:
- Em 21-10-1955 o prédio inscrito na matriz sob o artigo (…) não estava descrito na Conservatória do Registo Predial de Silves;
- Nessa data, 2/3 desse prédio – inscrito na matriz sob o artigo (…) – que corresponde a “uma courela de fazenda no sítio da (…), freguesia de (…), concelho da Lagoa, que confronta do Norte com (…), do sul com estrada, do nascente com (…) e poente com (…)” foi comprada por (…) a (…), (…) e (…), pela quantia de mil escudos.
- Em 25-06-1966, (…), regista na CRP de Silves, sob a descrição n.º (…), o prédio urbano no sítio da (…), freguesia de (…), concelho da Lagoa, que se compõe de uma casa térrea com 8 divisões destinadas a habitação com a área coberta de 50 m2 e logradouro com 20 m2, confrontando com norte : herdeiros de (…), sul estrada camarária, nascente (…) e poente (…), o qual foi inscrito na matriz sob o artigo (…).
- A aquisição deste prédio está inscrita a favor de (…), por compra pelo preço de mil escudos, por escritura pública de 21-10-1955.
- o prédio inscrito sob o n.º (…) estava inscrito sob o artigo (…) da mesma freguesia e foi participado como construído de novo em 03-10-1967 (Doc. 24, fls. 129 dos autos) - certidão da Autoridade Tributária) – Facto provado em 32.
Do exposto resulta que o terreno – “courela de fazenda no sítio da (…)” que corresponde a 2/3 do prédio inscrito na matriz sob o artigo (…), comprado por (…), foi onde este construiu o edifício destinado à habitação - casa térrea com 8 divisões – que registou na CRP de Silves, com a descrição n.º (…) e que corresponde ao prédio inscrito na matriz sob o artigo (…).
É assim possível face aos documentos juntos dar como provado o facto pretendido pelos AA e que foi alegado no artigo 43º da petição inicial.
Por conseguinte, adita-se à factualidade provada o ponto 36, nos seguintes termos:
36. O prédio urbano inscrito na matriz sob o artigo (…) foi implantado na “courela de (…)” que correspondia a 2/3 do prédio inscrito na matriz sob o artigo (…).
*
Quanto ao ponto referido em b): “O terreno onde se situa o prédio urbano adquirido pelos Autores a que se refere o ponto 1 dos factos provados, estava integrado no prédio rústico que, em 1839, fora então descrito como “uma Fazenda no Sítio das (…), (…) que parte do Nascente com Estrada que vai de (…) para a (…), do Norte, Poente Sul com os (…)”, a que se refere o ponto 31 dos factos provados”.
No caso concreto, está em causa, como se refere e bem na sentença, face aos factos provados, verificar se se consegue fazer o trato sucessivo entre o prédio dos autores e o descrito no facto 31.
Ou seja, considerando que inexiste uma escritura, um documento que ateste por si o referido, o invocado não é mais do que um facto conclusivo que os Recorrentes pretendem retirar dos factos alegados e que foram dados como provados.
Embora se reconheça que atualmente não existe impeditivo legal expresso a que o Tribunal dê como demonstrado um facto conclusivo, concordamos com o Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 31-03-2022, Processo n.º 249/19.8T8MAC.G1, publicado in www.dgsi.pt, no sentido de que “Os factos conclusivos não podem integrar a matéria de facto quando estão diretamente relacionados com o thema decidendum, impedem ou dificultam de modo relevante a perceção da realidade concreta, e/ou ditam por si mesmo a solução jurídica do caso, normalmente através da formulação de um juízo de valor”.
Na verdade, o ponto que se pretende aditar é, no caso concreto, mais uma conclusão do que um facto e, por isso, o alegado não tinha como não foi de ser levado à matéria de facto (provada ou não provada) da sentença, nos termos do disposto no n.º 4 do artigo 607.º do CPC.
Acresce que este facto conclusivo – da forma como foi agora alegado em sede de recurso – não consta expressamente da petição inicial e, por isso, também por esta razão não tinha o Tribunal a quo de ser pronunciar sobre o mesmo. Pelo exposto, bem andou o Tribunal ao não inserir na fundamentação de facto o agora pretendido.
Improcede, por isso, nesta parte, o requerido pelos Recorrentes.
*
3.2.3. Da insuficiência da prova produzida;

Dizem os Recorrentes – nas alegações e nas conclusões no ponto XXXVI e seguintes - que “A decisão recorrida apreciou do direito sem permitir a produção de prova sobre matéria controvertida: a prova da propriedade privada ou da posse privada ininterrupta desde data anterior a 31 de dezembro de 1864 e a correspondência do terreno do prédio dos AA com aquele que, em 1834, fora objeto de propriedade particular, por título legítimo”, pelo que “a prova produzida se mostra insuficiente”, o que “(…) justifica, em parte, a anulação da sentença.”
Ora, quanto a esta questão, importa considerar que resulta dos autos que:
a) A 24-01-2024 o Tribunal a quo proferiu o seguinte despacho:

“Em vista da natureza da ação e de a mesma depender de prova documental, a qual será oportunamente apreciada, notifique as partes de que é intenção do Tribunal não vir a designar audiência prévia, definir objeto do processo ou fixar os temas de prova, assim como não designar audiência. Caso as partes não prescindam da prova testemunhal, será designada audiência para inquirição das testemunhas indicadas. Caso prescindam, o que deve ser consignado expressamente, serão depois expressamente notificadas para alegações e serão, então, os autos conclusos para sentença”.
b) Por requerimento de 24-01-2024 o Ministério Público consignou no processo que prescindia da inquirição das testemunhas arroladas na contestação.

c) Por requerimento da mesma data os AA/Recorrentes informaram que prescindiam da testemunha por si arrolada.

d) Nesta sequência, em 29-02-2024 o tribunal notificou as partes para alegações o que estas fizeram.


*
De todo o exposto resulta que a Mm.ª Juíza, ao abrigo do disposto nos artigos 6.º e 7.º do CPC dirigiu ativamente o processo, providenciando pelo seu andamento célere e adotando mecanismos de agilização processual que aliás foram sendo aceites pelas partes que, de livre vontade, prescindiram de toda a prova testemunhal e alegaram por escrito.
Por conseguinte, não corresponde ao que consta do processo qua a Mm.ª Juíza não tenha permitido a produção de prova sobre a matéria controvertida, as partes é que prescindiram das testemunhas que tinham arrolado nos articulados.
Acresce que os Recorrentes não concretizam qual era a prova que pretendiam realizar e o que é que pretendiam demonstrar, sendo certo que não houve factos alegados que tivessem sido considerados não provados, na sentença recorrida.
Improcede, assim, totalmente este fundamento do recurso.
*
3.2.4. Decidir se, ao invés do que se entendeu na sentença recorrida, os AA lograram demonstrar que o Prédio identificado em 1, que os AA adquiriram em 1976 e que têm registado a seu favor, já era propriedade privada desde antes de 31-12-1864, e que assim se tem mantido por via de sucessivas transmissões, ilidindo, deste modo a presunção de dominialidade do referido prédio a favor do Estado.

É pacífico que a questão suscitada nos autos deve ser apreciada à luz da Lei n.º 54/2005, de 15 de novembro, que regula a titularidade dos recursos hídricos, incluindo as parcelas de terreno relacionadas com estes, em especial, as margens das águas do mare dos rios.
O artigo 4.º deste diploma estabelece a regra geral de que o domínio público marítimo pertence ao Estado. Por seu turno, o artigo 12.º, n.º 1, alínea a), prevê uma presunção de dominialidade a favor do Estado das parcelas de leitos e margens das águas públicas, uma presunção “iuris tantum”, que os AA entendem ter ilidido.
O artigo 15.º, n.º 2, da referida Lei, com a epígrafe “Reconhecimento de direitos adquiridos por particulares sobre parcelas de leitos e margens públicos”, dispõe que “Quem pretenda obter o reconhecimento da sua propriedade sobre parcelas de leitos ou margens das águas do mar ou de quaisquer águas navegáveis ou flutuáveis deve provar documentalmente que tais terrenos eram, por título legítimo, objeto de propriedade particular ou comum antes de 31 de dezembro de 1864 (…)” – sublinhado nosso.
A data de 31 de dezembro de 1864 é relevante porque foi a partir do Decreto Régio dessa data que os leitos e margens passaram a ser considerados públicos.
Portanto, para que parcelas de leitos e margens sobre que incide a presunção do artigo 12.º possam ser consideradas propriedade privada, é necessário que estas já o fossem antes de 1864.
No caso, os AA/Recorrentes insurgem-se contra a sentença proferida por considerarem que, ao contrário do decidido, é possível deduzir dos factos provados que o prédio que possuem, registado na Conservatória do Registo Predial de Lagoa sob o n.º (…), que confronta com estrada adjacente à margem do Rio e que, por conseguinte, está localizado em área que integra o domínio público marítimo, foi objeto de propriedade particular desde antes de 31 de dezembro de 1864, situando em 1834 o primeiro título legítimo.
Isto porque, dizem, é possível retirar dos factos provados que o prédio dos AA corresponde a parte do terreno que, em 1834, foi adquirido por particulares.
Alegam que o Tribunal a quo incorreu em erro de julgamento ao considerar ser necessário haver uma “exata coincidência dos prédios”, com referência àqueles que foram apontados pelos AA nestes autos, pois a lei não obriga a que o prédio dos AA corresponda ao “mesmo objeto”, que foi sucessivamente transmitido ao longo do tempo, desde dezembro de 1864 até 1976, data em que o adquiriram.
De facto, afirma-se na sentença que: “dada a excecionalidade da previsão legal supra (reconhecer como privado prédio que segundo a lei geral, integra o domínio público), tem de se verificar , a nosso ver, a exata coincidência dos prédios apontados pelos AA desde 1976 (data em que foi registado a favor dos AA) para trás, até, pelo menos , 31 de dezembro de 1864”.
Nesta sequência, e considerando que o prédio dos AA não está descrito nem na matriz, nem na Conservatória desde data anterior a 31 de dezembro de 1864, analisa-se na sentença as confrontações dos prédios transacionados a fim de verificar se é possível concluir que estamos perante o mesmo prédio, assim estabelecendo o trato sucessivo.
Da análise efetuada – após transcrição das confrontações dos prédios dos documentos que comprovam as transações invocadas – conclui-se na sentença que:
“- Foram transacionados terrenos privados;
- os prédios situam-se na mesma área geográfica do que agora é dos AA e que podem coincidir em parte com a área do prédio atual.
Mas já não é possível concluir que aqueles, objeto de transação têm a mesma localização e correspondem à mesma exata área geográfica do dos AA ou que correspondam ao que é hoje o descrito com o n.º (…)”.
Impõe-se, assim, para decidir o pretendido pelos recorrentes, responder às seguintes questões:
!.ª – É necessário que os prédios transacionados tenham exata coincidência?
2.ª – Se a resposta for afirmativa à 1.ª questão, impõe-se questionar se há exata coincidência dos imóveis? (E a mera análise das confrontações – elencadas pelo Tribunal na sentença - revela que não, pelo que se conclui, como na sentença, a presunção de dominialidade do Estado não foi ilidida).
Se a resposta for negativa à 1.ª questão e uma vez que as descrição dos prédios não coincidem, pergunta-se se o prédio atual (o n.º 32 da Rua D. …, em …) estava integrado no prédio rústico comprado por (…) em 1839, e para o efeito, importa analisar o trato sucessivo para lograr demonstrar tratar-se, pelo menos em parte, do referido n.º 32 da Rua D. (…), em (…).

*
Para responder à primeira questão importa atentar no referido artigo 15.º, n.º 2, da Lei n.º 54/2005, de 15 de novembro, que estabelece o modo de ilidir a presunção prevista no artigo 12.º, n.º 1. Prescreve o referido n.º 2 do artigo 15.º que:
“Quem pretenda obter o reconhecimento da sua propriedade sobre parcelas de leitos ou margens das águas do mar ou de quaisquer águas navegáveis ou flutuáveis deve provar documentalmente que tais terrenos eram, por título legítimo, objeto de propriedade particular ou comum antes de 31 de dezembro de 1864”.
Ora, desta norma, não resulta a necessidade de existir uma “exata coincidência” de prédios. Por outro lado, também não se vislumbra que “dada a excecionalidade da previsão legal” assim tenha que ser. O que é necessário demonstrar é que, em 1864, o bem era de propriedade privada, ou seja, já existia um direito de propriedade privada sobre o prédio, que o prédio em causa de alguma forma seja uma parte ou sucessão de uma propriedade privada que tenha existido antes de 1864.
Em conclusão, à luz do disposto no artigo 15.º, n.º 2, da Lei n.º 54/2005, de 15 de novembro, para ilidir a presunção do artigo 12.º, não é necessário que haja uma exata coincidência dos prédios apontados pelos AA de 1976, até 31 de dezembro de 1864.
*
Passemos, então, à segunda questão:
O prédio em causa – o n.º 32 da Rua D. (…), em (…) – corresponde a parte do prédio rústico que em 1839 foi comprado por (…)?
A Alegação é dos AA; o ónus da prova também é dos AA , nos termos do disposto no artigo 342.º, n.º 1, do Código Civil. A resposta a esta questão implica a análise detalhada da linha do tempo da propriedade do prédio que, em 1839, foi comprado pelo referido (…).
Vejamos:
1) Conforme resulta do facto 31 (que alude à referida escritura de compra datada de 1839) tal prédio corresponde a:
- Fazenda no Sítio das (…), junto ao povo de (…), que consta de terras de semear e figueiras com um monte dentro, que parte do Nascente com Estrada que vai de (…) para a (…), do Norte, Poente e Sul com os (…), livre e isenta de qualquer Ónus a (…) e mulher (…), (…) e mulher (…) e (…) e marido (…).
E foi comprado por (…).
2) (…) em 20 de abril de 1867 doou à filha, Dona (…), por conta da legítima:
- Uma propriedade rústica situada no “Sítio da (…) próxima do povo de (…), freguesia de (…) e que parte pelo Nascente com a estrada da passagem da (…) e (…), norte com (…), poente com o Rio e Sul com o mesmo povo de (…)”.
3) Em 4 de dezembro de 1867, a referida Dona (…) e o marido vendem a (…):
- uma fazenda, no sítio do (…), freguesia de (…), que parte do Nascente com estrada que vai para a (…), do Norte com (…), do Poente com os (…) do Rio de Portimão e do Sul com a Praia e Ribeira do povo de (…).
4) A 14 de novembro de 1877:
(…) vende a (…):
- Uma Fazenda no sítio do “(…)”, freguesia do povo de (…), (…) que confronta do Nascente com estrada que vai para os (…), do Norte com o prédio de (…), do Poente com os (…) que ficam ao poente do ramal para (…) e do Sul com o mesmo ramal e Regato de (…)” inscrito na matriz predial sob o n.º (…);
5) (…) promove o registo deste prédio (fls. 106 verso) que vem a ser registado na Conservatória de Silves sob o n.º (…), a fls. 83, do livro (…) e inscrito a favor do (…), casado, proprietário e residente em Silves (fls. 80 verso);
5) Em 1898 é realizada a partilha dos bens de (…) sendo que o prédio descrito sob o n.º (…) é identificado como as verbas n.º 2, 2-A e 3 nos seguintes termos:
Verba n.º 2 – Um prédio de casas
Verba n.º 2 -A – Uma casa chamada “a da …” com quintal e poço (…)
Verba n.º 3 - Propriedade que se compõe de um cercado e porta em outro dividido por uma entrada, com casa de morada para o caseiro, almanxar circiado, terra de semear, figueiras alfarrobeiras, amendoeiras e mais árvores denominado “(…)” no sítio do (…), freguesia de (…), que confina do Nascente com (…), do Norte com o mesmo do Poente com o Rio, estrada e bens partilhados e do sul com a estrada, Rio, (…), (…) e (…) que ficam ao poente do ramal para (…) e do Sul com o mesmo ramal e Regato de (…).
Estes bens são adjudicados a (…).
*
Destes factos resulta efetivamente que o prédio inscrito na matriz sob o artigo (…) - e que era o prédio vendido em 1839 - veio a ser registado na conservatória sob o n.º … (fls. 78 verso – doc. 18).
*
7) 30 de maio 1899
(…) adquire a (…) “um quarto de terra”, terreno que faz parte da propriedade inscrita na matriz sob o artigo (…), no sítio da (…), subúrbio de (…), freguesia de (…), a confrontar do nascente, norte e sul com os vendedores e do poente com estrada municipal. Este terreno tem de frente para a dita estrada dez metros e de fundo quinze – fls. 56 verso.
8) 31 de Janeiro de 1901
(…) promove o registo na Conservatória de Silves do “Prédio Rústico – uma propriedade no Sítio do (…), freguesia de (…), denominada “(…)”, (…) que confina do Nascente com (…), do Norte com o mesmo, do Poente com o Rio, estrada e bens do casal de (…) e do Sul – Estrada, Rio, (…), (…) e (…), cfr. fls. 7 – sob o n.º … (fls. 80 verso).
9) 26 de janeiro de 1903
(…) adquire a (…) “uma pequena gleba de terreno”, no sítio da (…), subúrbios de (…), uma milésima parte do prédio que confronta do Norte e Nascente com os vendedores, Sul com (…) e do Poente com a estrada – fls. 55.
10) 20 de dezembro 1906
Foi inscrito averbamento no prédio n.º (…) a dizer que estava compreendido no prédio … (fls. 78 verso).
*
Os AA lograram ainda demonstrar que:
11) 20 de maio de 1919
(…) e marido, (…), venderam a (…) prédio rústico no sítio da (…), freguesia de (…), que se compõe de uma figueira e vinha e confronta do nascente com (…), do norte com o mesmo, do poente com estrada.
12) 27 de julho de 1926,
… (herdeira de …) vendeu a (…) e marido (…) gleba de terreno de 15 m x 15 m, com a área de 225 m2, da freguesia de (…), a confrontar do nascente com (…), do norte com (…), do poente com (…) e do sul com a estrada, não descrita na Conservatória.
13) 21 de outubro de 1955
(…) comprou a (…) e outros “Courela de (…), no sítio da (…), freguesia de (…)”, o qual corresponde a 2/3 do prédio inscrito na matriz sob o artigo (…), o qual não se encontra descrito na Conservatória do registo Predial de Silves.
Este prédio veio a ser registado sob o n.º (…), da Conservatória do Registo Predial de Silves e corresponde ao artigo n.º (…) na matriz, da freguesia de (…), que deu origem ao artigo (…) da mesma freguesia de (…) e que, por sua vez, corresponde ao prédio descrito na Conservatória do Registo Predial de Lagoa sob o n.º (…) registado em nome dos AA (anteriormente descrito com o n.º …).
Desta linha do tempo e da análise das transações/descrições, é possível concluir:
1) que os AA demonstraram que o prédio vendido em 1839, omisso na matriz e na Conservatória do Registo Predial à data, veio da dar origem ao prédio que foi descrito, em 1877, na Conservatória do Registo Predial de Silves sob o n.º (…) e inscrito na matriz sob o n.º (…) da freguesia de (…), e, em 1901, ao prédio descrito sob o n.º (…) prédio denominado “(…)”, sito também na freguesia de (…). 2) Já o prédio que os AA adquiriram e têm registado a seu favor, desde 1976, o prédio descrito sob o n.º (…) na CRP de Lagoa, e inscrito na matriz sob o n.º … (da freguesia de …), esteve anteriormente descrito sob o n.º (…) que resultou da transcrição do descrito na Conservatória do Registo Predial de Silves com o n.º (…). Ou seja, o prédio cujo reconhecimento se pretende foi registado pela primeira vez na Conservatória do Registo Predial, sob o n.º (…), por (…), em 25 de junho de 1966 e foi transacionado em 1955.
Do exposto resulta que os AA não lograram provar que o prédio em causa nestes autos, sito na freguesia de (…) e descrito sob o n.º (…) na Conservatória do Registo Predial, corresponda, nem em parte, ao prédio/terreno, vendido em 1835 e que foi descrito, sob o n.º (…) da Conservatória de (...).
Por conseguinte, não tendo os AA demonstrado que o prédio em causa - sito na Rua (…), com o n.º 32, da freguesia de (…) - que se insere em toda a sua dimensão na margem do Rio Arade, portanto no domínio público marítimo/domínio público do Estado, já era antes de 31 de dezembro de 1864, objeto de propriedade privada, não lograram, nos termos e para os efeitos do artigo 15.º da Lei n.º 54/2005, de 15 de novembro, ilidir a presunção de dominialidade a favor do Estado, prevista no artigo 12.º do mesmo diploma.
Destarte, bem andou o Tribunal a quo em julgar a ação improcedente.
*
4. Decisão:
Pelo exposto, acordam os juízes desta Relação em julgar improcedente o presente recurso, mantendo a decisão recorrida.
Custas pelos autores/recorrentes (artigo 527.º, n.º 1 e 2, do CPC).
*
Évora, 21 de novembro de 2024
Susana Ferrão da Costa Cabral (Relatora)
Filipe Aveiro Marques
Maria João Sousa Faro
(documento com assinaturas eletrónicas)