Acórdão do Tribunal da Relação de Évora | |||
Processo: |
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Relator: | RENATO BARROSO | ||
Descritores: | TELECOMUNICAÇÕES TELECOMUNICAÇÕES MÓVEIS DADOS DE TRÁFEGO NÚMERO INDETERMINADO DE PESSOAS SIGILO DE COMUNICAÇÕES ADEQUAÇÃO E PROPORCIONALIDADE | ||
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Data do Acordão: | 09/26/2023 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
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Sumário: | I. Não é permitido o acesso a dados de tráfego e de localização de um conjunto indeterminado de pessoas que efetuaram comunicações, acionado células de antenas de comunicações, na expectativa de, entre elas, se descortinar quem possa ter praticado o ilícito investigado. II. Justamente porque se pode estar na presença de um número incomensurável de suspeitos, violam-se, flagrantemente, os princípios jurídico-constitucionais da adequação e proporcionalidade, a que estão sujeitas as intervenções restritivas dos direitos liberdades e garantias (artigo 18.º/2 da Constituição), estando também em causa o direito à inviolabilidade do sigilo das telecomunicações consagrado no artigo 34.º/4 da Constituição. | ||
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Decisão Texto Integral: | ACORDAM OS JUÍZES, EM CONFERÊNCIA, NA SECÇÃO CRIMINAL DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE ÉVORA 1. RELATÓRIO A – Decisão Recorrida No Proc. 1288/22.1JALRA, que corre termos no Tribunal Judicial da Comarca de ..., Juízo de Instrução Criminal, Juiz ..., foi pelo MP promovido o seguinte (transcrição): III. Localização celular e listagem de comunicações: Os crimes de burla informática e nas comunicações, p. e p. pelo artigo 221.º, n.º 1, de furto qualificado na forma tentada, p. e p. pelos artigos 203.º, 204.º, n.º 2, alínea a), todos do Código Penal, e, ainda sabotagem informática e acesso ilegítimo, p. e p. pelos artigos 5.º e 6.º, n.ºs 1 e 5, alínea b) da Lei n.º109/2009, de 15 de Setembro, pelo que em abstrato falamos de crimes puníveis com uma moldura legal, no seu limite mínimo de 5 anos de pena de prisão e um limite máximo de 18 anos de pena de prisão. A obtenção de dados de tráfego e a localização celular podem ser autorizadas nos termos do disposto no artigo 187.º, n.ºs 1 e 4, al. a) do Código de Processo Penal, aplicável por via do artigo 189º, n.º 2 do mesmo diploma. No caso dos autos, os crimes em investigação admitem o recurso a estes meios de obtenção de prova, tendo em conta a sua moldura penal e os visados são os suspeitos da prática dos factos – artigo 187º, n.º 1, al. a) e 4, al. a) do Código de Processo Penal. Acresce que, a Polícia Judiciária, já realizou as diligências de investigação visando o apuramento dos autores de tais factos, nomeadamente, inspeção ao local do crime, com recurso a zaragatoa aos cabos soltos, localizados no interior da máquina fls. 31 e 32, bem como ao arame que se encontrava junto à máquina, do qual resultou em sede de exame pericial a fls. 69 e 70 que, não foi possível realizar exame lofoscópico por não existir área suficiente para a existência de vestígios lofoscópicos com valor identificativo, procederam ao visionamento das imagens de videovigilância instaladas no restaurante, que se situa a cerca de 10 metros de distância e efetuaram registo fotográfico, conforme Relatório de Exame Pericial de fls.34 a 53. Das diligências de prova realizadas resulta a fls. 57 e 58 que, das imagens visionadas não foram identificados momentos com relevo para os autos, não se conseguindo apurar elementos suficientes que permitam identificar os autores destes factos. Pese embora, haja notícia de um avistamento de dois indivíduos nas imediações, no dia factos em causa, no entanto não se conseguiu obter a sua identificação. Revelando-se todo este trabalho infrutífero. Posteriormente, a Polícia Judiciária procedeu à leitura das antenas de telecomunicações (BTS) conforme auto de localização celular de fls.59 e 60, dos autos. MEO (…) VODAFONE (…) NOS (…) Em face do exposto, requer-se que seja solicitada às operadoras de serviço móvel de telecomunicações, nos termos do disposto nos artigos 187.º, n.º 1, al. a) e n.º 4, al. a) e 189.º, n.º 2 do Código de Processo Penal: 1.Pelo que, atentas as razões supra expostas, solicita-se que seja obtido junto das Operadoras Nacionais- ALTICE/MEO, VODAFONE E NOS Comunicações: 1.1 Listagens em suporte digital e formato EXCEL e PDF, contendo os respetivos números de telemóvel, IMSI e IMEI: a) De todas as comunicações, (recebidas/efetuadas/falhadas ou concretizadas) nas antenas supra identificadas, no período compreendido entre as 00H00 e as 07H00 de dia 08-12-2022. Tais elementos de prova são imprescindíveis e essenciais para a continuação da investigação dos factos, não havendo outras diligências que, em sua substituição, possibilitem apurar a verdade dos factos, identificar todos os seus autores e acautelar a prova. Estamos perante dados de localização, os quais assumem uma natureza híbrida, integrando dados de base ou dados de tráfego. Contudo, o que se pretende são essencialmente dados de localização, enquanto dados base, que não contendem com as comunicações entre as pessoas e que abrangem somente a localização do equipamento em si. Sucede que, após o Acórdão do Tribunal Constitucional nº268/2022, e, acompanhando na íntegra a posição, doutamente, defendida pelo autor e Procurador da República, Rui Cardoso, in Revista do Ministério Público 172, com o título “A conservação e a utilização probatória de metadados de comunicações electrónicas após o Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 268/2022- o que nasce torto…”, em especial páginas 33 a 37, 55 a 64, as decisões que têm vindo a ser proferidas nesta matéria advêm de uma “indevida leitura do Ac. TC 268/2022 e de incorrecta interpretação do artigo 189.º do CPP, da Lei 41/2004, da Lei 32/2008 e da LCC”. De acordo com a posição aventada por este autor, a qual acompanhamos as apontadas críticas baseiam-se na mistura do conceito de meio de prova, meio de obtenção de prova e conservação do meio de prova. Ora, “os metadados são, em si, meio de prova; em concreto, prova documental”, cujo conceito de documento está definido no normativo do artigo 255.º, alínea a) do Código Penal. Os metadados “(…) podem estar inscritos numa factura detalhada que seja enviada por correio físico ou electrónico para o domicílio do seu titular (…).” Diferente é a forma como podem ser obtidos, para que depois os possamos utilizar como meios de prova, “(…) podem ser juntos (artigo 164.º, n.º1, do CPP), mas, quando corpóreos , são objectos susceptíveis de servir a prova e por isso podem ser apreendidos (artigo 178.º, n.º1, do CPP), apreensão que é um meio de obtenção de prova (…)”. Quanto a admissibilidade dos metadados como prova documental em si, a mesma não foi objeto de “juízo de inconstitucionalidade”, não havendo como sufraga o mesmo autor “qualquer desconformidade constitucional” na sua utilização. A matéria apreciada pelo TC incide apenas sobre o regime de conservação desses dados prevista na Lei 32/2008, concluindo que “(…) Considerar que a utilização destes dados, em si, viola a Constituição, deve conduzir então a que, (…) todas as intercepções telefónicas e de dados informáticos o serão também, pois estas, além de permitirem o registo e utilização desses mesmos dados, fazem-no ainda relativamente ao conteúdo.” O que não se tem verificado. No que respeita à norma declarada inconstitucional (artigo 6.º) sobre o limite temporal que incide sobre a conservação de dados, a mesma não define limites temporais, para a sua utilização probatória. Não fazendo sentido afirmar que o referido Acórdão do TC impeça a “utilização dos metadados para prova de quaisquer crimes, sejam eles os “crimes graves” definidos pela Lei n.º32/2008, sejam os previstos no n.º1 do artigo 187.º do CPP que não se incluam nessa definição de “crime grave”, conservados ao abrigo da Lei 41/2004.”. A declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral do artigo 4.º da Lei n.º32/2008, de 17 de julho, conjuntamente com o seu artigo 6.º e 9.º conduzem assim à aplicação das disposições dos artigos 187.º, n.º1, al. a) e 189.º, n.º 2, do CPP, artigo 6.º, n.º2 da Lei n.º41/2004, de 18 de agosto, artigo 10.º da Lei n.º23/96, de 26 de julho e artigo 11.º, n.º1, al. c), e 14.º, n.ºs 1 e 4 da Lei nº109/2009, de 15 de setembro. Com efeito, as disposições processuais penais não foram revogadas pela Lei nº32/2008 de 17 de julho. No que respeita a conservação desses dados, a mesma ocorre nos termos previstos no artigo 6.º, n.º 2 da Lei 21/2004, de 18 de agosto, durante seis meses, em cumprimento do artigo 10.º da Lei n.º 23/96 de 26 de julho, sendo um elemento de prova legal. Assim como, a sua obtenção e transmissão pelas operadoras de comunicações eletrónicas é legítima e admissível, nos termos e para os efeitos do disposto na Lei n.º 41/2004 e dos artigos 11.º e 14.º da Lei n.º 109/2009 de 15 de setembro que se transcreve “já que a finalidade de investigação e repressão criminal é, em si mesma, uma finalidade de interesse público que pode legitimar o acesso e reutilização de dados pessoais, quando tal acesso se revele adequado, necessário e não excessivos face a tal finalidade.”. Em face do exposto, promove-se que seja solicitada às operadoras de serviço móvel de telecomunicações, nos termos do disposto nos artigos 187.º, n.º 1, al. a) e n.º 4, al. a) e 189.º, n.º 2 do Código de Processo Penal: 1.Pelo que, atentas as razões supra expostas, solicita-se que seja obtido junto das Operadoras Nacionais- ALTICE/MEO, VODAFONE E NOS Comunicações: 1.1 Listagens em suporte digital e formato EXCEL e PDF, contendo os respetivos números de telemóvel, IMSI e IMEI: a) De todas as comunicações (recebidas/efetuadas/falhadas ou concretizadas) nas antenas supra identificadas, no período compreendido entre as 00H00 e as 07H00 de dia 08-12-2022. Sobre tal promoção foi proferido o seguinte despacho (transcrição): Requer o Magistrado do Ministério Público que se solicite às operadoras de telefones móveis informação quanto a dados móveis, localização celular e facturação detalhada, quanto a um conjunto indeterminado de números (cujo identificação igualmente pretende), que accionaram determinadas antenas, em determinado lapso temporal, para investigação de crimes de furto qualificado, na forma tentada, sabotagem informática e acesso ilegítimo, ocorrido em 08 de Dezembro de 2022. Invoca para o efeito o CPP. No caso presente, o que se pretende é a obtenção de informação pretérita, reportada a determinado período concreto temporal. Ora, independentemente de se saber qual o regime aplicável na sequência de declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral dos Artigos 4°, 6° e 9° da Lei n° 32/2008 de 17/07, a verdade é que o M.P. vem fundamentar a sua pretensão no Artigo 187º do CPP. Ora, tanto tal normativo, quanto já o Artigo 9º da Lei supra referenciada, ora declarado inconstitucional previam como requisito legal para a obtenção de dados preservados, a qual idade de vitimas, intermediários ou suspeitos ou arguidos dos titulares dos dados a obter. Mesmo o artigo 18º, nº 4 da Lei do Cibercrime (mesmo a atender-se aplicável), remete para o artigo 187° do CPP. A jurisprudência tem considerado que não é possível a obtenção de dados de tráfego e de localização atinentes a um conjunto indeterminado de pessoas, só por os números de telefone de que são titulares ou que utilizam terem accionados, determinadas antenas, em determinado período concreto temporal, porquanto tais pessoas não podem nem considerar-se suspeitas, nem se vislumbra quanto a elas, em face da sua indeterminação, que tenham praticado ilícito abrangido nos catálogos de crime, sejam os previstos no Artigo 187°, sejam nos de crimes graves p. e p. pelo Artigo 2°, n° 1, al. g) da Lei n° 32/2008 de 17/07. Nestes termos, por exemplo, o Ac. do TRC de 08/1 1;2017, relatado por Helena Bolieiro, no processo 380117.9JACBR.C I, com o seguinte sumário: "I - os valores constitucionais da descoberta da verdade material e da realização da justiça, mesmo em matéria criminal, estão sujeitos aos limites impostos pela dignidade pelos direitos fundamentais das pessoas e que processualmente se traduzem nas proibições de prova, em relação às quais o artigo 32, n° 8 da CRP, estabelece, quanto à questão que agora nos ocupa, que são nulas todas as provas obtidas mediante abusiva intromissão nas telecomunicações, II - A obtenção de dados de tráfego e de localização como aqueles que o Ministério Público pretende só pode ocorrer em relação às pessoas referidas no artigo 9°, nº 3 da Lei nº 32/2008 de 17-07 e no nº 4 do Artigo 187º do CPP, ou seja, a) o suspeito ou arguido, b) a pessoa que sirva de intermediário, relativamente à qual haja fundadas razões para crer que recebe ou transmite mensagens destinadas ou provenientes de suspeito ou arguido: ou c) a vítima de crime, mediante o respectivo consentimento. electivo ou presumido, (,) IV - Exige-se ainda que a decisão judicial de transmitir os dados respeite os princípios da adequação, necessidade e proporcionalidade, designadamente no que se refere à definição das categorias de dados a transmitir e das autoridades competentes com acesso aos dados. V - Não é permitido que se aceda a dados de tráfego e de localização de um conjunto indeterminado de pessoas que efectuaram comunicações, acionado células de antenas de comunicações, na expectativa de, entre elas, descortinar quem possa ter praticado o ilicito investigado. VI - Pretende-se, pois, obter dados de trafego e de localização, desejavelmente de suspeitos, mas seguramente de muitos "não suspeitos ". VII - O que não é permitido pela salvaguarda do sigilo das telecomunicações, consubstanciada nos apertados limites estabelecidos na Lei nº 32. 2008 e nas exigências constitucionais de adequação, necessidade e proporcionalidade". Desta maneira, não vislumbramos que o solicitado (face ao fundamento legal invocado ou outro em abstracto admissível) tenha, quer assento constitucional, quer assento legal, faltando o requisito a que alude o Artigo 187º, nº 4, al. a) do C.P.P. DECISÃO: Termos em que, face ao exposto, se indefere, por falta de fundamento legal e nomeadamente por referência ao invocado, o requerido. Notifique e DN, devolvendo-os os autos aos serviços do M.P.. Notificado deste despacho, apresentou o MP a seguinte promoção (transcrição): III. Localização celular e listagem de comunicações: Os crimes de burla informática e nas comunicações, p. e p. pelo artigo 221.º, n.º 1, de furto qualificado na forma tentada, p. e p. pelos artigos 203.º, 204.º, n.º 2, alínea a), todos do Código Penal, e, ainda sabotagem informática e acesso ilegítimo, p. e p. pelos artigos 5.º e 6.º, n.ºs 1 e 5, alínea b) da Lei n.º109/2009, de 15 de Setembro, pelo que em abstrato falamos de crimes puníveis com uma moldura legal, no seu limite mínimo de 5 anos de pena de prisão e um limite máximo de 21 anos de pena de prisão. A obtenção de dados de tráfego e a localização celular podem ser autorizadas nos termos do disposto no artigo 187.º, n.ºs 1 e 4, al. a) do Código de Processo Penal, aplicável por via do artigo 189º, n.º 2 do mesmo diploma. No caso dos autos, os crimes em investigação admitem o recurso a estes meios de obtenção de prova, tendo em conta a sua moldura penal e os visados são os suspeitos da prática dos factos – artigo 187º, n.º 1, al. a) e 4, al. a) do Código de Processo Penal. Acresce que, a Polícia Judiciária, já realizou as diligências de investigação visando o apuramento dos autores de tais factos, nomeadamente, inspeção ao local do crime, com recurso a zaragatoa aos cabos soltos, localizados no interior da máquina fls. 31 e 32, bem como ao arame que se encontrava junto à máquina, do qual resultou em sede de exame pericial a fls. 69 e 70 que, não foi possível realizar exame lofoscópico por não existir área suficiente para a existência de vestígios lofoscópicos com valor identificativo, procederam ao visionamento das imagens de videovigilância instaladas no restaurante, que se situa a cerca de 10 metros de distância e efetuaram registo fotográfico, conforme Relatório de Exame Pericial de fls.34 a 53. Das diligências de prova realizadas resulta a fls. 57 e 58 que, das imagens visionadas não foram identificados momentos com relevo para os autos, não se conseguindo apurar elementos suficientes que permitam identificar os autores destes factos. Pese embora, haja notícia de um avistamento de dois indivíduos nas imediações, no dia factos em causa, no entanto não se conseguiu obter a sua identificação. Revelando-se todo este trabalho infrutífero. Posteriormente, a Polícia Judiciária procedeu à leitura das antenas de telecomunicações (BTS) conforme auto de localização celular de fls.59 e 60, dos autos. MEO (…) VODAFONE (….) NOS (…) Em face do exposto, requer-se que seja solicitada às operadoras de serviço móvel de telecomunicações, nos termos do disposto nos artigos 187.º, n.º 1, al. a) e n.º 4, al. a) e 189.º, n.º 2 do Código de Processo Penal: 1.Pelo que, atentas as razões supra expostas, solicita-se que seja obtido junto das Operadoras Nacionais- ALTICE/MEO, VODAFONE E NOS Comunicações: 1.1 Listagens em suporte digital e formato EXCEL e PDF, contendo os respetivos números de telemóvel, IMSI e IMEI: a) De todas as comunicações, excluindo os residentes habituais (recebidas/efetuadas/falhadas ou concretizadas) nas antenas supra identificadas, no período compreendido entre as 02H00 e as 05H00 de dia 08-12-2022, sendo as mesmas imprescindíveis e essenciais para a continuação da investigação dos factos, não havendo outras diligências que, em sua substituição, possibilitem apurar a verdade dos factos, identificar todos os seus autores e acautelar a prova. Estamos perante dados de localização, os quais assumem uma natureza híbrida, integrando dados de base ou dados de tráfego. Contudo, o que se pretende são essencialmente dados de localização, enquanto dados base, que não contendem com as comunicações entre as pessoas e que abrangem somente a localização do equipamento em si. Sucede que, após o Acórdão do Tribunal Constitucional nº268/2022, e, acompanhando na íntegra a posição, doutamente, defendida pelo autor e Procurador da República, Rui Cardoso, in Revista do Ministério Público 172, com o título “A conservação e a utilização probatória de metadados de comunicações electrónicas após o Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 268/2022- o que nasce torto…”, em especial páginas 33 a 37, 55 a 64, as decisões que têm vindo a ser proferidas nesta matéria advêm de uma “indevida leitura do Ac. TC 268/2022 e de incorrecta interpretação do artigo 189.º do CPP, da Lei 41/2004, da Lei 32/2008 e da LCC”. De acordo com a posição aventada por este autor, a qual acompanhamos as apontadas críticas baseiam-se na mistura do conceito de meio de prova, meio de obtenção de prova e conservação do meio de prova. Ora, “os metadados são, em si, meio de prova; em concreto, prova documental”, cujo conceito de documento está definido no normativo do artigo 255.º, alínea a) do Código Penal. Os metadados “(…) podem estar inscritos numa factura detalhada que seja enviada por correio físico ou electrónico para o domicílio do seu titular (…).” Diferente é a forma como podem ser obtidos, para que depois os possamos utilizar como meios de prova, “(…) podem ser juntos (artigo 164.º, n.º1, do CPP), mas, quando corpóreos , são objectos susceptíveis de servir a prova e por isso podem ser apreendidos (artigo 178.º, n.º1, do CPP), apreensão que é um meio de obtenção de prova (…)”. Quanto a admissibilidade dos metadados como prova documental em si, a mesma não foi objeto de “juízo de inconstitucionalidade”, não havendo como sufraga o mesmo autor “qualquer desconformidade constitucional” na sua utilização. A matéria apreciada pelo TC incide apenas sobre o regime de conservação desses dados prevista na Lei 32/2008, concluindo que “(…) Considerar que a utilização destes dados, em si, viola a Constituição, deve conduzir então a que, (…) todas as intercepções telefónicas e de dados informáticos o serão também, pois estas, além de permitirem o registo e utilização desses mesmos dados, fazem-no ainda relativamente ao conteúdo.” O que não se tem verificado. No que respeita à norma declarada inconstitucional (artigo 6.º) sobre o limite temporal que incide sobre a conservação de dados, a mesma não define limites temporais, para a sua utilização probatória. Não fazendo sentido afirmar que o referido Acórdão do TC impeça a “utilização dos metadados para prova de quaisquer crimes, sejam eles os “crimes graves” definidos pela Lei n.º32/2008, sejam os previstos no n.º1 do artigo 187.º do CPP que não se incluam nessa definição de “crime grave”, conservados ao abrigo da Lei 41/2004.”. A declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral do artigo 4.º da Lei n.º32/2008, de 17 de julho, conjuntamente com o seu artigo 6.º e 9.º conduzem assim à aplicação das disposições dos artigos 187.º, n.º1, al. a) e 189.º, n.º 2, do CPP, artigo 6.º, n.º2 da Lei n.º41/2004, de 18 de agosto, artigo 10.º da Lei n.º23/96, de 26 de julho e artigo 11.º, n.º1, al. c), e 14.º, n.ºs 1 e 4 da Lei nº109/2009, de 15 de setembro. Com efeito, as disposições processuais penais não foram revogadas pela Lei nº32/2008 de 17 de julho. No que respeita a conservação desses dados, a mesma ocorre nos termos previstos no artigo 6.º, n.º 2 da Lei 21/2004, de 18 de agosto, durante seis meses, em cumprimento do artigo 10.º da Lei n.º 23/96 de 26 de julho, sendo um elemento de prova legal. Assim como, a sua obtenção e transmissão pelas operadoras de comunicações eletrónicas é legítima e admissível, nos termos e para os efeitos do disposto na Lei n.º 41/2004 e dos artigos 11.º e 14.º da Lei n.º 109/2009 de 15 de setembro que se transcreve “já que a finalidade de investigação e repressão criminal é, em si mesma, uma finalidade de interesse público que pode legitimar o acesso e reutilização de dados pessoais, quando tal acesso se revele adequado, necessário e não excessivos face a tal finalidade.”. Ademais, nos termos do disposto no artigo 18.º, n.º 2 da CRP: “A lei só pode restringir os direitos, liberdades e garantias nos casos expressamente previstos na Constituição, devendo as restrições limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos.”. Razão pela qual, a restrição de direitos fundamentais deve alicerçar-se no princípio da proporcionalidade, visando prosseguir outros interesses constitucionalmente protegidos, nomeadamente, o interesse do Estado em prosseguir a investigação criminal, como é notório nos autos em apreço. Por sua vez, o legislador ordinário estipulou também requisitos materiais e formais, a fim de pautar o regime das interceções telefónicas com a nossa lei constitucional. Assim, desde logo, o artigo 187.º, n.º 1 do Código de Processo Penal consagra uma cláusula geral e, de seguida, um catálogo de crimes: “A interceção e a gravação de conversações ou comunicações telefónicas só podem ser autorizadas durante o inquérito, se houver razões para crer que a diligência é indispensável para a descoberta da verdade ou que a prova seria, de outra forma, impossível ou muito difícil de obter (sublinhado e negrito nosso), por despacho fundamentado do juiz de instrução e mediante requerimento do Ministério Público, quanto a crimes: a) Puníveis com pena de prisão superior, no seu máximo, a 3 anos; (…) .”. O que se verifica nestes autos, e como tal só mediante a obtenção do registo detalhado das chamadas efetuadas e recebidas naquele lapso temporal e que ativaram as células supra indicadas pela Polícia Judiciária, se poderá apurar quais os indivíduos que estiveram envolvidos nos crimes supra mencionados, que ora se investigam nos presentes autos. Com efeito, não existem outros meios de prova nem de obtenção de prova, posto que se esgotaram as diligências com vista à localização dos sujeitos. Somente desta forma, com base numa listagem das chamadas efetuadas no momento do cometimento dos factos, é que se recolherão elementos probatórios consistentes no sentido da identificação dos suspeitos, que estarão a atuar do mesmo modo, no âmbito de outras investigações, para as quais seria igualmente relevante o cruzamento de dados. Além disso, pelo facto de se tratar de um lapso temporal em que a população está a repousar, faz diminuir a probabilidade de haver testemunhas oculares, como se verificou. Porquanto, entendemos que nos termos do disposto no artigo 187.º, n.º 1 do Código de Processo Penal, há “razões para crer que a diligência é indispensável para a descoberta da verdade ou que a prova seria, de outra forma, impossível ou muito difícil de obter.” Não podemos olvidar que o registo solicitado apresenta um balizamento temporal coincidente/logo após com o/ao período durante o qual os factos ocorreram, pelo que não é um meio desproporcionado para obtenção de prova. De destacar ainda o facto de se tratar de uma zona territorial com baixa densidade populacional e que, no período demarcado, a população estaria a repousar, à exceção dos agentes dos crimes, pelo que só praticamente estes estariam, eventualmente, a utilizar meios de comunicação. Por outro lado, o que se pretende é um cruzamento de dados e não a obtenção de forma indiscriminada de dados. Cremos assim, que com um encurtamento do período temporal solicitado e a exclusão dos dados das pessoas ali residentes e os esclarecimentos ora fornecidos sobre o local dos factos (local com baixa densidade populacional e longe de qualquer via de comunicação rápida (A1; A23)), que afastamos o receio de estarem a ser solicitados os dados de um número indeterminado de pessoas que não sejam as suspeitas da prática dos factos dos presentes autos. Por último, do ponto de vista legal, mormente constitucional, afigura-se-nos ser adequada a obtenção dos dados solicitados, atenta a fundamentação supra exposta, entendemos que os meios de obtenção de prova cuja autorização ora se promove comunga das exigências plasmadas no artigo 187.º do Código de Processo Penal, não havendo outros, menos gravosos, que permitam igualmente a identificação dos agentes dos crimes em apreço. Em face do exposto, promove-se que seja solicitada às operadoras de serviço móvel de telecomunicações, nos termos do disposto nos artigos 187.º, n.º 1, al. a) e n.º 4, al. a) e 189.º, n.º 2 do Código de Processo Penal: 1.Pelo que, atentas as razões supra expostas, solicita-se que seja obtido junto das Operadoras Nacionais- ALTICE/MEO, VODAFONE E NOS Comunicações: 1.1 Listagens em suporte digital e formato EXCEL e PDF, contendo os respetivos números de telemóvel, IMSI e IMEI: a) De todas as comunicações, excluindo os residentes habituais (recebidas/efetuadas/falhadas ou concretizadas) nas antenas supra identificadas, no período compreendido entre as 02H00 e as 05H00 de dia 08-12-2022. Sobre esta promoção recaiu o seguinte despacho (transcrição): A promoção que antecede nada traz de inovador, face à promoção anterior que mereceu um despacho de indeferimento. Não diz como se apurariam os residentes habituais. Promove na mesma a obtenção de dados de suspeitos e não suspeitos, que accionaram ante3nas, em período temporal determinado, porquanto só obtendo tais dados seria possível, após, excluir os residentes habituais. Persiste na violação do Artigo 187º, nº 4, al. a) do CPP e de preceitos constitucionais. Nesta medida, o Tribunal nada mais determina, porquanto já se pronunciou sobre a questão em causa, em despacho anterior, tendo-se esgotado o seu poder jurisdicional sobre tal matéria. Notifique e DN, devolvendo-se os autos. B – Recurso Inconformado com o assim decidido, recorreu o MP, apresentando as seguintes conclusões (transcrição): 1.ª Nos presentes autos investiga-se a prática dos crimes de Burla Informática e nas Comunicações, p. e p. pelo artigo 221.º, n.º 1, de Furto qualificado na forma tentada, p. e p. pelo artigo 203.º, 204.º, n.º 2, alíneas a) todos do Código Penal, e, ainda Sabotagem Informática e Acesso Ilegítimo, p. e p. pelos artigos 5.º e 6.º, n.ºs 1 e 5, alínea b) da Lei n.º109/2009, de 15 de Setembro, pelo que falamos de crimes puníveis com uma moldura legal abstrata, no seu limite mínimo de 5 anos de pena de prisão e um limite máximo de 21 anos de pena de prisão. 2.ª Como diligências imprescindíveis à descoberta da verdade material e sustentação probatória da identidade dos agentes que indiciariamente pertencerão a uma organização criminosa complexa, organizada e de caráter transnacional, detentora de especiais capacidades e conhecimentos, com recursos a técnicas sofisticadas, através do comprometimento e manipulação de sistemas informáticos, ordenando a dispensa de montantes existentes nos cofres/gavetas das ATM (Automated Teller Machines), apropriando-se assim de avultadas quantias monetárias, conforme referido no relatório da Polícia Judiciária de fls. 80 a 85. 3.ª Tais factos são ainda sustentados com a ocorrência de eventos semelhantes, ocorridos noutras cidades portuguesas situadas no ... e ..., bem como em diversos países europeus, atenta a informação veiculada pela EUROPOL e pelas congéneres europeias. 4.ª Podemos pois, concluir que, existe uma correlação entre todos estes crimes e que os agentes destes factos, até agora desconhecidos, se dediquem a este tipo de ilícitos criminais, em face das ocorrências supra referidas, com o mesmo modus operandi. 5.ª Tais factos pressupõem a integração dos suspeitos numa cadeia que envolverá, necessariamente, um número indeterminado de pessoas, atuando a diferentes níveis e com uma estrutura operacional de grande dimensão, pois que com a incidência com que se têm vindo a verificar, causam avultados prejuízos económicos para os Estados, além do alarme social e impacto que gera na comunidade no seu todo. 6.ª O modus operandi usado pelos agentes é o designado por “.../... se carateriza por um ataque lógico realizado a uma ATM (Automated Teller Machine), através da conexão do CPU (Central Processing Unit ou Unidade de Processamento) da ATM do terminal seguida da conexão a um dispositivo eletrónico externo não autorizado (Computador/Tablet) que permite enviar comandos diretamente ao “Cash Dispenser”. 7.ª O “Malware” trata-se de uma infeção do sistema e ligação a um dispositivo externo para controlo das funções da ATM. 8.ª Independentemente do processo utilizado, a ação tem por finalidade o “cash out/jackpotting”, ou seja, levar o terminal a dispensar todo o dinheiro contido nas gavetas instaladas no cofre da ATM, sendo necessário o acesso físico ao CPU e periféricos, o que habitualmente é realizado através da remoção do painel de iluminação da ATM ou corte/abertura da chapa metálica que permita tal acesso. 9.ª Foram detetados fortes indícios de arrombamento e ataques através do uso de meios informáticos à ATM, integrada no Edifício ... supra identificada, a qual continha no momento do ataque o montante de 26.320,00€ (vinte e seis mil, trezentos e vinte euros). 10.ª Acresce que, no período compreendido entre 28.09.2022 e 11.12.2022 verificaram-se na zona ... e ... do País 11 casos de ataques a ATM’S com recurso do mesmo Modus Operandi, (..., ..., ..., ..., ..., ..., ..., ..., ..., ..., Nelas), situando temporal esses ataques entre as 01h00 e as 05h14m. 11.ª A obtenção de faturação detalhada e de dados de localização celular associados a eventos de rede nas operadoras de serviço móvel de telecomunicações, ALTICE/MEO, VODAFONE E NOS Comunicações, com listagens em suporte digital e formato EXCEL e PDF, contendo os respetivos números de telemóvel, IMSI e IMEI, de todas as comunicações, excluindo os residentes habituais (recebidas/efetuadas/falhadas ou concretizadas) nas antenas supra identificadas, no período compreendido entre as 02H00 e as 05H00 de dia 08-12-2022, são imprescindíveis e essenciais para a continuação da investigação dos factos, não havendo outras diligências que, em sua substituição, possibilitem apurar a verdade dos factos, identificar todos os seus autores e acautelar a prova. 12.ª Atente-se que suspeito é toda a pessoa relativamente à qual exista indício de que cometeu ou se prepara para cometer um crime, ou que nele participou ou se prepara para participar, nos termos do art.º 1, al. e) do Código de Processo Penal. 13.ª A jurisprudência maioritária vai no sentido de que este suspeito ainda que não esteja concretamente identificado, deve ser identificável ou determinável. Como se retira destes arestos que se transcrevem, Acórdão do TRL de 25 de outubro de 2022 da Desembargadora Mafalda Santos, disponível em www.dgsi.pt que refere que: “(…) IX-A jurisprudência vem sufragando o entendimento de que a pessoa em concreto, relativamente à qual se visa a utilização do meio de obtenção de prova em causa, não pode ser uma mera abstração, ainda que não seja conhecida a sua identidade terá de ser identificável, determinável. Mas esta determinação, diríamos nós, tem de permitir uma delimitação, mínima que seja, dos dados a recolher. (…)” E ainda, Acórdão do TRP de 26 de setembro de 2018 do Desembargador Moreira Ramos, acessível em www.dgsi.pt que também refere que :”Deve ser autorizado o pedido de localização celular, se existindo um suspeito do crime já determinado, este ainda não está concretamente identificado.” 14.ª Salvo o devido respeito, os presentes autos retratam exatamente esta situação, em que o perfil dos suspeitos está perfeitamente traçado e que através da exclusão dos residentes habituais, com recursos aos métodos sobejamente dominados pelas operadoras de telecomunicações, será possível a sua identificação, num dia exato, num período temporal circunscrito a 3horas. 15.ª No que concerne especificamente aos dados de localização, os quais assumem natureza híbrida, podendo integrar dados de base ou dados de tráfego. 16.ª O que se pretende são, na sua essência, dados de localização enquanto dados de base, por não contenderem com comunicações entre pessoas, mas apenas com a localização do equipamento. 17.ª Todavia, tais dados podem facilmente estar associados a comunicações entre pessoas, assumindo-se assim, e também, como dados de tráfego. 18.ª A obtenção dos dados de tráfego, ao não incidirem sobre o próprio conteúdo da comunicação a que esses dados se referem, restringe direitos fundamentais de uma forma muito menos intensa do que a intervenção nas comunicações. 19.ª Com a declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral do artigo 4.º da Lei n.º 32/2008, de 17 de julho, conjugada com o artigo 6.º da mesma lei, pelo Acórdão n.º 268/2022, do Tribunal Constitucional, aplicam-se as disposições conjugadas dos artigos 187.º, nºs 1, a) e 4, a) e 189.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, 6.º, n.º 2, da Lei n.º 41/2004, de 18 de agosto, e 10.º da Lei n.º 23/96, de 26 de julho. 20.ª Os indicados normativos processuais penais não foram revogados pela Lei n.º 32/2008, de 17 de julho, ou, caso assim se não entenda, com a indicada declaração de inconstitucionalidade, o regime plasmado na Lei n.º 32/2008, de 17 de julho, é revogado, sendo repristinado o regime anterior, a saber, e no que ora importa, o artigo 189.º, n.º 2, por reporte ao artigo 187.º, n.º 1, al. a) e n.º 4, al. a), do Código de Processo Penal. 21.ª Os dados em apreço reportam-se a “suspeito determinável e identificável” e a “crimes de catálogo”. 22.ª A conservação de tais dados opera nos termos da Lei n.º 21/2004, de 18 de Agosto porque previstos no n.º 2 do seu artigo 6.º e por um período de 6 meses, nos termos do disposto no artigo 10.º da Lei n.º 23/96, de 26 de julho (tendo já sido alvo de preservação por parte da operadora), sendo elemento probatório lícito. 23.ª O despacho da Mmª. Juiz de Instrução Criminal, ao indeferir a obtenção de faturação detalhada e dos dados de localização associados a eventos de rede, violou o disposto nos artigos 187.º, nºs 1, a) e 4, a) e 189.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, 6.º, n.º 2, da Lei n.º 41/2004, de 18 de agosto, e 10.º da Lei n.º 23/96, de 26 de julho, pelo que deverá revogar-se o mesmo, substituindo-o por outro que defira a promovida diligência. Por inexistirem arguidos constituídos, não há respostas ao recurso. A Exmª Juiz A Quo sustentou o despacho recorrido nos seguintes termos (transcrição): Exmºs Senhores Doutores Juízes Desembargadores: Não obstante as motivações de recurso e sem prejuízo de melhor opinião, o Tribunal mantém a decisão recorrida, salientando-se que se nos afigura que as asserções por parte do M.P. quanto ao carácter organizado e correlação destes autos com outros autos onde semelhante factual idade é investigada, não têm qualquer assento em prova indiciária recolhida nestes autos. E, independentemente da gravidade dos factos ou ilícitos em investigação ou do grande interesse para a investigação da utilização do meio de obtenção de prova requerido, que não se discute, a verdade é que o mesmo é sujeito a pressupostos legais, que não podem ser ultrapassados, sob pena de o processo penal se tornar injusto, ilegal e conduzir a resultados desvirtuados, por obtidos em violação do quadro legal constitucional que enquadra toda a actividade investigatória e a actuação do M.P. e do Tribunal. O requerido pelo M.P. pressupõe sempre a obtenção de dados de um conjunto indeterminado de cidadãos que não revestem a qualidade de suspeitos e cujos dados são obtidos, desde logo, os de localização, sómente porquanto casualmente accionaram em determinado período temporal, determinadas antenas. Mesmo a exclusão de "residentes habituais", pressupõe sempre previamente a obtenção de dados de localização de tais pessoas e violação inerente e necessária do Artigo 187°, n° 4, als. a) a c) do CPP, necessários a tal posterior "exclusão", que o M.P. não diz como se fará ou por quem. E por outro lado, essa exclusão não reduz ou pode não reduzir o núcleo de pessoas a um único suspeito, podendo ser "apanhados" cidadãos não residentes habituais, mas que não sejam suspeitos dos ilícitos aqui em investigação e ainda assim tivessem accionado tais antenas em tal lapso temporal. Independentemente das normas aplicadas, seja o CPP, seja a parcialmente revogada Lei n° 32/2008, todas, pressupõem que os dados a obter sejam de suspeitos, vitimas ou intermediários, de ilícito criminal que constitua um crime de catálogo, o que não ocorre, dado o universo de dados que o M.P. pretende obter e a potencialidade de resultados atinentes a não suspeitos, que se obterão, a ser deferida a sua pretensão. Aliás, que se saiba a jurisprudência dos Tribunais Superiores vai em sentido igual ao que propugnamos. Assim sendo, mantém-se o despacho recorrido, devendo V. Exªas, fazer, como é Habitual, a Costumada Justiça!. D – Tramitação subsequente Recebidos os autos nesta Relação, foram os mesmos com vista à Exª Procuradora-Geral Adjunta, que promoveu o cumprimento do Artº 417 nº2 do CPP, o que não foi determinado, tendo em conta, como se disse, a inexistência de arguidos constituídos. Efectuado o exame preliminar, determinou-se que o recurso fosse julgado em conferência. Colhidos os vistos legais e tendo o processo ido à conferência, cumpre apreciar e decidir. 2. FUNDAMENTAÇÃO A – Objecto do recurso De acordo com o disposto no Artº 412 do CPP e com a Jurisprudência fixada pelo Acórdão do Plenário da Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça n.º 7/95, de 19/10/95, publicado no D.R. I-A de 28/12/95 (neste sentido, que constitui jurisprudência dominante, podem consultar-se, entre outros, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 12 de Setembro de 2007, proferido no processo n.º 07P2583, acessível em HYPERLINK "http://www.dgsi.pt/" HYPERLINK "http://www.dgsi.pt/" www.dgsi.pt, que se indica pela exposição da evolução legislativa, doutrinária e jurisprudencial nesta matéria), o objecto do recurso define-se pelas conclusões que o recorrente extrai da respectiva motivação, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, que aqui e pela própria natureza do recurso, não têm aplicação. Assim sendo, importa apreciar se existe razão ao recorrente na sua promoção no sentido de que sejam solicitadas às operadoras Altice/MEO, Vodafone e NOS Comunicações, listagens em suporte digital e formato EXCEL e PDEF, contendo os respectivos números de telemóvel, IMSI e IMEI de todas as comunicações (ainda que excluindo os residentes habituais), recebidas/efectuadas/falhadas ou concretizadas, nas antenas identificadas na dita promoção, no período compreendido entre as 02.00 e as 15.00 do dia 08/12/22. B – Apreciação Exposta a questão em discussão, eminentemente jurídica, afigura-se-nos que assiste razão à Mmº Juiz A Quo, não merecendo reparo a decisão recorrida que se mostra apoiada por aquela que se acredita ser a melhor jurisprudência. In casu, estão em investigação a prática de crimes de burla informática e nas comunicações, furto qualificado na forma tentada, sabotagem informática e acesso ilegítimo. Como resulta, de forma expressa da promoção em causa, o MP requer a realização das mencionadas diligências ao abrigo do disposto nos Artsº 187 nsº1 al. e) e 4 al. a) e 189 nº2 do CPP, sendo certo que nos autos de inquérito inexistem arguidos constituídos, ou, sequer, suspeitos. Como se referiu no Acórdão desta Relação de 04/07/20, proferido no Proc. 9/20.8GAMTL-A.E1, relatado pela Exmª Desembargadora ora Adjunta e que seguimos de perto: “E em relação a este último ponto, ainda que não seja inteiramente consensual, a delimitação do conceito de suspeito para efeitos do disposto na enunciada norma legal, mesmo tendo em conta a definição que consta da al. e) do artigo 1º do CPP – considera-se «Suspeito» toda a pessoa relativamente à qual exista indício de que cometeu ou se prepara para cometer um crime, ou que nele participou ou se prepara para participar” – a jurisprudência converge no sentido de que esse conceito não pode reportar-se a um número indeterminado de pessoas incertas, mas tem de respeitar a pessoas concretas, ainda que não identificadas. Daí que constitua jurisprudência, que se crê unânime, dos nossos Tribunais Superiores, que a obtenção de dados de localização celular e de registos de realização de conversações ou comunicações não dever ser autorizada quando reportada a um número indeterminado de pessoas incertas, exigindo-se que se tratem de pessoas identificáveis ou determináveis (Neste sentido, vide, entre muitos outros, Acs. da RE de 30/09/2010, proc. 49/10.5JAFAR-A.E1, de 26/06/2012, proc. 342/11.0JAFAR.E1 e de 19/05/2015, proc. 54/15.5GCBNV-A.E1; Ac.s da RL de 22/06/2016, proc. 48/16.3PBCSC-A.L1-9 e de 03/5/2016, proc. 73/16.4PFCSC-A.L1-5; Ac.s da RC de 10/01/2018, proc. 388/17.4JACBR-A.C1 e de 08/11/2017, proc. 380/17.9JACBR.C1 e Ac. da RP de 11/02/2015, proc. 2063/14.2JAPRT-A.P1, todos acessíveis in www.dgsi.pt). Ou seja, como se refere no Ac. desta Relação de Évora de 03/12/2019, proferido no Proc. n.º 199/19.2GAFAL-A.E1, acessível no endereço www.dgsi.pt., que «se trate de pessoas minimamente “concretizadas” e “contextualizadas”, pessoas de muito provável e previsível identificação, por meio do conhecimento de um mínimo de características que permitam individualizá-las relativamente às demais pessoas que também possam ter estado presentes no local do crime.». Esta última será, por exemplo, a situação em que existindo testemunhas que viram pessoa(s) no local dos factos em investigação, em período temporal compatível com o da respetiva ocorrência, desconhecendo a identificação desses indivíduos ou não conseguindo sequer descrever os seus traços fisionómicos, dão conta de aspetos tais como o número de indivíduos em questão, como se apresentava(m), etc., ou a situação – trazendo à colação o exemplo do rebentamento e furto de máquinas ATM, que é convocado pelo Exm.º PGA, no seu parecer – em que existem imagens de videovigilância recolhidas no local que permitem percecionar os indivíduos que praticaram os factos, apresentando-se os mesmos com o rosto encoberto. Ora, no caso concreto, os dados de tráfego e de localização celular cuja obtenção o Ministério Público pretende não visa suspeito(s), com o alcance e a dimensão da definição supra referidos, visando antes um número indeterminado de pessoas que, no período temporal balizado como o da ocorrência dos factos em investigação estiveram e efetuaram ou receberem comunicações telefónicas (ou participaram em evento de rede) na área de abrangência das 15 células de antenas BTS, indicadas pelo Ministério Público, na expetativa de poder descobrir quem de entre essas pessoas possa ter praticado os factos/crime em investigação, o que não é legalmente permitido, por a obtenção de dados de tráfego e de localização conservados, com essa finalidade, extravasar os apertados limites estabelecidos na Lei n.º 32/2008, para a transmissão de tal tipo dados, não respeitando os princípios jurídico-constitucionais da adequação e proporcionalidade, a que estão sujeitas as intervenções restritivas dos direitos liberdades e garantias (artigo 18º, n.º 2, da CRP), estando em causa o direito à inviolabilidade das telecomunicações consagrado no artigo 34º, n.º 4, da CRP (Também neste sentido, Ac. RC de 10/1/2018, proc. 388/17.4JACBR-A.C1 e Ac. da RE de 19/05/2015, proc. 54/15.5GCBNV-A.E1, acessíveis em www.dgsi.pt). A falta de suspeito(s) determinado(s), nos termos sobreditos, contra quem dirigir os pedidos de obtenção de dados de tráfego ou os pedidos de localização celular conservados «é obstáculo intransponível à realização deste tipo de meios de obtenção de prova.” Ainda que na situação tratada no aresto citado, o enquadramento legal tivesse sido feito ao abrigo do estatuído na Lei 32/2008, de 17/07, entretanto parcialmente revogada em consequência do Acórdão do tribunal Constitucional nº 268/2022, a verdade é que a solução é idêntica à dos presentes autos – em que a promoção do MP, recorde-se, se ancora nos normativos dos Artsº 187 e 189, ambos do CPP – na medida em que o problema, por assim dizer, aqui, como ali, se coloca na ausência de suspeitos e no facto de a diligência promovida poder incidir sobre um número indeterminado de pessoas que, sem nada terem a ver com a factualidade que se investiga, poderem ser vistas como suspeitas, apenas pela circunstância de os números de telefone de que são titulares ou que utilizam terem accionado determinadas antenas num concreto período temporal. Ora, os incisos do CPP em que o recorrente radica a sua pretensão exigem também, para o seu deferimento, que a diligência se reporte à qualidade de suspeito(s) da prática dos crimes em investigação, o que se compreende, atento o carácter invasivo e violador da intimidade privada daquele meio de obtenção de prova. É sabido que os princípios da verdade material e da realização da justiça, ainda que em sede criminal, estão sujeitos aos limites impostos pela dignidade e pelos direitos fundamentais das pessoas e ainda pelas exigências constitucionais de adequação, necessidade e proporcionalidade, de modo a impedir, por exemplo, a obtenção de provas mediante uma abusiva intromissão nas telecomunicações. Daí que a jurisprudência, em tendência que se crê largamente maioritária, tenha vindo a afirmar que na aquisição de dados de tráfego e de localização como aqueles referenciados pelo recorrente, os mesmos ter-se-ão de ater às pessoas para as quais a lei admite tal meio de obtenção de prova - a) o suspeito ou arguido, b) a pessoa que sirva de intermediário, relativamente à qual haja fundadas razões para crer que recebe ou transmite mensagens destinadas ou provenientes de suspeito ou arguido: ou c) a vítima de crime, mediante o respectivo consentimento. electivo ou presumido – não sendo permitido o acesso a dados de tráfego e de localização de um conjunto indeterminado de pessoas que efectuaram comunicações, accionado células de antenas de comunicações, na expectativa de, entre elas, descortinar quem possa ter praticado o ilícito investigado, porquanto, nesse caso, poderemos estar na presença de um número incomensurável de suspeitos, o que viola, flagrantemente, os princípios constitucionais acima referidos. Nem se diga que a restrição do período temporal, bem como a alegada exclusão dos residentes habituais – operada pelo MP em segunda promoção após o indeferimento da primeira que não continha tal restrição e exclusão – o torna conforme com as exigências legais, na medida em que, como bem nota a MMª Juiz a quo no seu despacho de sustentação: “O requerido pelo M.P. pressupõe sempre a obtenção de dados de um conjunto indeterminado de cidadãos que não revestem a qualidade de suspeitos e cujos dados são obtidos, desde logo, os de localização, sómente porquanto casualmente accionaram em determinado período temporal, determinadas antenas. Mesmo a exclusão de "residentes habituais", pressupõe sempre previamente a obtenção de dados de localização de tais pessoas e violação inerente e necessária do Artigo 187°, n° 4, als. a) a c) do CPP, necessários a tal posterior "exclusão", que o M.P. não diz como se fará ou por quem. E por outro lado, essa exclusão não reduz ou pode não reduzir o núcleo de pessoas a um único suspeito, podendo ser "apanhados" cidadãos não residentes habituais, mas que não sejam suspeitos dos ilícitos aqui em investigação e ainda assim tivessem accionado tais antenas em tal lapso temporal. Independentemente das normas aplicadas, seja o CPP, seja a parcialmente revogada Lei n° 32/2008, todas, pressupõem que os dados a obter sejam de suspeitos, vitimas ou intermediários, de ilícito criminal que constitua um crime de catálogo, o que não ocorre, dado o universo de dados que o M.P. pretende obter e a potencialidade de resultados atinentes a não suspeitos, que se obterão, a ser deferida a sua pretensão. ” Concorda-se inteiramente com tais asserções, subsistindo ainda sérias dúvidas de que a diligência pretendida viesse a lograr a obtenção dos resultados almejados, mormente, a identificação dos agentes dos crimes em investigação, os quais, aliás, não estão abrangidos nos catálogos de crime, sejam os previstos no Artº 187 do CPP, sejam pela noção de crimes graves, plasmada no Artº 2 nº1 al. g) da Lei 32/2008, de 17/07. Assim se conclui que a inexistência de suspeito(s) determinado(s) contra quem dirigir o pedido de obtenção de dados de tráfego e/ou de localização celular, constitui um obstáculo intransponível à realização dos meios de obtenção de prova pretendidos, pelo que o seu deferimento, por excessivo nos termos expostos, consistiria numa violação dos princípios constitucionais da adequação e proporcionalidade, o que o feriria de ilegalidade. Razão pela qual o recurso não pode deixar de improceder, mantendo-se a decisão recorrida. 3. DECISÃO Nestes termos, decide-se negar provimento ao recurso e em consequência, confirma-se o despacho recorrido. Sem custas, por delas estar isento o recorrente. xxx Consigna-se, nos termos e para os efeitos do disposto no Artº 94 nº2 do CPP, que o presente acórdão foi elaborado pelo relator e integralmente revisto pelos signatários.xxx Évora, 26 de Setembro de 2023 Renato Barroso (Relator) Carlos Campos Lobo (Adjunto) Maria Fátima Bernardes (Adjunta) (Assinaturas digitais) |