Acórdão do Tribunal da Relação de Évora | |||
Processo: |
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Relator: | JOÃO CARROLA | ||
Descritores: | REQUERIMENTO DE ABERTURA DA INSTRUÇÃO REQUISITOS ACUSAÇÃO ALTERNATIVA | ||
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Data do Acordão: | 10/24/2023 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
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Sumário: | I. O requerimento de abertura de instrução formulado por assistente deverá equivaler a uma acusação alternativa, ou seja, deverá conter “uma verdadeira acusação”, o juiz investigará os factos descritos no requerimento instrutório e se os julgar indiciados e nada mais obstar ao recebimento da acusação pronunciará o arguido por esses factos, pois nem a instrução traduz um novo inquérito para colmatar eventuais faltas investigatórias que tenham ocorrido naquela fase, nem após a realização das diligências instrutórias se abre a possibilidade de formulação da acusação. II. Ainda que nos termos do art.º 283.º, n.º 3, al.ª b), do Cód. Proc. Penal, a narração dos factos possa ser sintética, a verdade é que terá que ser suficiente para albergar a consequência de poder fundamentar a aplicação de uma pena. III. Essa suficiência mede-se, pois, não só pela possibilidade do libelo acusatório conter todos os elementos subjectivos e objectivos indispensáveis à perfectibilização subsuntiva da infracção, como também, num outro domínio, o de poder funcionar como uma peça processual autónoma, ou seja, sem que para definição desses mesmos elementos se tenha de recorrer a outras peças do processo. IV. O RAI posto em causa no caso presente permite-nos , apesar de o texto acusatório não ser um exemplo de rigor descritivo, ainda assim os factos imputados permitem, na nossa perspetiva, fundamentar a aplicação de penas aos arguidos – tal factualidade preencherá os elementos correspondentes à tipicidade objectiva e subjectiva do ilícito criminal em apreço –, sucedendo que os referidos arguidos podem defender-se em conformidade, não saindo, nessa medida, violados os princípios do acusatório ou do contraditório, o que equivale a dizer que pode cumprir a função processual para que estaria vocacionado. | ||
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Decisão Texto Integral: | Acordam, em conferência, os Juízes da 2.ª Subsecção Criminal do Tribunal da Relação de Évora: I. No processo n.º 519/21.0GHSTC que, em fase de instrução, corre termos no Juízo de Instrução Criminal de Setúbal, Comarca de Setúbal, o assistente AA veio interpor recurso da decisão do Mmo. J.I.C. datada de 02.03.2023 que rejeitou o requerimento de abertura de instrução por si requerida, com os fundamentos constantes das respectivas motivações que aqui se dão por reproduzidas e as seguintes conclusões: “1) O presente recurso é interposto do despacho de 2.3.202324, na parte em que não admitiu o requerimento de abertura de instrução do Assistente AA, por inadmissibilidade legal. 2) O Tribunal a quo considerou que o Assistente “(…) enuncia de forma bastante vaga e inespecificada um acervo factual pelo qual o Ministério Público não deduziu acusação, não sendo possível, pelo relato aí efetuado, perceber qual foi a atuação concreta destes arguidos”, 3) Considerando ainda que “no caso do requerimento de abertura de instrução apresentado nos autos, verifica-se a omissão de imputação de qualquer ilícito aos acusados por falta de menção concretizada e contraditória do elemento objetivo do tipo criminal em análise.” 4) Os presentes autos nasceram da queixa-crime apresentada pelo Assistente, ora Recorrente contra os Arguidos BB, CC e DD pela prática de factos que integram o crime de ofensa à integridade física simples. 5) O Ministério Público acusou Arguido BB pela prática de um crime de ofensa à integridade física simples, p.p. artigo 143, n.º 1 do CP e arquivou o processo relativamente aos Arguidos CC e DD25 26, o que motivou a apresentação do requerimento de abertura de instrução pelo ora Recorrente. 6) Contrariamente ao defendido pelo despacho a quo, o Recorrente narrou os factos criminalmente censuráveis, o contexto em que tais factos ocorreram e a intervenção direta dos Arguidos CC e DD nos mesmos e, para tal, apresentou e requereu a correspondente produção de prova, cumprindo cabalmente o disposto nos artigos 287 e 283, n.º 3, al. b) e d) do CPP, bem como a densificação dos elementos típicos – objetivo e subjetivo – do crime em causa. 7) É consabido – e não se contesta – que o requerimento para abertura da instrução, quando apresentado pelo assistente na sequência de um despacho de arquivamento do MP, deve configurar uma verdadeira acusação, estabelecendo e delimitando a atividade do juiz de instrução, nos termos do disposto nas alíneas b) e c) do n.º 3 artigo 283 do CPP.27 8) Com efeito, o Recorrente narrou, de forma concreta e especificada, a factualidade relevante e demonstrativa da existência de indícios suficientes da prática pelos Arguidos CC e DD do crime de ofensa à integridade física simples, ancorado nos elementos de prova que compõem os presentes autos. 9) Salvo o devido respeito, só através de uma leitura superficial poderia o Tribunal a quo ter as dúvidas que enunciou no despacho recorrido e que se transcrevem, por facilidade: procurou-se salientar o que de relevante se retira do arrazoado do assistente: que o mesmo foi "agredido", em determinada altura pelos dois arguidos CC e DD, mas o que nunca se sabe é de que maneira o fizeram. Foi enquanto se encontrava de pé? Quando se encontrava no chão? O que fez com que caísse? Estavam os três em cima cio assistente? Quem fez o quê? Como compreender a alusão a (“em cima do Senhor DD, que apenas viu os três a agarrarem no mesmo”). Houve autoria (relativamente a quê)? Comparticipação? Em que ficamos? 10) Em primeiro lugar, cumpre notar que a factualidade descrita quanto ao início da agressão dirigida ao Recorrente é descrita na acusação, (…) o arguido BB desferiu um empurrão no ofendido DD provocando a queda deste no chão, bem como desferiu no ofendido AA murros e pontapés em várias partes do corpo deste, que lhe originaram as lesões descritas, a fls. 29 a 31, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais, e lhe determinaram cerca de 7 dias para a cura, sem afetação da capacidade de trabalho geral e profissional. 11) Por outro lado, os artigos 18, 19, 20 e 21 do RAI localizam a ação no tempo e no espaço, iniciando a descrição do tipo objetivo do crime28. 12) O Recorrente descreveu, ainda, a factualidade relativa à atuação dos Arguidos CC e DD na agressão que lhe dirigiram, cfr. artigo 21 do RAI: Após ter virado costas, o Assistente foi empurrado pelo Arguido BB, tendo caído no solo, e começou a ser violentamente agredido por aquele último, pela Arguida CC e pelo Arguido DD, filho de ambos. 13) Por referência ao depoimento da testemunha EE29, o Recorrente referiu no RAI apresentado que os Arguidos CC e DD o agrediram, agarrando-o e colocando-se em cima do Recorrente. “A testemunha EE referiu que “quando regressou à área comum do 3.º andar viu que o senhor DD estava deitado no chão e de barriga para cima, e que em cima do senhor DD estavam o seu casal vizinho e o filho de ambos. Menciona que não viu ninguém a agredir o senhor DD, que apenas viu os três a agarrarem no mesmo”30. 14) Cumpre, porém, sublinhar que na fase indiciária na qual se encontram os presentes autos, a pormenorização dos factos não é exigível ao Assistente que apresenta requerimento de abertura de instrução. 15) É que, em variadíssimos casos, como é o dos autos, não é possível ao Assistente relatar de forma precisa o ocorrido porquanto, em face da posição em que se encontrava – alegada no artigo 21 do RAI e, de acordo com o despacho de acusação -, não foi possível percecionar todos os movimentos que contra si foram desferidos pelos Arguidos. 16) Adicionalmente, o Relatório da Perícia de Avaliação do Dano Corporal31, concluiu que as lesões identificadas no corpo do Assistente terão resultado de traumatismo de natureza cortocontundente o que é compatível com a informação – artigo 41 do RAI. 17) Acresce que, do relatório de perícia de avaliação do dano corporal resulta, ainda, o relato do Recorrente quanto à agressão, tanto quanto é o seu conhecimento e que, por facilidade, se transcreve: Refere ter sofrido agressão com empurrão seguido de queda, murros e pontapés que terá sido infligida por 3 conhecidos. 18) Cumpre, ainda, realçar que aquando do momento da agressão, o Recorrente encontrava-se numa posição em que lhe era impossível determinar o modo como os três Arguidos o estavam a agredir. Isto porque, 19) O Recorrente aludiu aos depoimentos das testemunhas EE32, GG33 e FF34 que confirmam e descrevem a coparticipação dos Arguidos CC e DD, conjuntamente com o Arguido BB. 20) Todos os factos elencados pelo Assistente demonstram claramente que os Arguidos CC e DD tiveram total intervenção nas agressões perpetradas no corpo do Assistente, agindo com dolo e bem sabendo que tais condutas são censuráveis e puníveis por lei. 21)Concluiu o então Assistente que, por todos os factos expostos, fica por demais claro e evidente que os Arguidos agiram de forma livre, voluntária e consciente, ao se posicionarem em cima do Assistente e sobre ele exercer força, impedindo-o de se mover, com o único propósito de molestarem fisicamente o Assistente, atuando de modo adequado a prejudicar o seu bem-estar físico. 22)Quanto ao grau de participação dos Arguidos CC e DD, bastaria o Tribunal a quo atentar no teor dos artigos 21, 25, 35, 36, 41 e 42 do RAI35. 23) Além de todo o exposto, o Recorrente alegou ainda, nos artigos 46, 48 e 49 que os três Arguidos CC, DD e BB o agrediram ao disferir força sobre o seu corpo, impedindo-o de se movimentar. 24) Nos artigos 45 e 46 do RAI36, o Recorrente descreveu, de forma clara, o tipo objetivo do crime de ofensas à integridade física simples. 25)E, ainda, o Recorrente densificou o tipo subjetivo do crime ao descrever a verificação do dolo conforme os artigos 50, 52, 53 e 54 do RAI37. 26) No RAI, o Assistente fez uma descrição fáctica equivalente a uma acusação pública, com indicação precisa dos factos que o mesmo considera estarem indiciados, integradores tanto dos elementos objetivos como dos elementos subjetivos do crime de ofensa à integridade física simples, e constam do requerimento de abertura de instrução todos os elementos necessários, quer os factos quer os fundamentos para que aos Arguidos possa vir a ser aplicada uma pena, dele resultando bem claro o objeto da instrução, não tendo quaisquer dúvidas de que a referida peça processual possui a vertente de acusação exigida por lei. 27) Sem conceder, sempre se deverá atentar no exposto no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 21.6.201738, não deve, nem pode, ser rejeitado como foi, por falta de cumprimento daquele ónus, o requerimento de abertura de instrução que aquela assistente apresentou, ainda que tenha descrito a factualidade de forma pouco rigorosa, indicou os factos e o direito de modo a termos por cumprido o ónus imposto na parte final do n.º 2 do art. 287.º do CPP. 28)Face ao exposto, impõe-se, pois, a revogação do despacho recorrido por outro que admita o requerimento de abertura de instrução do Assistente. 24 Referência 96793879. 25 Refere o despacho de arquivamento que “os presentes autos não se afigura reunirem indícios suficientes da autoria por estes desse tipo de ilícito penal, pois não se afigura provável que se acusados viesse a ser proferida condenação em sede de audiência de discussão e julgamento contra os mesmos, nem se afigura existir fundada suspeita quanto a DD.”. 26 Referência n.º 95781737. 27O Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 258/04, citado naquelas referidas anotações, julgou não inconstitucional o art. 287.º, n.º 2, conjugado com o art. 283.º, n.º 3, als. b) e c), ambos do CPP, interpretado no sentido de ser exigível, sob pena de rejeição, que constem expressamente do requerimento de abertura de instrução apresentado pelo assistente os elementos mencionados nessas alíneas. No mesmo sentido, o Acórdão do T.C. 636/11. 28 “18.º No dia 29 de outubro de 2021, na sua residência e enquanto Administrador do Condomínio, o Assistente acompanhou três jovens ao 3.º andar do prédio. 19.º Após aqueles terem tocado à campainha do 3.º esquerdo frente, a Arguida CC dirigiu-se ao Assistente mostrando-se incomodada e exaltada por este ter acompanhado os jovens, amigos do seu filho, até à sua porta. 20.º Uma vez que o objetivo nunca foi provocar qualquer tipo de incómodo aos seus vizinhos e perante a má receção da Arguida, o Assistente limitou-se a abandonar o local. 21.º Após ter virado costas, o Assistente foi empurrado pelo Arguido BB, tendo caído no solo, e começou a ser violentamente agredido por aquele último, pela Arguida CC e pelo Arguido DD, filho de ambos.” 29 Fls. 65 e seguintes. 30 Cf. artigo 27.º do RAI apresentado pelo Assistente. 31 Fls. 257 a 260 do pdf. 32 Fls. 65 dos autos. 33 Fls. 63 dos autos. 34 Fls. 61 dos autos. 35 Que por facilidade se reproduzem na motivação do presente Recurso: “21.º Após ter virado costas, o Assistente foi empurrado pelo Arguido BB, tendo caído no solo e começou a ser violentamente agredido por aquele último, pela Arguida CC e pelo Arguido DD, filho de ambos. (…) 25.º Note-se que, pelo facto de o Assistente ter sido ativamente agredido por três pessoas e, em consequência, estar a tentar defender-se, podia, em abstrato, não ter logrado identificar corretamente os agressores. (…) 35.º A posterior participação dos Arguidos CC e DD na agressão coletiva ao Assistente AA resulta dos depoimentos do Assistente e das testemunhas que assistiram aos factos. 36.º Os depoimentos aludidos corroboram a participação inequívoca dos três Arguidos, BB, CC e DD na agressão perpetrada no corpo do Assistente AA. (…) 41.º Além disso, o relatório concluiu que tais lesões são suscetíveis de terem sido praticadas por três agressores, uma vez confirmadas com a informação sobre a agressão fornecida pelo Assistente. 42.º Assim, facilmente se conclui que as agressões foram provocadas não só pelo Arguido BB, mas também pelos Arguidos CC e DD.” 36 Que por facilidade se reproduzem na motivação do presente Recurso: “45.º Após ter sido empurrado pelo Arguido BB, os Arguidos CC e DD, em conjunto com o primeiro, ofenderam o corpo e a saúde do Assistente, com o propósito de provocar lesões e conscientes da censurabilidade daquele comportamento. Acresce que, 46.º Os três Arguidos, BB, CC e DD, em determinada altura da agressão, encontravam-se em cima do Assistente, impedindo que este se movimentasse ao desferir força sobre o seu corpo. 37 “50.º Os três Arguidos BB, BB e BB agiram com o propósito concreto de molestarem fisicamente o Assistente, nas circunstâncias descritas, atuando de modo adequado a prejudicar o seu bem estar físico. (…) 52.º In casu, as agressões empreendidas pelos três Arguidos através de força exercida sobre o corpo do Assistente, são passíveis de comprovar através de exame médico, conforme já referido. 53.º Mas, ainda que assim não fosse, como bem refere o referido Acórdão e ainda o proferido pelo Tribunal da Relação de Lisboa a 21-10-202016, “O preenchimento do tipo faz-se mediante a verificação de qualquer ofensa no corpo ou na saúde, independentemente da dor ou sofrimento. Não relevam, igualmente, os meios empregues pelo agressor, bem como, a duração da agressão (embora estes elementos possam relevar no momento da determinação da medida da pena nos termos do artigo 71° do Código Penal).” 54.º Dúvidas não restam de que os Arguidos CC e DD agiram com consciência da censurabilidade da prática do facto, adotando diferentes comportamentos adequados a ofender o corpo e a saúde do Assistente.” 38Disponível em http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/56bbe9bee1faaed38025814d0036bf8b? OpenDocument.” Termina no sentido de ser revogado o despacho recorrido e, nessa conformidade, ser admitido o requerimento de abertura de instrução do Assistente. A este recurso veio responder o M.º P.º:, com as respectivas conclusões: “1. Interpôs o assistente AA recurso do douto despacho proferido a fls. 192-196 v.º dos autos supra epigrafados, na parte em que, ao abrigo do disposto no art.º 287.º, n.º 3, do Código de Processo Penal, rejeitou, com fundamento em “inadmissibilidade legal”, o requerimento de abertura de instrução de fls. 141-148 v.º (180-187 v.º) dos mesmos autos (apresentado por aquele sujeito processual), onde se peticionava a pronúncia de CC e DD pela prática do crime de ofensa à integridade física simples que lhes foi aí imputado, designadamente, por se extrair do conteúdo desse requerimento a violação do preceituado nas disposições conjugadas dos art.ºs 283.º, n.º 3, al. b), e 287.º, n.º 2, do citado diploma legal; 2. Pugna o ora recorrente, a final, no sentido de dever aquele despacho ser revogado e, consequentemente, substituído por outro que admita o requerimento de abertura de instrução apresentado pelo primeiro; 3. Ora em apreço no presente recurso estará a questão de saber se existe, in casu, qualquer deficiência – de carácter “inultrapassável” – do requerimento instrutório apresentado, designadamente, resultante do facto de não ter sido cabalmente observado o disposto no art.º 283.º, n.º 3, al. b), ex vi do art.º 287.º, n.º 2, ambos do Código de Processo Penal; 4. Foi entendimento do Senhor Juiz que o requerimento de abertura de instrução apresentado pelo assistente não foi formulado nos termos legalmente exigidos e que tal deficiência não é suprível, sendo, em concreto, salientado «o que de relevante se retira do arrazoado do assistente: que o mesmo foi “agredido”, em determinada altura, “manietado” pelos dois arguidos CCueira e DD, mas o que nunca se sabe é de que maneira o fizeram. Foi enquanto se encontrava de pé? Quando se encontrava no chão? O que fez com que caísse? Estavam os três em cima do assistente? Quem fez o quê? Como compreender a alusão a (em cima do senhor AA estavam o seu casal vizinho e o filho de ambos. Menciona que não viu ninguém a agredir o senhor AA, que apenas viu os três a agarrem no mesmo”). Houve autoria (relativamente a quê)? Comparticipação? Em que ficamos?»; 5. Referindo o mesmo Senhor Juiz, mais adiante: «No caso do requerimento de abertura de instrução apresentado nos autos, verifica-se a omissão de imputação de qualquer ilícito aos acusados por falta de menção concretizada e contraditória do elemento objectivo do tipo criminal em análise. De facto, não se compreende, pela narração feita pelo assistente, qual foi a acção dos arguidos CC e DD. Agrediram o assistente? Como? Limitaram-se a segurá-lo? Em que ocasião? Pisaram-no? Todos em conjunto? Como concretamente? Houve autoria (relativamente a quê, concretamente)? Comparticipação? Perante esta descrição factual inespecificada, é impossível aos arguidos defenderem-se. Não há concretização da acção de modo a permitir uma defesa concreta, como afiançar que os arguidos agiram de determinada forma se não se sabe que forma é essa? Ou concretamente, e na parte relativa às imputadas agressões físicas, o que fizeram?»; 6. A instrução visa a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento, podendo ser requerida pelo assistente, se o procedimento não depender de acusação particular, relativamente a factos pelos quais o Ministério Público não tiver deduzido acusação (cfr., respectivamente, os art.ºs 286.º, n.º 1, e 287.º, n.º 1, al. b), ambos do Código de Processo Penal); 7. “O requerimento não está sujeito a formalidades especiais, mas deve conter, em súmula, as razões de facto e de direito de discordância relativamente à acusação ou não acusação, bem como, sempre que disso for caso, a indicação dos atos de instrução que o requerente pretende que o juiz leve a cabo, dos meios de prova que não tenham sido considerados no inquérito e dos factos que, através de uns e de outros, se espera provar, sendo ainda aplicável ao requerimento do assistente o disposto nas alíneas b) e d) do n.º 3 do artigo 283.º (…)” – art.º 287.º, n.º 2, do Código de Processo Penal; 8. Dispõe o referido art.º 283.º, n.º 3, al. b), do Código de Processo Penal que “[a] acusação contém, sob pena de nulidade: (…) [a] narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada”; 9. “O processo penal tem estrutura acusatória, sendo o seu objecto fixado pela acusação que assim delimita a actividade cognitiva e decisória do tribunal; esta vinculação temática do tribunal tem a ver fundamentalmente com as garantias de defesa, protegendo o arguido contra qualquer arbitrário alargamento do objecto do processo e possibilitando-lhe a preparação da defesa no respeito pelo princípio do contraditório (art.º 32.º, n.º 5, da Constituição da República Portuguesa). Requerida a instrução pelo assistente relativamente a factos de que o Ministério Público se tenha abstido de acusar, o respectivo requerimento tem que enumerar os factos que fundamentam a eventual aplicação ao arguido de uma pena, que serão necessários para possibilitar a realização da instrução, particularmente no tocante ao funcionamento do princípio do contraditório, e a elaboração da decisão instrutória. A actividade cognitória do juiz de instrução está limitada, pois, pelo objecto da investigação (no caso de não ter havido acusação, pelos factos que o assistente pretende provar), o que implica a necessidade da respectiva enunciação no requerimento de instrução, até para possibilitar a sua realização” (Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 05/05/93, C.J., tomo III, páginas 243 a 245); 10. Ora, diversamente daquele que foi o entendimento do Meritíssimo Juiz a quo com reporte à questão da assinalada/pretensa falta de descrição da acção consubstanciadora da prática do controvertido crime de ofensa à integridade física simples, afigura-se-nos que tendo em conta o teor do RAI não deveria este ter sido “sancionado” nos termos em que sucedeu in casu, designadamente, com a correspondente rejeição desse requerimento instrutório, porquanto a narração factual aí constante é aceitável e legalmente admissível, pois que com base nela é possível concluir-se no sentido de terem então sido imputados factos que fundamentam a aplicação de penas aos arguidos – tal factualidade preencherá os elementos correspondentes à tipicidade objectiva e subjectiva do ilícito criminal em apreço –, sucedendo que os referidos arguidos podem defender-se em conformidade, não saindo, nessa medida, violados os princípios do acusatório ou do contraditório; 11. Sendo per se inócua, por conclusiva, a menção de que os visados CC e DD «agrediram» o assistente AA ou «ofenderam o corpo e a saúde» daquele último, vemos já um mínimo de concretização dos factos imputados quando é referido que tais visados «em determinada altura da agressão, encontravam-se em cima do Assistente, impedindo que este se movimentasse ao desferir força sobre o seu corpo», sendo que «por ofensas no corpo deve entender-se “todo o mau trato através do qual o agente é prejudicado no seu bem-estar físico de uma forma não insignificante”», pelo que «[o] facto de (…) terem manietado o Assistente nos seus movimentos constitui uma forma de maus-tratos e, como tal, de ofensa à integridade física do Assistente», sucedendo que «é inquestionável que a ofensa à integridade física, no gesto de se posicionar em cima do Assistente e sobre ele exercer força, impedindo-o de se mover, é imputável (…) a CC e DD», que, assim, «agiram (…) de modo adequado a prejudicar o seu bem-estar físico (…) através de força exercida sobre o corpo do Assistente». Termina no sentido de que deverá ser dado provimento ao recurso interposto pelo assistente. Neste Tribunal, a Exma. Procuradora-Geral Adjunta elaborou parecer em que remete para a resposta ao recurso. Foi dado cumprimento ao disposto no art.º 417º n.º 2 CPP, não tendo sido apresentada qualquer resposta ao parecer. II. Colhidos os vistos legais e realizada a conferência, cumpre apreciar e decidir. É do seguinte teor o despacho recorrido: “Requerimento de abertura de instrução apresentado pelo assistente AA: No requerimento que apresentou, vem o assistente sustentar que “é inequívoca a existência de indícios suficientes da prática do crime de ofensa à integridade física simples p. p. artigo 143, n.º 1 do CP, perpetrado pelos Arguidos CC e DD, conforme se exporá.” Porém, compulsado o seu arrazoado, detecta-se que, enuncia de forma bastante vaga e inespecificada um acervo factual pelo qual o Ministério Público não deduziu acusação, não sendo possível, pelo relato aí efectuado, perceber qual foi a actuação concreta destes arguidos. Vejamos Refere o assistente, além do mais: “No dia 29 de outubro de 2021, na sua residência e enquanto Administrador do Condomínio, o Assistente acompanhou três jovens ao 3.º andar do prédio” “Após aqueles terem tocado à campainha do 3.º esquerdo frente, a Arguida CC dirigiu-se ao Assistente mostrando-se incomodada e exaltada por este ter acompanhado os jovens, amigos do seu filho, até à sua porta.” “Uma vez que o objetivo nunca foi provocar qualquer tipo de incómodo aos seus vizinhos e perante a má receção da Arguida, o Assistente limitou-se a abandonar o local.” “Após ter virado costas, o Assistente foi empurrado pelo Arguido BB, tendo caído no solo, e começou a ser violentamente agredido por aquele último, pela Arguida CC e pelo Arguido DD, filho de ambos.”” “Os factos descritos na queixa apresentada pelo Assistente deixam transparecer que os Arguidos, CC e DD, também agrediram o Assistente.” Porquanto referiu que “(…) quando se preparava para abandonar o local, foi empurrado pelo Sr. BB, tendo caído no chão. Tendo começado a ser agredido pelo Sr. BB, pela sua esposa, CC e pelo filho de ambos, não conseguindo precisar a forma como foi agredido. (…) Informa ainda que o Sr. BB e a esposa continuaram a agredi-lo, tendo conseguido agarrar a camisola do Sr. BB tentando imobilizá-lo.” “Nesse momento, a testemunha EE tentou agarrar Sr. BB, mas sem sucesso, tendo entrado em contacto com os vizinhos GG e FF que compareceram de imediato no local e conseguiram separar os suspeitos da vítima e cessar as agressões.” “Conforme consta no auto de interrogatório de Arguido, o ora Assistente referiu, que, em momento posterior aos factos aqui em crise, a testemunha EE ter-lhe-á confirmado que este “foi agredido pelos três elementos da família, CC, BB e o filho do casal.” “A testemunha EE referiu que “quando regressou à área comum do 3.º andar viu que o senhor AA estava deitado no chão e de barriga para cima, e que em cima do senhor AA estavam o seu casal vizinho e o filho de ambos. Menciona que não viu ninguém a agredir o senhor AA, que apenas viu os três a agarrem no mesmo”. “Numa fase posterior, a testemunha CC pôde verificar uma fase da contenda em que os três Arguidos, BB, CC e DD manietavam o Assistente AA. “A testemunha GG referiu que “(…) questionou o senhor AA sobre o que se estava a passar, ao que AA lhe respondeu que tinha sido agredido no chão pelos três” “A posterior participação dos Arguidos CC e DD na agressão coletiva ao Assistente AA resulta dos depoimentos do Assistente e das testemunhas que assistiram aos factos.” “Além disso, o relatório concluiu que tais lesões são suscetíveis de terem sido praticadas por três agressores, uma vez confirmadas com a informação sobre a agressão fornecida pelo Assistente.” “Assim, facilmente se conclui que as agressões foram provocadas não só pelo Arguido BB, mas também pelos Arguidos CC e DD.” “Após ter sido empurrado pelo Arguido BB, os Arguidos CC e DD, em conjunto com o primeiro, ofenderam o corpo e a saúde do Assistente, com o propósito de provocar lesões e conscientes da censurabilidade daquele comportamento. “Os três Arguidos, BB, CC e DD, em determinada altura da agressão, encontravam-se em cima do Assistente, impedindo que este se movimentasse ao desferir força sobre o seu corpo.” “O facto de os Arguidos CC e DD terem manietado o Assistente nos seus movimentos constitui uma forma de maus-tratos e, como tal, de ofensa à integridade física do Assistente.” “Assim, é inquestionável que a ofensa à integridade física, no gesto de se posicionar em cima do Assistente e sobre ele exercer força, impedindo-o de se mover, é imputável também a CC e DD.” Os sublinhados são da lavra deste Tribunal. E procurou-se salientar o que de relevante se retira do arrazoado do assistente: que o mesmo foi “agredido”, em determinada altura, “manietado” pelos dois arguidos CC e DD, mas o que nunca se sabe é de que maneira o fizeram. Foi enquanto se encontrava de pé? Quando se encontrava no chão? O que fez com que caísse? Estavam os três em cima do assistente? Quem fez o quê? Como compreender a alusão a (em cima do senhor AA estavam o seu casal vizinho e o filho de ambos. Menciona que não viu ninguém a agredir o senhor AA, que apenas viu os três a agarrem no mesmo”). Houve autoria (relativamente a quê)? Comparticipação? Em que ficamos? Releva, nesta fase, invocar o disposto no artigo 287º, número 2, do Código de Processo Penal: “O requerimento não está sujeito a formalidades especiais, mas deve conter, em súmula, as razões de facto e de direito de discordância relativamente à acusação ou não acusação, bem como, sempre que disso for caso, a indicação dos actos de instrução que o requerente pretende que o juiz leve a cabo, dos meios de prova que não tenham sido considerados no inquérito e dos factos que, através de uns e de outros, se espera provar, sendo ainda aplicável ao requerimento do assistente o disposto nas alíneas b) e c) do n.º 3 do artigo 283.º Não podem ser indicadas mais de 20 testemunhas.” (sublinhado da lavra deste tribunal). No artigo 283º, número 3, do diploma, pode-se ler o seguinte: “3 - A acusação contém, sob pena de nulidade: (…) b) A narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada; (…)”. Importa também, desde já relembrar o disposto no número 3 do supra referido artigo 287º, número 2, do Código de Processo Penal: “O requerimento só pode ser rejeitado por extemporâneo, por incompetência do juiz ou por inadmissibilidade legal da instrução.”. No presente caso, o requerimento não é extemporâneo, e o tribunal é competente. No entanto, após a entrada em vigor das alterações ao artigo 287º do Código de Processo Penal, operadas pela Lei número 59/98 de 25/08, o requerimento de abertura de instrução apresentado pelo assistente está sujeito ao formalismo prescrito nas alíneas b) e c) do número 3 do artigo 283º do mesmo diploma. Quer isto dizer que deve conter sob pena de nulidade, a narração dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança (incluindo se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação do agente) 1. De facto, “não compete ao juiz perscrutar os autos para fazer a enumeração e descrição dos factos que se poderão indiciar como cometidos pelo arguido, pois, se assim fosse, estar-se-ia a transferir para o juiz o exercício da acção penal, com violação dos princípios constitucionais e legais vigentes. Após o arquivamento pelo M.P., o requerimento de abertura de instrução do assistente equivalerá em tudo à acusação, definindo e limitando o objecto do processo a partir da sua apresentação.”2 É uma consequência da estrutura acusatória do processo a definição do seu thema decidendum pela acusação. Quando esta não existe, é o requerimento de abertura de instrução que tem que fixar tais limites. No nosso sistema jurídico, a instrução não tem por finalidade directa a fiscalização ou complemento da actividade de investigação e recolha de prova realizada no inquérito. A instrução é actualmente uma actividade materialmente judicial e não de investigação ou materialmente policial ou de investigações 3. Como consequência, a insuficiência da investigação realizada pelo Ministério Público no inquérito é sindicada hierarquicamente por via de reclamação 4 e a errada valoração dos indícios colhidos na investigação é sindicada judicialmente por via da abertura de instrução 5. Nos casos de decisão de arquivamento, como sucede aqui, o juiz de instrução, quando aceite as razões aduzidas pelo assistente, e discordando da decisão de não acusação do Ministério Público, não ordena a este órgão que proceda em conformidade com a sua decisão, antes recebe a acusação implícita no requerimento do assistente, pronunciando, se for o caso disso, o arguido pelos factos constantes dessa acusação. O acusador, no caso, o assistente, requer ao tribunal a submissão a julgamento do acusado (relativamente ao qual o processo foi arquivado) pela prática dos factos que obrigatoriamente tem que descrever, de forma clara e inequívoca, especificadamente, na acusação, em conformidade com as disposições legais aplicáveis, que também deve (obrigatoriamente) indicar. No caso do requerimento de abertura de instrução apresentado nos autos, verifica-se a omissão de imputação de qualquer ilícito aos acusados por falta de menção concretizada e contraditória do elemento objectivo do tipo criminal em análise. De facto, não se compreende, pela narração feita pelo assistente, qual foi a acção dos arguidos CC e DD. Agrediram o assistente? Como? Limitaram-se a segurá-lo? Em que ocasião? Pisaram-no? Todos em conjunto? Como concretamente? Houve autoria (relativamente a quê, concretamente)? Comparticipação? Perante esta descrição factual inespecificada, é impossível aos arguidos defenderem-se. Não há concretização da acção de modo a permitir uma defesa concreta, como afiançar que os arguidos agiram de determinada forma se não se sabe que forma é essa? Ou concretamente, e na parte relativa às imputadas agressões físicas, o que fizeram? Como referiu o Tribunal da Relação de Évora em acórdão de 7-2-2023, proc. número 74/21.0T9SSB.E1, relatado por Moreira das Neves, e disponível em www.dgsi.pt, “O requerimento de abertura de instrução pelo assistente deve fixar: a) o objeto da instrução; b) definir o objeto da fase de julgamento. Isto é: tem de (…) descrever os factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena, em termos que permitam ao acusado exercer o seu direito de defesa (o que necessariamente passa pela concretização dos factos e dos crimes que se imputam e a quem – conforme preconiza o artigo 283.º, § 3.º CPP, ex vi artigo 287.º, § 2.º CPP.” A produzir-se uma pronúncia, teria o tribunal que completar a factualidade descrita pelo assistente, porque a factualidade descrita no requerimento de abertura de instrução para tal não é suficiente. E tal não é permitido ao tribunal, por violador do princípio do acusatório. É certo que tal factualidade é susceptível de vir a ser apurada, eventualmente mediante a realização de mais diligências de prova. De todo o modo, não está precludida a hipótese de reabertura do inquérito, ao abrigo do disposto no artigo 279º, número 1, do Código de Processo Penal, podendo então, se reaberto o inquérito, ser alargado o objecto do processo. No estado actual de coisas, caso o tribunal se substituísse ao assistente, acrescentando os factos que traduzem a concretização do elemento objectivo do crime em causa, estaria a proceder a uma alteração substancial de factos, inadmissível in casu, pondo em causa os princípios da imparcialidade do julgador, do contraditório e da estrutura acusatória do processo penal (artigo 32°, número 5, da Constituição da República Portuguesa) 6. E não é possível sequer convidar o assistente a aperfeiçoar o seu requerimento de abertura de instrução, acrescentando-lhe factualidade. Relembre-se a conclusão a que se chegou no Acórdão de Fixação de Jurisprudência número 7/2005 (in DR. I-A, número 212, de 4 de Novembro de 2005): “Não há lugar a convite ao assistente para aperfeiçoar o requerimento de abertura de instrução, apresentado nos termos do artigo 287.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, quando for omisso relativamente à narração sintética dos factos que fundamentam a aplicação de uma pena ao arguido.”. A realizar a instrução com base no requerimento de abertura de instrução em causa, e a pronunciar a final os arguidos para julgamento (para o que teria forçosamente de acrescentar factualidade ao descrito) o tribunal violaria gravemente o princípio do acusatório, o que lhe não é lícito. Por outro lado, a instrução, a prosseguir com base no requerimento de abertura de instrução em apreço, violaria gravemente os direitos de defesa dos arguidos, que não disporia de um objecto claro do processo, de forma a poder direccionar a sua defesa. Pelo exposto, outra solução não existe que, ao abrigo do disposto no artigo 287º, número 3, do Código de Processo Penal, rejeitar o requerimento de abertura de instrução, por, atento o conteúdo do mesmo (e dele se extrair a violação do comando dos artigos 287º, número 2, e 283º, número 3, al. b) do mesmo diploma), se verificar uma inadmissibilidade legal da instrução. O que vai decidido. 1 A este propósito, Maia Gonçalves, in Código de Processo Penal Anotado, defende que o requerimento do assistente deverá mesmo revestir o formalismo da acusação formal e que a falta de indicação dos factos gera o vício da inexistência, por falta de objecto de instrução. 2 Cfr. Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 24.11.93, in CJ, 1993, Tomo V, pag. 61. 3 Assim, Germano Marques da Silva in Curso de Processo Penal , Vol. III, págs. 128 e segs.. 4 Vide, a este propósito, os acórdãos do Tribunal da Relação de Lisboa de 9 de Fevereiro de 2000, in CJ, XXV, 1, pag. 153 e de 25 de Junho de 2002, in CJ, XXVII, 3, pag. 143. 5 Neste sentido se pronuncia também de forma inequívoca, Paulo Pinto de Albuquerque, in Comentário ao Código de Processo Penal, Editora Universidade Católica, 2009, pag. 751, anotação 7. 6 Vide a este propósito, os acórdãos do Tribunal da Relação do Porto de 26.05.2004, de 16.06.2004 e de 12.01.2005, do Tribunal da Relação de Lisboa de 03.10.2001, 17.12.2002, 10.03.2003 e 27.05.2003 e do Tribunal da Relação de Coimbra de 17.09.2003 e de 05.11.2003, todos in www.dgsi.pt..” Vistas as conclusões do recurso interposto, verificamos que a questão suscitada se resume a saber se houve incorrecta interpretação e aplicação, no despacho recorrido, do disposto no artigo 287º, nº 3, do Código de Processo Penal, relativamente à rejeição do requerimento de abertura de instrução formulado pelo assistente. Passando a apreciar. O despacho recorrido manifesta que no requerimento de abertura de instrução formulado pelo assistente, ora recorrente, se verifica uma enunciação “de forma bastante vaga e inespecificada um acervo factual pelo qual o Ministério Público não deduziu acusação, não sendo possível, pelo relato aí efectuado, perceber qual foi a actuação concreta destes arguidos.”, sendo que esta afirmação se mostra dirigida ao modo como naquele requerimento se encontra descrita a interacção havida entre o assistente e os arguidos BB, CC e DD. No essencial da argumentação desenvolvida no despacho recorrido, o acento tónico da apreciação do Mmo. JIC dirige-se a expressões vertidas na “acusação” do assistente, inserida no RAI, que traduzem a conduta dos arguidos perante o assistente, como sejam: “…. começou a ser violentamente agredido por aquele último, pela Arguida CC e pelo Arguido DD, filho de ambos.” - sem que seja descrito em que se materializou essa agressão -, “Após ter sido empurrado pelo Arguido BB, os Arguidos CC e DD, em conjunto com o primeiro, ofenderam o corpo e a saúde do Assistente, com o propósito de provocar lesões e conscientes da censurabilidade daquele comportamento. “Os três Arguidos, BB, CC e DD, em determinada altura da agressão, encontravam-se em cima do Assistente, impedindo que este se movimentasse ao desferir força sobre o seu corpo.” , “O facto de os Arguidos CC e DD terem manietado o Assistente nos seus movimentos constitui uma forma de maus-tratos e, como tal, de ofensa à integridade física do Assistente” – considerando os segmentos sublinhados como vagos, imprecisos e não definidores da maneira como os arguidos o fizeram, quem concretamente interveio e que permita aquilatar do nível de comparticipação. Começaremos por frisar que nos termos do disposto no art.º 286.º n.º 1 do CPP a instrução visa a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento. Estatui depois o art.º 287.º n.º 1 b) do mesmo Código que a abertura de instrução pode ser requerida pelo assistente, se o procedimento criminal não depender de acusação particular, relativamente a factos pelos quais o M.º P.º não tenha deduzido acusação. Como se mencionou no ac. da Relação de Lisboa datado de 25/10/2016, disponível em www.gde.mj.pt: “… embora a afirmação algo enganadora com que o art. 287.º, n.º 2, do Cód. Proc. Penal, abre a sua estatuição, proclamando que o requerimento para abertura da instrução “não está sujeito a formalidades especiais”, a verdade é que deverá conter, por um lado, uma súmula “das razões de facto de direito, de discordância relativamente à (…) não acusação” (art.º 287.º, n.º2). Mas porque lhe é também aplicável o disposto no art.º 283.º, n.º 3, al.ªs b) e c), do mesmo diploma (que rege a acusação formulada pelo Ministério Público), terá que incluir, por outro, “a narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deva ser aplicada e a indicação das disposições legais aplicáveis”. Ora por via da alteração legislativa conferida pela Lei 59/98, de 25 de Agosto, do desenvolvimento da estrutura acusatória do processo penal consagrada pelo art.º 32.º, n.º 5, da CRP, e das suas implicações directas na definição do objecto do processo e nas questões adjectivas colocadas pela sua eventual alteração, esta é uma matéria que, nos tempos mais recentes, conheceu uma significativa evolução Doutrinal e Jurisprudencial apontando sempre no sentido do reforço da exigências colocadas na sua satisfação. Nas situações, como a presente, em que o Ministério Público se absteve de acusar, é correcto afirmar-se que o requerimento de abertura de instrução deverá equivaler a uma acusação alternativa, ou como o refere o Prof. Germano Marques da Silva (Curso de Processo Penal, Vol. III, Verbo, pág.ª 139), deverá conter “uma verdadeira acusação”. E isto porquê? Porque “na instrução a requerimento do assistente, o juiz investigará os factos descritos no requerimento instrutório e se os julgar indiciados e nada mais obstar ao recebimento da acusação pronunciará o arguido por esses factos (art.ºs 308.º e 309.º). Não há lugar a uma nova acusação; o requerimento do assistente actuou como acusação e, assim, se respeita formal e materialmente a acusatoriedade do processo” (obra citada, pág.ª 140). Dito por outras palavras, nem a instrução traduz um novo inquérito para colmatar eventuais faltas investigatórias que tenham ocorrido naquela fase, nem após a realização das diligências instrutórias se abre a possibilidade de formulação da acusação. Ora, ainda que nos termos do art.º 283.º, n.º 3, al.ª b), do Cód. Proc. Penal, a narração dos factos possa ser sintética, a verdade é que terá que ser suficiente para albergar a consequência de poder fundamentar a aplicação de uma pena. Essa suficiência mede-se, pois, não só pela possibilidade do libelo acusatório conter todos os elementos subjectivos e objectivos indispensáveis à perfectibilização subsuntiva da infracção, como também, num outro domínio, o de poder funcionar como uma peça processual autónoma, ou seja, sem que para definição desses mesmos elementos se tenha de recorrer a outras peças do processo. São assim lógicas e compreensíveis as exigências de conteúdo constantes dos preceitos acima consignados, impostas pela evidente premência, num tal contexto, de demarcar os factos concretos susceptíveis de integrar os ilícitos que o assistente pretende indiciados. Com efeito, regendo-se o processo penal pelos princípios do acusatório e do contraditório, a necessidade de uma tal demarcação tem subjacentes duas ordens de fundamentos: - Um, inerente ao objectivo imediato da instrução: a comprovação judicial da pretensa indiciação (que, para que se possa demarcar o âmbito do objecto específico desta fase do processo e para que o arguido se possa defender, tem que reportar-se a imputação de factos concretos delimitados) e - Outro, implícito a uma finalidade mediata, mas essencial no caso de se vir a decidir pelo prosseguimento do processo para julgamento: a demarcação do próprio objecto do processo, reflexo da sua estrutura acusatória com a correspondente vinculação temática do Tribunal, que, por sua vez, na medida em que impede qualquer eventual alargamento arbitrário daquele objecto, constituindo uma garantia de defesa do arguido, possibilita a este a preparação da defesa, assim salvaguardando o contraditório. Como refere o acórdão da Relação do Porto de 04/02/2015 em que foi relatora a Exma. Desembargadora Élia São Pedro, disponível em www.gde.mj.pt/jtrp : “Contudo, daí não se pode concluir que o requerimento para abertura da instrução (formulado pelo assistente) seja imutável. Na verdade, se é certo que não é permitida nunca uma alteração substancial dos factos, o mesmo já não acontece com uma possível alteração não substancial dos factos da acusação – cfr. art. 303º do CPP, regulando a “alteração dos factos descritos na acusação ou no requerimento para abertura da instrução. Nesta última hipótese, isto é, se dos actos de instrução ou do debate instrutório resultar uma alteração não substancial dos factos descritos na acusação, ou da respectiva qualificação jurídica, o juiz procederá de acordo com o disposto nos n.ºs 1 e 5 do citado art. 303º do CPP. Cumprida a ritologia prevista no n.º 1 do art. 303º do CPP (comunicação da alteração, audição do arguido sempre que possível e concessão de prazo para preparação da defesa), a pronúncia respectiva poderá validamente conter factos não constantes da acusação (desde que não comportem uma alteração substancial) ou alterar a sua qualificação jurídica. Do exposto decorre que pode não haver completa identidade entre os factos descritos no requerimento para abertura de instrução e a pronúncia, como pode não haver identidade entre a qualificação jurídica feita nesse requerimento e a respectiva pronúncia. Por outro lado, não exigindo a lei formalidades especiais na elaboração do requerimento para abertura da instrução, deve admitir-se a possibilidade de o elemento subjectivo dos crimes imputados ao arguido poder ser descrito através de factos que inequivocamente o revelem. O que importa, no essencial, é que o objecto do processo esteja bem delimitado e que os dados de facto susceptíveis de evidenciarem elementos psicológicos, como o dolo e a consciência da ilicitude, sejam de tal modo claros e evidentes que não tenha sentido algum pôr em causa a sua imputação.” Retomando o caso concreto e percorrendo o requerimento para abertura de instrução formulado pelo assistente, constatamos que ali se mostra referido, no que importa agora: “45.º Após ter sido empurrado pelo Arguido BB, os Arguidos CC e DD, em conjunto com o primeiro, ofenderam o corpo e a saúde do Assistente, com o propósito de provocar lesões e conscientes da censurabilidade daquele comportamento. Acresce que, 46.º Os três Arguidos, BB, CC e DD, em determinada altura da agressão, encontravam-se em cima do Assistente, impedindo que este se movimentasse ao desferir força sobre o seu corpo. (…) 48.º O facto de os Arguidos CC e DD terem manietado o Assistente nos seus movimentos constitui uma forma de maus-tratos e, como tal, de ofensa à integridade física do Assistente. 49.º Assim, é inquestionável que a ofensa à integridade física, no gesto de se posicionar em cima do Assistente e sobre ele exercer força, impedindo-o de se mover, é imputável também a CC e DD. 50.º Os três Arguidos BB, CC e DD agiram com o propósito concreto de molestarem fisicamente o Assistente, nas circunstâncias descritas, atuando de modo adequado a prejudicar o seu bem-estar físico. (…) 52.º In casu, as agressões empreendidas pelos três Arguidos através de força exercida sobre o corpo do Assistente, são passíveis de comprovar através de exame médico, conforme já referido. (…) 54.º Dúvidas não restam de que os Arguidos CC e DD agiram com consciência da censurabilidade da prática do facto, adotando diferentes comportamentos adequados a ofender o corpo e a saúde do Assistente. 55.º Devem, pois, os Arguidos CC e DD ser pronunciados pela prática de um crime de ofensa à integridade física simples, na forma consumada, p.p. artigo 143, n.º 1 do CP.” Seja por relação ao qua acabámos de citar extraído do RAI seja por relação aos segmentos relevantes citados na decisão recorrida e na motivação de recurso, somos confrontados, tal como se indica na resposta ao recurso por parte do M.º P.º , com uma narração factual aceitável e legalmente admissível, pois que com base nela é possível concluir-se quem, dentre os arguidos, interagiu com o assistente, em cada um dos momentos: - i) os pontos 18.º e 21.º do RAI localizam a ação no tempo, no espaço e subjectivamente indicadora dos intervenientes [No dia 29 de outubro de 2021, na sua residência e enquanto Administrador do Condomínio, o Assistente acompanhou três jovens ao 3.º andar do prédio.] , [Após ter virado costas, o Assistente foi empurrado pelo Arguido BB, tendo caído no solo, e começou a ser violentamente agredido por aquele último, pela Arguida CC e pelo Arguido DD, filho de ambos.”]. Poder-se-á dizer que não se mostra, até ao momento, concretamente especificados os actos integradores da agressão desenvolvida pelos arguidos CC e DD, já que a conduta imputada ali ao arguido BB se mostra concretizada num empurrão que conduziu o assistente ao solo. Neste ponto último, nenhuma controvérsia existe sobre a integração objectiva do ilícito imputado – ofensa à integridade física simples – por mero empurrão que determina a alteração da postura normal do ofendido, de pé para caído no solo. No tocante aos dois outros arguidos, a indicação constante na alegação do recurso por relação ao conteúdo do RAI permite-nos apontar que ali se mostra descrito que os Arguidos CC e DD o agrediram, agarrando-o e colocando-se em cima do Recorrente. Mais uma vez, apesar de não concretizadas as acções integrantes da agressão perpetrada por ambos, não deixa de ser relevante, enquanto objectivamente integradora do apontado ilícito, o agarrar do assistente e a restrição de movimento corporal a que o mesmo foi sujeito quando os apontados arguidos o agarraram e se colocaram em cima de si. Acresce que as lesões no corpo do Ofendido descritas no Relatório da Perícia de Avaliação do Dano Corporal trazido aos autos, mostram-se referidas no ponto 41 do RAI no sentido de que “as lesões que o Recorrente sofreu são suscetíveis de terem sido praticadas por três agressores, uma vez confirmadas com a informação sobre a agressão fornecida pelo Assistente”. Continuando no que se mostra referido na resposta do M.º P.º ao recurso, “Sendo per se inócua, por conclusiva, a menção de que os visados CC e DD «agrediram» o assistente AA ou «ofenderam o corpo e a saúde» daquele último, vemos já um mínimo de concretização dos factos imputados quando é referido que tais visados «em determinada altura da agressão, encontravam-se em cima do Assistente, impedindo que este se movimentasse ao desferir força sobre o seu corpo», sendo que «por ofensas no corpo deve entender-se “todo o mau trato através do qual o agente é prejudicado no seu bem-estar físico de uma forma não insignificante”», pelo que «[o] facto de (…) terem manietado o Assistente nos seus movimentos constitui uma forma de maus-tratos e, como tal, de ofensa à integridade física do Assistente», sucedendo que «é inquestionável que a ofensa à integridade física, no gesto de se posicionar em cima do Assistente e sobre ele exercer força, impedindo-o de se mover, é imputável (…) a CC e DD», que, assim, «agiram (…) de modo adequado a prejudicar o seu bem-estar físico (…) através de força exercida sobre o corpo do Assistente». Daqui retiramos que, apesar de o texto acusatório não ser um exemplo de rigor descritivo, ainda assim os factos imputados permitem, na nossa perspetiva, fundamentar a aplicação de penas aos arguidos – tal factualidade preencherá os elementos correspondentes à tipicidade objectiva e subjectiva do ilícito criminal em apreço –, sucedendo que os referidos arguidos podem defender-se em conformidade, não saindo, nessa medida, violados os princípios do acusatório ou do contraditório. Por outro lado, as referências que o recorrente faz quanto aos depoimentos do assistente, das testemunhas que identifica e o teor do relatório médico legal, nenhuma influência têm na apreciação da questão posta no recurso - aspecto formal do RAI no sentido de saber se contém um mínimo de descrição factual que possa integrar os elementos típicos do ilícito imputado -, antes sendo de relevar/apreciar em sede de debate instrutório ou da decisão instrutória que vier a ser proferida. Deste modo, o requerimento apresentado pelo assistente para abertura da instrução mostra-se, ainda, processualmente prestável para a destinada finalidade, o que equivale a dizer que pode cumprir a função processual para que estaria vocacionado. Por força de todo o exposto, o recurso merece provimento, sendo de revogar o despacho recorrido. III. Face ao exposto, acordam os Juízes desta Secção Criminal em julgar procedente o recurso do assistente AA e, consequentemente, revogar a decisão recorrida que deverá ser substituída por outra que, admitindo a instrução requerida, dê prosseguimento à mesma. Sem custas. Feito e revisto pelo 1º signatário. Évora, 24 de Outubro de 2023. João Carrola Beatriz Marques Borges Ana Bacelar Cruz |