Acórdão do Tribunal da Relação de Évora | |||
Processo: |
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Relator: | MARIA DOMINGAS SIMÕES | ||
Descritores: | COMPETÊNCIA MATERIAL ACÇÃO DE PREFERÊNCIA PRÉDIO CONFINANTE MASSA INSOLVENTE JUÍZO CÍVEL | ||
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Data do Acordão: | 07/10/2025 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
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Sumário: | I. A competência material do tribunal, fixando-se no momento da propositura da ação, é determinada em função da causa de pedir e do pedido, ou seja, atende à relação material controvertida, tal como o autor a configura na petição inicial. II. Para julgar e preparar ação de preferência instaurada contra a massa insolvente, na qualidade de vendedora, e os terceiros adquirentes, é materialmente competente o juízo central cível, atendendo ao valor fixado à causa, e não o juízo do comércio por onde corre termos o processo de insolvência. III. Não tendo o direito dos preferentes sido exercido nos termos do artigo 819.º, n.º 1, do CPCiv, aplicável ex vi do artigo 165.º do CIRE à venda insolvencial, a ação de preferência instaurada nos termos gerais tem tramitação autónoma, não correndo por apenso ao processo de insolvência, nem constituindo incidente da liquidação. (Sumário da Relatora) | ||
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Decisão Texto Integral: | Processo n.º 3581/24.0T8FAR.E1 Tribunal Judicial da Comarca de Faro Juízo Central Cível de Faro I. Relatório No Juízo Central Cível de Faro, (…) e (…) instauraram em 15/11/2024 contra “(…) – Empreendimentos Turísticos, S.A.”, declarada insolvente por sentença proferida em 12 de maio de 2017; (…), (…) e (…), a presente ação declarativa constitutiva, a seguir a forma única do processo comum, pedindo a final que: A) Através de sentença fosse reconhecido aos autores o direito a haverem para si o prédio rústico situado em (…), freguesia de (…), concelho de Loulé, descrito na Conservatória do Registo Predial de Loulé sob o n.º (…), da referida freguesia e inscrito na matriz predial rústica sob o artigo (…), e o prédio rústico situado em (…), freguesia de (…), concelho de Loulé, descrito na C.R.P. de Loulé sob o n.º (…), da referida freguesia, e inscrito na respetiva matriz sob o artigo (…), pelo preço global de € 187.473,18 (cento e oitenta e sete mil e quatrocentos e setenta e três euros e dezoito cêntimos) sendo feito pelos autores o depósito na CGD da referida quantia e da quantia de € 527,56 (quinhentos e vinte e sete euros e cinquenta e seis cêntimos) referente às despesas notariais, da quantia de € 30,00 (trinta euros) referente aos custos da certidão registral online consultada aquando da celebração do contrato de compra e venda, e da quantia de € 303,00 (trezentos e três euros) referente aos custos registrais da dita compra e venda, perfazendo a quantia total de € 188.333,74 (cento e oitenta e oito mil e trezentos e trinta e três euros e setenta e quatro cêntimos); B) Fosse ordenado o cancelamento dos registos ou inscrições prediais já feitos ou que venham a ser feitos com incidência sobre os prédios identificados na al. A) e que sejam incompatíveis com a procedência da presente acção. Alegaram para tanto e em síntese que são titulares do direito a preferir na venda que a 2.º Ré fez aos 3.ºs, por serem legítimos proprietários de prédio confinante aos vendidos, direito de preferência atribuído pelo artigo 1380.º do Código Civil. Apresentaram contestação a massa insolvente da “(…) – Empreendimentos Turísticos, SA”, representada pela AJ nomeada, (…), e esta por si, uma vez que também individualmente demandada, tendo arguido a sua ilegitimidade para a causa. Também os RR (…) e mulher, (…), apresentaram contestação, peça na qual, para o que ora releva, suscitaram a incompetência em razão da matéria do Juízo Central Cível de Faro por, em seu entender, ser a presente ação da competência dos juízos de comércio, nos termos do artigo 128.º, n.ºs 1 e 3, da LOSJ (Lei n.º 63/2013, de 26 de Agosto), exceção dilatória que implica a absolvição dos RR da instância. Responderam os AA no sentido de nada terem a opor à arguida exceção da incompetência material do tribunal, requerendo, para o caso de vir a ser julgada procedente, a remessa dos autos para apensação ao processo de insolvência 1122/16.1T8OLH, que corre termos no Juízo do Comércio de Lagoa. Foi proferido despacho saneador no qual, para além de ter sido decretada a absolvição da instância da demandada (…), na procedência da arguida exceção de ilegitimidade passiva, foi ainda declarada a incompetência material do tribunal, com atribuição de competência ao juízo do comércio de Lagoa, e consequente absolvição dos RR da instância. Inconformados, apelaram os AA e, tendo desenvolvido na alegação os fundamentos da sua discordância com o decidido, formularam a final as seguintes conclusões: “1. Pela presente acção os A.A./Reconvindos e ora Recorrentes, arrogando-se proprietários confinantes e consequentemente titulares de um direito legal de preferência pretendem exercer o dito direito de preferência na aquisição dos prédios objecto da presente acção e substituindo-se pois ao adquirente dos mesmos, ou seja, aos R.R. (…) e mulher, (…). 2. Os prédios objecto da presente acção de preferência foram vendidos aos Réus adquirentes por negociação particular e através de escritura pública Notarial exarada em 14/06/2024 e tendo logo em 14/06/2024 sido pago o respectivo preço da venda pelos ora Réus adquirentes e nessa mesma data sido transmitida aos ora Réus/adquirentes a propriedade plena dos prédios objecto da presente acção de preferência (artigo 879.º, alínea a), do Código Civil). 3. Tendo os prédios objecto da presente acção de preferência logo em 14/06/2024 deixado de estarem compreendidos e de integrarem a massa insolvente da Ré “Massa Insolvente de (…), Empreendimentos Turísticos, S. A.”. 4. É pacífico no nosso Ordenamento Jurídico que uma das consequências da declaração de insolvência é que ao processo de insolvência sejam apensadas todas as acções nas quais se apreciem questões relativas a bens compreendidos na massa insolvente intentadas contra o devedor, ou contra terceiros, e cujo resultado possa influenciar o valor da massa, e isto por se entender o processo de insolvência como um processo de execução universal. 5. E resultando de imediato do n.º 1 do artigo 85.º do CIRE que uma das condições para a apensação das acções ao processo de insolvência é que as ditas acções tenham por objecto a apreciação de questões relativas a bens compreendidos na massa insolvente. 6. Todavia, no caso concreto dos presentes autos, e que se reportam a uma típica acção de preferência sobre a venda de prédios rústicos, os prédios rústicos em causa na presente acção já não estão compreendidos e apreendidos no processo de insolvência, e pertencem ao terceiro adquirente dos mesmos, o ora Réu Reconvinte (…) e sua mulher (…). 7. Tendo pois os ditos prédios rústicos deixado de estarem apreendidos e compreendidos na insolvência a 14/06/2024 e deixado de pertencer à respectiva massa insolvente também a 14/06/2024. 8. E passando pois os ditos prédios rústicos a pertencerem aos adquirentes ora Réus / Reconvintes logo em 14/06/2024, data em que os mesmos lhes foram transmitidos. 9. Pela presente acção de preferência visam os A.A. substituir-se aos RR/Reconvintes adquirentes na aquisição dos prédios objecto da presente acção de preferência, e em nada afectando a Massa Insolvente essa substituição dos RR/Reconvintes adquirentes pelos ora AA. 10. Pois sendo procedente a presente acção de preferência os preferentes só podem adquirir os respectivos prédios pelo valor pelos quais os mesmos foram vendidos, e não tendo pois a procedência da presente acção qualquer efeito sobre o valor da massa insolvente, que se manterá exactamente o mesmo. 11. E pelo que a presente acção de preferência é autónoma face ao processo de insolvência que correu, ou que corre ainda, sob o n.º 1122/16.1T8OLH, Juiz 1, no (Tribunal) Juízo de Comércio de Lagoa. 12. E não existindo fundamento para o Tribunal a quo ter julgado verificada a excepção dilatória de incompetência absoluta em razão da matéria do dito Tribunal a quo (o Juízo Central Cível de Faro) e absolver a Ré “Massa Insolvente de (…), Empreendimentos Turísticos, S.A.” e os R.R. (…) e (…) da instância. 13. E, caso fosse de considerar que os presentes autos deveriam ser apensados à acção de insolvência n.º 1122/16.1T8OLH do Juízo de Comércio de Lagoa, teria essa apensação de ter sido ser requerida pelo Administrador da Insolvência e com o fundamento na conveniência dessa apensação para os fins do dito processo de insolvência, ou então requerida (essa dita apensação) pelo Exmº. Sr. Dr. Juiz do Juízo de Comércio de Lagoa. 14. A Ré “Massa Insolvente de (…), Empreendimentos Turísticos, S.A.” e a própria Administradora da Insolvência, a Ré (…), ambas ofereceram contestação nestes autos e nenhuma delas invocou a excepção de incompetência absoluta em razão da matéria. 15. A Ré … (administradora da insolvência da Ré Insolvente) não requereu a apensação da presente acção de preferência ao respectivo processo de insolvência e nem invocou qualquer conveniência dessa apensação para o respectivo processo de insolvência. 16. O próprio Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 01/09/2016 referido pelo Tribunal a quo na sentença recorrida respeita a uma acção de preferência que tem por objecto a venda de prédio rústico em que o vendedor foi a massa insolvente e cujo processo judicial se iniciou no Tribunal Judicial de Alijó em 2011 (proc. n.º 243/11.1TBALJ) que transitou deste para a Instância Central Cível de Vila Real (com a entrada em vigor da Lei 62/2013, de 26-09 (LOSJ) e onde foi julgado por sentença proferida em 21/03/2015 pelo Mmo. Juiz da Instância Central Cível de Vila Real, tendo sido interposto recurso de apelação dessa sentença da 1ª instância para o Tribunal da Relação de Guimarães, tendo este conhecido do respectivo recurso pelo Acórdão de 14/01/2016 (da respectiva Relação de Guimarães) e tendo por sua vez sido interposto recurso de Revista do Acórdão de 14/01/2016 da Relação de Guimarães para o Supremo Tribunal de Justiça e tendo este por sua vez conhecido do Recurso de Revista pelo Acórdão de 01/09/2016 (Acórdão referido na sentença ora recorrida), 17. E bem assim tendo o Exmº. Sr. Dr. Juiz do Tribunal Judicial de Alijó no Despacho Saneador proferido em 23/11/2012 nesse referido proc. (acção de preferência) n.º 243/11.1TBALJ, apreciado a competência material do respectivo Tribunal Cível, e sendo no caso concreto vendedora uma Massa Insolvente e correndo o respectivo processo de Insolvência no Tribunal do Comércio de Vila Nova de Gaia, tendo também numa das contestações oferecidas nesse dito processo um dos R. R. invocado a incompetência absoluta em razão da matéria do Tribunal Judicial (Cível) de Alijó para conhecer da acção de preferência e por entender ser competente o Tribunal de Comércio de Vila Nova de Gaia onde corria o processo de insolvência e no qual se integrava o respectivo prédio rústico alvo da preferência – e tendo o Sr. Dr. Juiz do Tribunal Judicial de Alijó julgado o Tribunal (de Alijó) competente em razão da nacionalidade, da matéria e da hierarquia para apreciar e julgar a respectiva acção de preferência. 18- E, saliente-se aqui, quando foi instaurado o processo 243/11.1TBALJ.G1.S1 ainda estava em vigor a Lei 52/2008, de 29 de Agosto (Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais), Lei esta que foi revogada pela Lei 62/2013, de 26 de Agosto (Lei da Organização do Sistema Judiciário), e correspondendo o artigo 128.º, n.º 1, alínea a), da Lei 62/2013 ao artigo 121.º, n.º 1, alínea a), da Lei 52/2008 (e tendo a Lei 62/2013 apenas acrescentado à referida alínea a) do n.º 1 do artigo 121.º da Lei 52/2008 o seguinte trecho: “e os processos especiais de revitalização”. 19. E, saliente-se também que o artigo 85.º, n.º 1, do CIRE tem a mesma redação desde 18/08/2004 (Dec.-Lei n.º 200/2004) e até ao presente momento. 20. E o Acórdão do STJ de 01/09/2016 referido na sentença ora recorrida é precisamente o Acórdão do S.T.J. de 01/09/2016 proferido na acção de preferência n.º 243/11.1TBALJ.G1.S1, e nesta foi decidido logo no Despacho Saneador proferido no então designado Tribunal Judicial de Alijó ser este competente em razão da matéria para apreciar e julgar a respectiva acção de preferência. 21. E o Acórdão do S.T.J. de 16/03/2023 proferido no proc. n.º 774/22.8T8AMD.L1.2 e referido pelos R. R./Reconvintes no artigo 7º da sua contestação não versa sobre uma acção de preferência onde o respectivo Autor, exercendo o seu direito de preferência, se pretende substituir ao adquirente de prédio alienado pela Massa Insolvente mas sim versa sobre uma acção de execução específica e alegando como causa de pedir ser locatário da Insolvente, ter direito de preferência na venda dos imóveis da massa insolvente que lhe estão arrendados e que se encontram apreendidos na massa insolvente, ter sido notificado pelo Administrador da Insolvência para exercer a respectiva preferência, ter exercido essa preferência, que do exercício dessa preferência nasceu um vinculo obrigacional equivalente a um contrato promessa de compra e venda, que a Administradora de Insolvência ainda não celebrou a escritura por causas só a ela imputáveis, e daí o Autor recorrer ao Tribunal de Comércio – para este proferir sentença que produza os efeitos da declaração negocial da Ré faltosa, substituindo a escritura pública da compra e venda. 22. E pelo que terminam os A.A./Recorrentes as presentes conclusões convictos de que o Juízo Central Cível de Faro, da Comarca de Faro, é o Tribunal competente em razão da matéria para apreciar e julgar a presente acção de preferência, e como se retira de imediato do próprio processo n.º 243/11.1TBALJ.G1.S1. no qual foi proferido o Acórdão do S.T.J. de 01/09/2016 e que “é referido pelo próprio Tribunal a quo na sentença objecto do presente recurso.”. Conclui pedindo que, na procedência do recurso, seja revogada a decisão recorrida, determinando-se o prosseguimento dos presentes autos Juízo Central Cível de Faro, por ser o competente. Juntou o despacho saneador e a sentença da 1ª instância proferidos no aludido processo n.º 243/11.1TBALJ.G1.S1. Contra alegou a ré Massa Insolvente, defendendo o julgado, extraindo-se das conclusões que também formulou que: - Nos termos do artigo 128.º, n.º 1, alínea a), e n.º 3 da LOSJ, compete aos Juízos de Comércio a tramitação dos processos de insolvência e respetivos incidentes e apensos, o que inclui ações conexas como o exercício do direito de preferência sobre bens da massa insolvente. - O artigo 170.º do CIRE estabelece que a liquidação de bens da massa insolvente constitui um apenso ao processo de insolvência, reforçando a competência exclusiva do Juízo de Comércio para apreciar todas as questões relacionadas com tais bens. - A venda de bens no âmbito da insolvência, promovida pelo administrador de insolvência (nos termos do artigo 55.º, n.º 1, alínea a), do CIRE), integra o regime jurídico do incidente de liquidação e tem tratamento próprio, devendo todos os intervenientes, incluindo os titulares de direitos de preferência, agir no âmbito do processo de insolvência. - A remissão do artigo 165.º do CIRE para o regime da venda executiva não desvirtua a competência material do Juízo de Comércio, sendo meramente supletiva quanto ao regime procedimental. - A jurisprudência é firme e pacífica no entendimento de que o exercício de direito legal de preferência sobre bens alienados da massa insolvente deve ser efetuado por apenso ao processo de insolvência, conforme ilustra o Acórdão do STJ (01/09/2016). - A matéria controvertida respeita à competência absoluta do tribunal, nos termos do artigo 96.º, alínea a), do CPC, devendo ser conhecida oficiosamente, e cuja verificação determina a absolvição da instância (artigos 99.º, n.º 1 e 278.º, n.º 1, alínea a), do CPC). - A ação intentada tem por objeto o exercício do direito legal de preferência, fundado no artigo 1380.º do Código Civil, relativamente à venda de imóveis integrados na massa insolvente da sociedade (…). - Tal venda foi efetuada no âmbito do incidente de liquidação do processo de insolvência a correr termos no Juízo de Comércio de Lagoa, sendo a causa de pedir indissociável do respetivo processo de insolvência. - Nos termos do artigo 128.º, n.º 1, alínea a), da Lei da Organização do Sistema Judiciário, compete aos Juízos de Comércio a tramitação dos processos de insolvência e respetivos incidentes, incluindo a venda de bens da massa insolvente. - A decisão recorrida respeitou integralmente o regime legal aplicável, tendo feito correta aplicação da lei e da jurisprudência consolidada, pelo que deverá ser mantida nos seus precisos termos”. * Antes de entrar na apreciação do recurso, e a título de questões prévias: - admitem-se os documentos juntos pelos apelantes com a alegação nos termos dos artigos 423.º, n.º 3 e 651.º, n.º 1, do CPCiv.: - cabe esclarecer que, pese embora da escritura de compra e venda junta aos autos conste nela ter intervindo “(…), na qualidade de AI da sociedade comercial (…), Empreendimentos Turísticos, SA, cuja insolvência foi declarada no âmbito do processo n.º 1122/16.1T8OLH do Juízo de Comércio de Olhão”, o que explica que os AA tenham demandado a insolvente, a verdade é que a despeito de tal equívoca menção, a vendedora foi, como não podia deixar de ser, a massa insolvente da (…), SA, pois só esta é representada pela sra. AI. De todo o modo, verificando-se que quem interveio nos autos foi, corretamente, a Massa Insolvente da referida sociedade -que se tem assim por substituída pela Massa- nada impede o proferimento da decisão de mérito. * Assente que pelo teor das conclusões se fixa e delimita o objeto do recurso, constitui única questão a decidir determinar se, conforme defende e sustentam os apelantes, a competência material para preparar e julgar a apresente ação é do Juízo Central Cível de Faro ou antes, conforme foi entendido na decisão recorrida, do Juízo de Comércio de Lagoa. * II. Fundamentação De facto À decisão interessam os factos constantes do relatório que antecede e ainda os seguintes: 1. No dia 14 de Junho de 2024, no Cartório Notarial do Concelho de Silves, foi outorgada escritura denominada de “Compras e Vendas”, nos termos da qual (…), na qualidade de AI da sociedade comercial (…), Empreendimentos Turísticos, SA, cuja insolvência foi declarada no âmbito do processo n.º 1122/16.1T8OLH do Juízo de Comércio de Olhão – Juiz 2 do Tribunal Judicial da Comarca de Faro, declarou vender a (…) que, pro seu turno, declarou comprar, pelo preço global de € 187.473,18, que declarou no ato ter já recebido do comprador, os dois prédios rústicos ali identificados, conforme consta do doc. n.º 1 junto com a petição inicial, cujo teor aqui se dá por reproduzido. 2. O imóvel identificado em 1 encontra-se registado a favor de (…), casado com (…), sob o regime da comunhão de adquiridos, por compra em processo de insolvência, sendo insolvente a (…), empreendimentos turísticos, SA (Ap. …, de 2024/06/27, conforme consta da certidão emitida pela Conservatória do registo Predial de Loulé a fls. 55-56 dos presentes autos, aqui se dando quanto ao mais por reproduzido o seu teor. * De Direito Da competência material para o julgamento da causa Consagrando o princípio da competência residual dos tribunais judiciais, dispõe o artigo 211.º da CRP que “Os tribunais judiciais são os tribunais comuns em matéria cível e criminal e exercem jurisdição em todas as áreas não atribuídas a outras ordens judiciais”. O princípio assim constitucionalmente consagrado foi replicado pelo legislador ordinário, dispondo o artigo 64.º do CPCiv., que “São da competência dos tribunais judiciais as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional”. Ao caso importa ainda quanto dispõe o artigo 65.º, segundo o qual “As leis de organização judiciária determinam quais as causas que, em razão da matéria, são da competência dos tribunais e das secções dotadas de competência especializada”. A lei de organização judiciária para que remete o preceito vindo de citar é a Lei n.º 62/2013, de 26 de Agosto (Lei da Organização do Sistema Judiciário – LOSJ), cujo artigo 40.º reafirma, no seu n.º 1, o princípio da competência residual, estabelecendo que “Os tribunais judiciais têm competência para as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional” (vide n.º 1), acrescentando o n.º 2 que “A presente lei determina a competência, em razão da matéria, entre os tribunais judiciais de 1ª instância, estabelecendo as causas que competem às secções de competência especializada dos tribunais de comarca ou aos tribunais de competência territorial alargada” (é nosso o destaque). Sendo entendimento doutrinário e jurisprudencial consolidado, de que não se conhece divergência, o de que a competência material do tribunal, fixando-se no momento da propositura da ação, é determinada em função da causa de pedir e do pedido, ou seja, atende à relação material controvertida, tal como o autor a configura na petição inicial, não dependendo, pois, nem da legitimidade das partes, nem da procedência da ação (vide, neste sentido e aqui acompanhado de perto, o acórdão do STJ de 2/12/2020, no processo n.º 240/19.9T8ALM.L1.S1, acessível em www.dgsi.pt), importa atentar na pretensão aqui formulada pelos AA apelantes e seus fundamentos. No caso que ora se aprecia, considerou-se na decisão recorrida que, tendo “a demanda por objeto uma escritura pública de compra e venda celebrada por (…), na qualidade de administradora de insolvência da ré (…), visando a substituição dos 3.ºs réus pelos autores no direito de propriedade que incide sobre dois imóveis que integravam a massa insolvente daquela insolvente”, incidia assim “sobre bens da massa insolvente” e, tendo sido “levada a cabo no âmbito do incidente de liquidação apenso aos referidos autos de insolvência”, não podia deixar “de ser apreciada no âmbito do mesmo apenso”, tendo a sra. juíza invocado em abono de tal entendimento a decisão proferida pelo STJ em acórdão de 1/9/2026 (é manifesto o lapso, reportando-se ao acórdão proferido em 1/9/2016, no âmbito do processo 243/11.1TBALJ.G1.S1, acessível em www.dgsi.pt). Pois bem, pese embora o respeito que nos merece tal entendimento, não o secundamos. Vejamos o que resulta da LOSJ. O artigo 80.º do citado diploma estabelece, no seu n.º 1, que “Compete aos tribunais de comarca preparar e julgar os processos relativos a causas não abrangidas pela competência de outros tribunais”, acrescentando o n.º 2 que “Os tribunais de comarca são de competência genérica e de competência especializada”. O artigo 81.º, por seu turno, na redação que lhe foi dada pela Lei n.º 40-A/2016, de 22 de Dezembro, elenca os juízos de competência especializada, entre os quais o “Central cível” [alínea a)] e o do “Comércio” [alínea i)]. Para o que aqui releva, a competência dos juízos de comércio encontra-se definida no artigo 128.º da mesma LOSJ, na redação da citada Lei n.º 40-A/2016, competindo-lhe, nos termos do n.º 1 do preceito, “preparar e julgar: a) Os processos de insolvência e os processos especiais de revitalização, acrescentando o n.º 3 que “A competência a que se refere o n.º 1 abrange os respetivos incidentes e apensos, bem como a execução das decisões.” Considerando o pedido formulado na presente ação e causa de pedir que o suporta, é seguro que não estamos em presença de um processo especial de insolvência, nem de um processo de revitalização. Do mesmo modo, não se vê fundamento para que a presente ação devesse ser conhecida no âmbito do apenso da liquidação, nem se afigura que tal solução resulte do acórdão identificado na decisão recorrida. Vejamos: Afigurando-se isento de dúvida que, por força da remissão feita pelo artigo 165.º do CIRE, que diz ser aplicável aos titulares do direito de preferência o disposto “para o exercício dos respetivos direitos na venda em processo executivo”, vale na venda insolvencial quanto dispõe o artigo 819.º do CPCiv.. No entanto, os autores, que dizem ser proprietários de prédio confinante com os rústicos alienados, ao que resulta do alegado, não foram notificados no âmbito da venda realizada no processo de insolvência, situação que convoca a aplicação do n.º 4 deste último preceito, nos termos do qual “A frustração da notificação do preferente não preclude a possibilidade de propor ação de preferência nos termos gerais” (é nosso o destaque). Resulta da ressalva final que os titulares do direito de preferência preteridos têm ainda ao seu dispor, se verificados os restantes pressupostos, a ação declarativa constitutiva, a instaurar nos juízos cíveis, autónoma e independente da execução. Refira-se ainda que o acórdão citado na decisão recorrida que, faz-se notar, não se pronunciou expressamente sobre a questão da competência material mais não diz do que aquilo que já resultava da aplicação ao processo de insolvência do citado artigo 819.º, de que, repete-se, apenas o n.º 4 respeita à situação dos presentes autos. Ademais, resulta dos documentos ora juntos pelos apelantes que a ação em causa foi julgada na Instância Central Cível de Vila Real, após ter sido julgada improcedente, em sede de despacho saneador, a exceção da incompetência material do então Tribunal Judicial da Comarca de Alijó, onde fora instaurada, exceção suscitada pela ré, que pugnava pela competência do Tribunal de Comércio de Vila Nova de Gaia. Não podendo, atento o que vem de se dizer, a presente ação ser qualificada como incidente do apenso de liquidação, em ordem a nele ser apreciada e julgada, cabe averiguar se se encontra na dependência do processo de insolvência, devendo pois ser tramitada por apenso, caso em que se estabeleceria a competência do juízo do comércio por conexão (cfr. artigo 206.º, n.º 3, do CPCiv.). Não se discute que face à natureza tendencialmente universal da reclamação de créditos, daí resulta uma extensão da competência dos juízos de comércio, retirando competência aos tribunais que seriam, em princípio, os materialmente competentes para grande parte dos litígios. Todavia, nem todos os litígios servem o propósito visado pelo legislador insolvencial quando decretou esta sorte de plenitude da instância dos processos de insolvência, ditada pela sua natureza de execução universal (cfr. artigo 1.º CIRE), mantendo-se por isso a competência material originária para a preparação e julgamento dessas causas. Vejamos o que resulta das disposições pertinentes deste diploma. Não cabendo seguramente a presente ação em nenhuma das categorias previstas nos n.ºs 3 a 5 do artigo 82.º do CIRE (cfr. o n.º 6 do preceito), cremos não ser igualmente aplicável o disposto no artigo 85.º. Regulando o preceito os efeitos da declaração de insolvência sobre as ações pendentes à data em que foi declarada, o que não é aqui o caso, a apensação não é, ainda assim, automática, dependendo de terem por objeto a apreciação de questões “relativas a bens compreendidos na massa insolvente, tendo sido intentadas contra o devedor ou mesmo contra terceiros, mas cujo resultado possa influenciar o valor da massa” ou, sendo instauradas pelo devedor, hão de ter “natureza exclusivamente patrimonial”, sendo ainda necessário, por último, que a sua apensação seja solicitada pelo administrador, com fundamento na conveniência para os fins do processo. Conforme explica o Prof. Ferreira de Almeida[1], o citado art.º 85.º “(…) apenas declara a apensação ao processo de insolvência das acções declarativas intentadas contra o devedor insolvente, verificados os seguintes requisitos cumulativos: acções em que se apreciem questões relativas a bens compreendidos na massa insolvente; cujo resultado possa influenciar o valor da massa; a apensação seja requerida pelo administrador da insolvência; o requerimento seja fundamentado na conveniência para os fins do processo de insolvência.”. E acrescenta: “Bem se compreende este regime excepcional relativamente a bens compreendidos na massa insolvente, porquanto, tratando-se de um processo de liquidação universal, é necessário saber, em concreto, qual o acervo patrimonial do devedor insolvente”. Tendo presente a finalidade última do preceito, verifica-se que, para lá do facto de o seu domínio de aplicação serem as ações pendentes, os prédios objeto do negócio de compra e venda celebrado com os apelantes já não integram a massa insolvente e o resultado da ação, qualquer que ele seja, não é suscetível de nela produzir qualquer alteração. Conforme os apelantes recordam com pertinência, vindo a presente ação a ser julgada procedente, opera a substituição do primitivo comprador pelos titulares do direito de preferência, produzindo efeitos reais, mas apenas na esfera dos adquirentes e dos preferentes (a massa insolvente já procedeu à venda, tendo recebido o preço respetivo, o que não se altera), e não obrigacionais. Daí que resulte igualmente arredada a aplicação do disposto o artigo 89.º. Resulta do que vem de se expor que a circunstância de os prédios terem sido vendidos no âmbito do apenso da liquidação dos bens apreendidos para a massa insolvente da devedora (...) não constitui fator de conexão relevante para determinar que a presente ação de preferência corra por apenso à insolvência, determinando a competência do juízo de comércio de Lagoa; ao invés, não cabendo na previsão do n.º 1, alínea a) e 3 do artigo 128.º da LOSJ, nem tão pouco de nenhum dos preceitos do CIRE que estabelecem a competência por conexão destes juízos especializados, considerando o valor que lhe foi atribuído, a competência é do juízo central cível de Faro (cfr. artigo 117.º, n.º 1, alínea a), da LOSJ[2]), onde foi instaurada (v., atribuindo igualmente a competência aos juízos cíveis em ação de execução específica de contrato promessa instaurada contra um banco terceiro, atual proprietário do bem prometido vender, tendo a promitente vendedora sido declarada insolvente, ainda que a massa insolvente não tenha sido demandada, o acórdão do STJ de 2/12/2020 antes citado; afastando também a competência por conexão do juízo do comércio onde corre termos o processo de insolvência, deferindo a competência ao juízo cível para ação a intentar pela massa insolvente contra terceiro devedor, o acórdão do mesmo STJ de 14/1/2020, no processo n.º 113/10.0TYVNG.EG.P1.S1, com argumentação que cremos transponível para os presentes autos). Procede assim o recurso. * Sumário: (…) * III. Decisão Acordam as juízas da 2.ª secção cível do Tribunal da Relação de Évora em julgar procedente o recurso, atribuindo a competência para preparar e julgar a ação ao juízo central cível de Faro, ao qual foi distribuída. Custas a cargo dos RR, que decaíram (artigo 527.º, n.ºs 1 e 2, do CPCiv.). * Évora, 10 de Julho de 2025 Maria Domingas Simões Isabel de Matos Peixoto Imaginário Cristina Dá Mesquita __________________________________________________ [1] In RDC, 2017-05-17, acessível em https://static1.squarespace.com/static/58596f8a29687fe710cf45cd/t/5b03de3df950b75de2342b71/1526980159253/2017-06.pdf [2] Juízos que têm também uma competência residual, à semelhança dos juízos locais cíveis, definida no artigo 130.º, n.º 1, cabendo aos primeiros o julgamento das ações com valor superior a € 50.000,00. |