Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
229/24.6T8PTM-A.E1
Relator: SÓNIA MOURA
Descritores: AUDIÊNCIA PRÉVIA
NULIDADE
CONTRADITÓRIO
CONHECIMENTO NO SANEADOR
Data do Acordão: 10/02/2025
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: ANULADA A DECISÃO RECORRIDA
Área Temática: CÍVEL
Sumário: Sumário:

1. Quando o juiz pretenda conhecer do mérito da causa no despacho saneador deve convocar a audiência prévia, nos termos do disposto no artigo 591.º, n.º 1, alínea b) do Código de Processo Civil.


2. A omissão da realização da audiência prévia constitui, nestas circunstâncias, a nulidade procedimental prevista no artigo 195.º, n.º 1 do Código de Processo Civil, determinando ainda a nulidade da decisão que conheceu antecipadamente do mérito da causa, por excesso de pronúncia, nos termos da alínea d) do n.º 1 do artigo 615.º do Código de Processo Civil.


3. Pode, no entanto, o juiz, ao abrigo dos princípios da gestão processual e da adequação formal (artigos 6.º, n.º 1 e 547.º do Código de Processo Civil), comunicar às partes a sua intenção de dispensar a audiência e de conhecer antecipadamente do mérito da causa, de modo fundamentado, a fim de lhes permitir o exercício do contraditório (artigo 3.º, n.º 3 do Código de Processo Civil).


4. O conhecimento parcial do mérito da causa no despacho saneador pressupõe que estejam estabilizados todos os factos necessários para o efeito, o que não é o caso quando a questão apreciada se integra num conjunto de factos controvertidos que constituem os temas da prova.


(Sumário da responsabilidade da Relatora, nos termos do artigo 663.º, n.º 7 do Código de Processo Civil)

Decisão Texto Integral: ***

Apelação n.º 229/24.6T8PTM-A.E1


(1ª Secção)


***


Acordam na 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora:


I - Relatório


1. AA intentou ação declarativa contra CRÉDITO AGRÍCOLA SEGUROS, COMPANHIA DE SEGUROS DE RAMOS REAIS, S.A., peticionando que a R. seja condenada a pagar-lhe a quantia total de € 199.779,07, assim discriminada:


a) € 19.095,89, a título de prejuízos salariais respeitantes ao período de 23/10/2020 a 25/01/2022, e € 49.435,61, respeitantes ao período de 25/01/2022 a 20/12/2023;


b) € 87.384,00, a título de défice funcional permanente / dano patrimonial futuro;


c) € 2.363,57, a título de despesas com consultas, farmácia e deslocações;


d) € 41.500,00, a título de danos não patrimoniais;


a que acrescem juros em dobro da taxa legal aplicável sobre o que vier a ser fixado pelo tribunal.


Alega, para tanto, que por causa de um acidente de viação em que esteve envolvida, sofreu danos patrimoniais e não patrimoniais, imputando a responsabilidade pela ocorrência do acidente ao condutor do veículo seguro na R..


2. A R. contestou por impugnação, finalizando assim a sua peça:


“Nestes termos, e nos mais de direito que V.Exa. doutamente suprirá, deverá a presente ação ser considerada apenas parcialmente procedente e a Ré condenada no pagamento à Autora de quantia não superior a €.7.500,00, com custas pela Autora, que deu causa à ação, tudo com as demais consequências legais.”


3. Em 08.05.2024 foi proferido despacho onde, entre o mais, se determinou o seguinte:


“Audiência prévia


Depois, notifique as partes de que, com vista a poder preencher a agenda disponível com audiências finais, o Tribunal tem a intenção de adequar o processado, dispensando a audiência prévia.


Mais comunique a intenção de o Tribunal vir a decidir parcialmente do mérito, em vista da posição assumida pela ré, de pagar à autora não mais do que € 7500.”


4. Em requerimento entrado em 10.05.2024, a R. pronunciou-se sobre o despacho antecedente nos seguintes termos:


“1. A posição assumida pela Ré de pagar à Autora não mais de €.7.500,00 depende de o valor final da indemnização ser fixado em €.21.100,00,


2. Conforme se retira dos artigos 7.º, 15.º e 16.º da Contestação e do documento n.º 3 junto com a mesma,


3. Posição essa que foi, aliás, recusada pela Autora,


4. Pelo que, salvo melhor entendimento, não será possível condenar a Ré no pagamento de tal quantia como se ambas as partes a tivessem aceitado como um pagamento parcial.


5. Em qualquer caso, a Ré impugnou expressamente a dinâmica do acidente em causa nos presentes autos (cfr. artigos 4.º e 21.º da Contestação), o que, por si só, sempre impediria também – salvo melhor entendimento – o conhecimento (ainda que parcial) do mérito da presente ação.”


5. A A. respondeu à pronúncia da R., advogando que a posição acerca do acidente assumida pela R. consubstancia confissão extrajudicial em documento particular, dirigida à A., determinando que inexista lugar à discussão da dinâmica do acidente, sendo apenas discutível o âmbito e avaliação dos danos a ressarcir.


6. Em 11.09.2024 foi proferido despacho saneador no qual, antes da identificação do objeto do litígio e enunciação dos temas da prova, foi exarado o seguinte:


“Entretanto, foram as partes notificadas para se pronunciarem sobre a intenção de o Tribunal conhecer parcialmente do mérito da causa. A ré opôs-se por requerimento de 10 de maio, reafirmando que na contestação impugnou a dinâmica do acidente.


Considerando, porém, que:


- A ré assumiu a obrigação de indemnizar terceiros pelos danos que o “JN” viesse a causar;


- Antes da propositura da ação, a ré assumiu a responsabilidade pelos danos causados em consequência do acidente aqui em causa;


- A ré assumiu o pagamento da quantia de € 13 600 por danos causados à autora no contexto supra indicado, o acidente de viação de 23 de outubro de 2020 e disponibiliza-se a pagar € 7500 (art. 15.º da contestação),


É de concluir por um ato concludente que não permite um recuo como proposto pela ré, de nenhuma responsabilidade assumir, de nada pagar, quando a própria pagou e assumiu pagar mais € 7500.


Assim, conheço parcialmente do mérito e condeno a ré a pagar à autora a quantia de € 7500 (sete mil e quinhentos euros).


Custas a definir a final.


Registe e notifique.”


7. Inconformada com esta decisão, a R. apelou da mesma, formulando as seguintes conclusões nas suas alegações:


“I. O Tribunal a quo não decidiu corretamente ao proferir saneador-sentença, conhecendo parcialmente o mérito da presente ação, condenando a Ré, ora Recorrente, Crédito Agrícola Seguros – Companhia de Seguros de Ramos Reais, S.A, no pagamento à Autora, ora Recorrida, da quantia de €.7.500,00.


II. Ao contrário do que estabelece o art.º 607.º do CPC, a sentença recorrida não identifica qualquer facto provado (apenas algumas conclusões) nem qualquer norma jurídica aplicável, pelo que é nula por falta de fundamentação, nos termos do art.º 615.º, n.º 1, al. b), do CPC.


III. A sentença recorrida não permite perceber a que corresponde a quantia de €.7.500,00 em que a Recorrida foi condenada a pagar, o que, juntamente com a ausência de fundamentação de facto ou de direito, torna a decisão ininteligível, pelo que é também nula por obscuridade, nos termos do art.º 615.º, n.º 1, al. c), do CPC.


IV. Conforme resulta do disposto nos artigos 591.º, n.º 1, al. b), e 593.º, n.º 1, do CPC, o Tribunal não pode dispensar a realização da Audiência Prévia quando pretenda conhecer do mérito da ação, pelo que, ao fazê-lo, sem um efetivo debate quer em relação aos factos a considerar, quer em relação ao direito a aplicar, o Tribunal preteriu uma formalidade processual essencial, o que gera, para além de nulidade processual nos termos do art.º 195.º, n.º 1 do CPC, a nulidade do saneador-sentença.


V. Em momento algum a Recorrente reconheceu a veracidade da factualidade concreta do acidente de viação, nem da extensão dos danos invocados pela Recorrida, os quais, consequentemente, impugnou expressamente na sua Contestação, tanto assim que os danos e o respetivo nexo causal com o acidente ficaram a constar dos temas da prova fixados no mesmo despacho saneador recorrido.


VI. O conhecimento (mesmo que parcial) do mérito da ação no saneador apenas se justifica se toda a matéria de facto necessária à decisão já estiver concluída, pelo que mostrando-se ainda controvertida matéria indispensável à decisão da presente causa, não se justificava o seu julgamento antecipado, impondo-se antes o seu prosseguimento para possibilitar a produção das provas pertinentes à sua demonstração em juízo.


II. A quantia de €.7.500,00 para ressarcimento dos danos da Recorrida, foi apenas uma proposta efetuada pela Recorrente, ao abrigo do art.º 39.º do DL 291/2007, de 21 de Agosto, a título de “indemnização global e final por todos os danos patrimoniais e não patrimoniais, passados presentes e futuros” da Recorrida, não existindo qualquer fundamento legal para a mesma ser condenada a pagar tal quantia fora das condições em que foi efetuada pela Recorrente.


VIII. Ao decidir como decidiu, o Tribunal a quo, na sentença recorrida, violou o disposto nos artigos 607.º, números 3 e 4, 615.º, n.º 1, alíneas b) e c), 195.º, n.º 1, todos do CPC, e o art.º 39.º do DL 291/2007, de 21 de Agosto.”


8. Não foram apresentadas contra-alegações.


9. Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.


II – Questões a Decidir


O objeto do recurso está delimitado pelas conclusões da apelação, não sendo objeto de apreciação questões novas suscitadas em alegações, exceção feita para as questões de conhecimento oficioso (artigos 608.º, n.º 2, 635.º, n.º 4 e 639.º, n.º 1 do Código de Processo Civil).


Não se encontra também o Tribunal ad quem obrigado a apreciar todos os argumentos apresentados pelas partes, sendo livre na interpretação e aplicação do direito (artigo 5.º, n.º 3 do Código de Processo Civil).


No caso em apreço importa apreciar se é nula a decisão que conheceu parcialmente do mérito da causa e, assim não sucedendo, se deve esta decisão ser revogada.


III – Fundamentação


1. Os factos relevantes para a decisão são os que constam do relatório que antecede, e ainda os seguintes:


1.2. Na contestação, alegou a R., designadamente, o seguinte:


“3.º Pelo que, recebida a participação de um acidente de viação ocorrido na referida data com o referido veículo, de imediato a Ré abriu um processo de regularização de sinistro.


4.º Ora, mesmo não conhecendo, nem tendo obrigação de conhecer, por não constituírem factos pessoais seus, ou de que deva ter conhecimento, as circunstâncias concretas em que se verificou o acidente,


5.º Ainda assim, face à aparente responsabilidade do seu segurado pelo ressarcimento dos danos causados à Autora, a Ré aceitou acionar as garantias do contrato de seguro e proceder ao pagamento das quantias que lhe fossem legalmente exigíveis, nos termos da referida apólice.


6.º Para esse efeito, a Ré suportou a totalidade das despesas relativas ao tratamento da Autora, e adiantou-lhe, por conta da indemnização que viesse a ser fixada, a quantia de €.13.600,00, (conforme a mesma, aliás, reconhece no art.º 70.º da sua PI).


7.º No entanto, de facto, as partes não conseguiram chegar a acordo relativamente ao montante devido a título de indemnização final.


8.º Com efeito, a Autora foi submetida a uma avaliação médico-legal pelos serviços clínicos da Ré, a fim de verificar a existência de sequelas provocadas pelo acidente em causa nos presentes autos,


9.º Tendo tal avaliação permitido concluir que as lesões sofridas pela Autora (traumatismo cervical) não justificavam qualquer Incapacidade Permanente, de acordo com a Tabela de Avaliação de Incapacidades Permanentes em Direito Civil, constante do anexo II à Portaria n.º 352/2007, de 23 de Outubro,


10.º E que, relativamente à sua profissão, findo o período de incapacidade temporária de 400 dias, as lesões não acarretariam qualquer rebate profissional,


11.º Designadamente, não exigiriam quaisquer esforços acrescidos,


12.º Justificando apenas um quantum doloris de grau 3 (em 7) - cfr. doc.2,


13.º O que não justifica, portanto, os montantes desproporcionadamente elevados que a Autora peticiona da Ré a título indemnizatório.


14.º Com efeito, tendo em consideração, designadamente, os critérios orientadores previstos na Portaria n.º 377/2008, de 26 de Maio, que fixa os critérios e valores orientadores para efeitos de apresentação aos lesados por acidente automóvel, de proposta razoável para indemnização do dano corporal, a Ré considera que os danos sofridos pela Autora não justificam uma indemnização superior ao montante global de €.21.100,00 (vinte e um mil e cem euros),


15.º O que, deduzido o montante de €.13.600,00 já pago à Autora, significa que a Ré apenas lhe está obrigada a pagar a quantia de €.7.500,00 (21.100,00 - €.13.600,00).


16.º Montante este que a Ré já propôs a Autora - cfr. doc.3.


17.º Mas que a mesma não aceitou.


18.º Assim, considerando que não existe qualquer fundamento legal ou factual para os montantes indemnizatórios peticionados pela Autora, a Ré entende que não está obrigada a indemnizar a Autora em montante superior aos referidos €.21.100,00 (dos quais já pagou €.13.600,00).


19.º E, mesmo que assim não fosse, e se viesse a considerar que a Autora teria direito a um valor indemnizatório superior (sem conceder), sempre os valores peticionados pela Autora nos presentes autos haveriam de ser reduzidos aos seus justos limites, de acordo com juízos de equidade.”


1.2. O Tribunal a quo enunciou o seguinte tema da prova:


“- Danos na esfera da autora (ainda não reparados) e nexo e causalidade com o acidente sofrido em 23 de outubro de 2020”.


2. Da nulidade


2.1. Invocou a R. a nulidade do despacho saneador no segmento em que conheceu parcialmente do mérito da causa, nos termos das alíneas b) e c) do n.º 1 do artigo 615.º do Código de Processo Civil, apontando a falta de fundamentos de facto e de direito da decisão e a sua ininteligibilidade.


Alega ainda a R. que o despacho saneador é nulo nos termos do artigo 195.º, n.º 1 do Código de Processo Civil, na medida em que não foi realizada audiência prévia, o que constitui omissão de ato legalmente prescrito.


2.2. Preceitua-se no referido artigo 615.º do Código de Processo Civil que:


“1 - É nula a sentença quando: (…)


b) Não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão;


c) Os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível”.


A imposição de fundamentos de facto acima plasmada mostra-se articulada com o disposto no artigo 607.º, n.º 4 do Código de Processo Civil, segundo o qual “Na fundamentação da sentença, o juiz declara quais os factos que julga provados e quais os que julga não provados, analisando criticamente as provas, indicando as ilações tiradas dos factos instrumentais e especificando os demais fundamentos que foram decisivos para a sua convicção; o juiz toma ainda em consideração os factos que estão admitidos por acordo, provados por documentos ou por confissão reduzida a escrito, compatibilizando toda a matéria de facto adquirida e extraindo dos factos apurados as presunções impostas pela lei ou por regras de experiência.”


Constitui esta norma uma concretização do dever geral de fundamentação das decisões judiciais, previsto no n.º 1 do artigo 205.º da Constituição.


A este propósito especifica-se ainda no artigo 154.º do Código de Processo Civil que:


“1 - As decisões proferidas sobre qualquer pedido controvertido ou sobre alguma dúvida suscitada no processo são sempre fundamentadas.


2 - A justificação não pode consistir na simples adesão aos fundamentos alegados no requerimento ou na oposição, salvo quando, tratando-se de despacho interlocutório, a contraparte não tenha apresentado oposição ao pedido e o caso seja de manifesta simplicidade.”


Como se assinala no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 09.12.2021 (Oliveira Abreu) (Processo n.º 7129/18.7T8BRG.G1.S1, in http://www.dgsi.pt/), “é na fundamentação que o Tribunal colhe legitimidade e autoridade para dirimir o conflito entre as partes e lhes impor a sua decisão, sendo a fundamentação imprescindível ao processo equitativo e contraditório”.


Por último, refira-se ser consensual que apenas a total omissão de fundamentação conduz ao invocado vício (ibidem; Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta, Luís Filipe Pires de Sousa, Código de Processo Civil Anotado, vol. I, 3ª ed., Coimbra, 2024, p. 793).


Quanto à nulidade da decisão por ininteligibilidade, decorre a mesma da sua ambiguidade ou obscuridade, “o que ocorre quando um declaratário normal, nos termos dos arts. 236º, nº 1, e 238º, nº 1, do CC, não possa retirar da decisão um sentido unívoco, mesmo depois de recorrer à fundamentação para a interpretar.” (Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta, Luís Filipe Pires de Sousa, idem, p. 794).


No caso em apreço, o Tribunal a quo não estruturou a sua decisão nos moldes correspondentes aos de uma sentença, com discriminação de factos provados e sua motivação, seguida da aplicação do direito a esses factos, limitando-se a afirmar o reconhecimento, pela R., de que deve € 7.500,00 à A., e a concluir, de imediato, pela condenação da R. a pagar tal quantia à A..


Ora, ainda que de forma muito exígua, desde logo, por total ausência de fundamentos de direito, o Tribunal a quo consignou na sua decisão as respetivas razões e que acima apontámos, pelo que não consideramos existir nulidade por falta de fundamentação.


Relativamente à ininteligibilidade, é reportada à circunstância de não ser compreensível a que título foi a R. condenada a pagar € 7.500,00 à A., o que nos conduz à figura da obscuridade.


Lida a decisão sindicada, verificamos que da mesma nada consta quanto aos danos que tal indemnização se destina a ressarcir.


Compulsado depois o despacho saneador, vemos que a matéria dos danos é objeto da instrução da causa, e apesar de se determinar que apenas estão em causa os danos ainda não indemnizados, não são aí discriminados esses danos.


Ou seja, não são identificados os danos indemnizados, nem os danos por indemnizar, o que deixa um vazio gerador de dúvida.


Ora, na contestação, a aludida quantia de € 7.500,00 surge num contexto específico, constituindo o remanescente da indemnização global de € 21.100,00 que a R. propôs à A., em sede de negociação extrajudicial com vista à resolução amigável do litígio.


Contudo, frustrou-se o acordo entre as partes, motivo pelo qual a A. instaurou a presente ação, onde formula um pedido no valor global de € 199.779,07.


Não obstante, nesta ação a R. mantém a posição assumida extrajudicialmente no sentido de que apenas tem a pagar à A. € 7.500,00, tendo impugnado toda a matéria dos danos alegada na petição inicial (artigos 20º e 21º da contestação).


As posições das partes sobre as consequências do acidente são, pois, substancialmente divergentes, não se mostrando, por isso, possível considerar que a posição da R. traduz simplesmente a proposta de um valor inferior, antes consubstancia uma diferente visão quanto aos danos existentes e sua extensão.


Efetivamente, a A. invoca danos patrimoniais, concretamente, perdas salariais, despesas e défice funcional permanente de integridade físico-psíquica, bem como danos não patrimoniais, aludindo a este propósito especificamente ao quantum doloris e à repercussão nas atividades físicas e de lazer.


E por força da impugnação deduzida na contestação, deve concluir-se que toda a matéria dos danos está controvertida (artigo 574.º, n.º 2 do Código de Processo Civil), devendo, consequentemente, ser objeto da instrução da causa (artigo 410.º do Código de Processo Civil).


Aliás, os autos foram remetidos para julgamento, com vista a tomar decisão sobre tais danos, que integram precisamente os temas da prova.


De todo o exposto conclui-se, acompanhando a R., que não estão identificados os danos a que respeita a decisão sindicada, pelo que a mesma padece de ininteligibilidade por obscuridade, sendo, consequentemente, nula.


2.3. No que tange à nulidade por omissão de realização da audiência prévia, importa começar por sublinhar que quando o Tribunal pretenda conhecer do mérito da causa, deve convocar a audiência prévia, não se tratando aqui de um caso no qual a audiência prévia possa ser dispensada, em conformidade com as disposições conjugadas dos artigos 591.º, n.º 1, alínea b) e 593.º, n.º 1 do Código de Processo Civil.


A omissão desta formalidade legalmente prescrita constitui, assim, nulidade de procedimento, e gera também a nulidade da própria decisão, por excesso de pronúncia, nos termos dos artigos 195.º, n.º 1 e 615.º, n.º 1, alínea d) do Código de Processo Civil, respetivamente (entre outros, os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 16.12.2021 (Luís Espírito Santo), Processo n.º 4260/15.4T8FNC-E.L1.S1, Tribunal da Relação de Lisboa de 09.11.2023 (Maria de Deus Correia), Processo n.º 7556/22.5T8LRS.L1-6, do Tribunal da Relação do Porto de 08.02.2024 (Carlos Portela), Processo n.º 2430/22.8T8VLG-B.P1, do Tribunal da Relação de Évora de 26.09.2024 (Emília Ramos Costa), Processo n.º 3310/23.5T8FAR.E1, e do Tribunal da Relação de Guimarães de 18.12.2024 (Margarida Pinto Gomes), Processo n.º 358/24.6T8VNF-A.G1, todos in http://www.dgsi.pt/).


Há quem admita, no entanto, que ao abrigo do princípio da gestão processual (artigo 6.º, n.º 1 do Código de Processo Civil) e do princípio da adequação formal (artigo 547.º do Código de Processo Civil) o Tribunal dispense a realização da audiência prévia, desde que comunique às partes a sua intenção de conhecer do mérito da causa, de modo fundamentado, e desde que as partes se não oponham a tal dispensa (entre outros, os Acórdãos do Tribunal da Relação de Lisboa de 28.11.2023 (Nuno Teixeira), Processo n.º 19609/15.1T8LSB-A.L1-1, do Tribunal da Relação do Porto de 22.01.2024 (Ana Olívia Loureiro), Processo n.º 347/23.8T8PRD.P1, do Tribunal da Relação de Guimarães de 28.11.2024 (Luís Miguel Martins), Processo n.º 3731/21.8T8BRG-D.G1, todos in http://www.dgsi.pt/).


A comunicação do Tribunal visa, pois, observar o princípio do contraditório (artigo 3.º, n.º 3 do Código de Processo Civil), garantindo que as partes se possam pronunciar quer sobre a dispensa da audiência prévia, quer sobre o conhecimento antecipado do mérito da causa.


Numa moderna conceção ampla deste princípio visa-se não só assegurar que não sejam tomadas providências contra uma pessoa sem que esta seja previamente ouvida, como garantir que ao longo de todo o processo as partes tenham a possibilidade de nele intervir de forma produtiva, como acentuam Lebre de Freitas e Isabel Alexandre (Código de Processo Civil Anotado, vol. 1º, 3ª ed., Coimbra Editora, 2014, p. 7): “este direito à fiscalização recíproca das partes ao longo do processo é hoje entendido como corolário duma conceção mais geral da contraditoriedade, como garantia da participação efetiva das partes no desenvolvimento de todo o litígio, em termos de, em plena igualdade, poderem influenciar todos os elementos (factos, provas, questões de direito) que se encontrem em ligação, direta ou indireta, com o objeto da causa e em qualquer fase do processo apareçam como potencialmente relevantes para a decisão”.


Assim, ainda que não se exija ao Tribunal que informe as partes do sentido final da decisão que pretende proferir, o exercício cabal do contraditório implica que seja transmitido o fundamento do conhecimento antecipado do mérito da causa, o que será variável em função das circunstâncias de cada caso.


Deste modo, se se tratar de questão debatida nos articulados e relativamente à qual todos os factos relevantes estejam já estabilizados, será esse o fundamento a comunicar às partes, não tendo o Tribunal de informar sobre se vai julgar procedente ou improcedente a pretensão da parte.


Na situação vertente, o Tribunal a quo comunicou a sua intenção às partes de “decidir parcialmente do mérito, em vista da posição assumida pela ré, de pagar à autora não mais do que € 7500.”


Foi, pois, identificado no despacho o aspeto que o Tribunal iria tratar na futura decisão, tendo a R. aduzido na sua resposta que se tratou de um valor surgido no âmbito da negociação extrajudicial, pelo que sem relevância para a ação judicial em curso, concluindo que “não será possível condenar a Ré no pagamento de tal quantia como se ambas as partes a tivessem aceitado como um pagamento parcial.”


A A. não se pronunciou a propósito deste específico aspeto.


Verifica-se, portanto, que o objeto do despacho que veio a ser proferido pelo Tribunal a quo coincide com aquele que foi anunciado na comunicação efetuada às partes, resultando da resposta da R. que interpretou adequadamente a intenção do Tribunal, tendo vertido a sua oposição a essa intenção.


Em conclusão, nenhuma das partes se opôs à dispensa da audiência e, no que tange ao objeto do despacho anunciado pelo Tribunal a quo, foi dada a oportunidade às partes de se pronunciarem previamente a propósito, o que a R. fez, tendo a decisão sindicada cingido o seu objeto àquele que foi anunciado, pelo que não se verifica a nulidade em apreço.


2.4. Aqui chegados, temos que a decisão sindicada é nula, por ininteligibilidade, decorrente da sua obscuridade.


Dispõe-se no artigo 665.º do Código de Processo Civil, sob a epígrafe “Regra da substituição ao tribunal recorrido”, que:


“1 - Ainda que declare nula a decisão que põe termo ao processo, o tribunal de recurso deve conhecer do objeto da apelação.”


Este normativo contempla uma exceção à regra de que os recursos se destinam exclusivamente à reapreciação de decisões, limitando-se o Tribunal Superior a proceder à sua anulação e reenvio à 1.ª Instância para que profira nova decisão (sistema de recurso de cassação), pois consagra um sistema de recurso de substituição (José Lebre de Freitas, Armindo Ribeiro Mendes e Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado, vol. 3º, 3ª ed., Coimbra, 2022, p. 184).


É pressuposto desta substituição que o Tribunal Superior possua todos os elementos necessários para o efeito (idem, p. 185).


Por outro lado, pese embora se trate de um conhecimento parcial do mérito da causa, nesta medida a decisão sindicada põe termo ao processo, pelo que importa verificar se deve ser conhecido o objeto da apelação.


2.5. O conhecimento parcial do mérito no despacho saneador está previsto expressamente no artigo 591.º, n.º 1, alínea b) do Código de Processo Civil, sendo pacífico que tal apenas pode ocorrer quando, nesse momento, todos os factos relevantes para a decisão se encontrem já provados, à luz dos enquadramentos jurídicos plausíveis para a causa.


Assim se pronunciou o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 10.03.2025 (Eugénia Cunha) (Processo n.º 2708/23.3T8CSC.P1, in http://www.dgsi.pt/):


”I - O conhecimento de mérito no despacho saneador apenas deve ter lugar quando o processo fornecer já em tal fase processual, antecipadamente relativamente à normal - a da sentença -, todos os elementos de facto necessários à decisão do caso segundo as várias soluções plausíveis da questão de direito.


II - Assim, e pela negativa, nunca é legitimo ao julgador enveredar, antecipadamente, pela sua solução definitiva do litígio, sem que garantida esteja a presença de todos os factos necessários a que as outras visões possíveis possam, também, ser, logo, sustentadas.


III - E controvertida estando matéria relevante para efetuar a subsunção jurídica do caso, nunca pode ser considerado consolidado estado dos autos que permita ao juiz antecipar a decisão, com o adiantar da solução por si perfilhada, pois que necessária se torna (após instrução) a condensação - como provados e não provados - dos factos que permitam, na interpretação, concatenação e ponderação de todos eles, adotar justa solução que se desenhe no leque das possíveis.” (no mesmo sentido, entre outros, os Acórdãos do Tribunal da Relação de Coimbra de 25.10.2024 (Hugo Meireles), Processo n.º 320/23.6T8TND.C1, do Tribunal da Relação de Guimarães de 31.10.2024 (Gonçalo Oliveira Magalhães), Processo n.º 6759/23.0T8GMR.G1, do Tribunal da Relação de Évora de 27.02.2025 (Cristina Dá Mesquita), Processo n.º 1346/23.5T8STR.E1, do Tribunal da Relação de Lisboa de 08.04.2025 (Pedro Brighton), Processo n.º 27522/20.4T8LSB.L1-1, todos in http://www.dgsi.pt/).


Ora, na presente ação fundada em acidente de viação alega a A. ter sofrido danos cujo ressarcimento peticiona da companhia de seguros R., ao abrigo do regime legal da responsabilidade civil extracontratual.


Como se disse acima, a matéria dos danos alegados pela A. encontra-se controvertida, sendo objeto da instrução da causa.


Por outro lado, a condenação proferida pelo Tribunal a quo respeita precisamente à indemnização em discussão nos autos.


Consequentemente, é prematura a condenação da R. no pagamento de uma indemnização, cuja apreciação está ainda dependente da produção de prova, devendo ser relegado para final o conhecimento de toda a matéria atinente aos danos.


IV – Dispositivo


Pelo exposto, acordam os Juízes da Secção Cível deste Tribunal da Relação em julgar procedente a apelação, e, em conformidade, declarar nula a decisão sindicada, relegando para final o conhecimento de toda a matéria atinente aos danos.


Sem custas.


Notifique e registe.


Sónia Moura (Relatora)


Manuel Bargado (1º Adjunto)


Ricardo Miranda Peixoto (2º Adjunto)