Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
1004/23.0T8PTG.E1
Relator: SÓNIA MOURA
Descritores: IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
DOAÇÃO
NULIDADE DE ACTO NOTARIAL
INCAPACIDADE
BONS COSTUMES
Data do Acordão: 03/27/2025
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: 1. As perceções do Notário sobre a consciência e lucidez dos doadores constituem factos sujeitos à livre apreciação do julgador, nos termos da parte final do n.º 1 do artigo 371.º do Código Civil, logo, são factos suscetíveis de constituírem objeto de prova testemunhal.
2. O Tribunal pode conhecer oficiosamente da falsidade de documento autêntico quando a mesma “for evidente em face dos sinais exteriores do documento”, conforme preceituado no n.º 3 do artigo 372.º do Código Civil.
3. Desta norma decorre que o Tribunal deve aferir a falsidade exclusivamente com base nos sinais exteriores do documento, isto é, não está em causa a apreciação de meios de prova produzidos sobre esta matéria, o que bem se compreende, na medida em que não foi deduzido incidente de falsidade.
4. A nulidade de doação por ofensa aos bons costumes, prevista no artigo 280.º, n.º 2, do Código Civil, não deve ser analisada sob a perspetiva do mérito ou demérito de uns ou de outros sucessores – os beneficiados e os preteridos -, mas antes no sentido de indagar sobre o correto modo de proceder, isto é, ainda que fosse justo ou adequado o R. ser beneficiado patrimonialmente pelos tios, com fundamento na dedicação e cuidados que lhes prestou, saber se a via utilizada para alcançar essa finalidade é socialmente ajustada e merece a tutela do direito.
5. No caso em apreço, relativamente ao contexto da doação, não está provado que a sua iniciativa tenha pertencido aos doadores; está provado que estes foram transportados ao local onde a escritura foi celebrada pelo donatário; que esse lugar foi a casa do donatário; que na assinatura da escritura apenas estiveram presentes, além dos doadores, o donatário e a Notária que celebrou o ato; que ninguém teve conhecimento da escritura.
Quanto às circunstâncias pessoais dos doadores, está provado que eram duas pessoas com mais de 80 anos de idade; a doadora teve cancro, sofreu mastectomia total da mama esquerda, e foi amputada parcialmente ao nível do membro inferior esquerdo; o doador tinha sintomas de Alzheimer e tomava medicação para a memória; estavam, à data, a residir no lar.
Acresce que se o R. era para os tios uma figura securizante, na medida em que era o seu cuidador, não deixava também de ser, por isso mesmo, alguém com forte influência na vida dos tios, considerando que não tinham filhos, que era o R. quem geria toda a sua vida financeira e, por último, que estavam dependentes dos cuidados prestados no lar, onde o R. era o vice-presidente.
Deve, deste modo, concluir-se que a doação em causa é nula por ofensa aos bons costumes.
6. A doação por morte é expressamente proibida pelo n.º 1 do artigo 946.º do Código Civil, devendo entender-se que “toda a doação que produza os seus efeitos por morte do doador é uma doação por morte”, conforme explicam Pires de Lima e Antunes Varela.
7. A consequência direta desta proibição legal é a nulidade da doação por morte (artigo 280.º, n.º 1, do Código Civil), a qual, todavia, admite a conversão em deixa testamentária, desde que sejam observadas as formalidades dos testamentos, conforme o n.º 2 do artigo 946.º do Código Civil.
(Sumário da Relatora)
Decisão Texto Integral: Apelação n.º 1004/23.0T8PTG.E1
(1ª Secção)

Sumário: (…)

(Sumário da responsabilidade da Relatora, nos termos do artigo 663.º, n.º 7, do Código de Processo Civil)


***

Acordam na 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora:

I – Relatório

1. (…), (…) e Herança de (…) propuseram ação declarativa, sob a forma de processo comum, contra (…) e (…), peticionando a condenação dos RR.:

a) A reconhecerem, nos termos e para os fins do artigo 2075.º do CC, a sua qualidade sucessória como únicos herdeiros da herança, “Herança de (…)”, NIF (…); e

b) Com fundamento na falsidade da declaração de compra e venda, se declare nula a venda do veículo (…);

c) Se emita decisão judicial bastante para o cancelamento do registo insc. Ap. (…), de 10.08.2016;

d) Seja declarada a nulidade da doação de 07.10.2013, relativamente aos prédios descritos na CRP Portalegre sob os artigos (…) e (…), da freguesia de … (por falta de forma e por ofensa dos bons costumes);

e) Seja proferida decisão bastante para o cancelamento dos registos de aquisição a favor dos RR., sobre os bens doados, Ap. (…), de 2013/10/08, que recaiu no prédio …/20130913, e Ap. (…), de 2013/10/08, que recaiu no prédio …/19910823;

f) A restituir, nos termos do artigo 2075.º do CC, os bens que tem na sua posse pertencentes a esta herança:

- Veículo automóvel ligeiro, matrícula (…), marca Nissan, modelo Sunny, de cor cinzento, com o valor atribuído de € 1.000,00, registado em nome do de cujus em 10.07.2016;

- € 2.980,74 – Saldo bancário existente na conta n.º (…), da Caixa Geral de Depósitos na data da morte do de cujus, em 10.07.2016;

- € 7.000,00 - movimentados na Caixa Geral de Depósitos em 2016.06.07, pelo R. (…) a seu favor, através do cheque n.º (…), da conta do de cujus, com o IBAN (…);

- € 50.000,00 - que o R. (…), em 15.04.2016, movimentou a seu favor, da conta do de cujus n.º (…), da Caixa Montepio Geral, através do cheque n.º (…);

- € 20.894,12 - que o R. (…) movimentou a seu favor, em 2016.05.24, da conta do de cujus, com o n.º (…), da Caixa Montepio Geral, através do cheque n.º (…);

- Prédio misto, denominado “(…)”, situado em (…), descrito na Conservatória do Registo Predial de Portalegre, sob o n.º …/20130913, freguesia de (…), e inscrito com o artigo matricial urbano (…) e rústico artigo (…), da secção (…), freguesia de (…), concelho de Portalegre, com o valor tributável e atribuído global de € 40.922,33;

- Prédio misto, denominado “(…)”, situado em (…), descrito na Conservatória do Registo Predial de Portalegre, sob o n.º …/19910823, freguesia de (…), e inscrito com o artigo matricial urbano (…) e rústico artigo (…), da secção (…), freguesia de (…), concelho de Portalegre, com o valor tributável e atribuído global de € 88.363,15.

2. Os RR., regularmente citados, contestaram por impugnação e deduziram reconvenção, nos termos da qual pedem que sejam os AA. condenados a reconhecerem que as quantias em dinheiro identificadas nos pontos G. 1. 2. 3. 4. 5. 6 e 7 do pedido formulado na petição inicial, bem como a viatura automóvel, de matrícula (…), de marca Nissan, modelo Sunny, de cor cinzenta, são propriedade dos RR., seus possuidores, há mais de 3, 6, 7 e 10 anos, por vontade dos tios e, também, pela via da usucapião, com as legais consequências.

3. Os AA. replicaram, pugnando pela improcedência da reconvenção.

4. Após a prolação do despacho saneador vieram os AA., na sequência de junção de documentação pela Caixa Geral de Depósitos, requerer a ampliação do pedido, por forma a que o pedido de condenação englobe também os € 6.100,00, referentes ao cheque com o n.º (…), o que foi admitido.

5. Realizada a audiência de julgamento foi proferida sentença, com o seguinte dispositivo:

“A) Pelo exposto, julga-se a acção parcialmente procedente, por parcialmente provada e, em consequência:

a) Condena-se os Réus a reconhecerem nos termos e para os fins do artigo 2075.º do CC a qualidade sucessória de (…) e (…) como únicos herdeiros da “Herança de (…)” NIF (…);

b) Declarar nulo o registo de propriedade do veículo de matrícula RL-70-34, no que concerne à forma de aquisição da propriedade, e, em consequência, ordena-se o seu cancelamento no que concerne à dita causa e substituído por outro de onde conste como causa da transmissão da propriedade “doação”;

c) Absolve-se os Réus do demais peticionado.

B) Julga-se o pedido reconvencional parcialmente procedente, por parcialmente provado e, em consequência condenam-se os Autores a reconhecerem que:

a) Os valores:

- € 2.980,74 - Saldo bancário existente na conta n.º (…) da Caixa Geral de Depósitos na data da morte do de cujus em 10.07.2016;

- € 7.000,00 - movimentados na Caixa Geral de Depósitos em 2016.06.07, pelo R. (…) a seu favor, através do cheque n.º (…) da conta do de cujus, com o IBAN (…);

- € 50.000,00 - que o R. (…) em 15.04.2026 movimentou a seu favor da conta do de cujus, n.º (…) da Caixa Montepio Geral através do cheque n.º (…);

- € 20.894,12 - que o R. (…) movimentou a seu favor em 2016.05.24 da conta do de cujus, com o n.º (…), da Caixa Montepio Geral, através do cheque n.º (…);

b) O veículo de matrícula (…);

São pertença dos Réus.”

6. Inconformados com a sentença, vieram os AA. interpor recurso de apelação, o qual concluem nos seguintes termos:

[…] V.

Das nulidades da sentença por excesso de pronúncia (artigo 615.º, n.º 1, alínea d), in fine, do CPC) nula por violação dos princípios do dispositivo e do contraditório previstos no artigo 3.º do CPC, por o tribunal recorrido ter conhecido de questões que não lhe foram colocadas, e tomado decisões surpresa, ilegais e inconstitucionais, em violação dos artigos 3.º, 608.º, n.º 2 e 615.º, n.º 1, alínea d) e n.º 4, do CPC e 1.º, 2.º, 13.º e 20.º da CRP.

a) Na parte da decisão relativa ao veículo de matrícula (…) “…no que concerne à dita causa e substituído por outro de onde conste como causa da transmissão da propriedade “doação” ( v. Alegações 1 a 9).

b) Quanto aos € 2.980,74 existentes à data da morte de … (v. Alegações 10 a 15).

c) Na parte relativa aos € 6.100,00, que resultou de um requerimento ulterior dos AA, de ampliação do pedido, sem que os RR o tenham impugnado, mas o tribunal ainda assim decidiu a favor dos RR por doação sem que a tenha sequer invocado (v. Alegações 16 a 19).

(v. ref. Citius 2489367 de 04.03.2024 e ref.ª Citius 2496695 de 13.03.2024 e ref.ª Citius 33530467 de 06.06.2024 e artigos 572.º, alínea c) e 574.º, n.º 2, do CPC).

VI.

Os recorrentes consideram incorretamente julgados os pontos da matéria provada n. º 10, 12, 36, 37, 38, 43, 45, 49, 52, 59 e 61, e aos pontos da matéria não provada, D, E, F, G, H, I, J, K, M (Alegações 20 a 123). […]

DA IMPUGNAÇAO DA DECISÃO DE DIREITO

DO VEÍCULO DE MATRÍCULA … (FACTO PROVADO 11) […]

DOS € 2.980,74 MOVIMENTO BANCÁRIO (FACTO PROVADO 10). […]

DOS € 6.100,00 MOVIMENTO BANCÁRIO (FACTO PROVADO 62). […]

DOS € 7.000,00 DEPOSITO BANCÁRIO (FACTO PROVADO 16), - € 50.000,00 DEPOSITO BANCÁRIO (FACTO PROVADO 20). E € 20.894,12 DEPOSITO BANCÁRIO (FACTO PROVADO 22), ADQUIRIDOS POR USUCAPIÃO:[…]

DOS € 7.000,00 DEPOSITO BANCÁRIO (FACTO PROVADO 16), € 50.000,00 DEPOSITO BANCÁRIO (FACTO PROVADO 20), € 20.894,12 DEPOSITO BANCÁRIO (FACTO PROVADO 22), ADQUIRIDOS POR DOAÇAO […]

DOS IMÓVEIS (FACTO PROVADO 30-V. REF. CITIUS 33530467, DE 06.06.2024).

PRIMEIRO - Da Nulidade por vicio de forma, por faltar a assinatura de (…) na escritura de doação, artigo 220.º do CC e artigo 70.º, n.º 1, alínea se), do Código do Notariado. […]

DA NULIDADE POR VIOLAÇÃO DOS BONS COSTUMES, artigo 280.º, n.º 2, Código Civil […]

PELO EXPOSTO

A) REQUEREM A V. EXAS. VENERANDOS DESEMBARGADORES SE DIGNEM ADMITIR O PRESENTE RECURSO DE APELAÇÃO

B) SANANDO AS NULIDADES INVOCADAS, POR EXCESSO DE PRONUNCIA ARTIGO 615.º CPC.

C) E APRECIANDO A IMPUGNAÇÃO À DECISÃO DE FACTO, ALTEREM OS FACTOS PROVADOS E NÃO PROVADOS CONFORME PETICIONADO, PARA O TEOR INDICADO,

D) E FAZENDO A ANÁLISE CRITICA DESSA PROVA, ANULEM A DECISÃO PROFERIDA, PROFERINDO UMA OUTRA QUE RECONHEÇA QUE OS BENS

1) O veículo de matrícula … (facto provado 11).

2) € 2.980.74 movimento bancário (facto provado 10).

3) € 6.100,00 movimento bancário (facto provado 62).

4) € 7.000,00 deposito bancário (facto provado 16)

5) € 50.000,00 deposito bancário (facto provado 20).

6) € 20.894,12 deposito bancário (facto provado 22).

7) E os imóveis (facto provado 30)

FAZEM PARTE DA HERANÇA, DE (…)”

7. Foram apresentadas contra-alegações, nas quais os RR. pugnaram pela improcedência do recurso. […]

9. Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.

II – Questões a Decidir

[…] 2. Compulsadas as alegações de recurso, verificamos que no seu corpo foi impugnado o facto não provado sob j), porém, nada consta a esse respeito nas conclusões.

Ora, como se disse acima, são as conclusões que delimitam o objeto da apelação, pelo que a omissão da impugnação do facto não provado sob j) nas conclusões tem como consequência a exclusão de apreciação dessa questão.

3. Assim, cumpre apreciar se:

a) a sentença padece de nulidade;

b) a matéria de facto deve ser alterada nos termos pugnados pelos RR., com exclusão da apreciação do facto não provado sob j);

c) a decisão de direito padece de erro.

III – Fundamentação

A) Da nulidade da sentença

1. Veio o R. arguir a nulidade da sentença, alegando existir excesso de pronúncia relativamente aos bens A), B) e C).

Nos termos do artigo 615.º, n.º 1, alínea d), 2ª parte, do Código de Processo Civil, “é nula a sentença quando (…) o juiz (…) conheça de questões de que não podia tomar conhecimento”.

Nas palavras do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 06.03.2024 (Mário Belo Morgado) (Processo n.º 4553/21.1T8LSB.L1.S1, in http://www.dgsi.pt/), “III- A nulidade por excesso de pronúncia apenas se verifica quando o tribunal conheça de matéria situada para além das “questões temáticas centrais”, integrantes do thema decidendum, que é constituído pelo pedido ou pedidos, causa ou causas de pedir e exceções.”

Esta norma apresenta conexão com o disposto no n.º 2 do artigo 607.º do Código de Processo Civil, onde se impõe ao Tribunal que exponha as questões de que deve conhecer, e ao n.º 2 do artigo 608.º do mesmo compêndio legal, no qual se estabelece que “o juiz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação”.

Apresenta, de igual modo, conexão com o disposto no artigo 609.º do Código de Processo Civil, atinente aos limites da condenação, em cujo n.º 1 se veda a condenação em quantidade superior ou em objeto diverso do peticionado.

Assim, as questões que o Tribunal deve resolver “não se confundem nem compreendem o dever de responder a todos os invocados argumentos, motivos ou razões jurídicas, até porque, como é sabido, “o juiz não está sujeito às alegações das partes no tocante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito” (artigo 5.º, n.º 3)” (Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 06.03.2024, acima citado).

2. Revertendo, então, ao caso concreto, no que tange ao bem A), isto é, o veículo automóvel com a matrícula (…), alegam os AA. que ocorre excesso de pronúncia em virtude do Tribunal ter ordenado a alteração do registo de aquisição do veículo na parte atinente à causa da aquisição, de molde que onde constava “compra e venda” passasse a constar “doação”.

Sustentam os AA. que invocaram a nulidade da venda da viatura e pediram o cancelamento do respetivo registo, e apesar dos RR. terem alegado que o veículo lhes foi doado, apenas formularam um pedido reconvencional de reconhecimento da propriedade do veículo com fundamento em usucapião, que foi julgado improcedente.

Ora, lido o dispositivo da sentença, verifica-se que o Tribunal a quo julgou parcialmente procedente o pedido dos AA. de declaração de nulidade do registo e inerente cancelamento, isto é, não considerou ser o registo integralmente nulo, mas apenas no segmento atinente à causa de aquisição, pelo que declarou a nulidade do registo e ordenou o respetivo cancelamento nesse estrito segmento, aditando a indicação de uma nova causa de aquisição, a saber, a doação.

Deste modo, a primeira parte decisão do Tribunal a quo contém-se dentro dos limites do pedido formulado pelos AA., por consubstanciar uma decisão de procedência parcial desse pedido.

Assim, o problema reside em saber se a alteração do registo do veículo na parte relativa à causa de aquisição está além do objeto da causa.

Dos termos do pedido reconvencional decorre que os RR. invocam dois fundamentos para o mesmo: a “vontade dos tios” e a “usucapião”.

Os AA. compreenderam desta forma a reconvenção, porquanto na réplica apresentam a sua defesa em duas partes: uma, intitulada “Primeira: Por vontade dos tios” (artigos 12º a 28º); outra, intitulada “Segunda: Por via da usucapião” (artigos 29º a 52º).

A alegada vontade dos tios perpassa, aliás, toda a contestação, e no intróito da reconvenção – o artigo 92º da contestação - alegam os RR. que dão por reproduzida toda a defesa vertida nos artigos 1º a 90º da contestação, o que motivou a resposta dos AA., em sede de réplica, a toda essa matéria.

Não se mostra juridicamente qualificada na contestação ou na reconvenção essa alegada vontade dos tios, quer dizer, os RR. não identificam aí o específico instituto jurídico ao qual reconduzem este facto, mas o Tribunal a quo, a quem incumbe a qualificação jurídica dos factos submetidos a juízo (artigo 5.º, n.º 3, do Código de Processo Civil), fez corresponder a figura da doação àquela alegação.

Veja-se, efetivamente, a seguinte passagem da sentença:

“Importa aqui analisar a posição das partes na presente acção: os Autores afirmam que os bens que elencam eram propriedade de (…) e (…), mas os Réus apropriaram-se indevida e ilicitamente deles; já os Réus reconhecem que esses bens pertenciam ao casal (…) e (…), mas que lhes foram doados e que, de qualquer forma, já decorreram os prazos necessários para se considerar terem sido adquiridos por usucapião. Esta posição dos Réus, enquanto excepção dos direitos dos autores (e fundamento do pedido reconvencional), acarreta o ónus da prova dos factos integrativos da mesma. Ou seja, cabe aos Réus a prova desses factos (cfr. artigo 342.º, n.º 2, do CC).”

É certo que o Tribunal a quo acaba por conhecer formalmente a questão da doação como exceção, apreciando em sede de reconvenção somente a usucapião, mas essa circunstância não remove a natureza que a doação assume no contexto desta ação e que lhe é conferida pela alegação da mesma na contestação, onde os RR. não se limitam a pedir a improcedência da ação, antes requerem adicionalmente que sejam declarados proprietários dos bens com esse fundamento.

Deve, consequentemente, entender-se que a doação do veículo automóvel é matéria objeto do processo.

Em conclusão, não se verifica a invocada nulidade.

3. No que concerne ao bem B), isto é, aos € 2.980,74 que se encontravam depositados em conta da Caixa Geral de Depósitos na data do óbito do de cujus, advogam os AA. que não podia o Tribunal ter julgado provado que a quantia referida foi adquirida pelos RR. por doação, porquanto os RR. não alegaram esse facto, tendo apenas referido que esse dinheiro se destinou a despesas de funeral, facto que veio a ser julgado não provado.

Contudo, no ponto 13. das alegações de recurso, os AA. transcrevem os factos 42º e 43º da contestação dos RR., de onde se depreende precisamente o oposto do que argumentam, pois diz-se aí que as aludidas despesas “justificam os gastos efectuados da conta bancária que era movimentada e pertença o seu dinheiro do R. por vontade do tio”.

A leitura do facto evidenciado, atento o seu teor literal e o contexto na peça processual onde se insere, só pode ser a de que os RR. afirmam aí que o tio deu ao sobrinho o dinheiro existente na conta bancária, pelo que improcede, nesta parte, a invocada nulidade.

4. Por último, quanto ao bem C), isto é, aos € 6.100,00 objeto de cheque emitido pelos RR. a partir da conta da Caixa Geral de Depósitos, sustentam os AA. que os RR. não disputaram o facto daquele dinheiro pertencer ao de cujus, atenta a resposta que ofereceram ao requerimento dos AA de ampliação do pedido, formulado após o recebimento de informação prestada pela Caixa Geral de Depósitos acerca dos cheques emitidos a partir da referida conta.

Ora, verifica-se que na aludida resposta, submetida a juízo a 01.03.2024 (fls. 162 e segs.), efetivamente, os RR. nada dizem sobre o cheque de € 6.100,00, porém, reiteram aí o facto já alegado na sua contestação de que movimentavam livremente as contas bancárias dos tios, o que faziam com o respetivo consentimento.

Veja-se o teor dos artigos 21º, 22º e 53º a 55º da contestação:

“21:- Tios e sobrinhos, ao longo de décadas, tiveram sempre uma relação de confiança e carinho; o R. tinha autorização dos tios para movimentar os seus dinheiros como quisesse e entendesse, já que todo o dinheiro uma vez satisfeitas as necessidades deles, era dos sobrinhos e para os sobrinhos (os Réus) e referiram-no por diversas vezes aos Réus e a várias pessoas mais chegadas.

22:- Como não tinham filhos, os Réus, seriam os seus herdeiros; por isso, a 7 de Outubro de 2013 outorgaram a escritura de doação de todos os imóveis de que eram proprietários, sendo que o dinheiro que tinham já era gerido pelo R., era dele e da mulher, uma vez satisfeitas as necessidades dos tios. Foi a vontade deles, expressa por palavras e gestos ao longo de décadas.

53:- O Réu estava autorizado a movimentar a conta como entendesse, aceder aos seus valores mesmo que fosse em benefício próprio como estava estabelecido entre os tios dos Réus e os Réus.

54:- Os tios dos Réus queriam e sempre manifestaram a vontade de que todo o seu património se destinasse aos Réus, seus sobrinhos, era a vontade deles, expressa de viva voz aos Réus e a amigos mais chegados.

55:- Pelo que estava estabelecido, acordado entre os Réus e os tios, os Réus podiam fazer sua tal quantia quando quisessem, se quisessem e, sempre que assim entendessem.”

Atendendo, assim, a que não pode julgar-se estar admitido por acordo um facto que se mostre em oposição com a defesa considerada no seu conjunto (artigo 574.º, n.º 2, do Código de Processo Civil), cumpre concluir que constituía facto controvertido a propriedade das quantias existentes na conta do de cujus na Caixa Geral de Depósitos.

Deste modo, ao apreciar essa questão à luz da prova produzida em audiência, o Tribunal a quo não cometeu qualquer nulidade.

B) Da impugnação da matéria de facto

[…] 2. O Tribunal a quo julgou provados e não provados os seguintes factos:

“Discutida a causa, resultaram provados os seguintes factos:

1) Em 15.02.2014 faleceu (…);

2) Sem ascendentes ou descendentes sucedeu-lhe o seu marido, (…) que veio a falecer em 10.07.2016;

3) Também (…) faleceu sem descendentes nem ascendentes sucedendo-lhe o seu irmão consanguíneo (…), ambos filhos de (…);

4) (…) faleceu em 15.11.2022;

5) São descendentes de (…) os ora Autores;

6) Nenhum dos falecidos supra indicados deixou testamento;

7) A “Herança de (…)” encontra-se registada sob o n.º de identificação fiscal (…), em que é cabeça de casal, (…), NIF (…), residente na Rua da (…), n.º 15, 2º andar, 7300-138 Portalegre;

8) Em 28.02.2023, os ora Autores formalizaram o “Procedimento Simplificado de (Habilitação de Herdeiros e Registos”, no qual aceitaram expressamente a referida herança;

9) Em 04.04.2023 o cabeça de casal, (…) participou à Autoridade Tributária, como bens da herança: Veículo automóvel ligeiro, matrícula (…), marca Nissan, modelo Sunny, de cor cinzento, adquirido em 08.06.1989, com o valor atribuído de € 1.000,00; e o saldo bancário de € 2.980,74 na conta n.º (…) da Caixa Geral de Depósitos;

10) O Réu (…) apenas autorizado a movimentar a conta bancária, fez seus, em data posterior à do óbito de (…), os € 2.980,74 que se encontravam depositados na conta n.º (…), da Caixa Geral de Depósitos, em proveito também da sua esposa, a ora Ré, (…);

11) Em 10.08.2016, o Réu (…) registou o veículo (…), a seu favor;

12) Apesar de ter declarado que adquiriu o veículo através de contrato verbal de compra e venda, não procedeu ao pagamento de qualquer montante a título de preço, na medida em que o veículo havia-lhe sido oferecido e entregue, em data não concretamente apurada, mas anterior a 10 de Julho de 2016, por (…);

13) Venda essa que foi registada tendo por base uma declaração de venda datada de 04.07.2016, anterior em 6 dias relativamente à data da morte do proprietário ocorrida depois em 10.07.2016;

14) O registo foi realizado na Conservatória do Registo Automóvel de Lisboa através da Ap. (…), de 10-08-2016;

15) Em 07.06.2016 o Réu (…), através do cheque n.º (…) da conta do de cujus, com o IBAN (…), da Caixa Geral de Depósitos, movimentou a seu favor a quantia de € 7.000,00;

16) Os RR. (…) e a esposa (…) mantêm na sua posse e em proveito comum esses € 7.000,00;

17) O Réu (…), sem ser titular, estava autorizado a movimentar a conta do de cujus, com o n.º (…), da Caixa Montepio Geral;

18) No uso desses poderes, em 2016.04.15 emitiu o cheque n.º (…) a favor da (…) Portugal, SA.;

19) E posteriormente movimentou os € 50.000,00 a seu favor;

20) Os RR. (…) e a esposa (…) têm na sua posse os € 50.000,00 que utilizam em benefício do casal;

21) No uso desses mesmos poderes, em 2016.05.24, o Réu emitiu o cheque n.º (…), no valor de € 20.894,12 a seu favor;

22) Os RR. (…) e esposa (…) têm assim na sua posse os € 20.874,12 que utilizam em benefício comum do casal;

23) Desde 06.09.2013 que (…) e (…) eram utentes do lar de idosos da Associação dos Amigos da Terceira Idade de (…), doravante AATIF, sita na Rua do (…), na freguesia de (…);

24) Em 07.10.2013 (…) residia na Rua da (…), n.º 43, também na freguesia de (…);

25) (…) tinha sido eleito para a Direcção da AATIF, tomado posse e exercia de facto em 07.10.2013 funções de Vice-Presidente da Direcção da AATIF;

26) (…) tem Cartório Notarial na Av. (…), n.º 21, loja 1, em Portalegre;

27) No dia 07.10.2013 (…) levou (…) e (…) do lar, levando-os para sua casa na Rua da (…), n.º 43, na freguesia de (…);

28) Na data (…) com 84 anos de idade, tinha-lhe sido recentemente amputado parcialmente o membro inferior esquerdo, motivado por má circulação;

29) (…) tinha 83 de idade,

30) Aí chegados nesse dia 07.10.2013 os idosos sozinhos e nas circunstâncias supra descritas, apenas na presença do donatário e da notária (…), celebraram uma escritura pública de doação, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido, para todos os efeitos legais, na casa e a favor do R. (…) de dois imóveis, a saber: Prédio misto, denominado “(…)”, situado em (…), descrito na Conservatória do Registo Predial de Portalegre, sob o n.º …/20130913, freguesia de (…), e inscrito com o artigo matricial urbano (…) e rústico artigo (…), da secção (…), freguesia de (…), concelho de Portalegre, com o valor tributável e atribuído global de € 40.922,33; e Prédio misto, denominado “(…)”, situado em (…), descrito na Conservatória do Registo Predial de Portalegre, sob o n.º …/19910823, freguesia de (…) e inscrito com o artigo matricial urbano (…) e rústico artigo (…), da secção (…), freguesia de (…), concelho de Portalegre, com o valor tributável e atribuído global de € 88.363,15;

31) Dessa escritura não consta qualquer razão ou justificação para que a mesma tenha sido celebrada na casa do donatário e não no cartório, e sem a presença de qualquer testemunha;

32) Sendo que por via dessa doação os idosos ficaram completamente despidos de qualquer imóvel incluindo a sua própria habitação;

33) Da escritura não resulta: as datas de validade dos documentos de identificação; d) E não constam esses documentos de identificação como documentos arquivados ou exibidos;

34) Da mencionada escritura consta que a senhora notária advertiu os doadores no ato da falta do certificado energético;

35) Da escritura consta a assinatura da doadora (…) na última folha, sem que as restantes se encontrem rubricadas;

36) Constando da última folha, “Esta escritura foi lida e explicada aos outorgantes. O primeiro não assina por não poder, conforme declarou.”;

37) Os doadores tinham perfeita consciência do acto que realizaram e quiseram realizar, pois estavam lúcidos, doaram os prédios de livre vontade e iniciativa;

38) As folhas da escritura não foram rubricadas porque a mesma foi efectuada em Livro de escrituras diversas número onze, de folhas vinte e três a folhas vinte e cinco do Cartório de Portalegre, a cargo da Notária (…);

39) O Réu desde criança que manteve uma relação filial com os seus tios, (…) e (…); esta, era irmã da sua mãe;

40) Na infância do Réu, em data não concretamente apurada, aquele com eles habitou porque os seus pais trabalhavam e não podiam tomar conta dele;

41) Na década de 60 do século passado, os tios do Réu, emigraram para Inglaterra e ali estiveram durante cerca de 30 anos;

42) Enquanto estiveram em Inglaterra, os assuntos que lhes diziam respeito eram tratados pelo Réu; as contas bancárias que detinham em Portugal, nesse período o Réu era delas co-titular com os tios;

43) Quando os tios regressaram a Portugal foi nos Réus que se apoiaram, eram a sua família, com eles partilhavam a vida;

44) Estando presentes em ocasiões festivas como Natal, Páscoa, aniversários de membros da família;

45) Entre os Réus e os tios havia uma relação de família, de amizade, carinho e, de confiança recíproca;

46) No decurso dos anos de 2009/2010, a tia dos Réus começou a ter problemas de saúde; neoplasia da mama, mastectomia total da mama esquerda, problemas musculares ao nível do membro inferior esquerdo, o qual sofreria três amputações;

47) Até ao seu falecimento, durante vários anos, foram os Réus que a apoiaram nos hospitais, nas clínicas em Portalegre, nas consultas em Lisboa, nos tratamentos, intervenções cirúrgicas, transportando-a em viagens;

48) Numa fase terminal a tia dos Réus, por necessitar de estar sempre acompanhada, esteve internada na Unidade de Cuidados Continuados de Vila Viçosa, na Unidade de Cuidados Continuados de Arronches, vindo a falecer a 15 de Fevereiro de 2014, no Hospital de Portalegre;

49) Os Réus foram sempre suas visitas, acompanhantes, cuidadores;

50) Ambos estiveram na AATIF – Associação dos Amigos da Terceira Idade de (…) e, ao longo dos anos sempre manifestaram a vontade de transmitirem aos Réus todo o seu património após a morte de ambos;

51) As dificuldades de saúde porque passaram, nomeadamente a tia, determinou-os a que ingressassem no Lar dos (…) em 5 de Setembro de 2013;

52) O R. tinha autorização dos tios para movimentar os seus dinheiros como quisesse e entendesse, já que todo o dinheiro uma vez satisfeitas as necessidades deles, era para os Réus e referiram-no por diversas vezes aos Réus e a pessoas mais chegadas, tendo sido nesse contexto que efectuou as movimentações bancárias supra e infra indicadas;

53) Após o internamento da tia dos Réus em Vila Viçosa e após o seu falecimento, foi o R. que emitiu e assinou cheques, nomeadamente os constantes de fls. 79 a 81, cujo teor se dá aqui por reproduzido;

54) O tio dos Réus, (…) era filho de (…) e (…); seus pais separaram-se era ele criança; seu pai, juntou-se com outra mulher, da qual teve um filho, (…);

55) Estes irmãos não se visitavam regularmente;

56) Não conviviam regularmente;

57) Mas sabiam da existência um do outro;

58) Os ora Autores nunca visitaram os tios, (…) e (…);

59) O pai dos aqui Autores, entre 10 de Julho de 2016 e 15 de Novembro de 2022, data da sua morte, não reclamou a herança do irmão;

60) Os Réus pagaram à Agência Funerária (…) as despesas do funeral que foram de € 1.802,20;

61) O cheque n.º (…), no valor de € 20.894,12, emitido pelo Réu a 24.05.2016 a seu favor, mediante autorização de (…), destinou-se ao Réu, como o tio queria e pretendia;

62) (…) movimentou, em 14.04.2016, o cheque n.º (…), no valor de € 6.100,00, sacado da conta (…), pertença de (…);

63) O cheque foi movimentado a favor da empresa de construção civil “(…) – Sociedade de Construções, Lda.” e destinou-se ao pagamento de obras realizadas em casa dos Réus.


*

Com interesse para a decisão da causa, não se provou que:

a) O Réu tem o veículo descrito em 11 dos factos provados na sua posse desde essa data;

b) A assinatura constante da declaração de venda mencionada em 13 dos factos provados não corresponde à do de cujus (…);

c) O R. (…) sempre manteve o referido veículo em garagem sem circular e sem que possa ser visto por qualquer pessoa interessada;

d) O R., sabia e não podia ignorar que ao retirar o valor de € 2.980,74 da conta do de cujus e transferir o veículo para o seu nome, esvaziava totalmente a herança, deixando o irmão do de cujus e, por conseguinte, os seus filhos aqui Autores, sem a possibilidade de relacionarem bens lesando-os e afastando-os da sucessão;

e) O R. (…) sabia e não podia ignorar que o valor descrito em 15 dos factos provados não era seu, sem que o tenha declarado à AT na data morte de (…) ou informado qualquer interessado da sua existência;

f) Nas circunstâncias descritas em 19 dos factos provados, o Réu se tivesse aproveitado da qualidade de mediador da (…) Portugal, SA, e reteve o referido cheque;

g) O R. (…) sabia e não podia ignorar que o valor de € 50.000,00 descrito nos factos provados não era seu, e, sem que os tenha declarado à AT na data morte de (…) ou informado qualquer interessado da sua existência;

h) O R. (…) sabia e não podia ignorar que o valor descrito em 22 dos factos provados não era seu, e que a autorização de movimentar a conta bancária não lhe permitia movimentar valores a seu favor sem qualquer justificação;

i) Na data descrita em 27) dos factos provados (…) já apresentava sintomas de Alzheimer e era medicado para auxiliar o esquecimento;

j) O Réu tivesse agido, nas circunstâncias descrita em 30) dos factos provados, beneficiando dos seus poderes de vice-presidente da direcção da AATIF, sem autorização e o consentimento de ninguém;

k) A escritura descrita em 30) dos factos provados, foi realizada sem o conhecimento de ninguém;

l) A escritura foi celebrada de surpresa e em situação de erro ou engano sem que os doadores se tivessem apercebido do que realmente iam efectivamente fazer na casa do donatário;

m) Não consta da escritura que os doadores tenham sequer exibido os seus bilhetes de identidade; que foi verificada a sua identidade por esses documentos de identificação; e que foi explicado aos idosos o significado e efeitos da doação nomeadamente que por via dela ficavam sem a propriedade e o uso desses 2 imóveis, incluindo o da sua própria habitação, e que os outorgantes declaram ser essa a sua vontade;

n) (…) aproveitou-se da sua situação de vice presidente da direcção da AATIF e de surpresa e através de uma estratégia concertada com a notária (…) de forma enganosa e astuciosa levaram os idosos de 83 e 84 de idade a celebrarem escritura pública de doação;

o) Decorria o ano de 1977, após terem passado férias em Portugal, os tios do Réu levaram-no a passar férias em Inglaterra, as quais custearam; ofereceram-lhe a primeira aparelhagem de música, ainda eram os discos em vinil;

p) Deram à sua mãe um aparelho auditivo, porque esta era surda;

q) Uma vez em Portugal, eram os tios dos Réus que iam levar e buscar à escola o filho destes, sempre que os Réus não o podiam fazer por razões profissionais;

r) A Ré, passou a trata-los como se seus pais ou sogros fossem;

s) Aos Hospitais de Santa Maria e Santa Marta em Lisboa, os Réus deslocaram-se dezenas de vezes, transportando e acompanhando a tia às consultas dos Drs. (…), (…), (…), (…) e, outros;

t) Na pendência dos internamentos da tia nos hospitais de Portalegre, Santa Maria, Santa Marta, os quais, alguns, foram longos no tempo – de trinta e mais dias – eram os Réus que davam apoio ao tio em Portalegre, confecionando-lhe as refeições diárias, lavando-lhe a roupa, cuidando dele;

u) (…) e (…) nunca tiveram qualquer tipo de relacionamento, convivência, afecto; não se conheciam e, ao longo de toda a vida, um com o outro não se relacionaram;

v) Eram e foram toda a vida dois estranhos, um para o outro;

w) Os Autores da presente acção nunca contactaram com os “tios” dos aqui Réus; nem nunca, os tios dos Réus os conheceram nem nunca tiveram qualquer contacto com eles;

x) A declaração para transferência da titularidade da viatura para o Réu foi assinada por (…);

y) O valor de € 2.980,74 destinou-se a pagamento do funeral e outras despesas do tio dos Réus;

z) A entrega da viatura (…) ao Réu ocorreu antes de 2016, pois o tio do R. há vários anos que não conduzia;

aa) No que tange ao movimento operado da quantia de € 7.000,00 da conta IBAN (…) da Caixa Geral de Depósitos, tal verificou-se para pagamento de despesas várias do tio dos Réus;

bb) Os Réus acertaram as contas no Lar (com a AATIF), mês de Julho de 2016 que foram de € 148,68;

cc) Os € 50.000,00 supra descritos resultam de um resgate de 4 aplicações financeiras “(…) Rendimento”, que se iniciaram em 29/03/2011 e, com vencimento a 30/03/2016 (Ap. … – € 20.000,00; Ap. … – € 10.000,00; Ap. … – € 20.000,00; Ap. … – € 10.000,00);

dd) Todas as apólices foram objecto de acta adicional a 4/4/2013, com alteração do ponto 4 do artigo 1º das condições contratuais, estipulando-se como beneficiário em caso de morte: - o Réu, (…);

ee) Todas as apólices, as quatro, vigoraram pelo prazo contratado;

ff) E, no vencimento delas, a 30/03/2016, foram resgatadas e, o R. creditou o seu valor na conta que lhes deu origem, a conta dos tios dos Réus;

gg) Depois, com o consentimento e conhecimento do tio, (…), o Réu procedeu à emissão em seu nome, de uma proposta de aplicações financeiras no produto “(…) Garantia Mais”, com início em 29/02/2016 e cobrança no mês de Abril após o vencimento (30/03/2016) das mesmas;

hh) Esta proposta, nas referidas condições, originou a Ap. n.º (…) que foi liquidada em 15 de Abril de 2016, por depósito na conta da (…), tendo sido, tal movimento sugerido e autorizado pela representante da própria (…), (…), que validou todo o procedimento;

ii) Os cheques mencionados em 53) dos factos provados destinavam-se a suportar despesas correntes dos tios, nomeadamente, lar, medicamentos, despesas correntes.


*

Os demais pontos contidos na petição inicial, contestação e réplica que não constam da matéria de facto provada, nem da matéria de facto não provada, não foram considerados pelo Tribunal, por terem natureza conclusiva e/ou de direito ou por não terem interesse para a decisão da causa.” […]

4. Passando agora a apreciar a impugnação da matéria de facto:

- Facto 10.: Pretendem os AA. que seja retirada deste facto a menção à autorização concedida ao R. (…) para movimentar a conta bancária, atendendo a que, nos termos do artigo 1174.º do Código Civil, essa autorização caducou com a morte do de cujus.

Ora, nesta parte a redação do facto em apreço corresponde à redação do artigo 14º da p.i., que reza assim:

“Acontece que o Réu (…) apenas autorizado a movimentar a conta bancária, fez seus os € 2.980,74, limpando literalmente esta conta, conforme se pode retirar do documento apresentado sob doc. 12”.

Ou seja, o facto em apreço foi julgado provado pelo Tribunal a quo nos exatos termos em que os AA. o alegaram na p.i..

Deve, consequentemente, manter-se inalterado o facto 10..

- Facto 12.: Pretendem os AA. que seja expurgada do facto em apreço a referência ao oferecimento e entrega do veículo ao R. (…).

Sustentam os AA. que esta matéria não foi objeto do depoimento de parte prestado pelo R..

Porém, foi indicado como objeto do depoimento de parte do R. (…), designadamente, o artigo 18º da p.i., onde os AA. alegam que a aquisição do veículo ocorreu “por via de uma compra e venda inexistente, na medida em que inexistiu qualquer pagamento”.

Assim, a existência / inexistência de um acordo de vontades visando a transmissão da propriedade do veículo a favor dos RR. e os termos concretos dessa transmissão, isto é, a sua natureza onerosa ou gratuita, constituíram temas a abordar no depoimento de parte, sendo, naturalmente, lícito ao R. pronunciar-se sobre os mesmos como lhe aprouvesse, maxime renovando a posição que acerca da questão em apreço havia vertido na sua contestação.

Não podemos, efetivamente, reduzir a prestação de um depoimento de parte à confissão, pois assiste à parte o direito de negar o facto que lhe é apresentado e contextualizar essa negação, apresentando uma diferente versão para o mesmo.

Aduzem também os AA. que, de todo o modo, estamos em presença de uma afirmação conclusiva.

Porém, a oferta e entrega de um bem expressam uma realidade da vida, traduzindo o ato de ceder um bem a outra pessoa, com a intenção de lhe transmitir a respetiva propriedade, sem o recebimento de qualquer contrapartida.

Sublinhe-se que a palavra “oferta”, ao contrário da palavra “doação”, não constitui um conceito jurídico.

Do mesmo modo, a palavra “entrega”, ao contrário da palavra “tradição”, não constitui um conceito jurídico, sendo inequívoco o seu significado de transferência da posse de uma coisa.

Significa isto que oferecer e entregar o veículo automóvel são factos e não juízos conclusivos.

Advogam também os AA. que o depoimento do R. nesta parte não se revela confessório, porquanto respeita a um facto que lhe é favorável.

Efetivamente, a doação do veículo não constitui matéria suscetível de confissão pelo R., na medida em que esta consiste no reconhecimento de um facto desfavorável ao depoente (artigo 352.º do Código Civil), e a doação foi alegada pelos RR. na sua contestação, correspondendo à sua defesa contra a tese dos AA. de que esse bem pertencia ao de cujus.

Não obstante o exposto, o Tribunal a quo não declarou ter julgado o facto provado sob 12. com base em confissão do R., antes aludiu simplesmente ao seu depoimento e acrescentou que formou a sua convicção quanto a este facto por via do enquadramento no cenário global da doação de bens efetuada pelos tios do R., onde se incluem até bens de maior valor do que este veículo.

Essa convicção é desenvolvida na motivação dos factos 37, 50, 52 e 61, onde se analisa criticamente a prova produzida em audiência.

Ora, as declarações de natureza não confessória produzidas no decurso de um depoimento de parte são livremente apreciadas pelo Tribunal, nos termos do artigo 607.º, n.º 5, 1ª parte, do Código de Processo Civil, como vem sendo entendido pacificamente pela jurisprudência e se mostra corroborado pelo atual n.º 3 do artigo 466.º do Código de Processo Civil.

Neste sentido se pronunciou, designadamente, o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 12.02.2025 (Maria José Costa Pinto) - (Proc. 1548/17.3T8BRR-C.L1-4, in http://www.dgsi.pt/):

“I. Inexistem quaisquer motivos para excluir a possibilidade de valoração de relatos favoráveis que surjam na sequência do depoimento de parte, pois que a lei admite expressamente a prova por declarações de parte que normalmente redundará num relato de factos favoráveis.”

A questão subsequentemente suscitada por esta valoração, por paralelismo com a temática da valoração das declarações de parte, é a de saber em que termos se deve processar.

Convocamos, assim, o debate que tem sido desenvolvido na jurisprudência sobre o valor probatório das declarações de parte, relativamente ao qual temos vindo a perfilhar o entendimento de que constituem um meio de prova que, à semelhança dos demais, carece de análise crítica e conjugada com os outros meios de prova produzidos nos autos, de acordo com parâmetros de verosimilhança e razoabilidade que presidem à livre apreciação da prova.

Deverá, deste modo, averiguar-se se pela sua espontaneidade, fluidez, lógica, coerência, as declarações de parte devem merecer o acolhimento da convicção do Tribunal, como tem sido assinalado, em particular, por Luís Filipe Pires de Sousa, designadamente, no Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 26.04.2017 (Processo n.º 18591/15.0T8SNT.L1-7, in http://www.dgsi.pt/):

“I.– No que tange à função e valoração das declarações de parte existem três teses essenciais: (i) tese do caráter supletivo e vinculado à esfera restrita de conhecimento dos factos; (ii) tese do princípio de prova e (iii) tese da autossuficiência das declarações de parte.

II.– Para a primeira tese, as declarações de parte têm uma função eminentemente integrativa e subsidiária dos demais meios de prova, tendo particular relevo em situações em que apenas as partes protagonizaram e tiveram conhecimento dos factos em discussão.

III.– A tese do princípio de prova defende que as declarações de parte não são suficientes para estabelecer, por si só, qualquer juízo de aceitabilidade final, podendo apenas coadjuvar a prova de um facto desde que em conjugação com outros elementos de prova.

IV.–Para a terceira tese, pese embora as especificidades das declarações de parte, as mesmas podem estribar a convicção do juiz de forma autossuficiente.

V.– É infundada e incorreta a postura que degrada – prematuramente – o valor probatório das declarações de parte só pelo facto de haver interesse da parte na sorte do litígio. O julgador tem que valorar, em primeiro lugar, a declaração de parte e, só depois, a pessoa da parte porquanto o contrário (valorar primeiro a pessoa e depois a declaração) implica prejulgar as declarações e incorrer no viés confirmatório.

VI.– É expectável que as declarações de parte primem pela coerência e pela presença de detalhes oportunistas a seu favor (autojustificação) pelo que tais caraterísticas devem ser secundarizadas.

VII.– Na valoração das declarações de partes, assumem especial acutilância os seguintes parâmetros: contextualização espontânea do relato, em termos temporais, espaciais e até emocionais; existência de corroborações periféricas; produção inestruturada; descrição de cadeias de interações; reprodução de conversações; existência de correções espontâneas; segurança / assertividade e fundamentação; vividez e espontaneidade das declarações; reação da parte perante perguntas inesperadas; autenticidade ” (acompanhando esta orientação, v. os Acórdãos do Tribunal da Relação de Lisboa de 26.04.2022 (Conceição Saavedra), Processo n.º 117793/18.5YIPRT-A.L1-7, e do Tribunal da Relação de Évora de 11.01.2024 (Tomé de Carvalho), Processo n.º 129/21.7T8SLV.E1, ambos in http://www.dgsi.pt).

Regressando ao caso vertente, constatamos que especificamente sobre o tema do veículo automóvel só o R. se pronunciou, no seu depoimento de parte.

Assim, tendo-lhe sido perguntado “e este veículo estava aonde?”, respondeu “este veículo estava na garagem dele“ [do tio]; sendo-lhe perguntado, de seguida, “e quando é que foi de lá tirado?”, respondeu que o tirava de vez em quando para o pôr a trabalhar, para a bateria não ir abaixo, sendo que o veículo acabou por ficar bastante tempo sem utilização, uma vez que o seu tio deixou de conduzir, pelo que mais tarde o R. constatou que o carro já não trabalhava, e por isso mandou repará-lo e pô-lo a uso, ainda que não o faça com muita frequência, porque não necessita do veículo. Após esta resposta é-lhe perguntado “mas isso sucedeu já depois do falecimento do seu tio?”, o que o R. confirmou.

Explicou também que talvez um ou dois anos antes da morte do tio este assinou o doc. onde se declara a compra e venda do veículo, mas o R. guardou esse doc. e só fez a transferência mais tarde. Tendo-lhe sido dito que a declaração de venda tinha uma data seis dias antes da morte do tio, disse pensar ter sido essa a data em que fez a transferência.

Declarou ainda o R. que o seu tio lhe havia dito que queria que este veículo ficasse para si, como, aliás, todo o seu outro património, mas não havia urgência na transferência do veículo para a sua propriedade, na medida em que não tinha necessidade do veículo para sua utilização, razão pela qual os acontecimentos se desenrolaram da forma descrita.

Ora, os termos em que o R. se expressa são contraditórios, pois se o tio lhe deu o veículo, então, não faz qualquer sentido manter o tio como proprietário registado do carro e, consequentemente, responsável por todas as despesas atinentes ao mesmo, bem como não faz qualquer sentido conservar o carro na garagem do tio, da qual o R. só o tirava, não para o utilizar no seu interesse, como o faria um proprietário, mas simplesmente para impedir que a bateria fosse abaixo.

Aliás, a justificação dada pelo R. para a paragem do carro, que determinou que este acabasse por não trabalhar e tivesse de ser reparado, foi o facto do seu tio ter deixado de conduzir, o que não faz sentido se o carro era propriedade do R. ainda em vida do tio.

Nem a alegada falta de necessidade do veículo para a vida diária do R. permite ultrapassar esta contradição, porquanto isso significaria apenas que em lugar de uma utilização frequente, o R. faria uma utilização menos intensa, que é o que refere precisamente que sucede hoje em dia.

Acresce que o facto do R. ter procedido à reparação do carro, para viabilizar a sua utilização, apenas a morte do seu tio, não é, de igual modo, coerente com a pretensão de se ter tornado proprietário do veículo em data anterior àquele evento.

Finalmente, a história do R. afasta-se do padrão de comportamento normal das pessoas comuns na parte atinente à inscrição da aquisição no registo automóvel, pois declara que recolheu a assinatura do titular do veículo e não utilizou o respetivo formulário durante um ou dois anos, mas no leito de morte do titular apôs-lhe uma data, ainda que não a data de há um ou dois anos, quando o formulário foi assinado, e antes a data em que se encontrava.

Com efeito, a data aposta no formulário como sendo aquela em que foi celebrado o contrato de compra e venda coincidiu com o internamento hospitalar terminal do tio, ocorrido no contexto de uma doença prolongada com previsível desfecho nefasto - cancro do pâncreas, com metástases (doc. 6 junto com a réplica, a fls. 142).

Veja-se ainda que a apresentação do formulário na Conservatória do Registo Automóvel está datada de mais de um mês após a data nele aposta com respeito à alegada compra e venda, na qual o tio do R. já era falecido – Ap. (…), de 10.08.2016 (doc. 17 junto com a p.i., a fls. 33 a 33-v).

Esta é, pois, uma versão rebuscada, com a dificuldade adicional do R. não ter logrado explicar porque razão não declarou a doação no formulário, pois ao contrário do que se mostra alegado na contestação (artigo 50º), não pode ser considerado normal que as pessoas declarem factos desconformes com a realidade às entidades oficiais, até porque é possível indicar o contrato especificamente realizado em cada caso concreto, como resulta do campo 2. do formulário, onde de forma aberta se enunciam “Outras causas de aquisição”.

Ou seja, a prova produzida em audiência não permite sustentar a alegação de que o veículo foi doado ao R. em vida do tio, por não cumprir tal prova critérios de verosimilhança, lógica e razoabilidade.

Sublinhe-se, aliás, que o que foi referido pelo R. em audiência diverge do que se mostra alegado na contestação, pois aí o R. sustentou que tinha a viatura na sua própria garagem e que passeava nela (artigos 48º e 49º).

Essa versão contraria a que foi apresentada na petição inicial, em cujo artigo 17º se alude ao início da posse na data do registo de aquisição, e lida a réplica verifica-se que os AA. não aceitaram o facto novo alegado na contestação, pelo contrário, declaram naquele articulado que “se” os RR. tiveram a posse da viatura antes de 10.07.2016, então tratou-se de uma mera posse (artigo 36º). Acrescentam ainda que se assim foi, considerando que a viatura não possuiu seguro válido entre 2013 e 2021, os RR. circularam na via pública com a viatura sem seguro (artigo 37º).

Sublinhe-se que a aludida falta de seguro da viatura está demonstrada pelos docs. juntos com a réplica, a fls. 143 a 147.

Deve, consequentemente, retirar-se do facto 12. a sua segunda parte, onde se alude à oferta e entrega do veículo ao R., a qual passa a constituir o facto não provado jj).

À luz do expendido, cumpre ainda proceder à transcrição exata do formulário de registo, porquanto do facto 13 consta que a inscrição de aquisição teve por base uma declaração de venda datada de 04.07.2016, mas não é isso o que decorre do doc. junto aos autos e que não foi impugnado: o registo teve por base um formulário, intitulado “Requerimento de registo automóvel”, do qual consta uma declaração, sob o título “Declarações”, com o seguinte teor:

“O contraente indicado como sujeito passivo (vendedor) declara que em 04-07-2016 efectivamente celebrou nessa qualidade o contrato nele especificado e por isso confirma-o sem quaisquer restrições (preencher caso se trate de contrato verbal de compra e venda com ou sem reserva de propriedade)”.

Deve, assim, ser alterada a redação do facto 13. em conformidade com o ora exposto.

De igual modo, cumpre eliminar o facto não provado b), porquanto como se explica na fundamentação de direito da sentença, sendo o formulário um doc. do qual consta o nome do tio do R. como subscritor do mesmo, e tendo a autoria da respetiva assinatura sido impugnada pelos AA., competia aos RR. demonstrar a genuinidade da assinatura, nos termos do artigo 374.º, n.º 2, do Código Civil.

Ora, os factos não devem constar duplamente da decisão, isto é, formulados em simultâneo sob a forma positiva e sob a forma negativa, antes devem ser enunciados uma única vez, de acordo com as regras da distribuição do ónus da prova.

Consequentemente, este facto deve ser enunciado sob a forma positiva, o que sucede com o facto não provado x), que é uma duplicação do facto não provado b), mas corresponde à formulação correta da pergunta, o qual deve, assim, permanecer no elenco dos factos não provados, atenta a respetiva motivação.

- Facto 36.: Pretendem os AA. que fique a constar do facto em apreço, adicionalmente ao teor da escritura relativo à assinatura da mesma, que o de cujus sabia assinar e que na escritura não foi fundamentado o facto daquele não a ter assinado.

Indicam, em suporte da impugnação, o doc. 18 junto com a p.i. (fls. 34), que corresponde ao bilhete de identidade do de cujus, onde estava aposta a sua assinatura, bem como o doc. 33 junto com a p.i. (fls. 43-v a 45-v), que corresponde à escritura.

Contudo, não se diz na escritura que o de cujus não sabia assinar, o que aí se declara é que o de cujus não podia assinar, e afirma-se que foi este último o fundamento para o de cujus não ter assinado a escritura, ainda que não se indique a concreta razão determinante dessa impossibilidade.

Assim, a transcrição da passagem da escritura relevante para este efeito mostra-se completa, nada havendo a acrescentar.

Sem prejuízo, retira-se da passagem da gravação transcrita pelos AA. que a Senhora Notária já não se recorda da razão pela qual o de cujus não podia assinar, mas ouvido integralmente o seu depoimento concluímos com segurança que a Senhora Notária não negou este facto, pelo contrário, asseverou que recolheu a impressão digital do de cujus, tendo, para o efeito, levado consigo o equipamento necessário, pois foi previamente informada da sobredita impossibilidade de assinatura.

Os AA. aludem, todavia, à circunstância da sra. Notária ter feito uma descrição do doador, no seu depoimento, que não corresponde à pessoa deste, mas sim da sua mulher, quer dizer, a sra. Notária alude a um senhor que tinha diabetes, havia sido operado e estava em cadeira de rodas, um senhor que tinha sido amputado.

A partir daqui os AA. extraem a ilação de que a impressão digital constante da escritura é da tia e não do tio.

Porém, a sra. Notária principia a descrição pela referência “não tenho a certeza”, acrescendo a circunstância de que esta descrição não foi efetuada em resposta a questão relativa à assinatura do ato, isto é, a sra. Notária não disse que foi esta pessoa em cadeira de rodas que não assinou a escritura, apenas tendo aludido a esta situação como justificativa da realização do ato fora do Cartório Notarial, por evidenciar a dificuldade de deslocação de um outorgante.

Sublinhe-se que esta escritura data de há onze anos, o que, à luz das regras da experiência comum torna verosímil a falta de memória da sra. Notária quanto a alguns aspetos, ponderando ainda que se trata de um ato da sua profissão, quer dizer, um ato igual ou semelhante a tantos outros que efetua diariamente.

E tendo-lhe sido diretamente perguntado como podia garantir que a impressão digital pertencia ao doador, a sra. Notária respondeu “quando nós dizemos (…) não assina, não faz a assinatura, mas coloca o dedo, não preciso de dizer mais nada”.

De todo o modo, no seu depoimento, o R. explicou que o seu tio padecia de gota e se encontrava, naquela data, com uma crise, sendo essa a causa da impossibilidade de aposição de assinatura na escritura.

A alusão à gota mostra-se corroborada pela “Nota Alta Medicina”, respeitante ao internamento hospitalar no qual ocorreu o falecimento do tio do R., onde precisamente é indicada aquela doença em sede de “antecedentes” (doc. 6 junto com a réplica, a fls. 142-v).

Por último, refira-se que constando inequivocamente da escritura a assinatura da doadora, fere as regras da lógica e da razoabilidade considerar que após a recolha desta assinatura a sra. Notária foi recolher a impressão digital dessa mesma outorgante que tinha acabado de assinar e nada diligenciou a respeito do outro outorgante.

Deve, assim, manter-se inalterado o facto 36.

Constatando-se, porém, ser omissa a matéria de facto quanto à circunstância de ter sido aposta uma impressão digital na margem do documento, e tratando-se de facto relevante para a decisão da causa, deve essa menção ser aditada ao presente facto.

- Facto 37.: Pretendem os AA. que este facto passe para o elenco dos factos não provados, atendendo a que a circunstância dos doadores terem lucidez e consciência do ato que realizaram, bem como de terem doado os prédios por sua iniciativa e vontade não constam da escritura, pelo que a prova testemunhal não pode contrariar a prova plena, para além de que ficou demonstrado que a iniciativa e conteúdo da doação não pertenceram aos doadores.

Sustentam ainda os AA. que os doadores não tiveram a consciência e a lucidez suficientes para doarem os prédios de livre vontade.

Ora, a norma convocada pela questão suscitada pelos AA. é, em primeira linha, o artigo 371.º, n.º 1 do Código Civil, no qual se prescreve que “os documentos autênticos fazem prova plena dos factos que referem como praticados pela autoridade ou oficial público respectivo, assim como dos factos que neles são atestados com base nas percepções da entidade documentadora; os meros juízos pessoais do documentador só valem como elementos sujeitos à livre apreciação do julgador.”

Maria dos Prazeres Beleza é muito clara quanto ao significado dos diferentes segmentos da norma transcrita: “(…) ficam plenamente provados os factos que nele se referem como tendo sido praticados pela entidade documentadora, autora do documento (que conferiu a identidade das partes, ou que lhes leu o documento...), ou que nele são atestados com base nas suas percepções (por ex., as declarações que ouviu ou os atos que viu serem praticados); mas os meros juízos pessoais do documentador (que a parte se encontrava no pleno uso das faculdades mentais, ou semelhante) ficam sujeitos à regra da livre apreciação pelo julgador.” (Comentário ao Código civil : parte geral, coord. de Luís Carvalho Fernandes, José Brandão Proença, Lisboa : Universidade Católica Editora, 2014, págs. 852-853).

Segundo o artigo 347.º do Código Civil, “a prova legal plena só pode ser contrariada por meio de prova que mostre não ser verdadeiro o facto que dela for objeto”, e por força do disposto nos artigos 351.º e 393.º, n.º 2, do Código Civil, essa demonstração não pode ser efetuada por prova testemunhal ou por presunções judiciais.

Ou seja, os aspetos aludidos no facto em apreço – lucidez e consciência -, não se mostram abrangidos pela força probatória plena própria dos documentos autênticos, encontrando-se diversamente sujeitos à livre apreciação do julgador, por consubstanciarem juízos pessoais do documentador.

Logo, relativamente àqueles aspetos é legalmente admissível a produção de prova testemunhal, podendo, portanto, ser valorado o depoimento da sra. Notária que presidiu ao ato.

Recordava-se, então, a sra. Notária que lhe tinham dito que “o sobrinho estaria a tomar conta deles lá no lar”, que “tinham sido emigrantes, e que tinham trabalhado para comprar estas casas”, conforme expresso na passagem da gravação transcrita nas alegações de recurso.

Quando perguntada especificamente sobre se se apercebeu da saúde mental dos doadores, a sra. Notária respondeu “não tenho dúvidas que falavam bem”.

Como se dirá mais à frente, a propósito do facto i), entendemos estar efetivamente demonstrado que, na data da escritura, já tinha sido diagnosticada uma demência ao doador e este estava medicado para essa doença.

A demência, categoria de doenças onde se integra o Alzheimer, tem aptidão para prejudicar a dimensão cognitiva do indivíduo, interferindo com a memória e o pensamento.

Porém, mesmo quanto a este tipo de doenças cuja sintomatologia pode afetar a capacidade, não podemos afirmar que tal sucede assim que a doença é diagnosticada, desde logo, porque estas doenças têm um percurso evolutivo no sentido do agravamento, exibindo sintomas menos intensos na sua fase inicial e que se vão exacerbando com a passagem do tempo.

Tem sido produzida jurisprudência acerca deste tema, da qual se extrai precisamente que são os sintomas evidenciados pelo doente que revelam o impacto desta na vida do indivíduo.

Analisando a jurisprudência verificamos, por exemplo, que no caso abordado no Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 04.10.2017 (Pedro Damião e Cunha) (Processo n.º 1108/14.0TJVNF.G1), o ato sindicado foi praticado numa fase de exuberantes sintomas da doença, quando a doente estava já totalmente incapaz de cuidar de si própria: ficou impossibilitada de, por si só, vestir-se, alimentar-se e higienizar-se, tendo passado a usar fralda; deixou de reconhecer o dinheiro; deixou de ser capaz de contar e distinguir quantidades; acentuou-se a sua dificuldade em distinguir as pessoas; passou a evidenciar ecolalia, repetindo o que lhe diziam, sem fazer ideia do significado das expressões repetidas; passou a ter dificuldade em caminhar, passando grande parte do tempo sentada ou na cama.

E no caso tratado no Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 09.02.2023 (Paulo Dias da Cunha) (Processo 3328/19.2T8STS.P1, in http://www.dgsi.pt/), de igual modo, o ato sindicado foi praticado numa fase de exuberantes sintomas da doença, quando o doente se havia tornado mais confuso, mais em baixo, prostrado, ficava mais a dormir, já não se levantava sozinho da cama, não reconhecia os próprios familiares (filhos e netos), com dificuldades de locomoção; tinha dificuldades em acompanhar ou inserir-se numa conversa ou repetia várias vezes a mesma coisa; falava mais em alemão (língua mãe), e apresentava um discurso incoerente; misturava o presente com o passado e tinha alucinações; apresentando, entre o mais, como relata a Drª QQ que o observou em 5.04.2007, alterações de memória recente, apatia, lentificação, e falta de iniciativa, períodos de desorientação temporo-espacial, com dificuldades de cálculo, redução do nível de eficiência global e com compromisso da autonomia nas atividades de vida básica diária e as funções cerebrais mostram atrofia leucoencefalopatia aterosclerose; e como consta dos diários clínicos do Dr RR, na consulta de 18.09.2008 apresentava “responsabilidades piores”, expressão que corresponde a dificuldades graves de compreensão, sendo que o discernimento do doente poderia existir mas apenas para perguntas simples, como se queria ir à casa de banho e mesmo assim seria por intervalos pequenos e pela medicação e quantidade da medicação receitada por esse médico, já não existiam nessa data esses intervalos de lucidez e compreensão; tornando-se cada vez mais dependente de terceiros e a necessitar de cuidados e supervisão permanente, até mesmo para as atividades elementares do quotidiano como alimentação, higiene, vestuário, entre outras.

Na situação dos nossos autos consta do doc. junto com a cont. a fls. 101 a 102, correspondente à ficha de admissão do tio do R. no lar, a 05.09.2013, que o utente está “consciente e orientado”, como sublinha o Tribunal a quo.

Por outro lado, em 19.09.2013 apenas se extrai da documentação junta aos autos um sintoma de Alzheimer evidenciado pelo doador, a saber, os esquecimentos (doc. junto com a p.i., a fls. 42, e de novo junto com a cont., a fls. 104).

Todavia, a partir do segundo semestre de 2015 é ostensiva e séria a evolução sintomática, no sentido de um muito intenso agravamento da doença, o que sobressai do mesmo doc., pois após aquela anotação de 19.09.2013 não há qualquer outra referência a este respeito nesse ano, nem no ano de 2014, mas a 04.08.2015 são apontados “episódios de agressividade” e diz-se que “não dorme bem”; esta questão do sono volta ser mencionada em 18.08.2015, e a 01.09.2015 foi assinalado que “o sr. vem por estar muito desorientado e não ter reflexão para conter a urina.”

Estas últimas notas encontram-se alinhadas com aquelas que foram apostas com respeito a uma consulta de psiquiatria realizada em 17.10.2015: a cuidadora do lar que acompanha o tio do R., ainda que refira que ele, quando entrou para o lar, “já não estava muito bem”, descreveu nesta consulta o cenário vigente à data da consulta, relatando que o tio do R. “entra pra os outros quartos, faz xixi para todo lado, perdeu a noção do espaço, fases um bocado agressivo para os outros utentes (…) desde que a gente está ali na sala, já me fez a mesma pergunta umas 20 vezes”. (doc. 5 junto com a réplica, a fls. 141-v a 142).

Ora, a escritura foi realizada a 07.10.2013, portanto, menos de um mês depois daquele registo datado de 19.09.2013, o que permite concluir que a situação clínica na data da escritura corresponderia àquela que se verificava na data do referido registo.

O contraste acentuado entre o estado de saúde do tio do R. na data da entrada para o lar e o seu estado de saúde dois anos depois aponta, assim, no sentido de que a doença, na data da escritura, se encontrava numa fase inicial, menos sintomática.

Acresce que nessa data o doador já era devidamente medicado para essa doença, como se dirá mais à frente, sendo que essa medicação visa controlar a doença, pelo que um doente medicado beneficia, pelo menos, durante algum tempo, de uma atenuação dos sintomas e de uma progressão menos acentuada da doença.

Anota-se ainda que apesar do contacto com a sra. Notária não ter sido muito longo, a verdade é que do relato desta não resultou que qualquer palavra ou atitude de algum dos doadores lhe tenha levantado suspeitas de não se encontrarem bem psiquiatricamente.

Aliás, a sra. Notária recordava-se de uma pessoa em cadeira de rodas, uma operação, um membro amputado, diabetes, pelo que estes factos foram marcantes para si, e, assim, se eventualmente algum dos doadores tivesse afirmado algo desconexo, revelado agressividade, adotado um comportamento desajustado, certamente também se lembraria.

Entendemos, consequentemente, que a doença de que padecia o doador não determina a conclusão de que, na data da escritura, não estava lúcido e consciente.

No que tange à doadora, todas as patologias que constam da matéria de facto provada são de natureza física (facto 46), delas não decorrendo que contendam com a sua lucidez e consciência.

Questão diferente desta é a que se prende com a vontade de celebrar o ato, porquanto aqui há uma dupla dimensão: a das declarações prestadas perante o Notário, que estão abrangidas pela força probatória plena do documento, por serem alcançáveis pela perceção do documentador; e a vontade real do declarante, que já se encontra fora deste quadro, por consubstanciar um facto interno.

Ou seja, “a força probatória plena do documento autêntico não abrange a veracidade e/ou sinceridade das declarações prestadas perante a entidade documentadora”, enquadrando-se aqui as questões atinentes aos vícios da vontade (Luís Filipe Pires de Sousa, Direito Probatório Material Comentado, 2ª ed., Coimbra, 2021, pág. 145).

Relativamente à real vontade dos doadores, quando questionada a Senhora Notária sobre se “Não lhe disseram que queriam doar e que estavam a fazer esta escritura para que este bem passasse especificamente para este sobrinho”, a sua resposta foi negativa, o que aparentemente contradiz a sua primeira resposta - “as pessoas estavam no lar, este era o sobrinho que as ajudava a estar ali, e eles quiseram fazer essa doação”, bem como uma resposta posterior positiva à pergunta “O que apurou é que esta era a vontade das pessoas?”.

Contudo, como é do conhecimento geral, a dinâmica de celebração de uma escritura consiste na leitura em voz alta, pelo Notário, do teor integral do ato, seguido de explicação e da aposição das assinaturas, se nada for questionado ou objetado.

Isto é, não faz parte desta dinâmica que, a seguir à leitura efetuada pelo Notário, voltem a ser lidas integralmente as declarações exaradas na escritura, agora por cada uma das partes, as quais, deste modo, se limitam a apor a sua assinatura, após a leitura e explicação do ato, se, como se acabou de dizer, nada tiverem a questionar ou a objetar.

Esta dinâmica ancora-se na prévia preparação do ato, que corresponde ao padrão de normalidade destes procedimentos notariais, e que não envolve necessariamente a participação de ambas as partes, tudo dependendo do que for acordado a esse respeito.

Assim, a assinatura da escritura só é agendada depois desta preparação estar concluída.

Ora, resultou do depoimento da sra. Notária que no caso dos autos tudo se desenvolveu dentro desta dinâmica habitual, tendo a escritura sido antecipadamente preparada na íntegra, na sequência do contacto efetuado pelo R. (…), e não tendo a sra. Notária dado nota de qualquer questão ou objeção surgida no ato e que pudesse ter impedido a sua assinatura.

Tendo-lhe sido perguntado adicionalmente se se apercebeu de que os doadores estivessem sob coação do sobrinho, respondeu negativamente.

Por outro lado, quando confrontada em especial com a questão sobre se não se interrogou acerca da vontade dos doadores, uma vez que o objeto da doação incluía a sua habitação, respondeu a sra. Notária que o papel dos Notários é estritamente fazer o que as pessoas querem e não olhar para os atos notariais sob a sua própria perspetiva pessoal.

Sublinhe-se ainda que a sra. Notária não era pessoa próxima dos doadores ou do donatário, não possuindo qualquer interesse pessoal neste negócio, no qual interveio estritamente no exercício da sua atividade profissional.

No que concerne, por fim, à iniciativa da celebração da doação, o Tribunal a quo enquadrou esta situação no plano global da relação dos doadores com os RR. e da decisão daqueles de lhes darem todo o seu património, por serem as pessoas com quem mantiveram uma relação afetiva de longa data e que deles cuidaram.

No entanto, o que está especificamente em causa neste facto é, antes, saber quem promoveu a celebração do ato, resultando da prova evidenciada que foi o R. (…) quem de tudo tratou, sem intervenção dos doadores.

Consequentemente, deve manter-se o facto 37 no elenco dos factos provados, mas retirar-se para os factos não provados o segmento respeitante à iniciativa do ato, passando a constituir o facto não provado mm).

- Facto 38.: Pretendem os AA. que a redação do facto em apreço seja alterada, no sentido de ser reduzido à menção da falta de aposição da rubrica da doadora nas páginas da escritura, extirpando-o da explicação dessa circunstância.

Ora, ouvido na íntegra o depoimento da sra. Notária verifica-se que esta não justificou a falta de rubrica das páginas da escritura pela doadora e, pelo contrário, assumiu que preparou integralmente a escritura antes de se deslocar à casa do R., onde se encontravam os doadores, a qual levou impressa em folhas soltas.

Por outro lado, compulsada a escritura, constata-se que da mesma consta carimbo preenchido manualmente com menção ao livro n.º 11 e às fls. 23 a 25 (doc. 33 junto com a p.i., a fls. 43-v a 46-v).

No entanto, o facto da escritura ser lavrada em folhas soltas não implica que deva a mesma permanecer nesse estado, porquanto nos termos dos artigos 20.º, n.º 1, 21.º, n.º 2 e 22.º, n.º 5, do Código do Notariado estas folhas soltas devem ser integradas em livro, do qual conste o seu número, o número de ordem de cada folha e a rubrica do Notário, apostos de forma manuscrita.

Ou seja, a referência na escritura a um livro e respetivas folhas não permite concluir que a escritura tenha sido nele redigida, pois mesmo quando é elaborada em folhas soltas, a escritura é necessariamente inserida num livro.

Assim, deve ser eliminada a referência à redação da escritura no livro, bem como a associação desse facto à falta de rubrica das suas folhas, pelo que deve ser alterada a redação do facto 38 nos seguintes termos:

A escritura consta do livro de escrituras diversas número onze, de folhas vinte e três a vinte e cinco do Cartório de Portalegre, a cargo da Notária …”.

- Facto 43.: Pretendem os AA. que este facto deve ser julgado não provado, para o que se alicerçam nos depoimentos das testemunhas (…) e (…).

O Tribunal a quo explanou de forma muito desenvolvida esta questão da relação existente entre os doadores e os RR., efetuando a análise crítica da prova produzida em audiência, onde alude à falta de credibilidade da testemunha (…), atento o seu comprometimento com a posição dos AA., razões estas que os AA. não abalaram nas suas alegações.

Tendo ouvido integralmente o depoimento da testemunha (…), sublinhamos que na parte final do mesmo, quando lhe é perguntado se nunca viu o sobrinho (…) levar os tios às consultas ao Hospital e ao Centro de Saúde, a testemunha respondeu negativamente, o mesmo tendo feito quando lhe foi perguntado se o falecido não falava nisso.

Também declarou a testemunha desconhecer o que se passava no lar, mas soube dizer que uma vez, após a institucionalização, o irmão do Sr. (…) foi visitá-lo a casa deste, numa ocasião em que o Sr. (…) saiu do lar.

Nada disse a testemunha sobre o facto de ser o sobrinho (…) quem geriu o património do Sr. (…), nomeadamente, nos muitos anos em que este esteve emigrado em Inglaterra, mas soube dizer que uma vez o Sr. (…) se queixou que o sobrinho (…) não lhe dava dinheiro e que, nessa ocasião, até o apelidou com um palavrão.

Ora, a testemunha (…) indicou que era vizinha do Sr. (…), vivia do outro lado da rua, e até convivia com ele no restaurante onde aquele ia comer, de modo que conversavam.

Ou seja, como sublinhou o Tribunal a quo, este depoimento soa parcial, revelando que a testemunha pretendeu dizer apenas aquilo que era favorável às pretensões de uma das partes.

Assim, deve o mesmo ser apreciado de forma prudente.

No que respeita à testemunha (…), a mesma não é referida pelo Tribunal a quo, mas quando se ouve o seu depoimento compreende-se que a testemunha não revela conhecimento da situação em apreço: não era amigo dos doadores nem dos RR.; uma única vez ouviu dizer ao irmão do de cujus que este tinha ido a casa do de cujus, sendo que só nessa ocasião se apercebeu que aquelas duas pessoas eram irmãos e respondeu adicionalmente “não sei se a proximidade era muita” entre os irmãos; o doador passava esporadicamente pelo seu estabelecimento, onde apenas tomava um café, e uma vez ouviu-o dizer “isto agora está um bocado curto”, mas não foi capaz de dar qualquer pormenor sobre a frase que relatou.

Quanto aos documentos indicados pelos AA., de igual modo, nada se extrai dos mesmos que infirme o juízo probatório efetuado pelo Tribunal a quo (o doc. 20 junto com a p.i., a fls. 35-v, é um extrato da conta da Caixa Geral de Depósitos; o doc. 26 junto com a p.i., a fls. 39, é um extrato da conta do Montepio; os docs. 33 a 41 correspondem à escritura de doação, a uma caderneta predial e a certidões do registo predial).

Deve, consequentemente, manter-se o facto 43 no elenco dos factos provados.

- Facto 45.: Pretendem os AA. que este facto seja reduzido, retirando-lhe a alusão à confiança recíproca, para o que invocam os factos provados 10, 17 e 42, bem como o doc. 22 junto com a p.i..

Sustentam os AA. que se enquanto os tios estiveram em Inglaterra o R. foi co-titular das suas contas bancárias e, após regressarem a Portugal, o R. passou apenas a deter uma autorização de movimentação das contas - o que resulta da conjugação do facto provado 42 com o doc. 22 junto com a p.i. (fls. 36-v a 37), que corresponde à ficha de assinaturas do Montepio -, então, daí extrai-se que os tios não tinham, afinal, confiança no R., pois se assim fosse teriam mantido o R. co-titular das contas.

Todavia, o R. foi especificamente confrontado com a questão de saber porque é que na conta da Caixa Geral de Depósitos, que havia transitado do extinto Banco Nacional Ultramarino, o R. havia passado de co-titular a mero “movimentador” da conta, tendo respondido que tal teria acontecido por uma decisão interna do Banco, mas que não tinha a certeza deste facto.

Nenhuma outra prova foi produzida em audiência a este respeito, designadamente, tanto a irmã, quanto o cunhado do R. declararam nada saber de contas bancárias, e de nenhum doc. se alcança também semelhante informação.

Assim, a ilação que os AA. extraem dos mencionados facto provado 42 e doc. 22 não encontra qualquer arrimo na prova produzida.

Deve, consequentemente, permanecer inalterado o facto 45.

- Facto 49.: Pretendem os AA. que seja retirada deste facto a menção “sempre”, aqui reportada às visitas, acompanhamento e cuidados prestados pelos RR. aos doadores, o que sustentam no depoimento da testemunha (…), bem como nos docs. juntos a fls. 71 a 78 e no doc. 5 junto com a réplica, e ainda nos factos provados sob 44, 46, 47 e 48.

Ora, no que tange ao depoimento da testemunha (…), nada há a acrescentar ao que foi já referido.

Relativamente aos docs. mencionados, correspondem os primeiros a fotografias relativas aos convívios entre os doadores e os RR., tendo sido por estes juntas com a cont..

O facto de inexistirem fotografias posteriores ao falecimento da tia não pode implicar que se julgue não provado o apoio dos RR. a partir dessa data, atentos os depoimentos mencionados pelo Tribunal a quo que ressaltam o acompanhamento que os RR. sempre fizeram aos tios enquanto estes estiveram no lar.

O segundo doc. é uma ficha atinente a uma consulta médica à qual o de cujus se deslocou na companhia de uma “cuidadora do lar”.

No que tange, em particular, a este segundo doc., extraem os AA. a conclusão da falta de apoio constante por parte dos RR. em virtude da deslocação àquela consulta médica não ter sido acompanhada pelos mesmos.

Atendendo a que quando teve lugar esta consulta o de cujus se encontrava institucionalizado no lar, entendemos que a circunstância de beneficiar de acompanhamento pela instituição na parte relativa aos cuidados de saúde não pode ser vista como uma falta de apoio pelos RR., na medida em que se trata de um procedimento comum nestas circunstâncias, nas quais é a instituição a responsável por assegurar as necessidades básicas do utente.

Dos factos provados indicados pelos AA. não se extrai diferente conclusão.

Deve, consequentemente, manter-se inalterado o facto 49.

- Facto 52.: Pretendem os AA. a redução deste facto à afirmação de que o R. tinha autorização para movimentar as contas dos tios.

Sustentam a sua impugnação na confissão do R. ao artigo 14º do p.i., no doc. 22 junto com a p.i., nos factos provados 10, 15, 17, 18, 21 e 42, e no depoimento da testemunha (…).

Ora, o R. declarou que estava autorizado a movimentar a conta dos tios, autorização esta que se destinava a que providenciasse pela satisfação das necessidades deles, mas não deixou de repetir que os tios lhe disseram várias vezes que o seu património era para ele, e que podia usar a conta também no seu próprio interesse, o que o R. assume que fez, usando vários montantes para suportar despesas suas ou simplesmente para os colocar em conta bancária exclusivamente sua.

A dado passo do seu depoimento foi-lhe perguntado se o seu tio ficaria em dívida para consigo se lhe pedisse € 20.000,00 para acudir a uma despesa, após a retirada que o R. fez de todo o saldo existente na conta da Caixa Geral de Depósitos - € 50.000.00 -, ao que o R. respondeu negativamente.

Porém, a propósito do cheque de € 6.100,00, o R. respondeu que se destinou a pagar uma despesa de uma obra efetuada na sua casa, e que necessitou de usar o dinheiro dos tios porque não tinha dinheiro seu para suportar essa despesa.

Ora, se o dinheiro dos tios deveria servir para providenciar a satisfação das suas necessidades, então, não faz sentido que o R. o usasse no seu próprio interesse, sobretudo quando essa utilização não permitiria colmatar de imediato a falta dessa quantia na vida dos tios, isto é, se no dia seguinte à utilização do dinheiro o tio tivesse uma necessidade urgente, não existia saldo na sua conta para a satisfazer, nem o R. o tinha para acudir ao tio.

É certo que quer a irmã do R., quer o seu cunhado reiteraram ter ouvido aos tios que o património deles era para o R., e o cunhado do R. explicou que tal aconteceu nas ocasiões em que estiveram juntos, quando a testemunha e a mulher iam a Portalegre visitar a família, acrescentando que os tios não queriam que o seu património ficasse desfeito, pelo que fizeram questão de dar a conhecer a sua vontade de ser o R. a ficar com os seus bens.

Sublinhe-se que a irmã do R. era, além de sobrinha, também afilhada de batismo e de casamento dos tios, pelo que poderia eventualmente admitir-se que tivesse expectativas a ser por eles beneficiada. Contudo, a explicação que esta testemunha deu à sua preterição relativamente ao recebimento do património dos tios foi clara, isto é, a testemunha residiu a maior parte da sua vida em Odivelas, pelo que não prestou aos seus tios o apoio que o irmão lhes deu, não só depois de regressarem a Portugal, mas inclusivamente enquanto estiveram em Inglaterra, pois era quem administrava as suas contas bancárias e a sua casa.

A versão do R. mostra-se, deste modo, corroborada quer pela irmã, quer pelo cunhado, na parte relativa ao destino do património dos tios, mas já não no que respeita à possibilidade de utilização imediata do dinheiro das contas do tio como se fosse do R..

Aliás, o R. falou no tempo futuro quanto ao destino do património dos tios, especificando que depreendeu do que lhe foi dito que “não era para imediato mas que um dia poderia vir a acontecer”, e o mesmo fizeram a sua irmã e cunhado, aludindo a que “um dia mais tarde” o património dos tios ficaria para o R..

O tom adotado nestas frases aproxima-se mais da indicação do R. como herdeiro dos tios, do que como seu donatário, verificando-se, aliás, que é essa a expressão usada no artigo 22º da contestação, precisamente em seguida ao artigo da contestação de onde foi decalcada a primeira parte deste facto 52, e que para maior clareza aqui transcrevemos na íntegra, juntamente com o artigo 23º da contestação:

“21:- Tios e sobrinhos, ao longo de décadas, tiveram sempre uma relação de confiança e carinho; o R. tinha autorização dos tios para movimentar os seus dinheiros como quisesse e entendesse, já que todo o dinheiro uma vez satisfeitas as necessidades deles, era dos sobrinhos e para os sobrinhos (os Réus) e referiram-no por diversas vezes aos Réus e a várias pessoas mais chegadas.

22:- Como não tinham filhos, os Réus, seriam os seus herdeiros; por isso, a 7 de Outubro de 2013 outorgaram a escritura de doação de todos os imóveis de que eram proprietários, sendo que o dinheiro que tinham já era gerido pelo R., era dele e da mulher, uma vez satisfeitas as necessidades dos tios. Foi a vontade deles, expressa por palavras e gestos ao longo de décadas.

“23:- Assim é que, após o internamento da tia dos Réus em Vila Viçosa e após o seu falecimento, foi o R. que emitiu e assinou cheques que se destinavam a suportar despesas correntes dos tios, nomeadamente, lar, medicamentos, despesas correntes – docs. nºs 21, 22, 23, 24 e 25, conforme estava entre tios e sobrinhos estabelecido.”

Desta sequência decorre, então, que os RR. entendiam que as necessidades dos tios ficariam satisfeitas após a morte de ambos e o pagamento de todas as suas despesas, pelo que seria, assim, neste momento que o dinheiro dos tios ficaria para os RR..

É esta, aliás, a única interpretação razoável de semelhante expressão, já que enquanto estivessem no lar os tios necessitariam de pagar as respetivas despesas, isto é, as contas bancárias só deixariam de ser úteis aos tios quando estes se finassem.

A versão do R. de que podia de imediato usar a conta como se fosse sua decorre, assim, apenas do seu depoimento, e nem sequer se pode afirmar que corresponda à versão plasmada na contestação, que consente leitura diferente.

Ora, retornando à questão acima enunciada sobre o valor das declarações não confessórias prestadas em sede de depoimento de parte e enfrentando o caso concreto, verificamos que o depoimento de parte do R. enferma, nesta parte, de contradições, que não permitem, consequentemente, julgar provado que os tios autorizaram o R. a usar as contas bancárias como se fossem suas.

Deve, deste modo, ser alterado o facto 52, de molde a retirar do mesmo a menção “como quisesse e entendesse”, bem como a menção “tendo sido neste contexto que efectuou as movimentações bancárias supra e infra indicadas”, as quais passam a constituir o facto não provado nn).

- Facto 59.: Pretendem os AA. que seja consignado neste facto, em substituição da afirmação de que o irmão do de cujus não reclamou a herança, que este foi informado de que não existia herança para partilhar.

Invocam, para tanto, os docs. 16 e 17 juntos com a p.i., bem como as declarações dos AA..

Contudo, foi julgado provado sob 7, 8 e 9 o conjunto de diligências desenvolvidas pelos herdeiros do irmão do de cujus com vista ao exercício dos direitos relativos à herança deste.

Por outro lado, nem os RR., nem o Tribunal a quo extraíram quaisquer consequências do facto do irmão do de cujus não ter desenvolvido aquelas diligências – habilitação de herdeiros e participação à AT.

Assim, a alteração proposta revela-se inócua para a decisão da causa.

Ora, as modificações da matéria de facto em sede de recurso devem cingir-se àquilo que for necessário para se obter a alteração da decisão final produzida nos autos, por ser essa a finalidade dos recursos (neste sentido, entre outros, o Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 02.11.2017 (Maria João Matos), Processo n.º 501/12.8TBCBC.G1, e o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 22.06.2022 (Mário Belo Morgado), Processo n.º 4280/17.4T8MTS.P3.S1, ambos in http://www.dgsi.pt/).

Em conclusão, deve permanecer inalterado o facto 59.

- Facto 61.: Pretendem os AA. que seja retirada deste facto a menção de que o cheque foi emitido a favor do R. com autorização do tio e que era o que o tio queria.

Da apreciação da impugnação deduzida contra o facto 52. decorre que considerámos que a intenção dos tios, no que concerne às contas bancárias, era a de que ficasse para o R. (…) o saldo remanescente, o que só poderia ser apurado quando os tios se finassem.

Daqui resulta que não julgamos que a prova confirme a alegada autorização do tio para que o sobrinho (…) transferisse para contas pessoais valores nelas existentes enquanto os tios foram vivos.

Consequentemente, deve a redação do facto 61. ser alterada nos termos pretendidos pelos AA..

- Facto d): Pretendem os AA. que deve ser julgado provado que o R. (…), quando levantou a quantia de € 2.980,74 da conta do tio e transferiu o veículo para seu nome, estava a esvaziar a herança e a afastar o irmão do de cujus e os seus sobrinhos da sucessão.

Ora, no que tange à primeira parte deste facto, o levantamento da quantia enunciada e a transferência do veículo para a titularidade do R., ambos concretizados após a morte do tio, traduziram, efetivamente, o esvaziamento da herança, sob a perspetiva de que na data do óbito do tio estes bens encontravam-se em seu nome e não havia outros bens em nome dos tios de que se tenha conhecimento.

No mais, porém, entendemos que se trata de uma mera conclusão, isto é, se a herança ficou esvaziada, então, todos os que tivessem pretensões de receber património por possuírem a qualidade de herdeiros ficaram prejudicados.

Deste modo, a primeira parte do facto d) deve passar para o elenco dos factos provados, onde constará como facto 64, e, no mais, por se tratar de uma conclusão, deve ser eliminada a parte restante do facto d).

- Facto e): Pretendem os AA. que se julgue provado que o valor de € 7.000,00 que o R. (…) transferiu para uma conta sua em 07.06.2016 não lhe pertencia e que não o declarou à AT nem informou desse facto qualquer interessado.

Quanto a este valor importa ponderar que foi julgado não provado, sob aa), que o mesmo se tenha destinado a satisfazer despesas do tio do R., não tendo este facto sido objeto de impugnação.

Assim, tendo sido alterado o facto 52, há que concluir que a movimentação desta quantia em vida do tio do R. não correspondia a qualquer autorização deste, logo, consubstanciou a movimentação de uma quantia que não pertencia ao R..

Por outro lado, é pacífico que não foram estas quantias declaradas à AT, nem informada a família do tio.

Deve, consequentemente, este facto transitar para o elenco dos factos provados, onde passará a constar como facto 65.

- Facto f): Pretendem os AA. que se julgue provado que o R. se aproveitou da sua qualidade de mediador da (…) para movimentar a quantia de € 50.000,00.

Sustentam os AA. que o cheque junto como doc. 23 com a p.i. (fls. 37-v) demonstra o referido facto, porquanto se verifica que o mesmo foi emitido “à ordem” da (…) e é um cheque cruzado, tendo sido aposto um carimbo no seu verso com os dizeres “valor recebido para crédito da conta do beneficiário”.

Do aludido doc. decorre, efetivamente, que o cheque em causa foi depositado na conta da (…), pelo que surge como consequência natural deste facto que só poderia movimentar semelhante quantia quem fosse autorizado para o efeito.

É certo que o Tribunal a quo não julgou provada a dinâmica integral destes € 50.000,00, descrita nos factos cc) a hh), os quais não foram impugnados no recurso.

Contudo, essa dinâmica assume independência face à mera constatação de que o valor em causa foi depositado na conta da (…) e veio a ser posteriormente depositado em conta do R..

Assim, deve o facto f) ser retirado para o elenco dos factos provados, onde passará a constar como facto 66.

- Facto g): Pretendem os AA. que se julgue provado que o R. (…) sabia que a quantia de € 50.000,00 que levantou da conta do tio não lhe pertencia, nem a declarou à AT ou dela informou o irmão do de cujus.

Assinale-se que não tendo sido julgada provada a matéria descrita sob cc) e dd), isto é, que estivessem aqui em causa aplicações financeiras das quais o R. (…) era o beneficiário, nem se mostrando provado que esta quantia se tenha destinado a satisfazer despesas do tio do R., impõe-se concluir como acima fizemos com respeito ao facto e), ou seja, a movimentação desta quantia em vida do tio do R. não correspondia a qualquer autorização deste, logo, consubstanciou a movimentação de uma quantia que não pertencia ao R..

Por outro lado, é pacífico que não foi esta quantia declarada à AT, nem informada a família do tio.

Deve, consequentemente, este facto transitar para o elenco dos factos provados, onde passará a constar como facto 67.

Deve, adicionalmente, para evitar contradições, eliminar-se o segmento inicial do facto 18, que passa a constar como facto não provado kk).

- Facto h): Pretendem os AA. que se julgue provado que o R. (…) sabia que a quantia de € 20.894,12 que transferiu para uma conta sua em 24.05.2016, não lhe pertencia, e que não podia movimentar valores a seu favor sem qualquer justificação.

De novo, o raciocínio a efetuar com respeito a esta quantia é igual ao que acima fizemos para os factos e) e g), ou seja, a movimentação desta quantia em vida do tio do R. não correspondia a qualquer autorização deste, logo, consubstanciou a movimentação de uma quantia que não pertencia ao R..

Por outro lado, a afirmação contida na segunda parte deste facto corresponde à conclusão que acima alcançámos sobre os contornos da autorização concedida ao R. (…).

Logo, deve o facto h) transitar para o elenco dos factos provados, onde passará a constar como facto 68.

Adicionalmente, sob pena de contradição, deve ser eliminado do facto 21 o segmento “no uso desses poderes”, passando a constituir o facto não provado ll).

- Facto i): Pretendem os AA. que este facto seja julgado provado, isto é, que na data em que foi celebrada a escritura o tio do R. já apresentava sintomas de Alzheimer e era medicado para o esquecimento.

Invocam, para tanto, os documentos juntos aos autos que abordam o tema da saúde do tio do R..

Recuando ao internamento do tio do R. no lar, compulsamos a “ficha clínica individual”, junta com a cont. a fls. 101 a 102, na qual se colocou como “data de admissão” o dia 05.09.2013, e onde se alude, logo na primeira página, à “terapêutica prolongada”, sendo aí indicado “Donepezilo”.

Se avançarmos para os “dados da consulta” da especialidade de psiquiatria, ocorrida em 17.10.2015, vemos que a médica anotou tratar-se da consulta “primeira”, mas o doente, o tio do R., referiu “já vim cá” (doc. 5 junto com a réplica, a fls. 111-v a 112).

Nessa consulta prescreve a médica “mantido Donepezilo já em uso”, o que renova nas consultas de 08.01.2016 e 01.04.2016 (doc. 5 junto com a réplica, a fls. 111-v a 112).

Finalmente, no doc. 6 junto com a p.i., a fls. 142-v, que respeita ao último internamento hospitalar do tio do R. – de 10 de junho a 10 de julho de 2016, sendo esta última a data do seu óbito -, consta, em sede de “antecedentes”, a menção a “demência”, e com respeito à medicação habitual, entre outros, “Donepezilo”.

Podemos, assim, concluir que quando entrou para o lar, o tio do R. já apresentava sintomas de demência, só assim se justificando que estivesse a tomar medicação dirigida a essa patologia, que lhe foi, efetivamente, diagnosticada.

Este facto é corroborado pelo doc. 31 junto com a p.i., a fls. 42, e de novo junto com a cont., a fls. 104 – um doc., portanto, aceite e considerado relevante por ambas as partes -, onde consta um registo, datado de 19.09.2013, com o seguinte teor: “o utente está clinicamente bem, tem boa mobilidade embora já apresente alguns sintomas de Alzheimer, toma medicação que auxilia a patologia e toma também um medicamento para auxiliar o esquecimento, vai fazer análises para controlar”.

Pelo seu aspeto gráfico, estrutura e conteúdo, este doc. assemelha-se aos docs. juntos com a cont. a fls. 102-v, “diário clínico”, fls. 104-v a 105, “folha de consulta/registos de enfermagem”, e a fls. 105-v a 106-v, “folha de consulta”, diferindo destes apenas num aspeto, a saber, não possui o logotipo do lar impresso no canto superior esquerdo.

No entanto, da conjugação de tal doc. com os demais apontados extrai-se a conclusão de que se trata de registos elaborados no lar, com vista ao acompanhamento do estado de saúde do utente.

Uma última nota para salientar que apesar da única medicação que o tio do R. tomava aquando da entrada para o lar fosse o Donepezilo, cujas exatas características farmacológicas se desconhecem, do referido registo exarado a fls. 42/104 decorre que na data desse registo o tio do R. também tomava medicação para a memória, sendo certo que nas anotações das consultas de psiquiatria surgem outros nomes de medicamentos prescritos, os quais constam, de igual modo, do doc. 6 junto com a p.i. – a Memantina, a Quetiapina e o Lexotan.

Deve, consequentemente, ser transferido o facto i) para o elenco dos factos provados, onde passará a constituir o facto 69.

- Facto k): Pretendem os AA. que se julgue provado que a escritura foi realizada sem o conhecimento de ninguém.

Da prova produzida nos autos não decorre, efetivamente, que tenha sido declarado por qualquer pessoa que soubesse da realização deste ato, pelo que deve o facto k) passar para o elenco dos factos provados, onde figurará como facto 70.

- Facto m): Pretendem os AA. que seja julgado provado que não consta da escritura que os doadores tenham exibido os seus bilhetes de identidade; que foi verificada a sua identidade por esses documentos de identificação; e que foi explicado o significado da doação aos tios do R., nomeadamente, que por via dela ficavam sem a propriedade e o uso dos dois imóveis dela objeto, incluindo a sua própria habitação; e que os outorgantes declararam ser essa a sua vontade.

Ora, compulsada a escritura verifica-se que da mesma consta, junto da identificação de cada um dos tios, a indicação do respetivo bilhete de identidade, sendo mencionado o número, a data de emissão e a entidade emitente desses documentos de identificação.

Deste modo, resulta da escritura que os doadores exibiram os seus bilhetes de identidade e que a sua identidade foi verificada por esses documentos.

Quanto à menção de que o ato foi explicado, consta a mesma da escritura, ainda que nela não tenha sido exarado o teor dessa explicação, mas essa circunstância depreende-se do facto 36, não se revelando, por isso, necessário qualquer aditamento a este facto.

Por último, no que respeita à declaração de vontade dos tios de doarem os imóveis ao seu sobrinho (…), da escritura consta expressamente que os vendedores declararam doar e os donatários declararam aceitar a doação, pelo que a força probatória plena do documento, nesta parte, só pode ser contrariada por prova que demonstre o contrário e não seja prova testemunhal ou por presunções judiciais, como se disse acima.

Não pode, assim, o depoimento da sra. Notária ser utilizado para este efeito, pelo que cumpre concluir que este facto não foi contrariado.

Consequentemente, deve o facto m) permanecer não provado. […]

C) Fundamentação de direito

1. Mostrando-se consolidada a matéria de facto, importa agora apreciar o recurso relativo à matéria de direito.

Procedendo a um breve enquadramento da ação, estamos no âmbito de uma petição de herança (artigo 2075.º do Código Civil) e temos do lado ativo e do lado passivo, respetivamente, sobrinhos do falecido (…), que são filhos do seu meio-irmão (…), e um sobrinho da mulher de (…).

A presente disputa concerne ao direito à herança de (…), arrogando-se ambas as partes titulares exclusivos desse direito, sendo os AA. com fundamento na circunstância do seu tio haver falecido no estado de viúvo, sem descendentes, nem ascendentes, deixando como seu sucessor o referido meio-irmão (…), entretanto, também ele falecido, do qual os AA. são os únicos e universais herdeiros; e invocando os RR., como título da aquisição do património de (…), as doações que este alegadamente lhes fez em vida e a usucapião.

Estão em discussão dois imóveis, objeto de uma escritura de compra e venda; um veículo automóvel, cuja aquisição veio a ser inscrita no registo automóvel após a morte de (…), com fundamento em compra e venda, mas que os RR. alegam ter-lhes sido doado ainda em vida de (…); e duas contas bancárias, uma domiciliada na Caixa Geral de Depósitos e outra domiciliada no Montepio Geral, com respeito às quais estão identificados alguns movimentos a débito em benefício dos RR., o último dos quais já após o falecimento de (…).

A final veio o Tribunal a quo a decidir julgar parcialmente procedente a ação, declarando que os AA. são os únicos herdeiros do falecido (…), bem como a nulidade parcial do registo de propriedade do automóvel, ordenando a respetiva alteração quanto à causa da transmissão, e absolvendo, no mais, os RR. do pedido; e a julgar parcialmente procedente a reconvenção, declarando que os valores € 2.980,74, € 7.000,00, € 50.000,00 e € 20.984,12, bem como o veículo, pertencem aos RR..

Não tendo sido sindicada em recurso a decisão na parte atinente à qualidade sucessória dos AA., nada há a apreciar a esse respeito.

2. Veículo Automóvel

a) Alegam os AA. que o veículo automóvel integra a herança.

Sustentam, para tanto, que apesar de ter sido inscrita no registo automóvel a sua aquisição por compra e venda, a favor do R., tal contrato é nulo.

Os AA. peticionam, assim, a declaração de nulidade desta venda, arguindo a sua falsidade com fundamento em que inexistiu qualquer acordo com esse conteúdo e que não foi paga qualquer quantia a título de preço, bem como invocando a falsidade do próprio documento que titula o registo, por não ser do de cujus a assinatura nele aposta e que lhe é imputada.

Os RR. defendem-se sob a alegação de que o veículo lhes foi doado em vida do tio.

Na sentença entendeu-se estar provada a alegada doação, pelo que foi julgada parcialmente procedente a ação e procedente a reconvenção, tendo sido julgado parcialmente nulo o registo de aquisição, no segmento atinente à respetiva causa, cuja alteração foi ordenada de modo a que daí passasse a consta a doação.

b) Porém, a alteração da decisão da matéria de facto que determinou a passagem do facto 12. para o elenco dos factos não provados, passando a constituir o facto jj), implica que não esteja demonstrado que o veículo foi doado ao R. (…).

Daqui decorre que deve ser julgada improcedente a reconvenção, quanto a este fundamento, sendo que quanto ao fundamento usucapião havia sido tal pedido julgado improcedente na sentença, o que não foi impugnado em sede de recurso.

c) No mais, não foi julgado provado que a assinatura com o nome do de cujus aposta no formulário que originou a inscrição de aquisição tenha sido feita pelo próprio (facto não provado x)).

Este facto, por si só, é suficiente para julgar nulo o registo e ordenar o respetivo cancelamento, uma vez que do mesmo decorre não estar demonstrado que o vendedor tenha assinado o formulário determinante do registo de aquisição.

De tal formulário consta, efetivamente, o seguinte enunciado, sob o título “Declarações”:

O contraente indicado como sujeito passivo (vendedor) declara que em 04-07-2016 efectivamente celebrou nessa qualidade o contrato nele especificado e por isso confirma-o sem quaisquer restrições (preencher caso se trate de contrato verbal de compra e venda com ou sem reserva de propriedade)”.

Daqui decorre que o requerimento de registo contém uma declaração do vendedor, na qual este reconhece a existência do contrato que titula a transmissão que se pretende ver inscrita e aponta como data da sua celebração o dia 04.07.2016.

Ou seja, a assinatura do vendedor é imprescindível para assegurar a perfeição da declaração contida no formulário.

Mas a este aspecto acresce um outro, que resulta diretamente da matéria de facto provada e sempre conduziria a não julgar válido o aludido requerimento, o qual se prende com a data da sua apresentação.

Com efeito, consignou-se no facto 14 que o registo de aquisição do veículo a favor do R. foi efetuado a 10.08.2016, isto é, foi esta a data na qual o requerimento foi apresentado na Conservatória do Registo Automóvel (artigo 77.º, n.º 1, do Código do Registo Predial).

Ora, nessa data, o tio dos RR. já era falecido, porquanto o seu óbito data de 10.07.2016.

Nestas circunstâncias, só os herdeiros de (…) poderiam, invocando essa qualidade, subscrever semelhante requerimento.

Sublinhe-se ainda que não releva, para este efeito, saber se o formulário foi assinado ou preenchido em data anterior à sua apresentação, porquanto, por um lado, o formulário não tem outro efeito senão o de requerer a realização de um registo, isto é, não constitui o título do contrato indicado como causa da transmissão, e, por outro lado, é na data dessa apresentação que devem verificar-se todos os requisitos formais atinentes ao requerimento, onde se inclui a personalidade jurídica dos subscritores.

Em conclusão, não pode afirmar-se estar demonstrado que foi celebrado um contrato de compra e venda do veículo, na medida em que relativamente a esse alegado contrato existe apenas um requerimento apresentado no registo relativamente ao qual não está provado que tenha sido assinado pelo tio dos RR., e, de todo o modo, na data da apresentação desse requerimento, o tio dos RR. já era falecido.

Consequentemente, o bem em causa integra a herança, devendo ser cancelada a inscrição de aquisição efetuada a favor do R..

3. Doação de imóveis – Nulidade formal/falsidade

a) Com respeito à escritura de doação dos dois imóveis propriedade dos tios dos RR., invocaram os AA. na petição inicial a sua nulidade por vício de forma, com fundamento na falta de assinatura da mesma pelo tio, e por violação dos bons costumes.

Alegam ainda os AA. no recurso que, na audiência de julgamento, em sede de alegações finais, suscitaram a questão da falsidade da escritura, à qual os RR., responderam, mas que o Tribunal a quo não se pronunciou sobre a mesma na sentença.

Requerem, assim, que este Tribunal da Relação aprecie a questão, invocando que se trata de uma questão de conhecimento oficioso, atento o disposto nos artigos 446.º, n.º 3, in fine, do Código de Processo Civil e 372.º, n.º 2, do Código Civil.

b) Os AA. apontaram, no plano dos alegados vícios formais da escritura, para o artigo 70.º do Código do Notariado, concretamente, para a causa de nulidade consubstanciada na falta de “assinatura de qualquer dos outorgantes que saiba e possa assinar”, prevista na alínea e) do n.º 1 do preceito indicado, que implicaria o cumprimento do disposto no n.º 2 do mesmo preceito, relativo ao suprimento dessa falta mediante declaração do outorgante que não havia assinado.

Todavia, como resulta evidente do teor da norma citada, aborda-se aqui a situação em que o outorgante sabe e pode assinar, a qual não corresponde ao caso dos autos, atento o teor da matéria de facto provada.

Sustentam, no entanto, os AA. que não se mostra identificada na escritura a autoria da impressão digital nela aposta, nem existe qualquer declaração do de cujus anexa à escritura.

Importa aqui chamar à colação as seguintes normas do Código do Notariado:

- artigo 46.º, atinente às “formalidades comuns” dos instrumentos notariais, onde se estabelece que:

“1 - O instrumento notarial deve conter: (…)

n) As assinaturas, em seguida ao contexto, dos outorgantes que possam e saibam assinar, bem como de todos os outros intervenientes, e a assinatura do funcionário, que será a última do instrumento.”

- artigo 51.º, com a epígrafe “impressões digitais”, no qual se prescreve que:

“1 - Os outorgantes que não saibam ou não possam assinar devem apor, à margem do instrumento, segundo a ordem por que nele foram mencionados, a impressão digital do indicador da mão direita.

2 - Os outorgantes que não puderem apor a impressão do indicador da mão direita, por motivo de doença ou de defeito físico, devem apor a do dedo que o notário determinar, fazendo-se menção do dedo a que corresponde junto à impressão digital.

3 - Quando algum outorgante não puder apor nenhuma impressão digital, deve referir-se no instrumento a existência e a causa da impossibilidade.

4 - A aposição da impressão digital a que se referem os números anteriores pode ser substituída pela intervenção de duas testemunhas instrumentárias, excepto nos testamentos públicos, instrumentos de aprovação ou de abertura de testamentos cerrados e internacionais e nas escrituras de revogação de testamentos.”

Da leitura conjugada destas normas depreende-se que se os outorgantes souberem e puderem assinar, deverão as suas assinaturas constar no final da escritura, mas se os outorgantes não souberem ou não puderem assinar, fica a constar, à margem do instrumento notarial, a impressão digital do indicador da mão direita.

Ou seja, constando a menção expressa, na escritura, de que o de cujus não podia assinar, nada tendo sido dito a esse respeito quanto aos demais outorgantes (facto 36); mostrando-se a escritura assinada pela doadora (facto 35); e tendo sido aposta, à margem do instrumento notarial, uma impressão digital (facto 36), conclui-se que esta pertence ao indicador da mão direita do de cujus.

Apenas seria necessário identificar o dedo impresso se este não correspondesse ao indicador da mão direita, por existir impossibilidade de recolha dessa impressão digital, conforme previsto no n.º 2 do artigo 51.º acima transcrito.

Logo, não padece a escritura do vício de forma que lhe é assacado pelos AA..

c) Quanto à questão da falsidade da escritura, alicerçam os AA. esse vício na falsidade intelectual da mesma, fundada nas circunstâncias da declaração de que o doador não podia assinar ter sido feita antecipadamente pelo R. e de no ato da escritura poder ter sido feita pela doadora e não pelo doador.

As normas indicadas pelos AA. têm o seguinte teor:

- artigo 446.º do Código de Processo Civil (“Ilisão da autenticidade ou da força probatória de documento”)

“1 - No prazo estabelecido no artigo 444.º, devem também ser arguidas a falta de autenticidade de documento presumido por lei como autêntico, a falsidade do documento, a subscrição de documento particular por pessoa que não sabia ou não podia ler sem a intervenção notarial a que se refere o artigo 373.º do Código Civil, a subtração de documento particular assinado em branco e a inserção nele de declarações divergentes do ajustado com o signatário.

2 - Se a parte só depois desse prazo tiver conhecimento do facto que fundamenta a arguição, pode esta ter lugar dentro de 10 dias a contar da data do conhecimento.

3 - A parte que haja reconhecido o documento como isento de vícios só pode arguir vícios supervenientes, nos termos do número anterior, sem prejuízo do conhecimento oficioso nos termos da lei civil.”

- artigo 372.º do Código Civil (“Falsidade”):

“1. A força probatória dos documentos autênticos só pode ser ilidida com base na sua falsidade.

2. O documento é falso, quando nele se atesta como tendo sido objecto da percepção da autoridade ou oficial público qualquer facto que na realidade se não verificou, ou como tendo sido praticado pela entidade responsável qualquer acto que na realidade o não foi.

3. Se a falsidade for evidente em face dos sinais exteriores do documento, pode o tribunal, oficiosamente, declará-lo falso.”

Estamos, pois, em presença de um documento autêntico, e os factos expostos pelos AA. são em abstrato subsumíveis ao conceito de falsidade ideológica, atento o disposto no citado n.º 2 do artigo 372.º do Código Civil (Maria dos Prazeres Beleza, ob. cit., pág. 854; Luís Filipe Pires de Sousa, ob. cit., pág. 153).

Nestes casos deve ser deduzido o competente incidente de falsidade, o que, contudo, não foi feito, mas há um caso em que pode o Tribunal conhecer oficiosamente dessa falsidade, a saber, quando “for evidente em face dos sinais exteriores do documento”, conforme preceituado no citado n.º 3 do artigo 372.º do Código Civil.

Desta norma decorre que, por um lado, o Tribunal deve aferir a falsidade exclusivamente com base nos sinais exteriores do documento, isto é, não está em causa a apreciação de meios de prova produzidos sobre esta matéria, o que bem se compreende, na medida em que não foi deduzido incidente de falsidade.

Por outro lado, só quando os referidos sinais exteriores forem ostensivos, manifestos, no sentido da falsidade, é que o Tribunal deve declarar a mesma, o que, de novo, bem se compreende, atendendo ao caráter oficioso da intervenção judicial, que deve ser restrito aos casos mais graves.

Ora, da matéria de facto provada nada consta que permita concluir que dos sinais exteriores da escritura de doação decorre, com evidência, que esta seja falsa, atenta a apreciação acima efetuada da questão da assinatura do doador, na qual os AA. se alicerçam para este efeito.

Improcede, em conclusão, esta pretensão dos AA..

4. Doação de imóveis – Nulidade por ofensa aos bons costumes

a) Relativamente à alegada violação dos bons costumes, ancoram os AA. a sua pretensão nos factos provados sob 23 a 36 e 46, em conjugação com as alterações à matéria de facto que peticionaram em recurso, concretamente, a eliminação do facto 37, e a consideração como provados dos factos que haviam sido julgados não provados sob i), j), k) e m).

Aludem ainda os AA., a este propósito, a uma consulta ao Google Maps, que não se encontra junta aos autos, nem foi requerida essa junção (artigos 191º e 192º das alegações), a passagem de depoimento gravado (artigos 195º e 200º das alegações), e a dois documentos que não se encontram juntos aos autos, nem foi requerida essa junção (artigo 196º das alegações).

Começando por estas últimas considerações, sublinhamos que as mesmas não têm cabimento em sede de recurso de direito, porquanto são relativas aos meios de prova e à sua apreciação, o que só pode ter lugar em sede de impugnação da decisão da matéria de facto.

Acresce, quanto à prova documental, que por nunca ter sido requerida a sua junção, nada há a apreciar, nesta fase de recurso, a esse respeito.

No mais, foi apenas julgada parcialmente procedente a impugnação do facto 37; foi julgada totalmente procedente a impugnação dos factos i) e k), tendo passado a constituir os novos factos 69 e 70, respetivamente; não foi conhecida a impugnação do facto j); foi julgada totalmente improcedente a impugnação do facto m).

Os factos indicados pelos AA. em suporte do pedido de que se cura, com as alterações referidas, são, então, os seguintes:

“23) Desde 06.09.2013 que (…) e (…) eram utentes do lar de idosos da Associação dos Amigos da Terceira Idade de (…), doravante AATIF, sita na Rua do (…), na freguesia de (…);

24) Em 07.10.2013 (…) residia na Rua da (…), n.º 43, também na freguesia de (…);

25) (…) tinha sido eleito para a Direcção da AATIF, tomado posse e exercia de facto em 07.10.2013 funções de Vice-Presidente da Direcção da AATIF;

26) (…) tem Cartório Notarial na Av. (…), n.º 21, loja 1, em Portalegre;

27) No dia 07.10.2013 (…) levou (…) e (…) do lar, levando-os para sua casa na Rua da (…), n.º 43, na freguesia de (…);

28) Na data (…) com 84 anos de idade, tinha-lhe sido recentemente amputado parcialmente o membro inferior esquerdo, motivado por má circulação;

29) (…) tinha 83 de idade,

30) Aí chegados nesse dia 07.10.2013 os idosos sozinhos e nas circunstâncias supra descritas, apenas na presença do donatário e da notária (…), celebraram uma escritura pública de doação, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido, para todos os efeitos legais, na casa e a favor do R. (…) de dois imóveis, a saber: Prédio misto, denominado “(…)”, situado em (…), descrito na Conservatória do Registo Predial de Portalegre, sob o n.º …/20130913, freguesia de (…), e inscrito com o artigo matricial urbano (…) e rústico artigo (…), da secção (…), freguesia de (…), concelho de Portalegre, com o valor tributável e atribuído global de € 40.922,33; e Prédio misto, denominado “(…)”, situado em (…), descrito na Conservatória do Registo Predial de Portalegre, sob o n.º …/19910823, freguesia de (…), e inscrito com o artigo matricial urbano (…) e rústico artigo (…), da secção (…), freguesia de (…), concelho de Portalegre, com o valor tributável e atribuído global de € 88.363,15;

31) Dessa escritura não consta qualquer razão ou justificação para que a mesma tenha sido celebrada na casa do donatário e não no cartório, e sem a presença de qualquer testemunha;

32) Sendo que por via dessa doação os idosos ficaram completamente despidos de qualquer imóvel incluindo a sua própria habitação;

33) Da escritura não resulta: as datas de validade dos documentos de identificação; d) E não constam esses documentos de identificação como documentos arquivados ou exibidos;

34) Da mencionada escritura consta que a senhora notária advertiu os doadores no ato da falta do certificado energético;

35) Da escritura consta a assinatura da doadora(…) na última folha, sem que as restantes se encontrem rubricadas;

36) Constando da última folha, “Esta escritura foi lida e explicada aos outorgantes. O primeiro não assina por não poder, conforme declarou.”, e mais constando uma impressão digital aposta na margem direita;

46) No decurso dos anos de 2009/2010, a tia dos Réus começou a ter problemas de saúde; neoplasia da mama, mastectomia total da mama esquerda, problemas musculares ao nível do membro inferior esquerdo, o qual sofreria três amputações;

69) Na data descrita em 27) dos factos provados (…) já apresentava sintomas de Alzheimer;

70) A escritura descrita em 30) dos factos provados, foi realizada sem o conhecimento de ninguém.

mm) A iniciativa da doação dos prédios foi dos doadores”.

b) Nos termos do artigo 280.º, n.º 2, do Código Civil, “é nulo o negócio contrário à ordem pública, ou ofensivo dos bons costumes.

Os bons costumes enquanto fundamento de nulidade do negócio têm sido “identificados com a moral social, a moral pública ou moral dominante” (Elsa Vaz de Sequeira, Comentário…, pág. 694).

Assim, a vexata quaestio neste domínio é a de saber que moral é esta, tendo presente que, por um lado, a moral está sujeita “às flutuações e indefinições dos tempos e dos lugares” (Heinrich Ewald Hörster e Eva Sónia Moreira da Silva, A Parte Geral do Código Civil Português : Teoria Geral do Direito Civil, 3ª ed., Coimbra, 2024, pág. 599); e, por outro lado, “não existe uma moral aceite por toda a sociedade, verificando-se antes, em alguns domínios, uma relativa fragmentariedade” (Elsa Vaz de Sequeira, ibidem, pág. 695).

A visão tradicional aponta para a síntese da moral subjetiva e da moral objetiva, respetivamente, “uma constelação dos valores que, ao nível de cada pessoa, constituem os critérios do bem e do mal, os guias do agir correcto”, e “o ambiente axiológico efectivamente difundido, assumido e aceite actualmente numa sociedade dada” (Pedro Pais de Vasconcelos, Teoria Geral do Direito Civil, 6ª ed., Coimbra, 2010, pág. 587).

Tem vindo a definir-se, no entanto, um outro caminho, no sentido de fazer passar os bons costumes pelo crivo da Constituição, o que encontraria justificação na circunstância de se tratar aqui de uma “compressão ao princípio da autonomia privada (…) normalmente tido como um direito fundamental de natureza análoga” (Elsa Vaz de Sequeira, ibidem, idem).

De todo o modo, a “área de incidência” dos bons costumes é o “domínio pessoal” (ibidem, idem).

Não é suficiente uma qualquer contrariedade aos bons costumes para este efeito, importando que seja “manifesta, inequívoca (Heinrich Ewald Hörster e Eva Sónia Moreira da Silva, ibidem, pág. 600).

Por último, não é necessário que as partes tenham consciência de que o ato ofende os bons costumes, bastando que “conheçam as circunstâncias das quais a ofensa resulta”, sob pena de esvaziar a norma, que ficaria sujeita à variabilidade da condição moral das pessoas (ibidem).

Em sede de jurisprudência que versa o tema de que se cura, salientamos os seguintes arestos (todos in http://www.dgsi.pt/):

- Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 20.04.2009 (Graça Mira), Processo n.º 0825355:

“Nenhuma pessoa “de bem”, leva um idoso, com mais de 90 anos de idade, sem filhos, a quem morreu a mulher sete dias antes, deixando-o fragilizado em termos físicos e emocionais, sem mais, ao notário para outorgar uma procuração, com tal força e alcance, curiosamente já minutada pelo único interessado/beneficiado, sem que tal comportamento possa, objectivamente, ser alvo de censura por, ostensivamente, desrespeitar esse núcleo de regras éticas aceites pelas pessoas.”

- Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 12.01.2021 (Lina Batista), Processo n.º 632/18.0T8AVR.P1:

“I - Os bons costumes correspondem à moral social dominante num determinado momento e numa determinada sociedade, devendo considerar-se nulos os negócios jurídicos contrários aos padrões comportamentais considerados socialmente exigíveis.

II - A actuação da mãe da Autora, ao vender imóveis por valores manifestamente inferiores aos respectivos valores venais com o propósito de evitar que as filhas ficassem com os bens que necessariamente integrariam a sua legítima, é manifestamente atentatória dos princípios éticos e morais da vida em sociedade.

III - A disposição legal do artigo 281.º do Código Civil exige que este fim contrário aos bons costumes fosse comum a ambas as partes, sendo que a interpretação mais conforme à teleologia da lei e às finalidades de prevenção geral e especial é a de que é suficiente o conhecimento expresso ou objectivamente exigível de uma parte contratante de que a contraparte pretendia celebrar o negócio jurídico com um fim contrário aos bons costumes.”

- Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 01.06.2023 (João Venade), Processo n.º 1571/19.3T8AVR.P1:

“III - Deve ser declarado nulo, por ofensivo dos bons costumes (artigo 280.º, n.º 2, do C. C), o negócio em que:

- os compradores têm perturbações psíquicas ou psicológicas, um deles (Ré) com perturbação ligeira do desenvolvimento intelectual, que pode impedir ou dificultar a compreensão e avaliação do sentido de uma declaração negocial;

- há necessidade de se obter dinheiro para pagar dívidas (Réu) sendo a sua pretensão obter dinheiro e não a venda do bem;

- há desproporção assinável entre o preço pago – 20.000 EUR – e o valor atribuído ao imóvel pelos serviços fiscais - cerca de 65.000 EUR;

- o imóvel vendido ser o local onde os Réus residiam.”

c) Os factos apontados pelos AA. em suporte da nulidade em apreço respeitam a circunstâncias pessoais dos doadores, ao contexto de celebração da escritura e às formalidades da mesma.

Assim, atendendo a que acima já se apreciou a questão da alegada falta de assinatura do doador, remanescem por apreciar apenas as formalidades aludidas nos factos provados sob 31, 33 e 36.

Desde logo, sublinhe-se que o artigo 70.º do Código do Notariado é muito claro quanto à afirmação taxativa das nulidades dos atos notariais, aí se dizendo no n.º 1 que “o ato notarial é nulo, por vício de forma, apenas quando falte algum dos seguintes requisitos”, enunciados nas alíneas subsequentes.

Ora, inexiste qualquer norma legal que imponha a indicação, na escritura, da razão para a sua realização no domicílio de algum dos outorgantes, sendo apenas obrigatória a identificação do lugar onde a mesma foi assinada (artigo 46.º, n.º 1, alínea a), do Código do Notariado).

Adicionalmente, os casos em que devem intervir testemunhas nos atos notariais constam do artigo 67.º do Código do Notariado, entre os quais não se insere a escritura dos autos.

Decorre, depois, do artigo 48.º, n.º 3, do Código do Notariado, que “Nos atos notariais devem ser mencionados o número e a data dos documentos exibidos para a identificação de cada outorgante, bem como o respetivo serviço emitente.”

Deste modo, quanto à falta de indicação da validade dos documentos de identificação dos doadores, não constitui uma menção obrigatória.

Não resulta também de qualquer norma legal a obrigatoriedade de ficarem arquivados os documentos de identificação dos outorgantes.

Por último, a única menção obrigatória na escritura é a de que o ato foi explicado, não sendo necessário que se descreva o teor da explicação, como decorre do disposto da alínea m) do n.º 1 do artigo 46.º do Código do Notariado, onde se alude apenas à “menção de haver sido feita a leitura do instrumento lavrado, ou de ter sido dispensada a leitura pelos intervenientes, bem como a menção da explicação do seu conteúdo”.

Assinalamos ainda que no artigo 11.º, n.º 2, alínea a), do Estatuto do Notariado, se estabelece apenas como limite à prática de atos pelo Notário, serem os atos nulos, pelo que mesmo a anulabilidade ou ineficácia do ato não impedem a sua celebração pelo Notário, o qual está tão somente adstrito, em tais casos, a advertir as partes daqueles vícios e consignar na escritura a advertência, como foi consagrado no n.º 3 do artigo 11.º do Estatuto do Notariado.

Na escritura foi feita a menção de que a sra. Notária advertiu as partes da obrigatoriedade de exibição do certificado energético e das consequências da omissão desta formalidade, remetendo para o diploma legal aplicável ao caso, do qual não resulta que semelhante omissão gere qualquer nulidade, quer dizer, não estamos em presença de um caso no qual a sra. Notária pudesse ou devesse ter recusado a celebração da escritura.

Relativamente ao contexto da doação, dos factos indicados decorre que não está provado que a sua iniciativa tenha pertencido aos doadores; que está provado que estes foram transportados ao local onde a escritura foi celebrada pelo donatário; que esse lugar foi a casa do donatário; que na assinatura da escritura apenas estiveram presentes, além dos doadores, o donatário e a Notária que celebrou o ato; que ninguém teve conhecimento da escritura.

Quanto às circunstâncias pessoais dos doadores, está provado que eram duas pessoas com mais de 80 anos de idade; a doadora teve cancro, sofreu mastectomia total da mama esquerda, e foi amputada parcialmente ao nível do membro inferior esquerdo; o doador tinha sintomas de Alzheimer e tomava medicação para a memória; estavam, à data, a residir no lar.

O primeiro bloco de factos aponta no sentido de que o domínio da situação pertenceu ao donatário, tendo os doadores essencialmente comparecido no ato da celebração da escritura.

Por outro lado, resulta também daí que a escritura se realizou de forma sigilosa, no interior de uma casa de habitação, sem a presença de outras pessoas para além dos diretamente envolvidos e sem que dela se viesse a ter conhecimento público.

No segundo bloco de factos assoma a ideia de que os doadores eram pessoas frágeis, atenta a sua idade e falta de saúde.

Todavia, está provado que a atuação dos doadores foi lúcida e consciente, correspondendo à sua vontade (facto 37).

No que tange depois ao facto dos doadores terem disposto de todo o seu património imobiliário a favor dos RR., os AA. sublinham que o R. era o vice-presidente da instituição onde os tios foram internados (facto 25), mas o R. não é um estranho, é da família, pois é sobrinho da doadora (facto 39), e, mais do que isso, é uma pessoa que com os tios conviveu a vida toda e que sempre deles cuidou e lhes deu afeto, bem como os auxiliou na gestão dos seus interesses, tanto enquanto eles estiveram emigrados, como quando regressaram a Portugal, até ao fim dos seus dias (factos 40 a 45, 47 e 49).

Por outro lado, como diz o Tribunal a quo, é comum que os casais sem filhos disponham do seu património a favor de quem deles cuida, como uma manifestação de gratidão e reconhecimento.

Todavia, no facto provado 50 diz-se que a intenção publicitada pelos tios não era a de que pretendessem desfazer-se do seu património em vida, mas apenas após a sua morte, o que colide com esta doação.

Aliás, não se julgou provado que os tios tenham doado em vida o veículo, nem o dinheiro que lhes pertenciam.

E não se pode afirmar que isto não faz sentido, pelo contrário, não tendo os RR. filhos, dependiam financeiramente, em exclusivo, deles próprios.

Veja-se, com efeito, que não consta da matéria de facto provada que algum familiar, maxime o R., tenha colocado os seus próprios recursos financeiros ao dispor dos tios, antes o princípio era o de que os tios se sustentavam a si próprios (facto 52).

Ora, sem prejuízo da consideração de que aquilo que é essencial, em primeira linha, é a liquidez, a qual reside nas contas bancárias, é também habitualmente encarado o imobiliário como uma reserva de valor, que pode permitir acudir a uma necessidade mais grave.

Tudo visto, o maior valor que os tios tinham eram, precisamente, os dois imóveis da sua propriedade.

Por outro lado, se o R. era para os tios uma figura securizante, na medida em que era o seu cuidador, não deixava também de ser, por isso mesmo, alguém com forte influência na vida dos tios, considerando que não tinham filhos, que era o R. quem geria toda a sua vida financeira e, por último, que estavam dependentes dos cuidados prestados no lar, onde o R. era o vice-presidente.

Acentuamos também que esses cuidados eram imprescindíveis para os tios, porquanto a sua entrada para o lar foi motivada pelo facto de terem perdido condições para estarem sozinhos na sua residência, em virtude da idade avançada e das doenças (facto 51).

Assinalamos, ainda, que o contexto em que decorreu a assinatura da doação reforçou o papel dominante exercido pelo R., pois os tios nunca deixaram de estar exclusivamente sob a alçada deste, saindo do lar onde era vice-presidente para sua casa.

Não entendemos, por outro lado, que a questão deva ser analisada sob a perspetiva do mérito ou demérito de uns ou de outros sucessores, não é disso que se trata aqui, mas antes de indagar sobre o correto modo de proceder, isto é, ainda que fosse justo ou adequado o R. ser beneficiado patrimonialmente pelos tios, com fundamento na dedicação e cuidados que lhes prestou, saber se a via utilizada para alcançar essa finalidade é socialmente ajustada e merece a tutela do direito.

À luz de tudo quanto acabámos de expor, consideramos que a realização da escritura de doação no contexto em que ocorreu e nas circunstâncias pessoais em que os doadores se encontravam, ofende os bons costumes.

Relativamente ao conhecimento das circunstâncias relevantes para este efeito, afigura-se ser o mesmo inequívoco, considerando que era o R. quem geria toda a vida financeira e prestava cuidados aos tios, sendo, além disso, o vice-presidente da instituição onde foram internados e acabaram por vir a falecer.

Deve, pois, ser declarada a nulidade da escritura e cancelado o respetivo registo de aquisição a favor dos RR..

5. Contas bancárias

a) No que tange aos movimentos efetuados nas contas bancárias de que era titular o tio dos RR., alegaram estes que o fizeram ao abrigo da autorização concedida pelos tios, que lhes permitiu que usassem essas contas como se fossem suas.

Porém, na sequência da impugnação da decisão de facto veio a ser alterado o facto 52, dele tendo sido retiradas as menções “como quisesse e entendesse” e “tendo sido nesse contexto que efectuou as movimentações bancárias supra e infra indicadas”, que passaram a constituir o facto não provado nn).

Mais foram transferidos do elenco dos factos não provados para o elenco dos factos provados os factos atinentes aos movimentos efetuados em vida do tio do R., de onde resulta, em especial, a consciência por parte dos RR. de que nessas datas esses dinheiros não lhes pertenciam (factos 65 e 67 a 68), bem como foi transferido para o elenco dos factos não provados a referência à atuação no âmbito dos poderes conferidos pelos doadores (factos kk) e ll)).

b) Importa, assim, estabelecer a diferenciação entre as duas categorias de movimentos em causa, atendendo às datas em que foram efetuados:

- os movimentos aludidos em 15, 19 e 22 foram realizados em vida do tio do R.;

- o movimento aludido em 10 é posterior à sua morte.

Apesar do movimento aludido em 19 ser proveniente de um cheque emitido a favor da (…), a sua origem é a conta do tio do R. (factos 17 e 18), não se mostrando provado que se tratasse de dinheiro do R. (factos não provados cc) a hh)), pelo que deve merecer uma apreciação idêntica aos demais movimentos.

O Tribunal a quo considerou estar em presença de doações inter vivos (artigo 940.º, n.º 1, do Código Civil).

Todavia, a alteração do facto 52 prejudica esta qualificação, porquanto da leitura conjugada deste facto com o que se mostra provado sob 50 decorre que, se o dinheiro existente nas contas era para os RR. “uma vez satisfeitas as necessidades” dos tios, então, esse dinheiro era destinado aos RR. após a morte dos tios, uma vez que os tios dos RR. “ao longo dos anos sempre manifestaram a vontade de transmitirem aos Réus todo o seu património após a morte de ambos”.

Como já se disse, esta afirmação aponta mais para uma instituição de herdeiro do que para a instituição de um donatário.

A instituição de herdeiro deve constar de testamento, contudo, está provado que os tios do R. não o fizeram (facto 6).

Mas ainda que se enveredasse pela qualificação como doação, sempre deveríamos concluir estar em presença de uma doação por morte, considerando que a vontade se reporta ao momento posterior à morte de ambos os doadores.

Efetivamente, “toda a doação que produza os seus efeitos por morte do doador é uma doação por morte” (Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, vol. II, 4ª ed., Coimbra, 1997, pág. 248).

A doação por morte é expressamente proibida pelo n.º 1 do artigo 946.º do Código Civil, ressalvando-se apenas os casos previstos na lei, onde não se integra a situação dos autos.

A finalidade visada com esta proibição é a de que “até ao momento da morte, o falecido tenha plena liberdade de – na quota disponível, bem entendido – dispor dos seus bens. Essa liberdade seria entravada se se admitisse um prévio condicionamento por contrato.” (Código Civil Comentado, III, Dos Contratos em Especial, coord. de António Menezes Cordeiro, Coimbra, 2024, pág. 192).

A consequência direta desta proibição legal é a nulidade da doação por morte (artigo 280.º, n.º 1, do Código Civil), a qual, todavia, admite a conversão em deixa testamentária, desde que sejam observadas as formalidades dos testamentos, conforme o n.º 2 do indicado artigo 946.º do Código Civil.

Os testamentos devem, necessariamente, observar a forma escrita (artigos 2205.º e 2206.º do Código Civil), pelo que sendo esta declaração dos doadores meramente verbal, conclui-se que a mesma não é suscetível de conversão.

Na sentença alude-se ainda à figura da doação inter vivos com uma cláusula modal (artigo 963.º do Código Civil), porém, a matéria de facto provada não suporta esta qualificação.

Com efeito, na doação modal o bem ingressa imediatamente na esfera jurídica do donatário, o qual, todavia, fica obrigado a cumprir um encargo que lhe é imposto pelo doador.

O que pode suceder é que, se o donatário não cumprir o encargo, este seja obrigado a restituir o bem ao doador, no âmbito da resolução da doação (artigo 966.º do Código Civil).

No caso em apreço, porém, decorre da matéria de facto que os RR. só se tornariam proprietários do dinheiro dos tios depois de satisfeitas as suas necessidades, pelo que a eficácia da atribuição patrimonial não era imediata, mas diferida no tempo, sujeita à condição da prévia ocorrência daquele evento.

b) Mas o Tribunal a quo suporta ainda a aquisição da propriedade sobre as quantias movimentadas pelos RR. com fundamento em usucapião.

Porém, tem vindo a ser pacificamente entendido na jurisprudência que os saldos das contas bancárias são insuscetíveis de apropriação por usucapião, como se afirmou nos seguintes arestos (ambos in http://www.dgsi.pt/):

- Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 19.05.2009 (Salazar Casanova), Processo n.º 2434/04.2TBVCD.S1:

“III- No que respeita às quantias entregues para depósito bancário, não são elas usucapíveis pelo co-titular porque se trata de depósito de dinheiro e portanto de direito de crédito relativo a uma coisa fungível, isto é, de prestação que tem por objecto uma coisa fungível, não podendo falar-se de propriedade ou de direito real sobre a coisa depositada, não podendo conceber-se o direito real, quando a prestação tem por objecto coisas indeterminadas de certa espécie ou qualidade, senão depois de feita a determinação ou a escolha.”

- Acórdão do Tribunal da Relação de Porto de 26.03.2019 (Maria Cecília Agante), Processo n.º 844/12.0TBVCD.P1:

“IV - No depósito bancário o credor tem apenas um direito de crédito, consubstanciado no direito a exigir a entrega da importância do depósito e a receber a prestação a que o devedor está adstrito.

V - Como se trata de um direito de crédito relativo a uma coisa fungível, não está em causa um direito real sobre quantia em dinheiro depositada e, não sendo uma coisa corpórea determinada, ela é insuscetível de ser adquirida por usucapião.”

Acresce que não tendo ficado provado que tenha existido autorização para os RR. usarem essas contas como se fossem suas, sempre ficaria a faltar o animus essencial à aquisição por usucapião.

c) Por fim, alegam os AA. que em virtude de se encontrar provado que a quantia de € 6.100,00 não foi usada para satisfazer despesas do tio do R., à luz de todo o exposto, deve considerar-se que a mesma integra também a herança.

Atento o acima expendido relativamente aos factos 50 e 52, bem como a decisão respeitante aos demais movimentos, em particular, o que se mostra aludido em 15 (€ 7.000,00), mais considerando que está provado que esta quantia de € 6.100,00 se destinou a satisfazer uma despesa pessoal do Réu (facto 63), impõe-se a conclusão de que também esta quantia integra a herança.

Em conclusão cumpre revogar também nesta parte a sentença julgando improcedente a reconvenção e procedente a ação.

D) Custas

As custas são suportadas pelos RR., que ficam vencidos (artigo 527.º, n.ºs 1 e 2, do Código de Processo Civil).

IV – Dispositivo

Em face do exposto e tudo ponderado, acordam os Juízes da Secção Cível deste Tribunal da Relação em julgar procedente a apelação, revogando parcialmente a decisão recorrida, pelo que julgam integralmente procedente a ação e improcedente a reconvenção, e em conformidade:

a) Declara-se a nulidade da declaração de compra e venda, ordenando-se o cancelamento do registo efetuado sob a Ap. (…), de 10.08.2016;

b) Declara-se a nulidade da doação de 07.10.2013, relativa aos prédios descritos na Conservatória do Registo Predial de Portalegre, sob o n.º (…) e o n.º (…), da freguesia de (…), por ofensa dos bons costumes, ordenando-se o cancelamento dos registos de aquisição efetuados sob as Ap. (…), de 2013/10/08, relativa ao prédio (…), e Ap. (…), de 2013/10/08, relativa ao prédio (…);

c) Ordena-se a restituição, por parte dos Réus, dos bens que tem na sua posse, pertencentes à Herança de (…):

- Veículo automóvel ligeiro, matrícula (…), marca (…), modelo (…), de cor cinzento;

- € 2.980,74 – Saldo bancário existente na conta n.º (…), da Caixa Geral de Depósitos, na data da morte do de cujus, em 10.07.2016;

- € 7.000,00 - movimentados na Caixa Geral de Depósitos, em 07.06.2016, pelo Réu (…) a seu favor, através do cheque n.º (…), da conta do de cujus, com o IBAN (…);

- € 50.000,00 - que o Réu (…), em 15.04.2016, movimentou a seu favor da conta do de cujus n.º (…), da Caixa Montepio Geral, através do cheque n.º 1 (…);

- € 20.894,12 - que o Réu (…) movimentou a seu favor, em 24.05.2016, da conta do de cujus com o n.º (…), da Caixa Montepio Geral, através do cheque n.º (…);

- € 6.100,00 - que o Réu (…) movimentou, em 14.04.2016, através do cheque n.º (…), sacado da conta do de cujus com o n.º (…);

- Prédio misto, denominado (…), situado em (…), descrito na Conservatória do Registo Predial de Portalegre, sob o n.º (…), freguesia de (…), e inscrito com o artigo matricial urbano (…) e rústico artigo (…), da secção (…), freguesia de (…), concelho de Portalegre, com o valor tributável e atribuído global de € 40.922,33;

- Prédio misto, denominado (…), situado em (…), descrito na Conservatória do Registo Predial de Portalegre, sob o n.º (…), freguesia de (…), e inscrito com o artigo matricial urbano (…) e rústico artigo (…), da secção (…), freguesia de (…), concelho de Portalegre, com o valor tributável e atribuído global de € 88.363,15.

Custas pelos Réus.

Notifique e registe.

Évora, 27 de Março de 2025

Sónia Moura (Relatora)

Susana Ferrão da Costa Cabral (1ª Adjunta)

Filipe César Osório (2º Adjunto)