Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
85/22.9T9LAG.E1
Relator: MARIA JOSÉ CORTES
Descritores: RESPONSABILIDADE TRIBUTÁRIA
RESPONSABILIDADE CRIMINAL
RESPONSABILIDADE CIVIL
INSOLVÊNCIA
EXONERAÇÃO DO PASSIVO RESTANTE
PRESCRIÇÃO
Data do Acordão: 09/30/2025
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: I - Apesar de o arguido ter sido declarado insolvente em data anterior à notificação a que alude o artigo 105º, nº 4, al. b), do RGIT, e estar em período de exoneração do passivo restante, e tendo o crime já sido cometido, não é por estar impedido de proceder a pagamentos aos credores da sua insolvência que ocorre uma causa de exclusão da ilicitude. A exoneração do passivo restante tem como único propósito (por ser uma execução universal) questões creditórias e não de responsabilidade criminal.
II - A responsabilidade tributária e a responsabilidade criminal não se confundem, porquanto assentam em pressupostos diversos, independentemente de terem na sua base circunstância ou facto comum, como seja, a não entrega ao fisco de determinada prestação tributária. E também a responsabilidade civil proveniente da prática de crime (fiscal) se distingue da responsabilidade tributária. A prescrição ocorrida em sede de execução fiscal impede que esta execução prossiga e, consequentemente, que a dívida tributária seja cobrada ali. Mas nada determina em sede de responsabilidade penal e suas consequências, como sejam as suas consequências civis. Inexiste a identidade de causa de pedir, sendo aqui (no pedido cível formulado na ação penal) a causa de pedir o facto ilícito e, ali, a dívida tributária.
Decisão Texto Integral:

Acordam, em conferência, os Juízes que integram a 2.ª Subsecção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:

I – RELATÓRIO

1.1. No Tribunal Judicial da Comarca de Faro, Juízo de Competência Genérica de Lagos – J1, foi o arguido A condenado pela prática de um crime de abuso de confiança contra a Segurança Social, p. e p. pelos art.ºs 105.º, n.ºs 1 e 4, e 107. º, n.ºs 1 e 2, do Regime Geral das Infrações Tributárias (RGIT) e pelo art.º 30.º, n.º 2, do Código Penal (aplicáveis ex vi do art.º 3.º, alínea a), do Regime Geral das Infrações Tributárias), na pena de 150 (cento e cinquenta) dias de multa, à taxa diária de 6,50 € (seis euros e cinquenta cêntimos), e no pedido de indemnização civil formulado pelo Instituto da Segurança Social, IP, no valor de 29 090,83€ (vinte e nove mil e noventa euros e oitenta e três cêntimos), acrescido de juros de mora à taxa legal.
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1.2. Inconformado com esta decisão, da mesma interpôs o arguido o presente recurso, formulando no termo da motivação as seguintes CONCLUSÕES (transcrição):
1. O arguido foi declarado insolvente por sentença proferida em 19 de Fevereiro de 2019 no Processo nº 209/19.3T8OLH, do Tribunal Judicial da Comarca de Faro, Juízo de Comércio de Olhão - Juiz 1 de Olhão da Restauração.
2. A 4 de Outubro de 2019, no âmbito do processo n.º 209/19.3T8OLH, foi proferido despacho inicial de exoneração do passivo restante pela Mtª Juiz dos autos de insolvência, no qual se determinou, como decorre da lei, “que a exoneração do passivo restante será concedida aos insolventes V e A desde que estes durante os cinco anos subsequentes ao encerramento do processo de insolvência (período de cessão), cedam ao fiduciário o rendimento disponível que venham a auferir (artº 239º nº 2, 3 e 4 e artº 115º do CIRE) e ainda que a obrigação de ”Não fazer quaisquer pagamentos aos credores da insolvência a não ser através do fiduciário e a não criar qualquer vantagem especial para algum desses credores.”
3. A 10 de Janeiro de 2023, no âmbito do processo n.º 209/19.3T8OLH, foi proferido despacho concedendo ao arguido a exoneração do passivo restante, decisão transitada em julgado a 1 de Fevereiro de 2023, no qual a Mtª Juiz decretou “Ao longo do período de cessão, a Fiduciária prestou informações anuais, dos quais resultou que os Devedores cumpriram os deveres estipulados no artigo 239.º do referido diploma. Findo o período de cessão, a Fiduciária emitiu parecer no sentido da concessão da exoneração, não ocorrendo qualquer motivo que determine a recusa da exoneração, decide-se, nos termos dos artigos 237.º, alínea d), 244º, n.º 1, e 245.º, n.º 1, do CIRE, decretar a exoneração definitiva do passivo restante de V e A, declarando, em consequência, extintos os créditos sobre a insolvência que subsistam na presente data, sem excepção dos que não tenham sido reclamados e verificados.”
4. No período de cessão, entre o despacho inicial de exoneração e o despacho final o arguido foi constituído arguido nos presentes autos a 20 de Fevereiro de 2022, sendo notificado para pagar ao ISS a 23 de Fevereiro de 2022 .
5. Ora neste período de cessão, o arguido, como decorre da lei e lhe foram imposto por decisão judicial, não podia efectuar pagamentos a terceiros, designadamente aos credores, reconhecidos ou não, muito menos a quem não era seu credor, como o ISS, e todos os rendimentos que obtivesse teriam de ser entregues ao fiduciário.
6. Assim sendo, há uma causa de exlusão da ilicitude, já que os seus actos foram determinados, não só pelas obrigações que decorrem do CIRE (artigos 235º e 239º ), bem como pela decisão judicial de inicial de exoneração do passivo restante com onde lhe foram impostos os deveres constantes do nº 4 do artigo 239 do Cire, pelo que os factos não são puníveis, por estar excluída a ilicitude nos termos da alínea C) do nº 2 do artigo 31 do CP ( no cumprimento de um dever imposto por lei e por ordem legitima da Juiz dos autos de insolvência.
7. Em todo o caso, também haveria sempre no cumprimento de deveres que também levaria à exclusão da ilicitude – artigo 36º do CP.
8. E não se diga, como refere na sentença, que o arguido só estava obrigado a não pagar aos credores, podendo pagar a não credores.( Cfr pag 18 da Douta Sentença recorrida, a negrito no segundo paragrafo) . Ora se o ISS não era seu credor, porque deveria pagar o arguido em violação das ordens que lhe tinha sido dadas? Qualquer pessoa, no sistema legal vigente, só é obrigado a pagar aos credores, não a quem não é credor, ou seja, a quem não deve nada juridicamente. O raciocínio jurídico da sentença não colhe, nem encontra fundamento legal.
9. Havendo exclusão da ilicitude por via da al c) do nº 2 do artigo 31 e do 36 ambos do CP, o arguido deverá ser absolvido do crime que lhe foi imputado.
10. Por outro lado, o arguido nem sequer é devedor ao ISS. A própria decisão o refere “ Ora não sendo a SS credora do arguido ...” pag 18 da Sentença recorrida . A devedora, era a sociedade O.
11. O arguido a ser devedor, sê-lo-ia subsidiariamente, por via de um despacho de reversão. A responsabilidade subsidiária efectiva-se por reversão do processo de execução fiscal (n.º 1 do artigo 23.º da LGT). Sendo o despacho de reversão um acto administrativo tributário, está sujeito a fundamentação (artigo 268.º n.º 3 da CRP; artigos 23.º n.º 4 e 77.º nº 1, da LGT).
12. Não houve qualquer despacho de reversão, pelo que o arguido não é subsidiariamente responsável pelas dividas da sociedade O, por isso, o ISS, notificado na insolvência do arguido a 20 de Fevereiro de 2019, não reclamou qualquer crédito, pelo que não pode ser condenado no pedido de indemnização civil. Mais, sendo excluída a ilicitude dos factos ( artigos 31º e 36º do CP). Mais, sendo excluída a ilicitude dos factos ( artigos 31º e 36º do CP) e não havendo despacho de reversão, o ISS não pode reclamar qualquer pagamento do arguido.
13. O arguido, nunca foi citado para pagar a divida, nem o poderia ser, exactamente porque não houve despacho de reversão.
14. Mesmo que o tivesse havido, e não há, a citação do responsável subsidiário ( e no caso não o é por falta de despacho de reversão), se for efetuada para além dos cinco anos contados do período a que as contribuições à Segurança Social são devidas, o efeito interruptivo operado pela citação do devedor originário, não produz efeitos. A interrupção da prescrição relativamente ao devedor principal (ave de oiro) não produz efeitos quanto ao responsável subsidiário (recorrente) se a citação deste, em processo de execução fiscal, for efetuada após o 5.º ano posterior ao da liquidação”.
15. Mesmo que se entende-se, que a constituição de arguido em 20-02-2022, e a notificação para pagar em 23-02-2022 configuram uma citação ( e não configura), todas as dividas anteriores a 20-02-2017 encontram-se prescritas nos termos do artigo 60.º, n.º 3 da Lei de Bases Gerais do Sistema de Segurança Social, assim como no artigo 187.º, n.º 1 do Código dos Regimes Contributivos do Sistema Previdencial de Segurança Social, o que desde já se alega.
16. Alem de que, mesmo o direito a uma eventual indemnização por factos ilícitos e culposos, também já prescreveu pelo decurso dos 3 anos (498º nº1 do CC), uma vez que o processo crime só foi instaurado apenas em 2022 e os factos datarem de 2016 e 2017.
17. Por tudo isto, deve o arguido ser absolvido não só do crime que lhe foi imputado, como também deve ser absolvido do pedido de indemnização civil .
18. Foram violados os artigos 31º e 36º do CP, do Código Penal, 60.º, n.º 3 da Lei de Bases Gerais do Sistema de Segurança Social, assim como no artigo 187.º, n.º 1 do Código dos Regimes Contributivos do Sistema Previdencial de Segurança Social, e 23 e 26 da LGT; e 235º, 239º, e 244º do CIRE.
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1.3. Notificado da interposição do recurso, respondeu o Ministério Público, com os fundamentos explanados na respetiva motivação, que condensou nas seguintes CONCLUSÕES (transcrição):
I. Não merece reparo a sentença proferida pelo tribunal a quo, que condenou o arguido, aqui recorrente, pelo crime de abuso de confiança contra a Segurança Social, na forma continuada, p.p. pelo artigo 107.º, n.º 1, por referência ao artigo 105.º, n.os 1 e 4, ambos do Regime Geral das Infracções Tributárias (RGIT), e pelos artigos 30.º, n.º 2, e 79.º, ambos do Código Penal (CP), aplicáveis ex vi artigo 3º, alínea a), do RGIT,
II. Pois que, o facto de o recorrente, que foi declarado insolvente, e que se encontrava a cumprir com as obrigações decorrentes do período de exoneração do passivo restante,
III. Não é causa de exclusão da ilicitude do crime pelo qual foi condenado.
IV. Veja-se que aquele mantém a qualidade de sócio- gerente até à “morte” da sociedade, pois que “Só a extinção das sociedades - que ocorre com o registo do encerramento da respectiva liquidação e, no caso de insolvência, com o registo do encerramento do processo após o rateio final (se e quando o mesmo tiver lugar), é equiparável à morte das pessoas singulares”. disponível em www.dgsi.pt
V. E que só ocorreu a 26.06.2024.
VI. Sendo que, à data em que o mesmo foi notificado, na qualidade de sócio-gerente, e representante da mesma, a sociedade ainda não se encontrava extinta, e por isso ainda criminalmente responsável.
VII. Pelo que outra pessoa, que não o arguido, podia ter sido notificada.
VIII. Em segundo lugar, veja-se que o crime aqui em apreciação consuma-se no momento da não entrega dos valores à Segurança Social, ou seja, ao caso concreto, em Junho de 2017 – atento ao crime ser ele continuado - sendo que, a sua punibilidade está dependente do não pagamento, após notificação legal para o fazer.
IX. Como tal notificação ocorreu a 20.02.2022, então, só nos 30 dias seguintes – sem se verificar o pagamento - o crime consumado – em Junho de 2017 - poderá ser punível!!!
X. O facto de o recorrente estar insolvente e estar em período de exoneração do passivo restante, como bem está de ver, não o “exonera” do cometimento e punibilidade de crimes!!!
XI. Ou seja, em primeiro lugar, o crime já havia sido cometido, em segundo lugar, não é por estar o arguido impedido de proceder a pagamentos AOS CREDORES DA SUA INSOLVÊNCIA (o que não era o caso da Segurança Social), que não através dos valores entregues à fidúcia, que no período de exoneração do passivo restante – que mais não é do que uma execução universal (direito civil) tivesse como consequência a exclusão de responsabilidade criminal das pessoas singulares insolventes.
XII. O facto da Segurança Social não ser seu credor, e não ter reclamado os seus créditos na sua insolvência - insolvência singular - em nada tem que ver com a responsabilidade criminal e com a pena a que foi condenado.
XIII. Não sendo esse elemento objectivo do tipo de crime pelo qual foi condenado.
XIV. Também não assiste razão ao recorrente quando refere que, por força do despacho final que concedeu a exoneração do passivo restante, abarcaria o perdão da punibilidade do crime pelo qual foi condenado.
XV. É que, pese embora veja o recorrente o crime de abuso de confiança à Segurança Social como tão somente a existência de um qualquer crédito, assim NÃO o é!
XVI. O crime pelo qual foi condenado nada tem que ver com a obrigação civil e creditória, mas antes a sua punibilidade pela a omissão de não o ter feito!!!
VII. Veja-se que é bem claro que a exoneração do passivo restante, como figura do C.I.RE. tem como único propósito – por ser uma execução universal – questões creditórias e não de responsabilidade criminal.
XVIII. Pelo que a ordem judicial a que se poderiam referir os artigo 31.º e 36º do C.P – despacho inicial de exoneração do passivo restante – de não proceder ao pagamento dos credores DA INSOLVÊNCIA, não inibe a responsabilidade criminal por crimes cometidos e puníveis, nem tão pouco os exonera, cfr. dispõe o 245.º do CIRE.
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1.4. Nesta Relação, o Exo. Procurador Geral Adjunto pugnou pela improcedência do recurso.
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1.5. Foi cumprido o estabelecido no art.º 417.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, não tendo sido apresentada resposta pelo recorrente.
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1.6. Colhidos os vistos legais e realizada a conferência a que alude o art.º 419.º, do Código de Processo Penal, cumpre apreciar e decidir.
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II – FUNDAMENTAÇÃO
2.1. Âmbito do recurso e questões a decidir
Conforme jurisprudência constante e assente, é pelas conclusões apresentadas pelo recorrente que se delimita o objeto do recurso e os poderes de cognição do Tribunal Superior [acórdão do STJ, de 15.04.2010, in www.dgsi.pt “Como decorre do artigo 412.º do CPP, é pelas conclusões extraídas pelo recorrente na motivação apresentada, em que resume as razões do pedido que se define o âmbito do recurso. É à luz das conclusões da motivação do recurso que este terá de apreciar-se, donde resulta que o essencial e o limite de todas as questões a apreciar e a decidir no recurso, estão contidos nas conclusões (…)”], sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso a que alude o art.º 410.º, do Código de Processo Penal (conhecimento oficioso que resulta da jurisprudência fixada no acórdão n.º 7/95, do STJ, DR, I, Série A, de 28.12.95).
Na verdade e apesar de o recorrente delimitar, com as conclusões que extrai das suas motivações de recurso, o âmbito do conhecimento do tribunal superior, este, contudo, como se afirma no citado acórdão de fixação de jurisprudência, deve apreciar oficiosamente da eventual existência dos vícios previstos no n.º 2, do art.º 410.º, do Código de Processo Penal, ou de alguma das causas de nulidade dessa decisão, consagradas no n.º 1, do art.º 379.º, do mesmo diploma legal, mesmo que o recurso se cinja a questões de direito.
Cumpre, ainda, relevar que se o recorrente não retoma nas conclusões da respetiva motivação as questões que desenvolveu no corpo da motivação, porque se esqueceu ou porque pretendeu restringir o objeto do recurso, o Tribunal ad quem só conhecerá das questões que constam das conclusões.
Face às conclusões apresentadas pelo recorrente da respetiva motivação, extraímos as seguintes questões a decidir, sem prejuízo das de conhecimento oficioso:
1.ª Determinar se estamos perante alguma causa de exclusão da ilicitude, designadamente porque o facto não é ilícito por o recorrente estar perante o cumprimento de um dever imposto por lei ou por ordem legítima da autoridade (art.º 31.º, n.ºs 1 e 2, alínea c), do Código Penal) e/ou perante um conflito de deveres (art.º 36.º, n.º 1, do Código Penal);
2.ª Determinar se prescreveu a dívida ao demandante Instituto da Segurança Social, IP, de acordo com o art.º 187.º, n.º 1, do Código dos Regimes Contributivos do Sistema Previdencial de Segurança e art.º 60.º, n.º 3, da Lei de Bases Gerais do Sistema de Segurança Social;
3.ª Determinar se prescreveu o direito de indemnização ao demandante Instituto da Segurança Social, IP, de acordo com o art.º 498.º, n.º 1, do Código Civil;
4.ª Caso assim não se entenda, determinar se o pedido cível deduzido pelo demandante Instituto da Segurança Social, IP deveria ter sido julgado improcedente; a alegada responsabilidade subsidiária do arguido; a decisão de reversão e suas consequências.
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2.3. A sentença recorrida
2.3.1. O tribunal de primeira instância deu como provados os seguintes factos:
1. A sociedade arguida é uma sociedade por quotas, matriculada na Conservatória de Registo Comercial de Aljezur, tendo por objecto social o comércio por grosso e a retalho de carnes, aves e enchidos e outros produtos alimentares e fabricação de produtos à base de carne.
2. Entre os meses de Abril de 2016 e Junho de 2017, inclusivamente, a gerência de direito e de facto da sociedade arguida esteve a cargo do arguido.
3. Durante esse período, o arguido dirigiu as actividades da sociedade arguida e procedeu ao pagamento das remunerações aos empregados e ao desconto das quotizações devidas à Segurança Social.
4. Apesar de o arguido efectivamente ter pago aos trabalhadores e membros dos órgãos estatutários da sociedade arguida as remunerações respeitantes ao período compreendido entre os meses de Abril de 2016 e Junho de 2017, inclusivamente, e de ter deduzido às mesmas o montante correspondente às quotizações, no montante global de 29 090,83€ (vinte e nove mil e noventa euros e oitenta e três cêntimos), não procedeu à entrega de tais montantes nos cofres da Segurança Social até ao dia 20 do mês seguinte àquele a que tais quotizações respeitavam, nem nos 90 dias seguintes, nem depois de notificado para, no prazo de 30 dias, proceder ao pagamento das quotizações e dos juros de mora.
5. A saber:

6. Com a conduta descrita, o arguido fez das referidas quantias coisa da sociedade arguida, integrando-as no património da mesma e utilizando-as no seu giro económico normal para satisfação de despesas correntes, designadamente no pagamento de remunerações aos trabalhadores e de dívidas a fornecedores, tudo em proveito daquela, obtendo, desse modo, vantagens patrimoniais e benefícios que sabia serem indevidos e proibidos por lei.
7. Após não ter entregue à Segurança Social os montantes que havia deduzido das remunerações no mês de Abril de 2016, o arguido praticou o mesmo tipo de conduta ao longo dos restantes meses do ano de 2016 e durante os meses de Janeiro a Junho de 2017, inclusivamente, por, em virtude do insucesso de investimento relativo a uma unidade de desmanche, carecer de liquidez para proceder ao pagamento de remunerações aos trabalhadores e de dívidas a fornecedores.
8. Com a conduta descrita, o arguido causou à Segurança Social um prejuízo de montante igual ao valor referido em 4.
9. O arguido agiu de modo livre, voluntário e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei penal.
10. Foram reclamados pela SS, no âmbito do processo n.º 390/17.6T8OLH, créditos sobre a sociedade arguida no valor de 12 3807,26 €, relativos a contribuições entre Junho de 2014 e Junho de 2017 e que lhe foram reconhecidos.
11. A saber:

12. Do valor referido em 10, a SS recebeu, em sede de rateio parcial, o valor de 9 557,75€ e, em sede de rateio final, o valor de 2 712,57€.
13. No âmbito do processo especial de revitalização da sociedade arguida, instaurado sob o n.º 390/17.6T8OLH a 22 de Março de 2017, foram celebrados acordos de pagamento das suas dívidas à SS, incluindo a referida em 5, e aceites hipotecas voluntárias como garantia do mesmo.
14. Os referidos acordos foram rescindidos sem que tivesse havido qualquer pagamento da dívida referida em 5 ao abrigo dos mesmos.
15. A 19 de Fevereiro de 2019, no âmbito do processo n.º 209/19.3T8OLH, foi declarada a insolvência do arguido, por sentença transitada em julgado a 12 de Março de 2019.
16. A 4 de Outubro de 2019, no âmbito do processo n.º 209/19.3T8OLH, foi proferido despacho inicial de exoneração do passivo restante.
17. A 10 de Janeiro de 2023, no âmbito do processo n.º 209/19.3T8OLH, foi proferido despacho concedendo aos insolventes (incluindo o arguido) a exoneração do passivo restante, tendo este transitado em julgado a 1 de Fevereiro de 2023.
18. A SS não dispõe de qualquer título executivo para pagamento da dívida referida em 5 pelo arguido.
19. O arguido não tem quaisquer antecedentes criminais.
20. O arguido tem, como habilitações académicas, um bacharelato em gestão e trabalha como administrativo no departamento financeiro e de contabilidade de um restaurante na Arrifana.
21. O arguido não tem quaisquer funções de gerência nem administração neste restaurante nem em qualquer outra empresa.
22. O arguido aufere, como rendimento do seu trabalho, cerca de 1150€ mensais.
23. O arguido tem 2 filhos, uma com 18 anos e um com 15 anos, ambos residentes com a mãe, embora a filha mais velha resida temporariamente em Lisboa por força dos seus estudos.
24. Embora não coabite com nenhum dos filhos, o arguido mantém contacto regular (em regra diário) com os filhos.
25. O arguido contribui para as despesas de cada um dos filhos com pelo menos 150€ mensais, valor a que acresce a contribuição para as propinas universitárias da filha da mais velha.
26. O arguido reside com os pais, em casa própria destes, e contribui para as despesas da casa com valor mensal compreendido entre os 150€ e os 200€.
27. O arguido não é proprietário de quaisquer imóveis, mas é proprietário de um veículo automóvel, de marca e modelo Peugeot 206, com ano de matrícula igual ou posterior a 2000.
28. O arguido não tem quaisquer despesas fixas extraordinárias.

2.3.2. O tribunal de primeira instância deu como não provados os seguintes factos:
A. Com a conduta descrita, o arguido fez das referidas quantias coisa sua, integrando-as no seu património e utilizando-as em proveito próprio, obtendo, desse modo, vantagens patrimoniais e benefícios que sabia serem indevidos e proibidos por lei.
B. Após não ter entregue os montantes que havia deduzido das remunerações, destinados à Segurança Social, no mês de Abril de 2016, o arguido praticou o mesmo tipo de conduta ao longo dos restantes meses do ano de 2016 e durante os meses de Janeiro a Junho de 2017, inclusivamente, por, em virtude de não ter sido sujeito a inspecção regular por parte dos serviços de fiscalização, se ter convencido de que a actuação que vinha levando a cabo estava a ser bem sucedida, o que motivou a instalação de um ambiente favorável à sua reiteração ao longo do referido período.

2.3.3. A motivação da decisão recorrida foi a seguinte:
No presente caso, o Tribunal formou a sua convicção quanto à factualidade sub judice a partir das declarações do arguido, dos documentos juntos aos autos (designadamente mapa de quotizações retidas e não pagas, notificações, certidões do Registo Comercial e do Registo Predial, extractos de declarações de remunerações, recibos de remunerações, certidões dos processos n.º 390/17.6T8OLH e n.º 209/19.3T8OLH – incluindo sentenças de insolvência, reclamação de créditos, despachos e demais elementos relativos a rateios parcial e final e despachos inicial e final de exoneração do passivo restante – e emails) e dos depoimentos das testemunhas AA, RC e PO.
Toda a prova produzida foi livremente apreciada, nos termos do disposto no artigo 127º do CPP, e interpretada considerando, não só os princípios jurídicos e as normas legais aplicáveis, mas também as regras da experiência, com base em todos eles se procedendo ao exame crítico dos referidos meios de prova, como exige o artigo 374º, n.º 2, do CPP.
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As declarações do arguido quanto à factualidade que lhe foi imputada – e, por seu intermédio, à sociedade arguida – foram tidas em conta por este ter admitido a prática de factos contrários aos seus interesses, sem que se tenha revelado qualquer razão para desconfiar da natureza livre dessa admissão.
Conforme se consignou no decurso da audiência de discussão e julgamento, estas declarações constituíram confissão parcial (considerando que não abrangeu a matéria relativa ao período e ao valor das quotizações cuja falta de entrega está em causa) e com reservas (face aos acordos de pagamento que invocou ter celebrado com a SS e especialmente tendo em conta que mostrou desconhecer se tinha ou não havido lugar a qualquer pagamento nesse âmbito – atendendo à maior dimensão da dívida da sociedade arguida à SS face à que aqui está em causa e à afirmação de que teria liquidado alguns dos pagamentos em que houve lugar à celebração de acordos).
Foi com base nesta confissão que se provaram os factos 2, 3, 4 (quanto a ter pago aos trabalhadores e membros dos órgãos estatutários da sociedade arguida as remunerações, a ter deduzido às mesmas o montante correspondente às quotizações – ambos reforçados pelos depoimentos de RC e PO – e a não ter procedido à sua entrega nos cofres da Segurança Social no momento em que eram devidas) e 6 (quanto a ter integrado esse montante no património da sociedade arguida e a tê-lo utilizado em proveito daquela – tendo, aliás, sido as suas declarações a permitir ao Tribunal concluir que, por não dispor de liquidez para cobrir todas as despesas daquela, o utilizou concretamente no pagamento de remunerações aos trabalhadores e de dívidas a fornecedores e, por isso, a dar como não provado o facto A).
De igual modo, foram as declarações prestadas pelo arguido, também a par dos depoimentos depois prestados pelas testemunhas RC e PO (convergentes com tais declarações na matéria relativa ao investimento levado a cabo para a unidade de desmanche), e ainda dos períodos que resultaram provados no facto 4, que levaram o Tribunal a dar como provado o facto 7 (e, correspondentemente, como não provado o facto B).
Pela sua contribuição para o apuramento dos factos, note-se que as testemunhas RC e PO mereceram credibilidade por terem sido funcionários da sociedade arguida, mas também seus credores – tendo um deles sofrido a cessação do seu contrato de trabalho em virtude da insolvência daquela. Embora tal pudesse fazer com que o seu depoimento fosse tendencial, a objectividade e clareza dos mesmos ao referir ambas essas situações, e que, apesar dos atrasos nos pagamentos, a sociedade arguida não ficou a dever-lhes remunerações, demonstrou que nenhum desses factores corrompeu os seus depoimentos.
Globalmente consideradas, as declarações do arguido também conduziram à prova do facto 9, pois o reconhecimento pelo mesmo de que, enquanto legal representante de uma sociedade e encarregado da gerência da mesma, deduziu às remunerações pagas o montante correspondente às quotizações e não o entregou à Segurança Social no momento em que eram devidas arreda peremptoriamente o cenário de que este não tivesse vontade de se comportar como se comportou ou conhecimento da censurabilidade dos seus actos e das consequências dos mesmos, como é de esperar da generalidade das pessoas em circunstâncias semelhantes – encarregados do cumprimento dos deveres legais das sociedades que representam.
Importa, contudo, realçar que as dificuldades de tesouraria e a falta de liquidez da sociedade arguida, a celebração posterior de acordos de pagamento destas quantias ou a vontade de as pagar em momento posterior (e a convicção de que viria a fazê-lo, que o arguido revelou ao declarar que «sem a insolvência [da sociedade arguida], a ideia era pagar») em nada contende com o supra afirmado, uma vez que nenhuma dessas circunstâncias afasta que, no momento em que devia ter procedido ao pagamento das quantias concretamente referidas na acusação, o arguido tenha tido a intenção de não proceder a tal pagamento (apenas preferindo, perante a insuficiência de meios para proceder a todos, proceder a outros pagamentos, e consequentemente preterindo esse, como deixou cristalino ao afirmar que as verbas disponíveis não davam para tudo e tinha que pagar aos funcionários, pelo que a SS ficou para trás e ainda que, se houvesse dinheiro, teria pago).
Por sua vez, o facto 1 resultou provado a partir do teor da certidão permanente da sociedade arguida e os factos 4 (na parte que não foi abrangida pela confissão do arguido, como é a relativa ao período e ao valor das quotizações que não entregou à SS), 5 e 8 resultaram provados por força da conjugação entre o mapa das quotizações retidas e não pagas e o depoimento da testemunha AA (considerando que, apesar de este ter sido marcado pela falta de memória da mesma quanto a aspectos mais específicos sobre os quais foi interpelada, a testemunha foi clara quanto ao valor em causa, coincidente com o que consta dos mapas juntos aos autos – um com a participação crime, outro com a notificação prevista no artigo 105º, n.º 4, alínea b), do RGIT, outro ainda com o pedido de indemnização civil –, ainda antes de ter sido confrontada com um destes, bem como quanto a ter sido ela a elaborar esses mapas).
O depoimento da testemunha AA foi julgado credível por, não obstante tratar-se de funcionária da aqui demandante, esta demonstrou que o conhecimento dos factos que relatou lhe adveio do exercício das funções que para esta desempenhava (considerando que tais funções se alteraram desde então), tendo até feito uso de documentos na audiência que obteve por força dessas funções, e sido clara quanto às limitações da informação de que dispunha e à origem da mesma.
Acerca dos valores e períodos mencionados nos factos 4 e 5, não se pode ignorar que, apesar de não os ter confirmado, o arguido confirmou ter aposto a sua assinatura na notificação prevista no artigo 105º, n.º 4, alínea b), do RGIT, constante de fls. 29 e 30 (pois, não sendo determinante, também não é irrelevante para a prova dos mesmos, já que revela a consistência dos elementos que foram sendo carreados aos autos e comunicados ao arguido pela SS).
Especificamente sobre a notificação prevista no artigo 105º, n.º 4, alínea b), do RGIT, há que frisar que tal notificação foi pessoal e ocorreu a 20 de Fevereiro de 2022 (data em que corria o prazo para concessão ao arguido da exoneração do passivo restante), conforme resulta das fls. já mencionadas (uma vez que, apesar de constarem dos autos notificações anteriores e um aviso de recepção pelo arguido a 18 de Maio de 2021, não é possível aferir a que comunicação tal aviso de recepção diz respeito – já que a notificação que antecede não está identificada por qualquer número de registo).
Por outro lado, a prova dos factos relativos às insolvências do arguido e da sociedade arguida, isto é, factos 10 a 12 e 15 a 17 (a maioria deles invocados em sede de contestação), decorreu de diversos elementos certificados pelos processos onde as mesmas correram termos, concretamente os processos n.º 390/17.6T8OLH e n.º 209/19.3T8OLH.
Já os factos 13 e 14 resultaram provados de outros elementos probatórios, como os emails juntos à contestação e as informações prestadas pela SS no decurso da audiência de discussão e julgamento. O mesmo se aplica ao facto 18, sem que o arguido, que o alegou, tenha logrado provar o contrário.
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No que diz respeito à situação familiar, económica e social do arguido, relevante para as medidas das penas, atendeu-se às declarações prestadas pelo mesmo, por inexistir, nesse aspecto, qualquer razão para delas se duvidar, considerando como são irrelevantes para a decisão de absolver ou condenar e especialmente como, mesmo em matéria contrária aos seus interesses, o arguido prestou declarações, confessando parte dos factos que lhe foram imputados.
Já quanto aos antecedentes criminais do arguido, também relevante na determinação das penas a aplicar, atendeu-se ao teor do respectivo certificado de registo criminal.
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Os factos que, constando da acusação, do pedido de indemnização civil ou das contestações, não estão reflectidos na factualidade provada nem na não provada não foram considerados por lhes faltar matéria factual, resumindo-se a juízos argumentativos, conclusivos ou matéria de Direito, ou por, contendo matéria factual, esta ser irrelevante para a decisão a proferir.
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2.3. Apreciação do recurso
1.ª Questão
Determinar se estamos perante alguma causa de exclusão da ilicitude, designadamente porque o facto não é ilícito por o recorrente estar perante o cumprimento de um dever imposto por lei ou por ordem legítima da autoridade (art.º 31.º, n.ºs 1 e 2, alínea c), do Código Penal) e/ou perante um conflito de deveres (art.º 36.º, n.º 1, do Código Penal)
Alega o recorrente que foi declarado insolvente, por sentença proferida em 19 de fevereiro de 2019; que no dia 4 de outubro de 2019, foi proferido despacho inicial de exoneração do passivo restante, no qual se determinou, “que a exoneração do passivo restante será concedida aos insolventes V e A desde que estes durante os cinco anos subsequentes ao encerramento do processo de insolvência (período de cessão), cedam ao fiduciário o rendimento disponível que venham a auferir e, ainda, que a obrigação de ”Não fazer quaisquer pagamentos aos credores da insolvência a não ser através do fiduciário e a não criar qualquer vantagem especial para algum desses credores.”; que por despacho de 10 de janeiro de 2023, transitado em julgado a 1 de fevereiro de 2023, foram declarados extintos os créditos sobre a insolvência que subsistiam naquela data, sem exceção dos que não tenham sido reclamados e verificados.
Mais entende que no período de cessão, entre o despacho inicial de exoneração e o despacho final, foi constituído arguido nos presentes autos a 20 de fevereiro de 2022, sendo notificado para pagar ao ISS a 23 de fevereiro de 2022; que neste período de cessão, como decorre da lei e lhe foi imposto por decisão judicial, não podia efetuar pagamentos a terceiros, designadamente aos credores, reconhecidos ou não, muito menos a quem não era seu credor, como o ISS, e todos os rendimentos que obtivesse teriam de ser entregues ao fiduciário, verificando-se, assim, uma causa de exclusão da ilicitude, já que os seus atos foram determinados, não só pelas obrigações que decorrem do CIRE, bem como pela decisão judicial de inicial de exoneração do passivo restante com onde lhe foram impostos os deveres constantes do n.º 4, do art.º 239.º, do CIRE, pelo que os factos não são puníveis, por estar excluída a ilicitude nos termos da alínea c) do n.º 2, do art.º 31.º, do Código Penal (no cumprimento de um dever imposto por lei e por ordem legitima da Juiz dos autos de insolvência; que, em todo o caso, também haveria sempre um cumprimento de deveres que também levaria à exclusão da ilicitude – art.º 36.º, da Lei Penal.
Vejamos.
Na sentença recorrida escreveu-se a este propósito que:
“Retomando a questão das condições objectivas de punibilidade, convém focar o tema de o arguido ter sido notificado para o pagamento do valor deduzido e não entregue e dos respetivos juros no prazo de 30 dias em data em que decorria o período de cessão, após o qual viria a ser-lhe concedida a exoneração do passivo restante e durante o qual estava obrigado a não fazer quaisquer pagamentos aos credores da insolvência a não ser através do fiduciário e a não criar qualquer vantagem especial para algum desses credores, nos termos constantes da contestação, do despacho inicial de exoneração do passivo restante e do artigo 239º, n.º 4, alínea e), do CIRE.
Essa circunstância não é apta a pôr em causa a verificação da referida condição objectiva de punibilidade: o arguido foi notificado, como devia, na qualidade de arguido e de sócio gerente da sociedade arguida e, nessa medida, legal representante da mesma, para proceder ao pagamento da prestação comunicada à SS através da correspondente declaração, com os legais acréscimos. Embora tenha sido notificado em nome próprio, o pagamento para o qual foi notificado não era devido por responsabilidade pessoal (como ocorreria no caso de ser ele o contribuinte em falta com a prestação) mas, ao invés, e como já referido, pelas suas funções enquanto gerente da sociedade arguida, para pagamento de uma dívida daquela. Dito de outro modo, e para aclarar o alcance do afirmado: como bem invocou o arguido em sede de alegações finais, a SS não reclamou quaisquer créditos na sua insolvência pessoal, porque, tanto quanto se apurou, não tem, por ora, qualquer crédito sobre o arguido. Ora, não sendo a SS credora do arguido, qualquer pagamento que este tivesse feito não poderia conduzir ao incumprimento da obrigação que lhe foi imposta para a concessão da exoneração do passivo restante, pois nunca estaria a pagar a um credor da insolvência, e muito menos a criar vantagem especial a algum deles.
Não se verificando qualquer incompatibilidade entre a obrigação de proceder ao pagamento determinado por força da notificação efectuada ao abrigo do disposto no artigo 105º, n.º 4, alínea b), do RGIT, por um lado, e a obrigação de não fazer quaisquer pagamentos aos credores da insolvência a não ser através do fiduciário e a não criar qualquer vantagem especial para algum desses credores, não se descortina qualquer impacto desse pagamento, que não ocorreu, na futura (e então eventual) concessão da exoneração do passivo restante, sem que tenha existido qualquer conflito de deveres que pudesse justificar a falta de pagamento pelo arguido.” – negrito e sublinhados nossos.
Corroborando o entendimento vertido na decisão recorrida, o Ministério Público na sua resposta ao recurso interposto pelo arguido escreve:
“Em primeiro lugar porque, à data em que o ora recorrente foi notificado nos termos e para os efeitos do artigo 105.º, n. 4, al b) do RGIT, e pese embora a sociedade O tenha sido já declarada insolvente – em 26.09.2027 – não estava a mesma liquidada, e extinta (…).
Em segundo lugar, veja-se que o crime aqui em apreciação consuma-se no momento da não entrega dos valores à Segurança Social, ou seja, ao caso concreto, em Junho de 2017, sendo que, a sua punibilidade está dependente do não pagamento, no prazo legal, após notificação legal para o fazer. Como tal notificação ocorreu a 20.02.2022, então, só nos 30 dias seguintes – sem se verificar o pagamento - o crime consumado – em Junho de 2027 - poderá ser punível!!! O facto de o recorrente estar insolvente e estar em período de exoneração do passivo restante, como bem está de ver, não o “ exonera” do cometimento de crimes (…).
Não se vislumbra como discordar desta orientação, sendo certo que a mesma vai ao encontro do que foi decidido por acórdão do TRP, de 22.06.2011, relatado por Olga Maurício, acessível em www.dgsi.pt, no qual pode ler-se o seguinte:
“Na realidade, tal como o arguido defende, o art. 81º do CIRE (Código da Insolvência e Recuperação de Empresas) dispõe, no nº 1, que «a declaração de insolvência priva imediatamente o insolvente, por si ou pelos seus administradores, dos poderes de administração e de disposição dos bens integrantes da massa insolvente, os quais passam a competir ao administrador da insolvência».
Para além disso, decorre da lei que uma das causas de extinção da sociedade é a declaração da sua insolvência - art. 141º, nº 1, al. e), do diploma. Esgotada que seja a sua função social, a sociedade é dissolvida.
Então, se a declaração de insolvência dissolve a sociedade e priva os administradores dos poderes de administração, será que o arguido tem razão nas suas objecções?
Não tem.
Primeiro, a sociedade dissolvida não se extingue de imediato.
A sociedade, dissolvida pela declaração de insolvência, entra em liquidação, não se extingue - art. 146º do CSC.
A extinção só acontece mais tarde, com o registo do encerramento da liquidação, conforme determina o nº 2 do art. 160º do CSC, ao dizer que «a sociedade considera-se extinta… pelo registo do encerramento da liquidação».
A dissolução, por exemplo decorrente da declaração de insolvência, abre uma nova fase na vida da sociedade: a fase de liquidação e partilha.
Mas a sociedade em liquidação não passa a ser uma nova sociedade. A sociedade é a mesma mantendo, nomeadamente, a personalidade de que gozava antes de dissolvida - nº 2 do art. 146º do CSC. Só com o registo da liquidação, como se viu, é que a sociedade se extingue.
E se só com o registo da liquidação é que a extinção ocorre, então até lá tudo decorre com a normalidade possível, embora com as limitações impostas pela lei.
Portanto, a dissolução não determina a extinção da responsabilidade penal.
Quanto à representação da sociedade após o trânsito da declaração de insolvência.
Como se viu, o trânsito em julgado da declaração de insolvência da sociedade aconteceu em 14-7-2008. Um dos efeitos desta declaração é a assunção, pelo administrador da insolvência, da representação do devedor para todos os efeitos de carácter patrimonial que interessem à insolvência – art.º 81º, nº 4, do CIRE.
No entanto foi o arguido que em 12-8-2009 foi notificado nos termos e para os efeitos do art. 105º, nº 4, al. b), do RGIT.
Nos termos do art.º 252º, nº 1, do Código das Sociedades Comerciais, a sociedade é representada pelo gerente.
Por outro lado, com a declaração de insolvência é o administrador que passa a representar o devedor. Mas esta representação, di-lo a lei, circunscreve-se aos aspectos de carácter patrimonial que interessem à insolvência.
Ou seja, tudo o que extravase os aspectos patrimoniais relativos à insolvência não cabe nos poderes de administração do administrador.
Já se viu que não é a declaração de insolvência que extingue a sociedade.
Portanto, ainda há um período na vida útil da sociedade em que coexistirão duas entidades que validamente a representam, embora cada uma no seu campo de intervenção específico que não se sobrepõem.
Ora, um dos aspectos que extravasa o âmbito das questões patrimoniais relativas à insolvência são todas aquelas relativas a processos-crime.
Assim, em todas estas questões a representação da sociedade caberá, portanto, ao respectivo gerente [3].
O art. 105º, nº 4, al. b), do RGIT introduziu uma nova condição de punibilidade aos crimes de abuso de confiança fiscal e abuso de confiança contra a segurança social, ao determinar que o crime só ocorrerá depois de efectuada a notificação do devedor para pagar as quantias em dívida.
Tratando-se, manifestamente, de uma questão de âmbito criminal, nada tem a ver com a insolvência, mas antes com outros aspectos da vida da sociedade.” – [itálico e sublinhados nossos, ressalvando-se, ainda, que referência feita como (3) remete para Carvalho Fernandes/João Labareda, Código dos Processos Especiais de Recuperação de Empresas e de Falência anotado, 1999, p. 392].
Ora, a responsabilidade do arguido pelo pagamento das prestações em falta à Segurança Social deriva ou decorre da prática de um crime e só o pagamento nos períodos em causa (abril a dezembro de 2016 e janeiro a junho de 2017) era apto a afastar a sua responsabilidade criminal, como resulta, aliás, da jurisprudência fixada no acórdão n.º 2/2015, do STJ, do qual saiu a seguinte decisão:
“No crime de abuso de confiança contra a Segurança Social, previsto e punido pelos artigos 107.º, número 1, e 105.º, números 1 e 5, do Regime Geral das Infracções Tributárias (RGIT), o prazo de prescrição do procedimento criminal começa a contar-se no dia imediato ao termo do prazo legalmente estabelecido para a entrega das prestações contributivas devidas, conforme dispõe o artigo 5.º, número 2, do mesmo diploma.”, o que significa o crime está consumado a partir do 21.º dia do mês seguinte àquele a que digam respeito as quotizações devidas e não entregues, pelo que, sem prejuízo dos efeitos que o pagamento nos prazos seguintes (nos 90 dias seguintes ou nos 30 dias após a notificação para pagamento) poderia ter tido na responsabilidade penal do arguido, como refere a sentença recorrida “não é relevante que os credores da sociedade arguida não tenham aceitado o plano de recuperação da sociedade arguida, por essa circunstância não ser apta a afastar tal responsabilidade, uma vez que o processo especial de revitalização em que surgiu tal plano já foi instaurado após o fim do prazo para o pagamento das quotizações devidas.”
Em suma, apesar de o recorrente ter sido declarado insolvente em data anterior à notificação a que alude o art.º 105.º, n.º 4, alínea b), do RGIT, e estar em período de exoneração do passivo restante, como bem está de ver, o crime já havia sido cometido, e não é por estar impedido de proceder a pagamentos aos credores da sua insolvência, que não através dos valores entregues à fidúcia, que o período de exoneração do passivo restante possa operar, como consequência, uma causa de exclusão da ilicitude, como de extinção da responsabilidade criminal da pessoa singular insolvente. Como bem realça o Ministério Público na sua resposta ao recurso “[V]eja-se que é bem claro que a exoneração do passivo restante, como figura do C.I.RE. tem como único propósito – por ser uma execução universal – questões creditórias e não de responsabilidade criminal.”
E alude ao art.º 245.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (CIRE), que dispõe no seu n.º 2, que:
“2- A exoneração não abrange, porém:
a) Os créditos por alimentos;
b) As indemnizações devidas por factos ilícitos dolosos praticados pelo devedor, que hajam sido reclamadas nessa qualidade;
c) Os créditos por multas, coimas e outras sanções pecuniárias por crimes ou contraordenações;
d) Os créditos tributários e da segurança social.”
Neste conspecto, e sem necessidade de mais considerações, improcede o recurso nesta parte.
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2.ª Questão
Determinar se prescreveu a dívida ao demandante Instituto da Segurança Social, IP, de acordo com o art.º 187.º, n.º 1, do Código dos Regimes Contributivos do Sistema Previdencial de Segurança e art.º 60.º, n.º 3, da Lei de Bases Gerais do Sistema de Segurança Social
Diz o recorrente que nunca foi citado para pagar a divida, nem o poderia ser, exatamente porque não houve despacho de reversão e, mesmo que o tivesse havido, a citação do responsável subsidiário, se for efetuada para além dos cinco anos contados do período a que as contribuições à Segurança Social são devidas, o efeito interruptivo operado pela citação do devedor originário, não produz efeitos. A interrupção da prescrição relativamente ao devedor principal (ave de oiro) não produz efeitos quanto ao responsável subsidiário (ora recorrente) se a citação deste, em processo de execução fiscal, for efetuada após o 5.º ano posterior ao da liquidação.
Mais refere que, mesmo que se entendesse, que a constituição de arguido em 20.02.2022, e a notificação para pagar em 23.02.2022 configuram uma citação (e não configura), todas as dívidas anteriores a 20.02.2017 encontram-se prescritas nos termos do artigo 60.º, n.º 3, da Lei de Bases Gerais do Sistema de Segurança Social, assim como no artigo 187.º, n.º 1 do Código dos Regimes Contributivos do Sistema Previdencial de Segurança Social.
Sem razão, ao que cremos.
É verdade que, se não tivesse havido crime, as dívidas à Segurança Social e os respetivos juros de mora, vencidos há mais de cinco anos, estavam prescritos.
Com efeito, fora dos casos em que ocorre um facto típico e ilícito, são apenas aplicáveis as regras sobre liquidação, cobrança e prescrição, quer da obrigação principal, quer dos juros de mora.
E, caso o arguido não tivesse cometido o crime que lhe foi imputado, poderia no local próprio invocar a prescrição, quer das obrigações tributárias, quer dos juros de mora.
Só que no caso houve a prática de um crime.
Tendo havido a prática de um ilícito criminal, cujo facto também é simultaneamente gerador de dano, constitui-se uma nova obrigação, com uma fonte autónoma (responsabilidade civil).
Tal regime mostra-nos, sem qualquer dúvida, que a obrigação surgida na sequência de um facto ilícito tem natureza diversa da obrigação surgida pelo mero incumprimento de uma prestação pecuniária.
Havendo um facto ilícito gerador de danos, o agente suportará todos os danos sofridos com o incumprimento, porque a fonte da obrigação é a responsabilidade civil por factos ilícitos. É o regime regra, previsto nos art.ºs 563.º e 566.º, do Código Civil.
Deste modo, as regras sobre a prescrição, incluindo a suspensão e interrupção, são as regras do Código Civil (como manda o art.º 129.º, do Código Penal) e não as regras sobre a liquidação e cobrança das Contribuições para a Segurança Social.
Como se lê no acórdão deste TRE de 06/10/2020, proferido no processo n.º 64/01.0TALLE.E1, em que foi relatora Ana Barata Brito “[A] responsabilidade tributária e a responsabilidade criminal não se confundem, assentam em pressupostos diversos, independentemente de terem na sua base circunstância ou facto comum, como seja, a não entrega ao fisco de determinada prestação tributária. E também a responsabilidade civil proveniente da prática de crime (fiscal) se distingue da responsabilidade tributária.
A prescrição ocorrida em sede de execução fiscal impede que esta execução prossiga e, consequentemente, que a dívida tributária seja cobrada ali. Mas nada determina em sede de responsabilidade penal e suas consequências, como seja as suas consequências civis.
Inexiste a identidade de causa de pedir (…) sendo aqui (no pedido cível formulado na ação penal) a causa de pedir o facto ilícito e, ali, a dívida tributária.”
Neste conspecto, improcede a questão suscitada.
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3.ª Questão
Determinar se prescreveu o direito de indemnização ao demandante Instituto da Segurança Social, IP, de acordo com o art.º 498.º, n.º 1, do Código Civil
O recorrente não colocou em crise os factos dados como provados pela 1.ª instância.
Estamos no âmbito de um pedido de indemnização civil deduzido em processo penal.
A responsabilidade por factos ilícitos, decorrente da prática de um crime, não se confunde assim, com a responsabilidade administrativa-tributária.
O pedido de indemnização civil em processo penal, no crime de abuso de confiança contra a Segurança Social, não tem por objeto a definição e exequibilidade de ato tributário, mas sim a obrigação de indemnização por danos emergentes da conduta danosa que o integra, com fundamento na responsabilidade por factos ilícitos que daí surge nos termos dos art.ºs 483.º e ss., do Código Civil.
Portanto, e como se sustenta nos acórdãos do STJ, de 11.12.2008 e de 29.10.2009 [invocados no acórdão do STJ, de 27.01.2016, que teve como relatora a Conselheira Helena Moniz, disponível em www.dgsi.pt.], a indemnização pedida nos processos crime por abuso de confiança contra a segurança social não se destina a liquidar uma obrigação tributária para com a segurança social, sendo antes fixada segundo critérios da lei civil, apesar de os factos geradores da obrigação de indemnizar e da obrigação tributária poderem ser parcialmente coincidentes, não podendo naturalmente ser confundidos os seus fins e regimes.
Portanto, e como se afirma no acórdão do STJ, de 27.01.2016 (disponível em www.dgsi.pt e acima citado), “O pedido de indemnização civil em processo penal, no crime de abuso de confiança contra a Segurança Social, não tem por objecto a definição e exequibilidade de acto tributário, mas sim a obrigação de indemnização por danos emergentes da conduta danosa que o integra, com fundamento na responsabilidade por factos ilícitos que daí surge nos termos dos art.s 483 e segs. do Código Civil.”
O prazo de prescrição, de acordo com o art.º 498.º, n.º 3, do Código Civil, é o prazo de prescrição do ilícito criminal, se este for mais longo: “se o facto ilícito constituir crime para o qual a lei estabeleça prescrição sujeita a prazo mais longo, é este o prazo aplicável”. Como o direito à indemnização por factos ilícitos prescreve no prazo de três anos (art.º 498.º, 1, do Código Civil) e o prazo de prescrição do crime é de cinco anos, é este o prazo aplicável [acórdão do STJ, de 27.01.2016 e acórdão do TRP, de 11.05.2016, in www.dgsi.pt].
Assim, o prazo de prescrição do direito à indemnização cível, pelos danos decorrentes da prática do ilícito penal é de cinco anos.
De acordo com o disposto no art.º 129.º, do Código Penal, tal prazo está sujeito às regras previstas na lei civil sobre a contagem, interrupção e suspensão do prazo da prescrição.
O prazo da prescrição só começa a correr quando “o direito puder ser exercido”, nos termos do disposto no art.º 306.º, n.º 1, do Código Civil, e interrompe-se com a citação ou notificação judicial de qualquer ato que exprima a intenção de exercer o direito, face ao disposto no art.º 323.º, n.º 1, do Código Civil, sendo que, nestes casos, o novo prazo só começa a correr a partir do trânsito em julgado da decisão que puser termo ao processo – art.º 327.º, n.º 1, do Código Civil.
Por sua vez, o art.º 77.º, do Código de Processo Penal, regula o exercício do direito à indemnização, estabelecendo os prazos em que o mesmo pode ser exercido. Deste modo, antes da notificação do lesado para deduzir o pedido cível, o direito à indemnização não poderia ser exercido.
Assim, só a partir dessa notificação começou a correr o prazo de prescrição do pedido de indemnização civil [cf. expressamente neste sentido, os acórdãos do STJ, de 27.01.2016 e do TRP, de 11.05.2016 e de 23.02.2011, já citados].
Revertendo para o caso em apreço e compulsados os autos, verifica-se que o lesado (ISS, I.P.) foi notificado da acusação, por carta registada expedida em 10.02.2023 sendo que, nos termos do o art.º 77.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, o prazo para deduzir pedido cível é de 20 dias. Do que decorre que só a partir da referida notificação poderia deduzir o pedido de indemnização civil (art.º 77.º, n.º 2, do Código de Processo Penal). Isto é, só a partir de tal data o seu direito à indemnização poderia ser exercido, considerando o disposto no art.º 71.º, do Código de Processo Penal, que consagra o princípio da adesão, de acordo com o qual o pedido de indemnização civil fundado na prática de um crime é deduzido no processo penal respetivo, com a acusação ou após a pronúncia (art.º 77.º, do Código de Processo Penal), só podendo sê-lo em separado, perante o tribunal civil, nos casos previstos na lei de acordo com o tipificado nas várias alíneas do art.º 72.º, do Código de Processo Penal.
Assim, nos termos do art.º 306.º, n.º 1, do Código Civil, só a partir daí o direito à indemnização poderia ser exercido e, portanto, só a partir de então poderia começar a correr o prazo da respetiva prescrição. Nos termos do art.º 323.º, n.º 1, do Código Civil, a prescrição interrompeu-se com a notificação do arguido/devedor de que foi deduzido o pedido de indemnização civil, o que sucedeu através da carta expedida a 09.11.2023, altura em que foi notificado para contestar tal pedido (como resulta da análise do histórico do processo, resultante da plataforma citius).
Dado que a interrupção da prescrição resultou da notificação da dedução do pedido de indemnização civil (presumivelmente, cinco dias após ter sido requerida – art.º 323.º, n.º 2, do Código Civil), o novo prazo só começa a correr a partir do trânsito em julgado da decisão que puser termo ao processo (art.º 327.º, n.º 1, da Lei Civil). Do que decorre que, manifestamente, o aludido prazo de cinco anos ainda não decorreu (o prazo foi interrompido e o novo prazo ainda não começou a correr, já que a sentença proferida pelo tribunal de primeira instância não transitou em julgado), não se verificando, consequentemente a invocada prescrição.
Improcede o recurso neste segmento.
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4.ª Questão
Caso assim não se entenda, determinar se o pedido cível deduzido pelo demandante Instituto da Segurança Social, IP deveria ter sido julgado improcedente; a alegada responsabilidade subsidiária do arguido; a decisão de reversão e suas consequências
Entende o recorrente que não é devedor ao ISS e que a própria decisão o refere “a SS não é credora do arguido ...” ; a devedora era a sociedade O; que o ora recorrente a ser devedor, sê-lo-ia subsidiariamente, por via de um despacho de reversão; que a responsabilidade subsidiária efetiva-se por reversão do processo de execução fiscal, sendo certo que não houve qualquer despacho de reversão, pelo que não é subsidiariamente responsável pelas dividas da sociedade O, por isso, o ISS, notificado sua na insolvência a 20 de Fevereiro de 2019, não reclamou qualquer crédito, pelo que não pode ser condenado no pedido de indemnização civil; nunca foi citado para pagar a divida, nem o poderia ser, exatamente porque não houve despacho de reversão.
Lendo a sentença, só há que dizer que não assiste a mínima razão ao recorrente, pois o tribunal a quo fundamentou de direito a condenação do recorrente no pedido cível em normas tipicamente civilísticas, designadamente, no art.º 483.°, do Código Civil.
Vejamos.
Sabemos que há três tipos de responsabilidade:
- a tributária, ou seja, a responsabilidade pela totalidade da dívida tributária, pelos juros e pelos demais encargos legais, regulada, nomeadamente, pela Lei Geral Tributária;
- a penal tributária, a que deriva do Regime Geral das Infrações Tributárias e é regulada por este diploma e, subsidiariamente, pelo Código Penal; e
- a civil, a nascida da infração criminal tributária e que aquele primeiro diploma, ao determinar a aplicação subsidiária das disposições do segundo, sem qualquer restrição e, portanto, também do seu artigo 129.º, manda regular pelas disposições do Código Civil e legislação complementar.
A obrigação de indemnizar, neste âmbito, pressupõe que estejam verificados os pressupostos da responsabilidade civil por facto ilícito, previstos no citado art.º 483.º, do Código Civil, ex vi do disposto no art.º 129.º do Código Penal, quais sejam: o facto voluntário do agente, a ilicitude, a culpa, o dano e o nexo de causalidade entre o facto e o dano.
O facto voluntário, traduz-se numa ação ou omissão, dominada ou dominável pela vontade humana.
A ilicitude emerge da violação de um direito de outrem (direitos subjetivos) ou a violação de um preceito que protege interesses alheios.
A culpa, que pode revestir a forma de dolo ou de negligência, consiste no juízo de censura ao agente por ter adotado a conduta que adotou, quando de acordo com o comando legal estaria obrigado a adotar conduta diferente.
Conforme resulta da factualidade provada e não provada, uma vez que se provou que o arguido praticou um crime de abuso de confiança contra a Segurança Social, causando-lhe danos no montante peticionado, conclui-se pela obrigação de indemnizar o demandante nesse valor.
Por outro lado, o art.º 497.º, do Código Civil, consagra o princípio da responsabilidade solidária, no âmbito da responsabilidade civil de natureza delitual, quando forem várias as pessoas responsáveis pelos danos. Por isso, sendo coautores de um crime abuso de confiança contra a Segurança Social, uma sociedade (neste caso Ave de Oiro) e o seu gerente, são ambos responsáveis, solidariamente, pelo pagamento da indemnização (sendo certo que tendo sido julgada extinta, esta sociedade O já não pode ser responsabilizada nem penal, nem civilmente).
O que significa que seria solidária, e não meramente subsidiária, a responsabilidade do arguido/recorrente, conjuntamente com a responsabilidade da sociedade infratora que representava como gerente, pelo pagamento da indemnização ao Estado por danos causado em consequência da conduta infratora, por decisão do arguido ora recorrente, na qualidade de gerente da referida sociedade.
Assim, o administrador ou gerente da empresa que seja também agente do crime, não responderá subsidiariamente, mas solidariamente, como solidariamente respondem todos os demais agentes, nos termos do que dispõe o art.º 497.°, do Código Civil.
Não estamos no plano das execuções fiscais, mas no âmbito de uma ação cível conexa com uma criminal.
É nas execuções fiscais que se verificam as reversões tributárias.
A reversão de execução fiscal consiste num regime que determina a responsabilização de uma determinada pessoa, a título subsidiário, pelas dívidas tributárias de outrem e que surge numa fase patológica da relação jurídica tributária, ou seja, uma vez terminados os procedimentos de execução fiscal contra o devedor originário sem que os créditos do Estado tenham sido satisfeitos, há que prosseguir, então, para a reversão da execução fiscal contra os responsáveis subsidiários legalmente indicados.
O que temos na nossa frente, à saciedade, é o plano da indemnização por danos, nascida da prática de factos ilícitos que integram a previsão penal de crimes e que geraram responsabilidade civil.
Sendo assim, resta confirmar in totum a decisão proferida pelo tribunal de 1.ª instância.
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III – DECISÃO
Nestes termos, acordam, em conferência, os Juízes que integram a 2.ª subsecção criminal do Tribunal da Relação de Évora, em negar provimento ao recurso interposto pelo arguido A e confirmar a sentença recorrida.
Custas a cargo do recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 4 (quatro) UC (art.ºs 513.º e 514.º, ambos do Código de Processo Penal, e art.º 8.º, n.º 9, e Tabela III do Regulamento das Custas Processuais).
Notifique.
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O presente acórdão foi elaborado pela relatora e integralmente revisto pelos seus signatários – art.º 94.º, n.º 2, do Código de Processo Penal.

Évora, 30 de setembro de 2025

Maria José Cortes
Fernando Pina
Fátima Bernardes