Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
1271/23.0T8STB.E1
Relator: SÓNIA MOURA
Descritores: JUSTIFICAÇÃO NOTARIAL
INVERSÃO DO TÍTULO DE POSSE
NULIDADE DE ACTO NOTARIAL
Data do Acordão: 07/10/2025
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: 1. A inversão do título de posse por oposição do detentor traduz-se na prática de atos que revelem inequivocamente que o opositor se considera o titular do direito e, por isso mesmo, a oposição deve chegar ao conhecimento da pessoa contra quem o opositor pretende exercer o direito.
2. Assim, a inversão do título de posse é revelada pela modificação da atuação do detentor, exteriorizada de forma concludente, pelo que, como se afirma no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 09.12.2012, “Esta oposição (…) há-de manifestar-se através dos actos e sinais exteriores que convençam aqueles que os assistem de que houve uma transmutação radical, efectiva e essencial no modo de actuar e estar do sujeito que operou a inversão do titulo possessório de modo a inculcar uma mudança do paradigma jurídico em que exercita um novo direito."
(Sumário da Relatora)
Decisão Texto Integral: Apelação n.º 1271/23.0T8STB.E1
(1ª Secção)

Sumário: (…)

(Sumário da responsabilidade da Relatora, nos termos do artigo 663.º, n.º 7, do Código de Processo Civil)


***

Acordam na 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora:


I - Relatório
1. IAPMEI IP – Agência para a Competitividade e Inovação intentou ação de impugnação de escritura de justificação notarial contra (…) e (…), pedindo que seja declarada a nulidade da escritura de justificação notarial lavrada no Cartório Notarial de (…), no dia 13.01.2023, relativa ao prédio misto descrito na Conservatória do Registo Predial de Sines sob o n.º (…), da freguesia e concelho de Sines, com a correspondente matriz predial rústica sob o artigo (…), secção (…), e matriz predial urbana sob o artigo (…), da freguesia e concelho de Sines.

Alega, em síntese, que em 13.01.2023, os RR. outorgaram escritura de justificação, através da qual declararam ter adquirido, por usucapião, o prédio misto, que identificam na petição inicial, e que o referido imóvel, por volta de 1974, tendo em conta o projeto de expansão do complexo industrial da Refinaria de Sines e o projeto para a constituição de uma plataforma industrial ligada a um novo terminal oceânico, foi expropriado por imposição do Estado Português, com vista à integração da sua área na expansão do referido complexo industrial.

Em 16.05.1974, os pais da R. venderam o imóvel ao Gabinete de Sines.

Mais alegam que o imóvel em questão não poderia ter sido adquirido por via da usucapião, porquanto o Gabinete da Área de Sines nunca pretendeu devolver o prédio em questão, conforme foi declarado pelos RR. em sede de escritura de justificação.

2. Os RR. apresentaram contestação, na qual alegam que aquando da celebração da escritura de compra e venda do imóvel, em 16.05.1974, o Gabinete da Área de Sines disse aos pais da R. que poderiam continuar a utilizar o imóvel que tinham vendido, se deles fosse, pois a venda tinha sido realizada por mera cautela, por não estar ainda definido se aquela área iria ou não, efetivamente, integrar a referida plataforma industrial e que, se nenhuma obra fosse levada a cabo, o imóvel ser-lhes-ia formalmente restituído.

Invocam que a sua posse, juntamente com a posse dos antepossuidores, pais da R., dura há mais de 34 anos, pelo que recorreram ao instituto da aquisição para adquirir a propriedade do imóvel, termos em que, defendem, deverá a ação improceder.

3. Proferiu-se despacho saneador e realizou-se audiência de julgamento, após o que foi proferida sentença com o seguinte dispositivo:

Nos termos e pelos fundamentos expostos, o Tribunal julga a presente acção totalmente procedente e, em consequência, decide-se:

A) Considerar impugnado, para todos os efeitos legais, o facto justificado na escritura lavrada no Cartório Notarial de (…) no dia 13 de Janeiro de 2023, declarada a nulidade da escritura de justificação notarial relativamente ao prédio misto descrito na Conservatória do Registo Predial de Sines sob o n.º (…) da freguesia e concelho de Sines, com a correspondente matriz predial rústica sob o art.º (…), secção (…) e matriz predial urbana sob o art.º (…) da freguesia e concelho de Sines;

B) Declarar nula e ineficaz a referida escritura de justificação notarial, por forma a que os RR. não possam, através dela, registar quaisquer direitos sobre o prédio nela identificado e objecto da presente impugnação;

C) Ordenar o cancelamento dos respectivos registos.”

4. Inconformados com a sentença, os RR. apelaram da mesma, formulando as seguintes conclusões nas suas alegações:

No que respeita à impugnação da decisão sobre a matéria de facto

- os concretos pontos de facto que os recorrentes consideram incorretamente julgados constam dos pontos 18, 21, 28 (in fine) e 29.

- No que respeita ao ponto 18, é referido que, do relatório elaborado pelo ICNF, datado de 17.01.2022, constam os nomes de (…), aqui R. e (…), antigo proprietário do prédio.

- Consta do processo o relatório em causa (doc. 9 junto à contestação), mas não contém qualquer data, pelo que a redação do ponto 18 deverá ser:

- Do relatório elaborado pelo ICNF, sem data, constam os nomes de (…), aqui R. e (…), antigo proprietário do prédio.

- No que respeita ao ponto 21, é referido que, no dia 07 de julho de 2021, foi recebido um email, em que era remetente (…), onde questionou a possibilidade de aquisição do prédio objecto dos autos, informação que consta de um ofício do ICNF.

Efetivamente consta do oficio datado de 17 de Janeiro de 2022 emitido pelo ICNF (junto aos autos pela A. como doc. 10), que (…) enviou à DGF um pedido de informação sobre a possibilidade de aquisição do imóvel.

A testemunha … (págs. 72, 73, 74 e 75 da transcrição minuto 9 a 12) esclareceu que o que se pretendia era legalizar a aquisição, no sentido de formalizar “preto no branco” a propriedade dos seus pais, aqui recorrentes, pois efetivamente nunca tinha sido outorgada uma escritura e os recorrentes não tinham “papéis” e já o avô, pai da recorrente, manifestava essa preocupação e acabou por falecer sem ter os “papéis” das suas casas e das suas terras, declarações corroboradas pela testemunha … (págs. 30 e 31 da transcrição minuto 7, 8 e 9).

Pelo que a redação do ponto 21 deverá ser:

- Consta de um ofício do ICNF datado de 17 de Janeiro de 2022 que, no dia 07 de julho de 2021, foi recebido um email, em que era remetente (…), onde questionou a possibilidade de aquisição do prédio objecto dos autos, no sentido de legalizar/formalizar a aquisição.

- No que respeita ao ponto 28 (in fine), consta que a Ré, …, ainda lá vive com o marido e com o pai, sendo que o pai faleceu em 2023, conforme depoimento das testemunhas … (pág. 29 da transcrição minuto 6) e … (pág. 69, minuto 6 e pág. 73, minuto 19), razão pela qual a redação do ponto 28 deverá ser:

- A Ré, (...), com 62 anos, nasceu na casa originalmente existente no imóvel e sempre lá viveu, primeiro com os pais e com o irmão, depois com o Réu, marido (com quem casou há 44 anos), e depois com as filhas, (…) e (…), atualmente com 43 e 40 anos respetivamente, e ainda lá vive com o marido”.

- No ponto n.º 29 dos factos provados, na sequência dos factos dados como provados no ponto 28, consta:

Porém, sempre com a consciência que o Gabinete da Área de Sines, proprietário, poderia vir a tomar posse, com vista à integração da área do prédio no dito complexo e projeto industriais.

- Na alínea b) dos factos não provados consta que

Um representante do Gabinete da Área de Sines informou os pais da R., no decurso do ano 1988, que não mantinham mais interesse na aquisição que tinha sido formalizada sobre o imóvel por não ter sido englobado no projeto de expansão.

- De facto, os pais da recorrente, quando venderam o prédio ao GAS, em 1974, foram informados que poderiam continuar a utilizar o imóvel, ali residindo em contexto familiar, como se o imóvel fosse deles, sendo que posteriormente o Estado tomaria uma decisão definitiva quanto ao interesse no imóvel para fins de interesses públicos Mas

- também é um facto que os pais da recorrente foram informados por um representante do GAS, necessariamente antes de Dezembro de 1988, data da extinção do GAS, que o imóvel lhes seria devolvido, uma vez que não mantinham mais interesse no imóvel (sendo que essa informação, ainda que nenhuma testemunha o tenha dito de forma expressa, terá de ter ocorrido antes de 1988, tendo em conta que o GAS foi extinto em Dezembro de 1988, conforme consta do facto provado 12).

- Este facto resultou inequivocamente do depoimento prestado pela testemunha … (ao minuto 7, 8 e 9 – págs. 15 a 17 da transcrição), vizinha dos recorrentes há 54 anos, senhora com 81 anos, perfeitamente lúcida e cujo depoimento foi plenamente seguro, isento, objetivo e coerente, merecedor de total credibilidade, tendo revelado um conhecimento direto dos factos, uma vez estava presente quando o representante do GAS disse aos pais da recorrente que prédio objeto dos autos ia ser-lhes restituído porque o GAS já não precisava para os fins que tinham justificado a expropriação.

Mas o Tribunal não considerou este facto, cingindo-se a fundamentar a sentença no facto de os pais da recorrente terem sido informados, em 1974, de que poderiam continuar a utilizar e residir no imóvel como se fosse deles, e posteriormente o Estado tomaria decisão definitiva quanto ao interesse no imóvel para fins de interesses públicos.

Mais, O Tribunal a quo, apesar do depoimento claro e inequívoco da testemunha (…), deu como não provado (alínea b) dos factos não provados) que um representante do GAS informou os pais da recorrente que não mantinham mais interesse na aquisição que tinha sido formalizada sobre o imóvel, pelo que o imóvel lhes iria ser restituído.

O Tribunal a quo também não considerou os factos relatados pela testemunha (…), ao minuto 18, 19 e 20 (págs. 38 e 39 da transcrição), pessoa que conhece há muitos anos os recorrentes e conhecia os pais da recorrente, cujo depoimento foi plenamente seguro, isento, objetivo, coerente, merecendo total credibilidade.

Não pode pois deixar de se concluir que os concretos meios probatórios existentes no processo, resultantes do depoimento das testemunhas, impunham uma decisão diversa quanto ao ponto 29 da matéria de facto, pelo que se verifica um flagrante erro de apreciação da prova testemunhal, devendo a redação do ponto 29 passar a ser:

Até 1988, com a consciência que o Gabinete da Área de Sines, proprietário, poderia vir a tomar posse, com vista à integração da área do prédio no dito complexo e projeto industriais e, após 1989, com a convicção (os pais da recorrente e depois os recorrentes) de que o Gabinete da Área de Sines já não ia precisar do imóvel, pelo que já não viriam tomar posse do mesmo (cuja venda tinha sido realizada por mera cautela, conforme considerado provado – ponto 26 – por não estar ainda definido se aquela área iria ou não, efetivamente, integrar a referida plataforma industrial) e que a propriedade do mesmo ia ser-lhes restituída, informação dada por um representante do Gabinete da Área de Sines que se deslocou ao imóvel, no decurso do ano de 1988, referindo que já não mantinham mais interesse no imóvel.

- No que respeita às alíneas a), b) e c) dos Factos não Provados

Os concretos meios probatórios existentes no processo, uma vez mais decorrentes dos depoimentos das testemunhas, impunham que se julgasse como provado o facto constante da alínea b) (já integrado acima no ponto 29 dos factos provados), pelo que deverão somente manter-se como Factos não Provados as alíneas a) e c) (passando a alínea c) a ser a alínea b).

No que respeita à matéria de direito

- não se verificou, pelo Tribunal a quo, qualquer erro na determinação da norma jurídica aplicável, tendo sido aplicadas precisamente as normas jurídicas, que no entendimento dos recorrentes, deveriam ter sido aplicadas, designadamente os artigos 1263.º, alínea d) e 1265.º do Código Civil, que prescrevem que a inversão do título de posse é uma forma de aquisição da posse, inversão essa que pode dar-se por oposição do detentor do direito contra aquele em cujo nome possuía ou por acto de terceiro capaz de transferir a posse;

- no entanto, as referidas normas jurídicas aplicáveis e efetivamente aplicadas pelo Tribunal a quo, constituindo fundamento jurídico da douta sentença recorrida, não o foram no sentido com que, no entender dos recorrentes, deviam ter sido interpretadas e aplicadas;

- uma vez que foi entendido pelo Tribunal a quo que os recorrentes não lograram provar ter invertido o título da posse, o que manifestamente vai ao arrepio de toda a matéria de facto que inclusivamente o Tribunal a quo considerou provada e que se encontra vertida nos pontos 33, 34, 35, 31 e 32 conjugados com os pontos 17, 18, 19, 23 da sentença, consubstanciando o primeiro grupo de pontos os diversos atos materiais perpetrados pelos pais da recorrente e posteriormente pelos recorrentes e o segundo grupo de pontos a demonstração clara e inequívoca e expressamente reconhecida pela A. nos autos de que o titular registal (Direção Geral de Florestas, atual ICNF, conforme considerando 2ºi) da PI) do prédio objeto da justificação notarial era plenamente conhecedor de todos esses atos materiais e, portanto, da atuação dos possuidores como se fossem titulares do direito de propriedade, sem que nunca, desde 1989 até 19 de Março de 2023, ou seja, durante 33 anos, o titular registal tivessem manifestado qualquer oposição (nem sequer após o ICNF ter recebido em 11 de novembro de 2022 a notificação do cartório notarial de que o imóvel em apreço ia ser objeto de uma justificação notarial, conforme como doc. 1 da contestação), não tendo sido alguma vez repelida pelo titular registal a notória posse exercida pelos recorrentes durante 33 anos com evidente animo de proprietários, nunca tendo ocorrido qualquer ato do ICNF que traduzisse o exercício do alegado direito de propriedade que lhe pertence.

- em bom rigor, no caso dos autos, entendem os recorrentes que inclusivamente têm de ter-se por verificadas as duas formas de aquisição da posse por via da inversão do título de posse por ato de terceiro capaz de transferir a posse – uma vez que consideram os recorrentes que ficou demonstrado, por prova testemunhal, que um representante do GAS informou os pais da recorrente que já não tinham interesse no imóvel e que este lhes iria ser restituído – devendo este ato de terceiro (GAS) ser considerado como ato capaz de transferir a posse;

e por oposição do detentor do direito contra aquele em cujo nome possuía – manifestada em todos os atos materiais de posse com animo de proprietário, designadamente os que constam do ponto 33 da sentença considerados provados, ou seja, o facto de os pais da recorrente e os recorrentes terem, precisamente a partir do ano (1989) em que o GAS os informou que iriam voltar a ser proprietários, construído mais uma série de edificações (mais uma habitação, mais um anexo com cozinha, casa de banho e garagem e ainda mais duas garagens e um armazém), tudo bem visível a partir da via pública, uma vez que o imóvel se situa à beira da Estrada Municipal Sines-(...) (ponto 23 da matéria dada como provada).

Ora, decorre da lei (artigos 1263.º, d) e 1265.º CC) que quem exerce a posse em nome alheio só pode adquirir o direito de propriedade se ocorrer inversão do título de posse, ou seja, se, a partir de certo momento, passar a exercer o domínio contra quem atuava como dono, com a intenção, agora, de atuar, inequivocamente, como titular daquele direito, podendo, como dito supra, tal inversão também ocorrer por acto de terceiro, hábil para transferir a posse.

A inversão do título da posse supõe a substituição de uma posse precária, em nome de outrem, por uma posse em nome próprio, operando-se a substituição de uma situação sem relevo jurídico especial por uma posse com todos os seus requisitos e com todas as suas consequências legais, tornando o detentor directamente conhecida da pessoa em cujo nome possuía (quer judicial quer extrajudicialmente) a sua intenção de actuar como titular do direito”.

Conhecimento que, como explanado supra, foi inclusivamente reconhecido pela A. e consta como facto provado (pontos 17, 18, 19, 23 da sentença).

Salvo o devido respeito, não pode deixar de ser reconhecido que ocorreu a inversão do titulo da posse dos pais da recorrente (que os recorrentes continuaram) a partir do ano de 1989, ano em que, dada a indicação do GAS, voltaram a possuir o imóvel com convicção de serem novamente seus proprietários, após se terem mantido no imóvel, como meros detentores, durante 15 anos, mais exatamente desde 1974 (data da expropriação com indicação que podiam continuar a utilizar o imóvel, mas poderiam a qualquer momento ter de sair). Só após esses 15 anos, concretamente por volta de 1989, os pais da recorrente e depois os recorrentes construíram todas as edificações descritas no ponto 33 da matéria de facto dada como provada na douta sentença, num total de área coberta adicional à que existia de cerca de 150 m2 (mais uma casa para habitação, uma outra edificação para cozinha, casa de banho e garagem e ainda duas edificações para garagem e armazém das rações dos animais).

A construção de todas estas edificações são atos públicos conhecidos do ICNF, conforme a própria A. reconhece na PI e é facto considerado provado nos pontos 17, 18, 19, 23 da douta sentença.

O ICNF tinha pleno conhecimento da edificação de todas estas construções, mas decorreram 33 anos, desde 1989 até 2023, sem qualquer reação que repelisse os atos dos recorrentes ou os consciencializasse que aquele prédio não lhes pertencia.

Saliente-se, ainda que sem conceder, que os atos de posse, entenda-se todas as edificações construídas, até poderiam não ser conhecidos do ICNF, bastando que fossem cognoscíveis, como são, para que a atuação dos recorrentes tivesse, como tem, relevância jurídica tipificada como inversão do titulo da posse.

Os atos de posse com animo de proprietário estão bem à vista (e há muitissimo tempo, 33 anos) de quem poderia reagir à inversão do título possessório, mas quem poderia reagir não o fez; pelo contrário, manteve uma completa inércia, conformando-se plenamente com as construções e a habitação permanente das gerações que se foram sucedendo (os pais da recorrente, os recorrentes e as filhas dos recorrentes).

Os recorrentes sempre agiram de boa fé, nunca escondendo nada do que faziam, pois tudo o que fizeram foi na convicção de que o prédio lhes pertencia ainda que não tivessem “papéis” e quantos mais anos passavam (e passaram muitos) mais se arreigava no seu espírito que o prédio era seu, configurando um clamoroso abuso de direito vir agora, 33 anos depois, o IAPMEI reclamar a propriedade do prédio.

É inequívoco que os pais da recorrente e dos recorrentes praticaram atos positivos materiais ou jurídicos, inequívocos, reveladores que quiseram, a partir de 1989, atuar como se tivessem sobre o prédio o direito real de propriedade que, até então, consideravam pertencente a outrem (o GAS), tendo sido todos esses atos praticados na presença ou com o consentimento do GAS e das entidades que se lhe seguiram, no caso a Direção Geral de Florestas e o ICNF, que nunca repeliram os atos e o comportamento dos recorrentes (que se comportaram desde 1989 como proprietários, através de um único ato que traduzisse o exercício do suposto direito de propriedade que alegadamente lhes pertence sobre o prédio, apesar de todos os atos de posse dos recorrentes serem plenamente conhecidos dos interessados diretos ou indiretos.

Os factos materiais e concretos provados denunciam, pois, clara e inequivocamente atos de oposição dos recorrentes em relação ao anterior proprietário, o GAS/o Estado, suscetíveis de consubstanciar a inversão da posse, de modo a poder concluir-se que, de possuidores em nome alheio (entre 1974 e 1988), passaram, a partir de 1989, à qualidade de possuidores em nome próprio do direito de propriedade, sempre com consciência de que agiam em seu nome e no seu interesse (e nunca em nome e no interesse de um terceiro, suposto proprietário).

Os recorrentes, além de exercerem um poder de facto sobre o prédio, sem entraves de outrem (corpus), exerceram esse poder com a intenção de ter a coisa para si (animus sibi habendi), isto é, actuaram por forma correspondente ao exercício do direito de propriedade, utilizando o prédio como se fosse seu, afastando a suposta dominialidade de qualquer terceira entidade (isso mesmo demonstram os factos provados nos pontos 33, 34, 35, 31 e 32 da douta sentença) pela pratica reiterada desde 1989 de todos os actos próprios de proprietários e no convencimento dessa qualidade, aí residindo permanentemente, recebendo familiares e amigos, pagando os consumos de energia, água, comunicações e outras despesas (docs. 2 a 6 da contestação.

A atuação exterior dos recorrentes, desde 1989, além de ser plenamente compatível e consentânea com o exercício do direito de propriedade (o corpus), foi uma atuação com a intenção de agirem como beneficiários do direito de propriedade (o animus possidendi), exteriorizando os recorrentes uma vontade categórica de possuir em nome próprio, revelada por diversos atos positivos de oposição ao proprietário registal, tendo-se, pois, invertido o título de posse, passando de meros detentores ou possuidores em nome alheio a possuidores em nome próprio, convictos de serem proprietários, relevando a sua posse para usucapir o prédio em apreço nos autos.

Comprovada a intenção dos recorrentes de agir com o direito animus possidendi, estamos perante uma posse hábil para usucapir.

Os pais da recorrente e depois os recorrentes vêm há mais de trinta anos, sem interrupção, a residir permanentemente no imóvel, construindo várias obras, que são visíveis de todos, obras que apresentam carácter permanente, à vista de toda a gente, pacificamente, sem oposição de ninguém, na convicção de a ninguém prejudicar ou lesar direitos e na convicção de estar a exercer um direito próprio, convencidos que são donos, pelo que não pode se não concluir-se que exercem sobre o imóvel uma posse com animo de proprietários, sendo pois plenamente legitima a aquisição por usucapião desse direito de propriedade.

O Tribunal a quo fundamentou a sua decisão de anulação da escritura de justificação no facto de não bastar o exercício de poderes de facto para se verificar a inversão do título de posse, sendo necessário que o detentor torne diretamente conhecida da pessoa em cujo nome possuía a sua intenção de atuar como titular do direito.

Entendeu, pois, o Tribunal a quo que os pais dos recorrentes e depois os recorrentes somente exerceram poderes de facto sobre o imóvel sem tornarem diretamente conhecida da titular registal a intenção de atuarem como titulares do direito de propriedade.

A questão está na interpretação/aplicação dada pelo Tribunal a quo às normas jurídicas aplicáveis ao caso sub judice, designadamente os artigos 1263.º, alínea d), 1265.º e 1290.º do Código Civil, interpretação essa que levou à conclusão, errada no entender dos recorrentes, de considerar que não se verificou uma inversão do titulo da posse e que os recorrentes sempre atuaram como meros possuidores precários ou detentores.

As referidas normas jurídicas deveriam sim ter sido interpretadas e aplicadas pelo Tribunal a quo no sentido exatamente inverso, uma vez que todos os atos de posse praticados pelos pais da recorrente e pelos recorrentes após 1989, e durante os 33 anos seguintes, consubstanciaram (e consubstanciam) uma verdadeira, inequívoca e efetiva inversão do título da posse.

Considerou o Tribunal a quo que os recorrentes não tornaram diretamente conhecida do GAS/ICNF a intenção de atuarem como proprietários.

Mas ficou sobejamente demonstrado que os pais da recorrente e depois os recorrentes, após 1989, passaram a atuar como verdadeiros proprietários, tendo ampliado consideravelmente (em mais cerca de 150 m2) a pequena habitação que existia, tendo edificado todas as construções que constam do ponto 33 dos factos provados à luz do dia, à vista de todos e, particularmente, à vista do ICNF, que reconheceu nos autos (artigo 15º da PI) que faz visitas periódicas aos terrenos, tendo até junto um relatório (doc. 9 da PI) do qual consta expressamente o conhecimento da posse do imóvel em questão pelo pai da recorrente e pelo marido da recorrente.

Ora, o artigo 1265.º do CC estabelece que a inversão do título da posse pode dar-se por oposição do detentor do direito contra aquele em cujo nome possuía ou por acto de terceiro capaz de transferir a posse.

A forma como o Tribunal a quo interpretou e aplicou esta norma, designadamente a parte referente à “oposição do detentor do direito contra aquele em cujo nome possuía”, levou à conclusão de que os recorrentes não efetuaram esta oposição.

O sentido com que, no entender dos recorrentes, esta norma, que constituiu o fundamento jurídico da decisão, devia ter sido interpretada e aplicada é precisamente o inverso, ou seja, tem de considerar-se amplamente verificada a oposição dos pais dos recorrentes e depois dos recorrentes.

Porque resultou provado, por via da prova documental e da prova testemunhal que

- os pais da recorrente e os recorrentes, desde 1989, tornaram "diretamente" conhecida do GAS/ICNF, extrajudicialmente, a sua intenção de atuar, no plano dos factos e empiricamente, como sendo titulares do direito de propriedade, tendo efetivamente praticado atos como sendo donos;

- os pais da recorrente e depois os recorrentes praticaram, desde 1989, diversos atos positivos, materiais, inequívocos, reveladores de que queriam (e querem) atuar como se tivessem sobre o imóvel o direito real de propriedade que até então consideravam pertencente ao GAS, atos praticados na presença, com o conhecimento expresso e com o consentimento tácito (durante 33 anos) e sem qualquer oposição da entidade à qual os atos se opunham (e opõem);

- a oposição dos pais dos recorrentes e depois dos recorrentes nunca, em 33 anos, foi repelida pelo GAS/ICNF através de qualquer ato (nem um único) que traduzisse o exercício do seu suposto direito de propriedade;

- a usucapião é o efeito mais relevante da posse formal já que faculta ao possuidor a aquisição do direito real de gozo correspondente à própria posse, sancionando, desse modo, a inércia do titular registal do direito, revestindo, pois, a usucapião um carácter sancionatório da inércia (ao titular do direito que vai ser aniquilado pelo direito originado por usucapião é imputável a inércia de não ter reivindicado a restituição da coisa ao possuidor);

- a oposição dos pais dos recorrentes e depois dos recorrentes nunca foi comunicada por escrito ao GAS/ICNF, nem tinha de ser pois a conduta de oposição não tem forçosamente um conteúdo de comunicação formal a um destinatário; o efeito da oposição, ou seja, a constituição da posse, é obtido por via de um comportamento não declarativo do detentor, tratando-se antes de um acto jurídico; o comportamento de oposição deve ser exteriormente cognoscível ou reconhecível pelo suposto proprietário, quando a oposição não lhe é comunicada e significar, inequivocamente, a afirmação de um direito próprio pelo detentor (pais da recorrente e recorrentes), diverso naturalmente do até aí exteriorizado por eles (pais da recorrente e recorrentes);

- Os atos praticados configuram, em si mesmos, a notificação do novo animus: um notum facer e, uma declaração notificativa, ou seja, uma actividade que leva uma informação ao conhecimento de um terceiro, enquanto acto comunicativo ou medida de conhecimento que, colocando a informação ao alcance do interessado, faz depender exclusivamente da vontade dele o respectivo conhecimento (sendo o que basta);

- É o que basta, nada mais sendo exigível aos detentores que passaram a ser possuidores em nome próprio, com animo de proprietários, invertendo-se o titulo da posse, no caso, desde 1989;

- A usucapião apenas opera na condição de se verificar uma posse de longa duração, exercida contra quem, embora titular do direito de propriedade, se colocou em relação a ela numa posição de inércia, deixando que outrem lhe desse uso, conferindo-lhe função social e económica mais relevante;

- A transformação de possuidor em nome de outrem para possuidor em nome próprio opera-se mediante uma assumpção de actos materiais e de configurações típicas que anunciem e façam representar aos observadores normais uma alteração qualitativa da situação jurídica especifica e típica em que se manifesta a actuação e a acção do sujeito. Esta oposição não possui formas preestabelecidas de se anunciar mas há-de manifestar-se através dos actos e sinais exteriores que convençam aqueles que os assistem de que houve uma transmutação radical, efectiva e essencial no modo de actuar e estar do sujeito que operou a inversão do titulo possessório de modo a inculcar uma mudança do paradigma jurídico em que exercita um novo direito.

Por todo o exposto, conclui-se que inexiste qualquer fundamento fáctico ou de direito para que o Tribunal a quo tenha considerado que os recorrentes não lograram provar ter invertido o título da posse, para efeitos de começar a correr o prazo necessário para a usucapião.

Bem pelo contrário, verifica-se a subsunção da conduta dos recorrentes precisamente ao instituto jurídico de inversão de titulo da posse.

O Tribunal a quo, ao decidir como decidiu, fez uma interpretação e aplicação errada da lei, designadamente do estabelecido nos artigos 1263.º, alínea d), 1265.º e 1290.º do CC.

No entender dos recorrentes, as normas que constituem fundamento jurídico da decisão deviam ter sido interpretadas e aplicadas pelo Tribunal a quo no sentido de considerar plenamente verificados e preenchidos os requisitos legais, especialmente plasmados no artigo 1265.º do CC, que consubstanciam a figura da inversão do titulo da posse.

O Tribunal a quo devia ter considerado que ocorreu, a partir de 1989, a inversão do título da posse, para efeitos de começar a correr o prazo necessário para a usucapião, prazo que decorreu plenamente e que legitima a aquisição da propriedade por usucapião, pelo que a douta sentença deverá ser revogada e substituída por outra que julgue os pedidos deduzidos pela A. totalmente improcedentes e, em consequência,

A) não considera impugnado o facto justificado na escritura lavrada no Cartório Notarial de (…) no dia 13 de Janeiro de 2023, nem se declara a nulidade da escritura de justificação notarial relativamente ao prédio misto descrito na Conservatória do Registo Predial de Sines sob o n.º (…), da freguesia e concelho de Sines, com a correspondente matriz predial rústica sob o artigo (…), secção (…) e matriz predial urbana sob o artigo (…) da freguesia e concelho de Sines;

B) não se declara nula e ineficaz a referida escritura de justificação notarial, podendo os RR., através dela, registar quaisquer direitos sobre o prédio nela identificado;

C) não ordena o cancelamento dos registos.”


5. O A. apresentou contra-alegações, pugnando pela improcedência do recurso.

6. Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.

II – Questões a Decidir

O objeto do recurso está delimitado pelas conclusões da apelação, não sendo objeto de apreciação questões novas suscitadas em alegações, exceção feita para as questões de conhecimento oficioso (artigos 608.º, n.º 2, 635.º, n.º 4 e 639.º, n.º 1, do Código de Processo Civil).

Não se encontra também o Tribunal ad quem obrigado a apreciar todos os argumentos apresentados pelas partes, sendo livre na interpretação e aplicação do direito (artigo 5.º, n.º 3, do Código de Processo Civil).

Assim, cumpre apreciar:

a) se deve a decisão da matéria de facto ser alterada;

b) se deve a ação ser julgada improcedente.


III – Fundamentação de facto
A) O Tribunal a quo julgou provados os seguintes factos:
“1. A Autora é um instituto público de regime especial, nos termos da lei, integrado na administração indirecta do Estado, dotado de autonomia administrativa e financeira e património próprio.
2. Tem por missão promover a competitividade e o crescimento empresarial, assegurar o apoio à concepção, execução e avaliação de políticas dirigidas à actividade industrial, visando o reforço da inovação, do empreendedorismo e do investimento empresarial nas empresas, designadamente nas de pequena e média dimensão.
3. No dia 13 de Janeiro de 2023, os Réus outorgaram escritura de justificação, através da qual declararam ter adquirido, por usucapião, o prédio misto, com área total de 30250 m2, compondo-se a parte rústica por parcela de cultura arvense, com área de 30177,30 m2, e compondo-se a parte urbana por moradia, destinada a habitação, com área coberta de 72,70 m2, a confrontar do Norte com caminho de ferro e a Sul, Nascente e Poente com Direcção-Geral das Florestas, denominado “(…)” sito na freguesia e concelho de Sines, descrito na Conservatória do Registo Predial de Sines sob o n.º (…), da freguesia de Sines, inscrito na matriz predial urbana sob o artigo (…), com o valor patrimonial de € 8.749.30, e inscrito na matriz predial rústica sob parte do artigo (…), da secção (…), com valor patrimonial de € 59,88, com o valor de € 1.780,00.
4. A A. tomou conhecimento da Escritura de Justificação lavrada no Cartório Notarial de Setúbal de (…) no dia 13 de janeiro de 2023, através da publicidade que ocorreu no jornal.
5. A notificação foi enviada pelo Cartório no dia 9/11/2022 e recebida pelo ICNF no dia 11/11/2022, descrito na Conservatória do Registo Predial de Sines sob o n.º (…).
6. Em 25 de Novembro de 2022, com a publicação do Decreto-Lei n.º 80/2022 foi transmitido um conjunto de imóveis do Estado Português para a Autora, de onde consta o artigo matricial (…), da secção (…) da freguesia e concelho de Sines – que corresponde ao prédio misto descrito na Conservatória do Registo Predial de Sines sob o n.º (…) – prédio objecto da Escritura de Justificação lavrada no Cartório de (…) no dia 13 de Janeiro de 2023.
7. A Autora é proprietária de 2.375 hectares localizados na denominada Zona Industrial e Logística de Sines (doravante apenas ZILS) por transferência de património do Gabinete da Área de Sines através do Decreto-Lei n.º 6/90, de 3 de Janeiro.

8. Por acordo de gestão celebrado em 1991 é a empresa aicep Global Parques – Gestão de Áreas Empresariais e Serviços que gere o património da Autora na ZILS.

9. Esta empresa é uma sociedade anónima que pertence ao Sector Empresarial do Estado e é especialista na gestão de parques industriais e em soluções de localização empresarial.

10. A ZILS foi planeada e constituída nos anos 70 pelo Gabinete da Área de Sines com o objectivo de a tornar numa plataforma logística e industrial de referência no sector visando a instalação de grandes indústrias nacionais e estrangeiras ligadas aos sectores da petroquímica e da energia.

11. O Gabinete do Plano de Desenvolvimento da Área de Sines, abreviadamente designado por Gabinete da Área de Sines, foi criado pelo Decreto-Lei n.º 270/71, de 19 de Junho, com o objectivo principal centrado na construção de um porto de águas profundas associado a uma plataforma industrial que funcionasse como alternativa aos pólos de desenvolvimento de Lisboa e Porto.

12. Foi decidido, no final da década de 80, extinguir o Gabinete da Área de Sines, e em Dezembro de 1988 foi aprovado um conjunto de diplomas concretizando formalmente o processo de extinção do Gabinete.

13. Pelo decreto-lei n.º 116/89, de 14 de Abril foi transmitido para o Estado a propriedade dos prédios rústicos e urbanos sitos na zona de actuação directa daquele Gabinete, com a área aproximada de 11500 hectares, ficando afecta ao então Serviço Nacional de Parques, Reservas e Conservação da Natureza uma área de protecção litoral e à Direcção-Geral das Florestas a restante área dos mesmos prédios.

14. Em complemento ao Decreto-Lei n.º 116/89, de 14 de Abril, da Declaração publicada em 8 de Março de 1994 consta a relação dos prédios transferidos do extinto Gabinete da Área de Sines para a Direcção-Geral do Património do Estado, nos termos dos artigos 1.º e 2.º daquele Decreto-Lei e que inclui os terrenos afectados à Direcção-Geral das Florestas, nos termos dos artigos 3.º e 9.º do mesmo diploma.

15. Dessa lista consta o artigo matricial (…), secção (…) do concelho e freguesia de Sines, imóvel objecto destes autos.

16. Após a aquisição do prédio pelo Gabinete da Área de Sines foi averbada à apresentação 4. que corresponde à aquisição, a transmissão por transferência de património para o Estado Português, mas afeto à Direção Geral de Florestas.

17. No âmbito da afetação do prédio que foi atribuída à Direção Geral de Florestas, hoje Instituto da Conservação da Natureza e das Florestas, I. P. (ICNF) que este Instituto desenvolve a sua atividade no terreno, com vistorias periódicas e que resultam na elaboração de relatórios.

18. Do relatório elaborado pelo ICNF, datado de 17.01.2022, constam os nomes de (…), aqui R. e (…), antigo proprietário do prédio.

19. No relatório referido em 18 tais nomes constam como “ocupantes ilegais”.

20. A filha dos RR., (…), tentou, ao longo do ano 2021, contactar várias entidades com vista a alcançar o objetivo de legalizar a propriedade do imóvel pertencente aos pais, aqui RR.

21. No dia 07 de julho de 2021 foi recebido um email, em que era remetente (…), onde questionou a possibilidade de aquisição do prédio objecto dos autos, informação que consta de um ofício do ICNF.

22. O imóvel era utilizado pelos pais da R., desde o início da década de cinquenta.

23. O imóvel situa-se à beira da Estrada Municipal Sines-(...) visível a partir da via pública, está vedado e com portões fechados a cadeado.

24. Por volta de 1974, tendo em conta o projeto de expansão do complexo industrial da Refinaria de Sines e o projeto para a constituição de uma plataforma industrial ligada a um novo terminal oceânico, o imóvel, atendendo à sua proximidade marítima, em área adjacente ao da Refinaria, foi expropriado por imposição do Estado Português, com vista à integração da sua área na expansão do referido complexo industrial.

25. Por esse motivo e por alegados motivos de interesse público, os pais da R. venderam ao Gabinete de Sines, por escritura de 16/05/1974, o imóvel.

26. Aquando da celebração da escritura de compra e venda pelos pais da R., o Gabinete da Área de Sines disse aos pais da R. que poderiam continuar a utilizar o imóvel que tinham vendido, como se deles fosse, pois a venda tinha sido realizada por mera cautela, por não estar ainda definido se aquela área iria ou não, efetivamente, integrar a referida plataforma industrial.

27. Os pais da R. continuaram a utilizar, a cuidar e a manter o imóvel, nele continuando a residir de forma permanente, com a sua família, designadamente dois filhos que ali nasceram e foram criados, como sempre o haviam feito desde que o adquiriram.

28. A Ré, (…), com 62 anos, nasceu na casa originalmente existente no imóvel e sempre lá viveu, primeiro com os pais e com o irmão, depois com o Réu, marido (com quem casou há 44 anos), e depois com as filhas, (…) e (…), atualmente com 43 e 40 anos respetivamente, e ainda lá vive com o marido e com o pai.

29. Porém, sempre com a consciência que o Gabinete da Área de Sines, proprietário, poderia vir a tomar posse, com vista à integração da área do prédio no dito complexo e projeto industriais.

30. Os pais da R., no decurso do ano 1999, doaram o imóvel verbalmente aos RR.

31. Tendo, logo nessa data, os RR. entrado na posse imediata e exclusiva do imóvel, dele tirando todas as utilidades possíveis, cuidando e limpando, conservando e remodelando a habitação ali existente, a qual passou a ser, e ainda hoje é, sua residência permanente, que viram nascer, crescer e ser criada a sua família, de forma pacífica, pública e de boa-fé.

32. Desde 1999 os RR. têm possuído o imóvel em nome próprio, sem interrupção desde o seu inicio, respeitando as suas extremas e divisórias, com total exclusividade e independência, realizando pinturas, reparações e manutenções, habitando de forma permanente no mesmo, recebendo familiares e amigos.

33. Por volta de 1989, os pais da R. e depois os RR. construíram mais uma casa para habitação com 49,8 m2 e uma outra edificação para cozinha, casa de banho e garagem com 65,7 m2, e ainda duas edificações para garagem e armazém das rações dos animais, uma com 14,7 m2 e outra com 18 m2.

34. O imóvel em apreço é limpo pelos RR., que procedem à limpeza obrigatória do imóvel e que pagam os serviços de trator.

35. Os RR. têm porcos, galinhas, coelhos, cães e gatos.

36. Presentemente não cultivam o terreno devido à escassez de água, o que acreditam acontecer por um furo que a Petrogal fez a cerca de 600 m do imóvel ou pelas escavações muito fundas para construir o caminho de ferro, que terão interrompido o curso de água.

37. Os dois poços que existem no imóvel tinham água a 6 m, mas estão completamente secos.

38. Existia, no meio do terreno, uma ribeira que corria o ano todo, mas também se encontra seca.

39. A Ré lavou roupa nessa ribeira e as filhas aí tomavam banho.”

B) E julgou não provados os seguintes factos:

a) No final da década de oitenta, com a iminente conclusão da obra de expansão do complexo industrial da Refinaria de Sines, o Gabinete da Área de Sines verificou que a zona onde estava inserido o imóvel não tinha sido incluída na obra de expansão.

b) Um representante do Gabinete da Área de Sines informou os pais da R., no decurso do ano 1988, que não mantinham mais interesse na aquisição que tinha sido formalizada sobre o imóvel por não ter sido englobado no projeto de expansão.

c) Para que tal concretização de restituição integral do imóvel ocorresse, era intenção do Gabinete formalizá-lo de forma gratuita, pelo que ficou alguém da parte do Gabinete da Área de Sines de, num curto espaço de tempo, comunicar com os pais da R. para procederem à marcação da escritura que formalizasse a restituição do imóvel.”

C) No n.º 1 do artigo 662.º do Código de Processo Civil, norma atinente à “modificabilidade da decisão de facto”, prescreve-se que “a Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa.”

E no artigo 640.º do Código de Processo Civil, sob a epígrafe “ónus a cargo do recorrente que impugne a decisão relativa à matéria de facto”, estabelece-se que:

“1 - Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:

a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;

b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;

c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.

2 - No caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte:

a) Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes;

b) Independentemente dos poderes de investigação oficiosa do tribunal, incumbe ao recorrido designar os meios de prova que infirmem as conclusões do recorrente e, se os depoimentos tiverem sido gravados, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda e proceder, querendo, à transcrição dos excertos que considere importantes.”

A ideia fundamental que se extrai do citado artigo 640.º do Código de Processo Civil é a de que deve o recorrente delimitar de forma clara o objeto do recurso, identificando os segmentos da decisão de facto que pretende impugnar e os meios de prova que impõem decisão diversa.

A razão desta exigência encontra-se na circunstância dos recursos se destinarem à reapreciação das decisões proferidas em 1ª instância e não à prolação de uma decisão inteiramente nova (entre outros, os Acórdãos do Tribunal da Relação de Guimarães de 28.06.2018 (Jorge Teixeira), Processo n.º 123/11.0TBCBT.G1, e do Tribunal da Relação do Porto de 08.03.2021 (Fátima Andrade), Processo n.º 16/19.3T8PRD.P1, ambos in http://www.dgsi.pt/).

No caso em apreço constata-se que os Recorrentes indicaram os pontos de facto de cuja decisão discordam, bem como os meios de prova que, no seu entendimento, impõem decisão diversa, apontando ainda a decisão que se lhes afigura que seria a mais correta em face desses meios de prova.

Estão, deste modo, reunidas todas as condições para que deva ser apreciada a impugnação da decisão de facto.

D) Passando à impugnação da decisão de facto, os RR. divergem do juízo probatório do Tribunal a quo relativamente aos factos provados sob 18, 21, 28 e 29.

- Facto 18:

A este respeito advogam os RR. que o relatório referido neste facto corresponde ao o doc. 9 junto com a contestação e que dele não consta qualquer data, pelo que deve ser eliminada a data aludida neste facto 18.

Porém, atendendo a que inexiste qualquer relatório do IAPMEI junto com a contestação, admite-se que os RR. pretendessem reportar-se ao doc. 9 junto com a petição inicial, intitulado Ficha de prédios Secção (…)”, onde se descreve a situação do prédio aqui em causa e se fazem as menções à sua ocupação ilegal por (…) e (…) vertidas neste facto 18.

Mas tais menções constam, de igual modo, do doc. 10 junto com a petição inicial, que consubstancia um ofício dirigido pelo ICNF ao Subdiretor-Geral do Tesouro e Finanças, e que se mostra datado de 17.01.2022, precisamente a data constante do facto 18 em apreço.

A data aludida no facto provado sob 18 encontra, pois, suporte e referência no doc. 10 junto com a petição inicial, pelo que deve manter-se essa menção.

- Facto 21:

Entendem os RR. que neste facto, onde se descreve o teor de um email dirigido por (…) à Direção-Geral do Tesouro e Finanças, deve ser acrescentado o que resultou do depoimento da referida (…), isto é, que pretendia legalizar / formalizar a aquisição.

Porém, neste facto está em causa estritamente a reprodução da referência ao sobredito email que consta do ofício do ICNF de 17.01.2022, e aí alude-se ao pedido de informação remetido por e-mail, com data de 07/07/2021, à DGTF pela sra. (…), sobre a possibilidade de aquisição do referido prédio”.

A menção feita pelos RR. não encontra, pois, suporte no doc. 10 junto com a petição inicial, razão pela qual deve ser mantido o teor do facto provado sob 21.

- Facto 28:

Alegam os RR. que decorreu da prova produzida em audiência, concretamente, dos depoimentos das testemunhas (…) e (…), que o pai da R. faleceu, pelo que requerem a eliminação da referência ao pai da R. que consta da parte final deste facto.

Ora, o falecimento de uma pessoa é um facto a demonstrar através de documento, desde logo, uma certidão de óbito ou o assento de nascimento com o respetivo averbamento.

Contudo, no caso em apreço trata-se apenas de saber quem ocupa, atualmente, o imóvel em discussão nos autos, pelo que os depoimentos aludidos constituem prova suficiente de que neste momento só os RR. residem neste imóvel.

Assim, defere-se à requerida alteração do facto 28, eliminando-se a sua parte final, a saber, “e com o pai”.

- Facto 29:

Advogam os RR. que devia ser julgado provado o facto que o Tribunal a quo considerou não provado sob b) e que devia o mesmo ser integrado no facto provado sob 29.

Suportam os RR. a sua impugnação nos depoimentos das testemunhas (…), (…) e (…).

Ora, antes de mais, constatamos que aquilo que os RR. pretendem extravasa a mera integração do facto não provado sob b) no facto provado sob 29, antes o novo facto 29 contém alusões que não constavam do mesmo, nem do facto não provado sob b), como decorre da respetiva comparação:

29. Porém, sempre com a consciência que o Gabinete da Área de Sines, proprietário, poderia vir a tomar posse, com vista à integração da área do prédio no dito complexo e projeto industriais.”

b) Um representante do Gabinete da Área de Sines informou os pais da R., no decurso do ano 1988, que não mantinham mais interesse na aquisição que tinha sido formalizada sobre o imóvel por não ter sido englobado no projeto de expansão.”

Até 1988, com a consciência que o Gabinete da Área de Sines, proprietário, poderia vir a tomar posse, com vista à integração da área do prédio no dito complexo e projeto industriais e, após 1989, com a convicção (os pais da recorrente e depois os recorrentes) de que o Gabinete da Área de Sines já não ia precisar do imóvel, pelo que já não viriam tomar posse do mesmo (cuja venda tinha sido realizada por mera cautela, conforme considerado provado – ponto 26 – por não estar ainda definido se aquela área iria ou não, efetivamente, integrar a referida plataforma industrial) e que a propriedade do mesmo ia ser-lhes restituída, informação dada por um representante do Gabinete da Área de Sines que se deslocou ao imóvel, no decurso do ano de 1988, referindo que já não mantinham mais interesse no imóvel.”

Importa, então, apreciar se os meios de prova apontados pelos RR. permitem sustentar o facto indicado.

Assim, ouvimos os depoimentos das testemunhas referidas pelos RR., cuja transcrição se mostra anexada às alegações.

Desde logo, as testemunhas (…) e (…) não foram capazes de identificar as concretas pessoas que entabularam as conversas a que aludem, nem o cargo ou função desempenhados por tais pessoas no Gabinete da Área de Sines.

Inclusivamente, a testemunha (…) – que declarou não ter assistido às conversas que reportou, as quais lhe foram transmitidas pelo pai da R. - falou de representantes ou de vigilantes, referindo desconhecer “o grau (…) em termos de estrutura hierárquica”, e concluindo que se tratava de “pessoas influentes”.

Mais aludiu a testemunha (…) a uma outra conversa com uma senhora engenheira do Gabinete, a qual foi também relatada pela testemunha (…), mas nenhum dos dois assistiu a semelhante conversa, tendo sabido desta situação pelo pai da R. e pela R., respetivamente.

Ora, um vigilante não é, certamente, um representante de uma entidade, não podendo, de igual modo, afirmar-se que um técnico de grau superior, como uma sra. engenheira, é necessariamente um representante.

Deste modo, e atendendo ao desconhecimento revelado pela testemunha sobre a identidade das aludidas pessoas e cargo ou função ocupados no Gabinete, não encontra respaldo a sua afirmação de que se tratava de “pessoas influentes”.

Por outro lado, quanto ao teor das aludidas conversas, a testemunha (…) referiu que as tais pessoas não concretamente identificadas teriam dito “qualquer dia isto vai ser seu definitivamente, havemos de fazer a escritura disso”, o que não corresponde ao depoimento da testemunha (…), segundo a qual teria sido dito “isto é seu”.

Sublinhe-se que são duas afirmações de sentido completamente distinto, pois a primeira não contém o reconhecimento de qualquer direito sobre o imóvel, fazendo depender a constituição de um direito da futura realização de uma escritura.

Acresce que nenhuma destas afirmações corresponde, de igual modo, à alegação dos RR., que referem que teria sido dito que o Gabinete já não precisava do prédio em causa.

É certo que a testemunha (…), mais à frente no seu depoimento, referiu que afinal teria sido dito “isto é de vocês, e as refinarias já não têm preciso disto”.

Porém, logo a seguir foi questionada sobre se aqueles terrenos teriam sido expropriados para a refinaria, e retorquiu assertivamente que “foi ali tudo”.

E sendo-lhe, de novo, perguntado “Mas foi para a refinaria? A senhora sabe isso?”, respondeu “Isso não sei”.

Ou seja, há fragilidade neste alegado conhecimento.

Aliás, as circunstâncias em que esta testemunha terá ouvido tal conversa não são também claras, atentos os termos do seu depoimento, porquanto diz a testemunha que tinha ido buscar água e que foi precisamente nessa ocasião que se desenrolou a tal conversa, a qual não era consigo, mas com o pai da R., que não a chamou para ouvir a conversa, mas a testemunha ouviu.

Contudo, a testemunha ouviu tão somente a frase já acima descrita, pois perguntada se as tais pessoas “não mostraram identificação do gabinete”, respondeu “Podiam ter mostrado depois a eles, não é? Eu vim-me embora e eles ficaram lá”.

Ora, no plano da normalidade, as pessoas começam por se identificar, só depois desenvolvendo os assuntos que motivaram o contacto, pelo que não faz sentido que duas pessoas se abeirem do pai da R., lhe digam “isto é seu”, e só depois apresentem a sua identificação.

Por último, nenhuma das testemunhas situou estas conversas no tempo.

Entendemos, em conclusão, que os meios de prova indicados pelos RR. não são suficientes para demonstrar o facto vertido sob b), pelo que deve permanecer inalterado este facto e o facto vertido sob 29.

IV – Fundamentação de Direito

1. Na situação em apreço veio A. IAPMEI impugnar a escritura de justificação notarial outorgada pelos RR. com respeito ao prédio em discussão nos autos.

Os RR. contestaram, alegando que tal prédio lhes pertencia, mas foi vendido ao Gabinete da Área de Sines, o qual, contudo, veio a revelar desinteresse pelo prédio para o desenvolvimento do respetivo projeto e, por isso, atenta a verificação dos correspondentes requisitos, os RR. adquiriram a propriedade do prédio por usucapião.

O Tribunal a quo julgou a ação procedente, entendendo que os RR. não lograram demonstrar a inversão do título de posse.

Nas suas alegações os RR. dissentem deste entendimento, considerando que o Tribunal a quo não interpretou corretamente as normas legais relevantes, e apontando os factos vertidos sob 33, 34, 35, 31 e 32, conjugadamente com os factos vertidos sob 17, 18, 19 e 23, como o suporte da sua conclusão de que se verificou a inversão do título de posse, quer por ação do detentor, quer por ação de terceiro, a saber, o Gabinete da Área de Sines, pelo que deve ser-lhes reconhecido o direito de que se arrogam titulares e, consequentemente, deve ser revogada a sentença.

Sustentam ainda que o ICNF foi notificado, no âmbito do processo notarial de justificação, nada tendo oposto.

2. Justificação notarial

A escritura de justificação notarial para estabelecimento de trato sucessivo consiste na declaração, feita pelo interessado, em que este se afirme, com exclusão de outrem, titular do direito que se arroga, especificando a causa da sua aquisição e referindo as razões que o impossibilitam de a comprovar pelos meios normais, e quando for alegada a usucapião baseada em posse não titulada, devem mencionar-se expressamente as circunstâncias de facto que determinam o início da posse, bem como as que consubstanciam e caracterizam a posse geradora da usucapião (artigo 89.º do Código do Notariado).

Nos termos do n.º 1 do artigo 99.º do Código do Notariado integra-se no procedimento que conduz à celebração da escritura a prévia notificação do titular inscrito.

Porém, é perfeitamente claro o n.º 8 do mesmo artigo 99.º no sentido de que “A notificação prevista no presente artigo não admite qualquer oposição.”

Assim, nenhuma conclusão pode ser extraída do silêncio do ICNF na sequência dessa notificação.

3. Inversão do título de posse

Perante a impugnação deduzida pelo A. e atento o teor do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça para uniformização de jurisprudência n.º 1/2008, de 04.12.2007 (in DR, n.º 63, série I, de 31.03.2008), compete aos RR. demonstrarem os factos constitutivos do direito de que se arrogam titulares, sem poderem beneficiar da presunção do registo decorrente do artigo 7.º do Código do Registo Predial (artigo 343.º, n.º 1, do Código Civil).

Estabelece-se no artigo 1251.º do Código Civil que “posse é o poder que se manifesta quando alguém atua por forma correspondente ao exercício do direito de propriedade”.

A posse adquire-se pela prática reiterada, com publicidade, dos atos materiais correspondentes ao exercício do direito (artigo 1263.º, alínea a), do Código Civil).

O Código Civil consagrou, deste modo, uma conceção subjetiva da posse, exigindo, para além do corpus – domínio de facto sobre a coisa traduzida no exercício efetivo de poderes materiais sobre ela ou na possibilidade física desse exercício – o animus – intenção de exercer, como seu titular, um direito real sobre a coisa e não um mero poder de facto sobre ela (Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, vol. III, 2ª ed., Coimbra, 1987, pág. 5).

No artigo 1252.º, n.º 2, do Código Civil prevê-se que, em caso de dúvida, se presume a posse naquele que exerce o poder de facto, sem prejuízo da presunção de que a posse continua em nome de quem a começou (artigo 1257.º, n.º 2, do Código Civil).

Isto é, como a prova do animus pode ser muito difícil, a lei, em caso de dúvida, dispensa-a, bastando-se com a prova do corpus, para daí inferir o animus (artigo 350.º, n.º 1, do Código Civil) (Mota Pinto, Direitos Reais, 1970, pág. 191).

A posse conducente à aquisição de um direito real por usucapião é, assim, uma posse formal, isto é, uma posse correspondente a um direito que não se tem, mas cujos poderes se exercem como se se fosse titular desse direito (Galvão Telles, in O Direito, 121, 652).

A este respeito foi, aliás, proferido o Assento de 14.05.1996 (in DR, I-A, de 24.06.1996), segundo o qual podem adquirir por usucapião os que exercem o poder de facto sobre a coisa.

Estabelece-se, por outro lado, no artigo 1296.º do Código Civil que, em caso de falta de título, a usucapião só pode dar-se no termo de quinze anos se a posse for de boa fé, e de vinte anos se for de má fé.

Diz-se não titulada a posse se não for fundada em qualquer modo legítimo de adquirir, independentemente quer do direito do transmitente, quer da validade substancial do negócio jurídico, não se presumindo a existência de título (artigo 1259.º do Código Civil).

Por outro lado, a posse diz-se de boa fé se o possuidor ignorava, ao adquiri-la, estar a lesar o direito de outrem, presumindo-se de má fé a posse não titulada (artigo 1260.º, n.ºs 1 e 2, do Código Civil), mas podendo tal presunção ser ilidida (artigo 350.º, n.º 2, do Código Civil).

3.1. Revertendo ao caso dos autos, está provado que os pais da R. venderam ao Gabinete o imóvel que lhes pertencia (facto 25), pelo que através desse negócio jurídico se operou a transmissão da propriedade do imóvel para o Gabinete (artigo 879.º, alínea a), do Código Civil).

Assim, a posterior utilização do imóvel pelos pais da R., com base na autorização dada pelo novo proprietário (facto 26), consubstancia uma mera detenção, porquanto configura tal autorização um ato de tolerância por parte do titular do direito, a que se reporta o artigo 1253.º, alínea b), do Código Civil.

Sendo, deste modo, os pais da R. meros detentores, não lhes assistia a faculdade de acederem à aquisição do direito de propriedade por usucapião, apenas sendo aberta essa via mediante a transformação daquela mera detenção em posse, para o que é idóneo o instituto da inversão do título de posse por oposição do detentor contra o possuidor em nome próprio ou por ato de terceiro (artigos 1263.º, alínea d), 1265.º e 1290.º do Código Civil).

Relativamente ao ato de terceiro capaz de transmitir a posse, aludem os RR. à declaração do representante legal do Gabinete da Área de Sines de que já não tinham interesse no imóvel e de que este iria ser restituído.

Todavia, o facto aludido não está provado (facto não provado sob b)), pelo que claudica este fundamento invocado pelos RR..

No que concerne à inversão do título de posse por oposição do detentor contra o possuidor em nome próprio, traduz-se na prática de atos que revelem inequivocamente que o opositor se considera o titular do direito e, por isso mesmo, a oposição deve chegar ao conhecimento da pessoa contra quem o opositor pretende exercer o direito (entre outros, os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 14.07.2021 (Tibério Nunes da Silva), Proc. n.º 1660/15.3T8STR.E1.S1, de 21.10.2020 (Fernando Samões), Proc. n.º 5080/17.7T8CBR.C2.S1, e de 20.03.2014 (Nuno Cameira), Proc. n.º 3325/07.0TJVNF.P1S2, todos in http://www.dgsi.pt/).

Essencial é, pois, a ideia de que apesar da inversão do título de posse representar uma alteração do animus, não pode prescindir-se da exteriorização concludente dessa nova convicção, como se sublinhou no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 09.12.2012 (Gabriel Catarino) (Processo n.º 3208/04.6TBBRR.L1.S1, in http://www.dgsi.pt/):

“A oposição que o preceito reclama uma contraposição ostensiva revelada ou manifestada por atitudes ou comportamentos que evidenciem uma posição antinómica aquela que até esse momento era típica. Mister é que o detentor de uma coisa, em nome alheio, se apresente perante aquele em nome de quem detinha com uma atitude ou um comportamento diverso daquele que havia assumido até esse momento (…) O processo translativo de um estado ou situação jurídica de possuidor em nome de outrem para um estádio superior e com estatuto e qualificação jurídica mais densa e com uma configuração diversa de possuidor em nome próprio, opera-se mediante uma assumpção de actos materiais e de configurações típicas que anunciem e façam representar aos observadores normais uma alteração qualitativa da situação jurídica especifica e típica em que se manifesta a actuação e a acção do sujeito. Esta oposição não possui formas preestabelecidas de se anunciar mas há-de manifestar-se através dos actos e sinais exteriores que convençam aqueles que os assistem de que houve uma transmutação radical, efectiva e essencial no modo de actuar e estar do sujeito que operou a inversão do titulo possessório de modo a inculcar uma mudança do paradigma jurídico em que exercita um novo direito.”

Ora, os RR. fazem assentar a inversão do título de posse por oposição do detentor na prática de atos materiais próprios de um proprietário, a saber, habitam o imóvel, criam aí animais, procedem à sua limpeza e conservação (factos 31, 32, 34 e 35), sublinhando, em particular, os factos provados no sentido de que em 1999 erigiram novas construções no imóvel (facto 33) e de que o imóvel se situa à beira da estrada, sendo visível a partir da via pública (facto 23), para além de que o ICNF faz vistorias periódicas e elabora relatórios (factos 17 a 19).

Em termos de corpus, os atos praticados no imóvel, após a escritura de venda ao Gabinete, quer pelos pais da R. (facto 27), quer pelos RR., são materialmente indiciadores de uma situação de posse, por corresponderem a atos tipicamente praticados por proprietários.

Porém, diz-se no facto 29, por reporte aos precedentes factos 27 e 28, isto é, tanto com respeito aos pais da R., como aos RR., que atuaram sempre com a consciência que o Gabinete da Área de Sines, proprietário, poderia vir a tomar posse, com vista à integração da área do prédio no dito complexo e projeto industriais.

Daqui decorre que o animus de uns e de outros não era o de um proprietário, pois sabiam os pais da R. e sabem os RR. que o imóvel havia sido vendido e que apenas atuavam com base na autorização que lhes foi dada pelo proprietário, nos termos provados sob 26.

No entanto, entendem os RR. que o facto de, em 1989, os pais da R. e os RR. terem erigido novas e significativas construções (em termos de área ocupada), deve ser interpretado como uma manifestação de que, nessa data, se consideravam proprietários do imóvel, construções estas que, por outro lado, não poderiam deixar de ser do conhecimento do ICNF, pela visibilidade das mesmas a partir da via pública e as vistorias periódicas realizadas pelo ICNF.

A interpretação destes factos deve ser efetuada à luz, sobretudo, dos termos da autorização concedida pelo Gabinete, vertida no facto 26, e que aqui reproduzimos:

26. Aquando da celebração da escritura de compra e venda pelos pais da R., o Gabinete da Área de Sines disse aos pais da R. que poderiam continuar a utilizar o imóvel que tinham vendido, como se deles fosse, pois a venda tinha sido realizada por mera cautela, por não estar ainda definido se aquela área iria ou não, efetivamente, integrar a referida plataforma industrial.”

Trata-se de uma autorização muito ampla, apontando para os poderes de gozo que assistem ao proprietário e que se reconduzem, nos termos do artigo 1305.º do Código Civil, ao uso e fruição.

É certo que a construção de edificações envolve já a transformação da coisa, que vai para além do seu mero uso e fruição, mas no contexto daquela declaração não se afigura que se possa considerar que tal atuação excede a autorização.

Com efeito, o imóvel não pertencia aos pais da R. ou aos RR., por não ter sido celebrado qualquer negócio translativo da propriedade, assim, se o Gabinete decidisse avançar com o projeto, podia exigir a entrega do prédio, independentemente das construções que se encontrassem lá edificadas.

Se, inversamente, o projeto não avançasse e a compra e venda a favor do Estado fosse revertida, também era indiferente o edificado que se encontrasse no prédio.

Por outro lado, o facto invocado pelos RR. como fundador da nova convicção não ficou provado (facto não provado sob b)).

Acresce, de todo o modo, que não havia, em 1989, qualquer contrato promessa ou outro instrumento negocial que vinculasse o Estado a realizar um negócio translativo da propriedade do imóvel para os pais da R. ou os RR., pelo que inexistia garantia alguma da celebração de um futuro negócio.

Aliás, não está também provado que o Estado tivesse a intenção de formalizar um negócio gratuito (facto não provado sob c)), o que é relevante por comparação com o caso do promitente comprador, relativamente ao qual tem sido reiteradamente afirmado na jurisprudência que não é suficiente a mera tradição do imóvel para se qualificar como de posse a sua situação, com vista à aquisição da propriedade por usucapião, havendo ainda que demonstrar que o promitente comprador tinha razões objetivas para se considerar proprietário, desde logo, haver pago a totalidade do preço, e as partes, por razões específicas, não terem o propósito de realizar o contrato definitivo (entre outros, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 11.03.2021 (Rosa Tching) (Proc. n.º 3944/16.4T8BRG.G1.S1, in http://www.dgsi.pt/).

Assim, a construção de edificações, apesar do seu volume, não é suficiente, neste contexto, para revelar um animus de proprietário.

Ou seja, apesar de se presumir a titularidade do direito em quem exerce os correspondentes poderes de facto, essa presunção só opera em casos de dúvida e é ilidível por demonstração do contrário, tendo ficado claro, no caso em apreço, que a atuação dos pais da R. e dos RR. não foi desenvolvida com a convicção de serem proprietários.

Não estão, em conclusão, demonstrados os pressupostos da inversão do título de posse, pelo que não se mostram verificados os requisitos de que depende o reconhecimento da aquisição do direito de propriedade por usucapião.

Improcede, pois, o recurso.

4. Custas

Ficando os RR. vencidos, devem pagar as custas do recurso (artigo 527.º, n.ºs 1 e 2, do Código de Processo Civil).

IV – Dispositivo

Em face do exposto e tudo ponderado, acordam os Juízes da Secção Cível deste Tribunal da Relação em julgar improcedente a apelação, confirmando a decisão recorrida.

Custas pelos RR..

Notifique e registe.

Sónia Moura (Relatora)

Maria João Sousa e Faro (1ª Adjunta)

António Marques da Silva (2º Adjunto)