Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
132/22.4T8FAR.E1
Relator: MARIA JOSÉ CORTES
Descritores: IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
REQUISITOS
DÍVIDAS DA RESPONSABILIDADE DE AMBOS OS CÔNJUGES
PROVEITO COMUM DO CASAL
ACTO COMERCIAL
LITISCONSÓRCIO NECESSÁRIO PASSIVO
Data do Acordão: 12/18/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário:
I – Não configura qualquer omissão de pronúncia, para efeitos do art.º 615.º, n.º 1, alínea d), do CPC, o facto de o tribunal a quo não ter dado como provado que “Em .../.../2004, o réu e CC casaram, no Brasil, sob o regime da comunhão parcial de bens”.
II – O que o réu apelante esgrime não é um qualquer vício de omissão de pronúncia antes dissente é do julgamento de mérito dessa questão e o facto de ela ter sido julgada contra ele.
III – Quando se impugna a matéria de facto tem de observar-se os ditames do art.º 640.º, n.º 1, a) a c), e n.º 2, a), do Código de Processo Civil, designadamente: a especificação dos concretos meios probatórios que impõem decisão diversa da recorrida, quanto ao ponto de facto impugnado; e quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados e seja possível a identificação precisa e separada dos depoimentos a indicação com exatidão das passagens da gravação em que se funda (sendo facultativa a transcrição de excertos).
IV– O Tribunal da Relação não está legalmente em condições de sindicar os juízos probatórios do tribunal recorrido formulados com base em provas sujeitas à livre apreciação do julgador, formando a sua própria e autónoma convicção probatória sempre que não tem ao seu dispor todo o manancial probatório que o tribunal a quo teve para formar a sua convicção probatória, razão pela qual, nesse circunstancialismo, deve ser indeferida a reapreciação da prova sujeita à livre apreciação do tribunal.
V – Importa, pois, salientar que a alteração da matéria de facto só deve ser efetuada pelo Tribunal da Relação quando o mesmo, depois de proceder à análise da prova invocada pelos impugnantes, conclua, com a necessária segurança, no sentido de que a mesma, conjugada com a restante prova produzida, apontam em direção diversa, e delimitam uma conclusão diferente daquela que vingou na 1.ª instância, o que não é manifestamente o caso.
VI – A autora emprestou ao réu a quantia total de 39 074,56 €, a fim de que este pudesse proceder ao pagamento de valores decorrentes de negócios, designadamente o pagamento do valor estabelecido para o recheio e a entrega da chave do estabelecimento comercial, apurando-se que à data do empréstimo, o réu era casado com D, sob o regime da comunhão parcial de bens e que tal estabelecimento foi também explorado por esta.
VII – O mútuo em causa, embora não sendo ato objetivamente comercial, é um ato de comerciante; trata-se de uma dívida comercial de cônjuge comerciante que, nos termos do art.º 15.º, do Código Comercial, se presume contraída no exercício do comércio e, como tal, é da responsabilidade de ambos os cônjuges, salvo se se provar, que não foi contraída em proveito comum do casal ou que entre os cônjuges vigorar o regime de separação de bens - art.º 1 691.º, n.º 1, al. d).
VIII – Não tendo sido ilidida a presunção prevista na alínea d), do citado art.º 1 691.º, do Código Civil, temos de concluir que a o mútuo contraído pelo réu apelante foi contraída em proveito comum do casal, constituído por si e por D, à data do mesmo, tratando-se de uma dívida comum.
IX – O litisconsórcio necessário passivo decorre da imposição legal, da própria natureza da relação jurídica.
X – No caso dos autos, a autora pretende obter do Tribunal a declaração de nulidade do contrato de mútuo celebrado com o réu apelante e a condenação deste a restituir-lhe a importância de 39 074,56 €, acrescida de juros legais desde a citação até efetivo pagamento; ou seja, ato praticado apenas pelo réu que não exige o exercício ou o consentimento deste último.
XI – Nem a relação material controvertida respeita ao cônjuge, nem o legislador exige a intervenção do cônjuge na ação de declaração de nulidade ou anulação, não havendo interesse igual ao do réu, pelo que não há preterição litisconsórcio necessário passivo.
(Sumário elaborado pela Relatora)
Decisão Texto Integral:
Acordam os Juízes que integram a 1.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora:
I – RELATÓRIO
1.1. BB intentou contra AA, a presente ação declarativa, sob a forma de processo comum, pedindo a declaração de nulidade do contrato de mútuo que celebrou com o réu e a condenação deste a restituir-lhe a importância de 39 074,56 € acrescida de juros legais desde a citação até efetivo pagamento.
Para tanto alegou, em suma, que anuiu emprestar ao réu a quantia total de 39 074,56 € (trinta e nove mil e setenta e quatro euros e cinquenta e seis cêntimos), devido ao facto de este ao tempo ser casado com a sua filha CC, ficando o mesmo obrigado a restituir tal quantia no prazo de 1 (um) ano.
Mais alegou que o réu requereu tal quantia (em 03.09.2010, a quantia de 21 683,26 € e em 27.09.2010, a quantia de 17 391,30 €) para fazer face ao pagamento de valores decorrentes de negócios que mantinha com DD e, por essa razão, tais quantias foram transferidas da conta n.º ... sediada no Sicoob- Sistema de cooperativas de Crédito do Brasil da titularidade da autora diretamente para DD.
Aduziu, ainda, que o réu, com falsas promessas de pagamento, foi adiando a restituição dos valores que a autora lhe emprestou, sendo que após se separar da sua filha, interpelado para o efeito, recusou-se a restituir qualquer quantia.
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1.2. Citado o réu, veio contestar, impugnando os factos alegados pela autora, concluindo pela sua absolvição do pedido.
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1.3. Foi dispensada a realização da audiência prévia, foi proferido despacho saneador, que, para além do mais, julgou as partes legítimas, fixando-se o objeto do litígio e os temas da prova.
Admitiram-se os meios de prova.
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1.4. Na subsequente tramitação dos autos realizou-se a audiência final, após o que foi proferida sentença de cuja parte dispositiva consta o seguinte:
Face aos argumentos supra respigados, o Tribunal decide julgar parcialmente procedente a presente ação e, consequentemente:
a) Declarar a nulidade do contrato de mútuo celebrado entre a Autora e o Réu;
b) Condenar o Réu a restituir à Autora a quantia total de €38.933,08 (trinta e oito mil, novecentos e trinta e três euros e oito cêntimos), acrescida de juros de mora vencidos e vincendos à taxa legal civil, desde 02/04/2022;
c) Absolver o Réu do demais peticionado.
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Custas pela Autora e pelo Réu, na proporção do respetivo decaimento – cf. artigo 527.º, n.ºs 1 e 2, do Código de Processo Civil.
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Registe e notifique.”
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1.5. Inconformado, recorreu o réu, extraindo da motivação de recurso as seguintes conclusões (transcrição):
I - Com o devido respeito pela opinião contrária, discordamos da douta decisão por entendermos que a prova produzida em audiência de julgamento impõe decisão diversa da recorrida, quer quanto à matéria de facto dada por provada e não provada, quer no que ao direito aplicável respeita.
II - Entendeu a Meritíssima Juiz a quo dar por não provado que “O casamento entre o Réu e CC foi celebrado sob o regime da comunhão de adquiridos.” (ponto C. da Matéria Fáctica Não Provada), não fazendo por outro lado constar da matéria fáctica provada que os mesmos casaram, no Brasil, sob o regime da comunhão parcial de bens, apesar de ter dado por provado (sob o ponto 5) que em Setembro de 2010 o Réu e CC se encontravam casados, o que só pode resultar da certidão de casamento (fls. 28 vrs.), mencionando ainda na fundamentação da matéria dada por provada tal facto.
III - Assim, e não se podendo ignorar o disposto no n.º 2 do art.º 5º do C.P.C., deveria ter sido incluído esse facto necessariamente nos factos provados, pois que assume toda a relevância para a decisão, sendo que ao não fazê-lo o tribunal a quo deixou de se pronunciar sobre questão que deveria apreciar, o que em nosso entender constitui uma nulidade nos termos do artigo 615º, n.º 1 d) do C.P.C.
IV - Assim sendo, como adiante melhor se considerará, deverá ser aditado novo facto à factualidade provada nos seguintes termos:
Em 31/01/2004 o Réu e CC casaram no Brasil sob o regime da comunhão parcial de bens.
V - Ainda que se entendesse por provado que o Réu pediu à A. a quantia por si referida, o que não se aceita, como adiante se demonstrará, sempre incumbia ao tribunal a quo o dever de se pronunciar sobre a legitimidade passiva do Réu porquanto este era casado à data do alegado “empréstimo”, no regime brasileiro da comunhão parcial de bens, (conforme consta da douta Sentença e do documento de fls. 28 vrs.).
VI - Quer o Código Civil Português (1691º), quer o Código Civil Brasileiro (1664º) estabelecem que a dívida contraída durante o matrimónio, ainda que só por um dos cônjuges, responsabiliza ambos os cônjuges, pelo que sempre estaríamos perante situação de litisconsórcio necessário nos termos do disposto no artigo 33º do C.P.C. caso se entendesse por provada a factualidade dada por provada na douta Sentença de que ora se recorre (o que não se aceita conforme adiante se demonstrará).
VII - A excepção de ilegitimidade é uma excepção dilatória, de conhecimento oficioso e implica a absolvição da instância (arts.278 nº1 d), 576 nº2, 577 e), 578 e 608 nº1 do CPC). Muito embora não tenha sido arguida na contestação, o Tribunal pode dela conhecer enquanto não a apreciar em concreto.
A declaração genérica no saneador sobre a legitimidade das partes não faz hoje caso julgado, como se extrai do art. 595 nº 3 do CPC, caducando, assim, a doutrina do Assento do STJ de 1/2/63[3] ( BMJ 124, pág.414), entretanto transformado em acórdão de uniformização de jurisprudência ( cf., por ex., Ac. do STJ de 3/5/2000, C.J. ano VIII, tomo II, pág.41 ), conforme decidido no douto Acórdão da Relação de Évora de 22/09/2010 disponível em www.dgsi.pt.
VIII – O tribunal a quo deveria ter-se pronunciado sobre esta questão, pois ao considerar provado que o Réu era casado com CC à data em que supostamente foi pedido o alegado empréstimo, devia ter-se pronunciado sobre a legitimidade do Réu e a consequente absolvição da instância, pelo que ao não fazê-lo deixou de se pronunciar sobre questão que deveria apreciar, o que constitui uma nulidade nos termos do artigo 615º, n.º 1 d) do C.P.C.
IX - A preterição do litisconsórcio necessário passivo, determina a exceção dilatória de ilegitimidade do Recorrente, a qual para além de não ser suscetível de sanação é de conhecimento oficioso, nos termos do art. 577º, alínea e), 578º e 278, n.º 1 d) e n.º 3 do CPC e passível de ser conhecida nesta fase recursória.
X - Este venerando tribunal de recurso encontra-se em condições de se pronunciar sobre este pressuposto processual uma vez que se tratam de factos e elementos de prova que as partes apresentaram nos autos, senão vejamos:
- A A. atribui ao Réu, actualmente divorciado, e àquela data casado com a sua filha CC, o pedido da quantia alegadamente “emprestada” para fazer face ao pagamento de valores decorrentes de negócios que mantinha com um terceiro tendo em vista a aquisição de estabelecimento comercial, tendo junto documento que comprova o estado civil do Réu, alegando que anuiu emprestar tal quantia em virtude de o Réu à data ser casado com a sua filha e o negócio ser para ambos (apesar de declarar que o negócio estava em nome da sua filha, conforme resulta da motivação da Sentença);
- Por sua vez, o Réu juntou certidão de casamento, onde é possível constatar que ocasamento foi contraído no Brasil em 31/01/2004 sob o regime da comunhão parcial de bens;
- A própria Sentença dá como provado o estado civil do Réu à data dos factos e na actualidade (5. e 7. dos factos provados), com base em tais elementos de prova.
XI - Nos termos do artigo 30º, n.º 3 do CPC têm legitimidade para a acção os sujeitos da relação controvertida tal como é configurada pela Autora. Tendo a autora alegadamente emprestado quantia monetária ao réu (o que não se aceita) em data em que o mesmo era casado com a sua filha, tendo sido esse o motivo pelo qual aceitou fazê-lo, e tendo-o feito alegadamente para pagamento de um negócio do qual a sua filha seria “a dona” (Sentença, in “Motivação/convicção do tribunal”), necessariamente a filha da Autora é configurada por si como sujeito da relação controvertida.
XII - Assim, requer-se a V. Exas decidir por verificada a excepção da ilegitimidade passiva e, consequentemente, absolver da instância o Réu nos termos e para os efeitos do artigo 278º, n.º 1, alínea d) do C.P.C.
E ainda que assim não se entenda,
XIII - No que respeita à decisão sobre a matéria de facto, nomeadamente aos factos entendidos por provados com relevância para a decisão proferida nos presentes autos, entendeu a Meritíssima Juiz a quo por provada a matéria constante nos pontos 1 a 6 e 8, matéria factual essa com a qual discordamos, pois que tais factos não decorrem nem da prova testemunhal produzida nem da restante prova constante dos autos e mencionada na fundamentação para se dar por provada tal factualidade.
XIV – Na fundamentação da matéria de facto, consta da douta Sentença (“Motivação/Convicção do Tribunal”) uma referência genérica inicial ao facto de o Tribunal ter formado a sua convicção alicerçada nas declarações prestadas pela Autora e nos depoimentos prestados pelas testemunhas EE, FF e GG, conjugados com a análise do teor da prova documental carreada para os autos, designadamente a ata de tentativa de conciliação de divórcio sem consentimento do outro cônjuge de fls. 6 (verso) a 10, o aviso de livro de reclamações de fls. 11, o contrato de fornecimento de energia elétrica de fls. 11 (verso), o extrato de conta corrente de fls. 13 e a certidão de casamento de fls. 28 (verso).
XV - Porém, logo em seguida, com respeito às testemunhas EE e GG, o mesmo Tribunal descreve um conjunto de situações ocorridas durante a audiência de julgamento, concluindo que tais circunstâncias e “a forma hesitante como por vezes respondiam às perguntas colocadas”, “abalaram, sem dúvida, a credibilidade dos depoimentos prestados.”, o que consubstancia uma clara contradição, daí se retirando, não obstante, que na verdade o Tribunal não alicerçou a sua convicção nas declarações prestadas por estas testemunhas.
XVI - Prosseguindo na sua fundamentação a Meritíssima Juiz conclui que afinal a matéria factual dada por provada e não provada resulta da articulação e conjugação das declarações prestadas pela Autora e do depoimento prestado pela testemunha FF, que entende corroborar as declarações prestadas por aquela, e ainda da restante prova documental junta aos autos, entendimento que não acompanhamos.
XVII - A Autora (cujas declarações se encontram gravadas no sistema integrado de gravação digital, com início em 18/10/2022, pelas 10h18m25s. e termo pelas 11h23m35s., com a duração total de 01hora, 05minutos e 10 segundos) declarou que “fizeram esse negócio com o AA e com a minha filha, eu só não notifiquei porque é filha. Mas isso foi para eles” (de 11m.31s. a 11m.41s. das suas declarações de 18/10/2022) e que “primeiramente, ele chegou e me pediu assim: me contou o plano deles, que eles estavam vendo esse negócio da loja e…” e, questionada pela Meritíssima Juiz: “Eles, eles quem?”, respondeu: “Ele e a CC com o DD.” (de 12m.22s a 12m.35s das suas declarações de 18/10/2022).
Ainda, quando questionada pela Meritíssima Juiz a quo: “Como disse que emprestou o dinheiro ao Senhor AA e foi o Senhor AA que lhe pediu, porque é que diz que é também a sua filha que lhe deve?”, respondeu: “porque eles depois adquiriram depois que ele me pediu o dinheiro. Eles fizeram esse negócio junto.” (de 43m.15s. a 43m.31s., das suas declarações de 18/10/2022).
Pelo que, das declarações da Autora nunca o Tribunal a quo poderia concluir que os alegados negócios com o DD foram apenas entre este e o Réu, mas sim pelo menos entre o DD, o Réu e a filha da Autora, CC.
XVIII - Acresce ainda que na douta Sentença se faz constar que as declarações prestadas pela Autora foram corroboradas pela testemunha FF, o que não corresponde à verdade.
XIX - Desde logo na própria fundamentação se faz constar que a testemunha FF esclareceu que o estabelecimento comercial em causa nos autos era explorado pela esposa do DD e passou a ser explorado pela filha da Autora, (conforme adiante se demonstrará e cujas declarações serão transcritas no que a esta questão respeita).
XX - Igualmente, conforme resulta da fundamentação da douta Sentença, esta testemunha afirmou completo desconhecimento quanto ao facto de o Réu ter pedido dinheiro emprestado à Autora e de como foi efectivamente realizado o negócio, sendo que esta última é ainda contraditória com a referência logo em seguida ao facto de tal testemunha “deixar claro que existia relações negociais entre o Réu e DD” e que o mesmo “evidenciou que CC, filha da Autora, também estava envolvida no referido negócio, sendo aliás a “dona”.
XXI – A verdade é que do depoimento da testemunha FF (cujas declarações se encontram gravadas no sistema integrado de gravação digital, com início em 15/11/2022, pelas 15h11m34s. e termo pelas15h29m49s., com a duração total de 18minutos e 15 segundos) resulta que o mesmo desconhece por completo se o Réu pediu ou não dinheiro emprestado à Autora, desconhecendo igualmente como foi efectivamente realizada a tradição do estabelecimento comercial da esposa do DD para a filha da Autora.
XXII - Nesse sentido, a testemunha quando questionada pelo mandatário da Autora: “E explicaram que negócio é que iam fazer?”, respondeu: “não, nunca me foi dito como é que o negócio tinha sido feito, como é que ia ser feito. Isso nunca me foi comunicado. Pronto, nunca me foi comunicado, nem por uma parte nem pela outra.” (de 6m.35s a 6m.49s. das suas declarações de 15/11/2022) e ainda: “Não foi falado em valores?” (mandatário da Autora), respondeu: “Nada. Nada. Nem como é que ia ser feito nem como é que não ia. Isso a mim nunca me foi comunicado.” (de 7m.12s a 7m.19s. das suas declarações de 15/11/2022).
XXIII - A testemunha FF, quando questionado: “E o senhor foi contabilista deles?” (mandatário da Autora), respondeu: “sim”. “E eles emitiam faturação desde essa…?”, respondeu. “Deles, deles, portanto, da CC, porque a atividade estava em nome dela, não é? Mas pronto…” (de 8min. 14s. a 8 min e 25 s. das suas declarações de 15/11/2022).
XXIV - Ainda, quando questionado: “Depois, diz que mais tarde soube…” (mandatário da Autora), respondeu: “Sim. Isto é assim: eu nessa altura nunca soube como é que o negócio tinha sido feito. A realidade seja dita, nem pela parte da Dona ... e do seu esposo, do DD, como também não soube nem pela parte da CC e do marido. Posteriormente, e uma vez que eu tinha algum contacto com a Dona BB, e hoje ainda tenho, ainda tenho, pronto, por causa que ainda lhe faço o IRS, ela é que em questão de desabafo é que me contou, portanto, a história que se tinha passado. Portanto, que ela tinha vendido uma casa no Brasil e que tinha emprestado dinheiro para eles comprarem um negócio, não é? E que, pronto, ao fim ao cabo que estava a ver que ia perder tudo porque não lhe tinham pago nada conforme lhe prometeram.” (de 8 min. 55s. a 9min 41s. das suas declarações de 15/11/2022).
XXV - Questionado: “Mas só sabe disso através da Dona BB?” (mandatário da Autora), respondeu: “Sim”, tendo ainda, à questão “Sobre estes factos sabe de mais alguma coisa?”, respondido: “Sobre esse negócio específico em si, como é que tinha sido feito, etc, é como eu lhe digo, não sei, nunca me foi comunicado isso. Nem por uma parte, nem pela outra.” (de 9 min. 42s. a 10min 02s. das suas declarações de 15/11/2022).
XXVI - Ainda no que a esta matéria respeita, quando questionado pela mandatária do Réu: “o que sabe, ao fim ao cabo, é que quem passou a explorar esse negócio deixou de ser a esposa do senhor DD, a Dona ..., e passou a ser, como disse, a Dona HH”, tendo respondido: “Sim, sim” e à questão “Também referiu, quando se refere a eles, só para ficar claro, que o negócio era da CC? ”, respondeu: “Sim. Ela que abriu… Portanto, a atividade estava em nome da ... e passou a ser depois a CC a ter a atividade aberta.” (de 11m.06s. a 11min 28s. das suas declarações de 15/11/2022).
XXVII - Quanto ao total desconhecimento desta testemunha no que respeita à forma como o negócio se transmitiu da esposa do DD para a filha da Autora, a CC, esclarece a testemunha: “Agora, se efetivamente houve, portanto, mesmo dinheiro que tivesse dito que foi feito assim ou se me tivessem perguntado: Eh pá, estamos a pensar fazer assim desta forma, qual é a forma legal ou correta de fazer? eu teria dito, mas nunca me foi dito nada. Portanto…”.
À pergunta: “Nunca foi questionado sobre isso? Não sabe…” (mandatária do Réu), respondeu: “Não, não, não. Nem me foi dito. Às vezes podia ter sido dito a nível, pronto, um jantar um almoço: olha epá, vou vender e vendo por este valor ou por aquele, ou vai ser pago assim! Não. Zero. Eu nunca soube de nada daí.”
À questão “Diz isso de algum almoço ou algum jantar, porque tinha alguma relação mais próxima?”, respondeu: “Mais próxima com o DD. Sim. Chegou a uma certa altura, portanto, havia já ali uma certa relação de amizade. Às vezes, íamos a jantares juntos e falávamos um pouco sobre negócios, outras coisas eram… “
Questionado sobre se: “Ele (DD) nunca comentou consigo sobre este negócio?”, respondeu: “Não, não. Nunca, nunca comentou como é que o negócio tinha sido feito. Por acaso é uma coisa que até parece um bocado estranha, havendo já um bocadinho de relação de amizade que às vezes entre amigos fala-se destas coisas. Mas, por acaso foi coisa, quando se tratou de questões de dinheiro, se se tratou de dinheiro, pronto, digamos de passagem, eu não sei, porque ele nunca se abriu comigo nesse aspeto. Eu só soube, como há pouco acabei de dizer ao seu Colega, da história depois, soube, portanto, pela Dona BB. Porque, no momento, nunca soube quanto é que, se houve dinheiro se não houve, quanto é que foi quanto é que não foi.” (o supra transcrito encontra-se gravado de 13m 48s. a 15m.03s. das suas declarações de 15/11/2022).
XXVIII - Pelo que se conclui que não é verdade que o depoimento desta testemunha vá ao encontro das declarações da Autora, assim como não é verdade que o teor da prova documental junta aos autos acompanhe tais declarações, pois de tais elementos de prova não resulta: que o Réu tenha pedido à Autora, em Setembro de 2010, que lhe emprestasse quaisquer quantias monetárias; que essas quantias fossem para fazer face ao pagamento de negócios que o Réu mantinha com DD; que o Réu se tenha obrigado a restituir qualquer quantia à Autora; que a Autora anuiu em emprestar qualquer quantia ao Réu porque este se encontrava casado com a sua filha; e ainda que até ao divórcio do Réu a Autora tinha esperança que aquele lhe devolvesse o dinheiro.
XXIX – Não se pode aceitar a dúvida do Tribunal a quo quanto à questão sobre se filha da Autora também fez o pedido do empréstimo das quantias conjuntamente com o Réu, pois se por um lado a própria Autora afirmou, “que a sua filha disse que “tinham” de devolver o dinheiro, que a referida loja estava em nome daquela e que não a notificou para a presente acção por ser sua filha” (Sentença, Motivação/convicção do Tribunal), por outro e por apelo às regras de experiência e a normalidade do acontecer sempre se impunha concluir que a versão da Autora de que apenas o Réu lhe pediu dinheiro não pode ser verdadeira. A Autora é parte e tem interesse directo na causa, e ao admitir que a sua filha juntamente com o Réu, é devedora da quantia que reclama nos autos, e que não a “notificou” – entenda-se não interpôs a acção também contra esta – apenas por ser sua filha mostra saber que o devia ter feito, o que descredibiliza a sua versão.
XXX - Por tudo o que resulta supra exposto, nunca poderia o tribunal a quo dar por provados os factos 1 a 6 e 8 da factualidade provada, pois a factualidade aí dada por provada apenas tem suporte nas declarações da Autora, não resultando da restante prova mencionada na Sentença, designadamente, do depoimento da testemunha FF, do teor da acta de tentativa de conciliação de divórcio sem consentimento do outro cônjuge (fls. 6 vrs a 10), do aviso de reclamações de fls. 11, do contrato de fornecimento de energia elétrica de fls. 11, do extracto de conta corrente de fls.13 e da certidão de casamento de fls. 28 não é possível concluir por provados os factos 1 a 6 e 8.
XXXI - As declarações de parte, além de se exigir que sejam espontâneas, contextualizadas e coerentes, para serem válidas enquanto prova têm necessariamente que ser corroboradas/validadas por outros meios de prova que demonstrem a veracidade das mesmas. Caso contrário não devem ser tidas em conta na decisão nem, só por si, sustentá-la, sob pena de se desvirtuarem as regras sobre o ónus probatório e de as acções serem decididas apenas com suporte nas declarações das próprias partes. (conforme Ac. do Tribunal da Relação de Guimarães, de 18/01/2018 e Ac. do Tribunal da Relação de Évora, de 11/05/2023 disponíveis em www.dgsi.pt).
XXXII – Em conformidade, a factualidade vertida nos pontos 1 a 6 e 8 dos factos provados da douta Sentença não poderiam ser dados por provados.
XXXIII - Relativamente aos factos erradamente dados por provados sob os pontos 1 e 2, impunha-se incluir tal factualidade na matéria fáctica não provada, pois que ao contrário do que se entende na douta Sentença o depoimento prestado pela testemunha FF não corrobora as declarações prestadas pela Autora.
XXXIV - Resulta da douta Sentença e das transcrições do depoimento desta testemunha supra transcritas e que aqui se dão por reproduzidas, que esta testemunha desconhecia por completo se o Réu pediu dinheiro emprestado à Autora, o que equivale também a concluir pelo desconhecimento do compromisso alegadamente assumido pelo Réu em devolver a quantia, assim como desconhecia como o alegado “negócio” foi realizado.
XXXV - Da restante prova mencionada para fundamentar esta factualidade (mencionada em XXX destas conclusões) também não decorre tal conclusão, nem tal prova corrobora as declarações prestadas pela Autora.
XXXVI - Relativamente aos factos tidos erradamente por provados sob os pontos 3 e 4, e mais uma vez face à prova produzida em audiência de julgamento e a restante constante dos autos, apenas deveria ter sido dado por provado que:
. No dia 03/09/2010 foi transferido o valor de R$47.703,18 (reais brasileiros) da conta n.º ... sediada no Sicoob – Sistema de Cooperativas de Crédito do Brasil da titularidade da Autora para uma conta titulada por DD. (ponto 3.);
. No dia 27/09/2010 foi transferido o valor de R$40.000,00 (reais brasileiros) da conta n.º ... sediada no Sicoob – Sistema de Cooperativas de Crédito do Brasil da titularidade da Autora para uma conta titulada por DD. (ponto 4.);
XXXVII - E, consequentemente, por não provado (a incluir nos factos não provados) que as transferências identificadas nos pontos 3 e 4 tenham sido feitas pela Autora a pedido do Réu, pois das declarações da testemunha FF não decorre qualquer prova quanto aos montantes, datas e identificação de contas bancárias nem que as mesmas tivessem sido feitas a pedido do Réu, e apenas de documento junto aos autos resulta prova quanto aos montantes em causa, às datas em que foram transferidos e aos titulares e números de contas envolvidas nas transferências, mas já não que as mesmas tenham sido efectuadas a pedido do Réu.
XXXVIII - Relativamente à factualidade dada erradamente por provada sob o ponto 5, face à prova produzida em audiência de julgamento e a restante constante dos autos, apenas deveria ter sido dado por provado que:
. Às datas referidas em 3) e 4) o Réu encontrava-se casado com CC, filha da Autora.
XXXIX - Por outro lado, deveria ter sido dado por não provado (a incluir na factualidade não provada) que:
. A Autora anuiu confiar ao Réu tais montantes por este à data se encontrar casado com a sua filha CC.
XL – Com efeito, das declarações da testemunha FF não decorre qualquer prova quanto ao motivo pelo qual alegadamente a Autora anuiu em “confiar” os montantes, pois desconhecia em absoluto qualquer facto tinente a qualquer pedido de dinheiro emprestado e da restante prova mencionada na Sentença, designadamente da certidão de casamento e da acta de tentativa de conciliação, apenas decorre que o Réu à data das transferências referidas nos pontos 3 e 4 se encontrava casado com a filha da Autora, decorrendo tal conclusão unicamente das declarações da Autora, as quais não podem valer como meio de prova quando desacompanhadas de outro meio de prova que as corrobore ou valide.
XLI – Não decorre de qualquer elemento de prova e nem das declarações da Autora que as quantias aqui em causa alguma vez tenham estado na posse do Réu, pelo que não podia o Tribunal a quo ter dado por provado que os montantes foram “confiados” ao Réu.
XLII - Relativamente à factualidade dada erradamente por provada sob o ponto 6, face à prova produzida em audiência de julgamento e a restante constante dos autos, deveria ter sido dado por provado a mesma factualidade, excluído o termo “também”, nos termos seguintes:
. O estabelecimento comercial descrito em 2) foi explorado pela filha da Autora, CC, a qual iniciou actividade para o efeito.
XLIII - Das declarações da testemunha FF, conforme resulta das transcrições do depoimento desta testemunha supra mencionadas e para as quais ora se remete, o mesmo esclareceu que foi a CC quem iniciou actividade para exploração do estabelecimento comercial em causa nos autos (os trechos acima transcritos nas passagens de 8min. 14s. a 8 min e 25 s. de 11m.06s. a 11min 28s das suas declarações de 15/11/2022).
XLIV - A Autora nas suas declarações menciona “Não, a loja estava no nome da CC” (de 44m.00s a 44m.03s. das suas declarações de 18/10/2022).
XLV - Conforme referido na douta Sentença a testemunha FF esclareceu que CC era “a dona do negócio” e a Autora declarou “que a referida loja estava em nome daquela (filha) e que não a notificou para a presente ação por ser sua filha”.
Igualmente não resulta da restante prova qualquer elemento quanto a tal factualidade.
XLVI - Relativamente à factualidade dada erradamente por provada sob o ponto 8, face à prova produzida em audiência de julgamento e a restante constante dos autos, deveria a mesma ter sido dada por não provada, incluindo-se tal factualidade na matéria de facto não provada.
XLVII - O depoimento prestado pela testemunha FF não corrobora as declarações prestadas pela Autora, pois resulta da douta Sentença e das transcrições do depoimento desta testemunha que supra citámos e que aqui se dão por reproduzidas, que a testemunha desconhecia por completo se o Réu pediu dinheiro emprestado à Autora, assim como desconhecia em absoluto como foi realizado o alegado “negócio”, pelo que necessária e consequentemente desconhecia se o Réu foi interpelado pela Autora a restituir quaisquer quantias, nem tal resulta em momento algum das suas declarações.
XLVIII - Da restante prova mencionada (mencionada em XXX destas conclusões) para fundamentar esta factualidade também não decorre tal conclusão, não corroborando tal prova as declarações prestadas pela Autora.
XLIX – Resulta assim que esta factualidade apenas tem suporte nas declarações prestadas pela Autora, as quais só por si e desacompanhas de qualquer outro elemento de prova que as corroborem ou validem, não podem servir de suporte à decisão.
L - Em face de tudo o que resulta exposto somos ainda a entender que deveria ser incluída na matéria factual provada a seguinte factualidade:
. As quantias em causa nos autos nunca foram entregues ao Réu nem estiveram na sua posse;
LI - Tal factualidade resulta de tudo o anteriormente exposto, não tendo sido feita qualquer prova nesse sentido, sendo que a documentação relativa às transferências apenas permite concluir que as mesmas são feitas da conta da Autora para a conta bancária de DD, ambas sediadas no Brasil.
LII – Devendo ainda incluir-se na factualidade provada o seguinte facto:
. Em 31/01/2004 o Réu e CC casaram no Brasil sob o regime da comunhão parcial de bens.
LIII - Tal factualidade resulta desde logo provada pelo teor da certidão de casamento junta aos autos (fls. 28 vrs.)
LIV – Segundo a posição maioritária da doutrina e jurisprudência, o contrato de mútuo previsto no artigo 1142º do Código Civil, para a sua conclusão e perfeição, supõe dois elementos constitutivos:
i) a entrega de uma coisa fungível ou de dinheiro por parte do mutuante, sendo que sem essa entrega (datio rei) não será possível ter-se como existente o contrato de mútuo típico, mas quando muito uma promessa de mútuo;
ii) a obrigação de restituir outro tanto do mesmo género do que foi recebido.
LV – Da alteração da matéria de facto provada e não provada, que pelo presente recurso se pugna, atentos os específicos elementos de prova, entendemos que nenhum dos elementos constitutivos deste tipo contratual está preenchido na situação dos autos.
LVI - E ainda que se entendesse por provada a factualidade nos termos constantes na douta Sentença, sempre se diria que, o primeiro elemento acima apontado (a entrega de uma coisa fungível ou de dinheiro por parte do mutuante ao mutuário), não se mostraria verificado, porquanto não basta a demonstração de uma qualquer deslocação patrimonial da esfera jurídica da A., enquanto mutuante, sendo necessária que essa deslocação se verifique para a esfera jurídica do R. in casu, o que nunca se verificou, tendo as quantias sido transferidas para um terceiro.
LVII – Consequentemente, não se estando perante um contrato de mútuo entre A. e R., não poderá o R. ser condenado na restituição do capital com fundamento na nulidade desse contrato por alegada falta de forma.
LVIII - Ainda que se entendesse que estaríamos perante um contrato de mútuo, o que não aceita nem se concebe, a nulidade por falta de forma do mesmo nunca daria lugar ao pagamento do valor por parte do Réu – que nada recebeu – do montante mutuado, nos termos do art. 289.º do CC, recaindo a obrigação de restituição sobre quem beneficiou da transferência patrimonial operada por efeito do mútuo (Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 17/05/2018, disponível em http://www.dgsi.pt).
LIX – Em última análise, se entendêssemos estar perante um contrato de mútuo, nulo por falta de forma e, como entendeu o tribunal a quo, dando tal nulidade lugar à restituição dos montantes unicamente por parte do Réu, nunca o mesmo poderia ser condenado na devolução da totalidade desacompanhado da filha da Autora, à data esposa do Réu.
LX - Tendo o tribunal dado por provado que o Réu e CC eram casados à data do alegado empréstimo, por força do teor da certidão de casamento (fls. 28vrs.), e constando da fundamentação que os mesmos casaram no Brasil, em 31/01/2004, sob o regime da comunhão parcial de bens, e que o estabelecimento comercial foi explorado pela CC, nunca o Réu poderia ser o único a ser condenado por uma alegada dívida comum ao casal, Réu e CC.
LXI - Tratando-se de dívida comum do casal e necessariamente de uma situação de litisconsórcio necessário passivo, nem sequer poderia o tribunal a quo decidir pela restituição pelo Réu da sua meação na dívida.
LXII - O Tribunal a quo fez uma incorrecta interpretação e aplicação das normas legais, nomeadamente aplicando o regime do contrato de mútuo (1142º, 1143º e 1145º, 219º, 220º e 289º, todos do Código Civil) quando na verdade, conforme se demonstrou supra, não se encontram preenchidos os elementos/requisitos desse tipo contratual.
Não se encontrando preenchidos tais elementos nunca poderia o tribunal ter concluído pela existência de contrato de mútuo.
Não se estando perante contrato de mútuo não poderia o tribunal a quo concluir pela nulidade por violação da forma e, subsequentemente, retirar as consequências que determinou.
LXIII - E ainda que entendêssemos estar perante este tipo contratual, nunca o mesmo respeitaria a um muto consensual como entente a Meritíssima Juiz a quo, mas sim, pelo que acima se considerou, um contrato de mútuo real quoad constitutionem, relativamente ao qual não se verifica um dos elementos/requisitos.
LXIV - E naquela última situação ainda assim fez o tribunal a quo uma incorrecta interpretação do disposto no artigo 33º do CPC e das normas aplicáveis ao regime de bens e dívidas comuns do casal (Réu e CC).
LXV - Por tudo o que resulta exposto das alegações do presente recurso, deverá a decisão proferida ser revogada e substituída por outra que julgue improcedentes, por não provados, todos os pedidos formulados pela Autora na presente acção, absolvendo-se o Réu da totalidade dos pedidos.”
Termina pedindo que seja concedido provimento ao recurso e, em consequência, ser declarada:
- a nulidade da sentença recorrida, por omissão de pronúncia, nos termos do art.º 615.º, n.º 1, al. d), do Código de Processo Civil, com prolação de decisão expurgando o vício apontado;
- verificada a exceção da ilegitimidade passiva nos termos do disposto no art.º 33.º e, consequentemente, absolver da instância o réu nos termos e para os efeitos do art.º 278.º, n.º 1, alínea d), 576º, n.º 1 e 2, 577.º e) e 578.º, todos do Código de Processo Civil.
E, caso assim não se entenda:
- Declarar incorretamente julgada a factualidade provada e não provada, e erradamente interpretado e aplicado o direito, tudo nos termos apontados no presente recurso e, em consequência, revogar a decisão recorrida substituindo-se por outra que declare improcedentes, por não provados, todos os pedidos formulados nos presentes autos pela autora, absolvendo-se o réu dos mesmos.
*
1.6. A autora contra-alegou, formulando as seguintes conclusões (transcrição):
A) Concordando integralmente com os fundamentos de facto e de direito da decisão recorrida para os quais se remete, a recorrida sustenta o não provimento do recurso interposto e ora em análise.
B) De acordo com o disposto no artº 1142º do Código Civil “mútuo é o contrato pelo qual uma das partes empresta à outra dinheiro ou outra coisa fungível, ficando a segunda obrigada a restituir outro tanto do mesmo género e qualidade”.
C) Segundo resulta do artº 1143º do Código Civil, o mútuo é um negócio consensual ou formal, consoante o seu valor, sendo que o mesmo só é válido se for celebrado por escritura pública (sendo o seu valor superior a 25.000 €) ou por documento assinado pelo mutuário (sendo o seu valor superior a 2.500 € e inferior a 25.000 €).
D) Caso o contrato deva ser celebrado com tal forma e o não seja, estará ferido de nulidade, nos termos do artigo 220.º do Código Civil.
E) A declaração de nulidade do mútuo, por falta de forma, tem como consequência a restituição, pelo mutuário, de tudo o que tiver sido prestado, nos termos do artº 289.º n.º 1 do Código Civil.
F) A ação foi intentada com fundamento em mútuo nulo por falta de forma.
G) A autora só poderia obter a condenação na restituição do(s) montante(s) entregue(s) ao R. se provasse como provou os elementos constitutivos deste contrato descritos no art. 1142.º do CC, em particular, se provasse que tal montante foi entregue ao réu a título de empréstimo, o que logrou alcançar.
H) Ficou a constar da fundamentação de direito da sentença recorrida:
“No caso sub judice, resultou provado que o Réu pediu à Autora a quantia total de R$87.703,18 (reais brasileiros) para fazer face ao pagamento de valores decorrentes de negócios que mantinha com DD, tendo a Autora anuído conceder tal quantia ao Réu e este comprometeu-se a devolver tal quantia à Autora (cf. factos n.ºs 1 e 2).
Resultou ainda provado que no dia 03/09/2010, a pedido do Réu, foi transferido o valor de R$47.703,18 (reais brasileiros) da conta n.º ... sediada no Sicoob – Sistema de cooperativas de Crédito do Brasil da titularidade da Autora para uma conta titulada por DD e no dia 27/09/2010, a pedido do Réu, foi transferido o valor de R$40.000,00 (reais brasileiros) da conta n.º ... sediada no Sicoob – Sistema de cooperativas de Crédito do Brasil da titularidade da Autora para uma conta titulada por DD (cf. factos n.ºs 3 e 4).”
I) Ou seja, está provado que a A. ora recorrida, entregou a título de empréstimo ao R. a quantia total de R$87.703,18 em duas tranches, uma no valor de R$47.703,18 (reais brasileiros) e outra no valor de R$40.000,00 (reais brasileiros).
J) Perante isto, à luz do objeto da ação, ou seja, do pedido formulado pela autora na petição inicial e da causa de pedir que lhe subjaz, a ação não poderia deixar ser julgada procedente, como foi, com a consequente condenação do réu dos pedidos consistentes na sua condenação.
K) O presente recurso não poderá deixar de ser julgado improcedente, com a consequente confirmação da sentença recorrida, naquele seu segmento absolutório, sendo totalmente carecido de fundamento o pretendido pelo apelante em sede de recurso, em cujas alegações e conclusões, incompreensivelmente, persiste indiretamente na invocação, não apenas de uma causa de pedir diferente da invocada na petição inicial, mas também de uma diferente causa de julgar, ao trazer à colação a figura processual da ilegitimidade e da questão das dividas dos cônjuges.
L) Por outro lado, o recorrente, ao abrigo do disposto no artigo 662.º n.º 1 do C.P.C., vem pôr em causa a matéria de facto provada em pontos 1 a 6 e 8, indicando, em concreto, que o Tribunal nunca poderia tê-los dado como provados, afirmando que das declarações da A. e do depoimento da testemunha FF se impunha decisão diversa, ou seja, no sentido de os considerar não provados.
M) No caso em apreço, no que se refere aos pontos da matéria que o recorrente pretende modificação, diremos, desde já, que as respostas à matéria de facto se mostram devidamente fundamentadas, com apreciação crítica dos vários nem discricionariedade.
N) Na sustentação sobre as respostas a Julgadora a quo mostra-se convincente quanto à certeza da sua decisão sobre estes pontos factuais em análise, referindo na sua fundamentação:
“…
Deste modo, para dar como provados os factos n.ºs 1 a 8 o Tribunal alicerçou a sua convicção nas declarações prestadas pela Autora,bem como do depoimento prestado pela testemunha FF, conjugados com a análise do teor da ata de tentativa de conciliação de divórcio sem consentimento do outro cônjuge de fls. 6 (verso) a 10 (da qual consta a sentença, datada de 29/09/2021, a decretar o divórcio por mútuo consentimento entre HH e o Réu), o aviso de livro de reclamações de fls. 11, o contrato de fornecimento de energia elétrica de fls. 11 (verso), o extrato de conta corrente de fls. 13 e a certidão de casamento de fls. 28 (verso) (onde é possível constatar que HH e Réu se casaram em 31/01/2004, sob o regime de comunhão parcial de bens e de onde resulta ser aquela filha da Autora).
Sem prescindir,o Tribunal não poderia deixar de consignar que do depoimento prestado pela testemunha FF (que afirmou que CC era “a dona do negócio”) e das declarações prestadas pela Autora que, não obstante ter negado que a sua filha, CC, também lhe pediu dinheiro emprestado conjuntamente com o Réu, a verdade é que no decurso das suas declarações proferiu expressões que deixaram o Tribunal na dúvida quanto a tal facto (afirmou que a sua filha disse que “tinham de devolver o dinheiro”, que a referida loja estava em nome daquela e que não a notificou para a presente ação por ser sua filha).
Assim, sendo certo que o Tribunal ficou na dúvida se CC pediu dinheiro à Autora conjuntamente com o Réu, tendo-se igualmente obrigado a restituir, dúvidas não subsistem, pelos motivos supra expostos, de que o Réu o fez.“
O) Não vislumbramos, assim, razões para pôr em causa a objetividade da Mma. Juiz do Tribunal a quo na apreciação da prova, assentando a mesma essencialmente nas declarações da A. e nos depoimentos das testemunhas.
P) Entendemos não dever proceder o Tribunal ad quem a qualquer modificação da factualidade que vem dada como provada e não provada pela 1.ª Instância.
Q) Salvo o devido respeito por opinião contrária, não há qualquer nulidade da sentença por omissão de pronúncia, a Mma. Juiz de Direito do Tribunal a quo mencionou o seguinte:
“Relativamente o facto C), apenas foi junta a certidão do casamento celebrado entre HH e o Réu proveniente da República Federativa do Brasil e da qual consta que o casamento foi celebrado “sob o regime de comunhão parcial de bens” (cf. fls. 28 (verso)).”
R) Poderá traduzir-se na constatação deerrodejulgamento no âmbito da matéria de facto, que impõe que se tenha chegado à conclusão que a formação da decisão deviatersidoemsentido inversodaqueleem quesejulgou,emergindo “de um juízo conclusivo de desconformidade inelutável e objetivamente injustificável entre, de um lado, o sentido em que o julgador se pronunciou sobre a realidade de um facto relevante e, de outro lado, a própria natureza das coisas”, mas mesmo assim, refutamos essa possibilidade.
S) Neste sentido, a decisão recorrida julgou irrepreensivelmente a matéria sub judice, razões porque o presente recurso interposto pelo R. carece de qualquer fundamento legal.”
Termina pedindo que seja negado provimento ao recurso, mantendo-se a sentença recorrida.
*
1.7. Por despacho proferido em 31 de outubro de 2023, o recurso foi admitido como sendo de apelação, com subida nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo.
*
1.8. Efetuada a apreciação liminar, colhidos os vistos legais e realizado o julgamento, nos termos do art.º 659.º, do Código de Processo Civil, cumpre apreciar e decidir.
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II – FUNDAMENTAÇÃO
2.1. Âmbito do recurso e questões a decidir
O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente, não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso – art.ºs 635.º, n.º 3, e 639.º, n.ºs 1 e 2, do Código de Processo Civil.
Por outro lado, ainda, sem prejuízo das matérias de conhecimento oficioso, o tribunal de recurso não pode conhecer de questões não antes suscitadas pelas partes em 1.ª instância e ali apreciadas, sendo que a instância recursiva, tal como configurada no sistema de recursos vigente na nossa lei adjetiva, não se destina à prolação de novas decisões judiciais, mas ao reexame ou à reapreciação pela instância hierarquicamente superior das decisões proferidas pelas instâncias [Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de processo Civil, p. 92-93].
No seguimento desta orientação, as questões a decidir no presente recurso são as seguintes:
1.ª Determinar se a sentença recorrida padece do vício de nulidade por omissão de pronúncia (art.º 615.º n.º 1, al. d), do Código de Processo Civil), por não ter dado como provado o seguinte facto: “Em .../.../2004, o réu e CC casaram, no Brasil, sob o regime da comunhão parcial de bens”;
2.ª Determinar se deve ser aditada à matéria de facto provada que “o réu e CC casaram, no Brasil, sob o regime da comunhão parcial de bens” e se deve ser modificada a decisão da matéria de facto no tocante aos factos provados vertidos nos pontos 1, 2, 3, 4, 5, 6 e 8.
3.ª Determinar se a dívida em apreço responsabiliza ambos os cônjuges (o apelante e CC, à data casados entre si) por ter sido contraída em proveito comum do casal;
4.ª Em caso de resposta afirmativa, determinar se ocorre preterição de litisconsórcio necessário passivo, por não ter sido demandada a mulher do réu, CC, à data da contração da dívida.
*
2.2. Os factos
Na sentença recorrida foram considerados provados os seguintes factos:
1.A Autora anuiu conceder ao Réu a quantia total de R$87.703,18 (reais brasileiros) e este comprometeu-se a devolver tal quantia à Autora.
2.O Réu pediu à Autora a quantia referida em 1) para fazer face ao pagamento de valores decorrentes de negócios que mantinha com DD, designadamente o pagamento do valor estabelecido para o recheio e a entrega da chave do estabelecimento comercial sito na Avenida ..., ..., Edifício ..., ..., em Olhão.
3.No dia 03/09/2010, a pedido do Réu, foi transferido o valor de R$47.703,18 (reais brasileiros) da conta n.º ... sediada no Sicoob – Sistema de cooperativas de Crédito do Brasil da titularidade da Autora para uma conta titulada por DD.
4.No dia 27/09/2010, a pedido do Réu, foi transferido o valor de R$40.000,00 (reais brasileiros) da conta n.º ... sediada no Sicoob – Sistema de cooperativas de Crédito do Brasil da titularidade da Autora para uma conta titulada por DD.
5.Às datas referidas em 3) e 4) o Réu encontrava-se casado com CC, filha da Autora, razão pela qual a Autora anuiu confiar-lhe tais montantes.
6.O estabelecimento comercial descrito em 2) foi também explorado pela filha da Autora, CC.
7.Por sentença datada de 29/09/2021 foi decretado o divórcio entre CC e o Réu.
8.O Réu, após o descrito em 7), foi interpelado pela Autora para restituir as quantias referidas em 3) e 4).
9.O filho menor de idade que o Réu e CC têm comum encontra-se a residir com a Autora.
10. O Réu, sempre que se desloca a Portugal, de 15 (quinze) em 15 (quinze) dias vai buscar e levar o seu filho a casa da Autora.
11. Da conversão do valor de R$47.703,18 (reais brasileiros) à taxa cambial de 2,20€/R$ resulta o montante de €21.683,26 (vinte e um mil, seiscentos e oitenta e três euros e vinte e seus cêntimos).
12. Da conversão do valor de R$40.000,00 (reais brasileiros) à taxa cambial de 2,30€/R$ resulta o montante de 17.391,30 (dezassete mil, trezentos e noventa e um euros e trinta cêntimos).
13. A taxa cambial de conversão de Real(do Brasil)/Euro era de 0,4519 à data de 03/09/2010 e de 0,4344 à data de 27/09/2010.
14. Da conversão do valor de R$47.703,18 (reais brasileiros) à taxa cambial de 0,4519 resulta o montante de €21.557,08 (vinte e um mil, quinhentos e cinquenta e sete euros e oito cêntimos).
15. Da conversão do valor de R$40.000,00 (reais brasileiros) à taxa cambial de 0,4344 resulta o montante de €17.376,00.
16. O Réu foi citado a 03/03/2022.
E foram considerados não provados os seguintes factos:
A. O Réu comprometeu-se a devolver à Autora o valor referido em 1) no prazo de 1(um) ano.
B. Findo o prazo referido em A), o Réu, com falsas promessas, foi adiando a restituição dos valores referidos em 3) e 4) à Autora.
C. O casamento entre o Réu e CC foi celebrado sob o regime de comunhão de adquiridos.
D. A sentença referida em 7) transitou em julgado em 29/10/2021.
E.O Réu furtou-se a qualquer contacto com a Autora após o descrito em 8).
F.A taxa cambial do Real(do Brasil)/Euro à data de 03/09/2010 era de 0.448 e à data de 27/09/2010 era de 0.435.
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Na motivação da decisão de facto explanada na sentença, na parte que ora importa, justifica o tribunal recorrido o assim decidido nos seguintes termos:
O Tribunal alicerçou a sua convicção nas declarações prestadas pela Autora, bem como nos depoimentos prestados pelas testemunhas EE, FF e GG, conjugados com a análise do teor da prova documental carreada para os autos, mais concretamente a ata de tentativa de conciliação de divórcio sem consentimento do outro cônjuge de fls. 6 (verso) a 10, o aviso de livro de reclamações de fls. 11, o contrato de fornecimento de energia elétrica de fls. 11 (verso), o extrato de conta corrente de fls. 13 e a certidão de casamento de fls. 28 (verso). Concretizando.
Primeiramente, cumpre salientar que no que concerne aos depoimentos prestados pelas testemunhas EE (irmã da Autora) e GG (amiga da Autora e madrinha da filha da Autora, CC), revelou-se terem apenas conhecimento direto de que foram transferidos os montantes de R$47.703,18 (reais brasileiros) e R$40.000,00 (reais brasileiros) para a conta de DD (a testemunha EE porque foi quem fez os depósitos, uma vez que era procuradora da sua irmã, aqui Autora; e a testemunha GG porque a Autora lhe pediu para transferir as quantias para uma conta corrente), factos que se encontram admitidos por acordo e resultam evidentes da análise do teor do extrato de conta corrente de fls. 13 (sendo possível constatar a disponibilização de tais quantias e as subsequentes transferências bancárias nos dias 03/09/2010 e 27/09/2010 nos valores de R$47.703,18 (reais brasileiros) e R$40.000,00 (reais brasileiros), respetivamente, da conta n.º ... sediada no Sicoob – Sistema de cooperativas de Crédito do Brasil da titularidade da Autora (BB) para uma conta titulada por DD), documento com a qual a Autora foi confrontada e confirmou o seu teor.
O facto cerne e que se encontra controvertido, isto é, que tais valores foram transferidos a pedido do Réu, as referidas testemunhas afirmaram que o seu conhecimento acerca de tais factos teve como fonte as declarações da Autora. Ora, sendo certo que o depoimento indireto não é vedado no nosso direito processual civil, a verdade é que tal ciência indireta não poderá deixar de se repercutir na credibilidade do meio probatório em causa, sendo evidente que é diferente, em termos de credibilidade, uma testemunha relatar algo de que teve conhecimento direito, por o ter presenciado, ou algo de que teve conhecimento indireto, porque lhe foi transmitido por terceiros.
É claro que cada caso é um caso e não é de descartar, sem mais, o depoimento de uma testemunha acerca de determinado facto, apenas porque lhe foi transmitido por outrem, no entanto, neste caso concreto, o Tribunal não pode olvidar a inegável importância que as relações familiares e de amizade assumiram nos depoimentos prestados pelas testemunhas EE e GG, sendo que o facto essencial e decisivo - de que as transferências foram feitas a pedido do Réu – foi por estas relatado por ser uma convicção fruto daquilo que lhes foi transmitido por uma pessoa próxima.
No mais, sendo certo que os depoimentos prestados pelas referidas testemunhas careceram de imediação, uma vez que ambas prestaram o seu depoimento por meios de comunicação à distância, o Tribunal não pode deixar de consignar que tais depoimentos se afiguraram pouco espontâneos, ficando evidenciado o constante auxílio a apontamentos, o que, se por um lado, é permitido à luz do disposto no artigo 461.º, n.º 2, ex vi do artigo 516.º, n.º 7, ambos do CPC (podendo as testemunhas socorrer-se de documentos ou apontamentos de datas ou de factos para responder às perguntas) e normal devido ao lapso de tempo que decorreu (sendo normal a dificuldade em recordar as datas e montantes transferidos no ano de 2010), por outro lado, crê este Tribunal que as testemunhas não se socorreram pontualmente de tais apontamentos, mas antes prestaram um depoimento baseado nos mesmos.
Ora, as circunstâncias supra descritas e a forma hesitante como por vezes respondiam às perguntas colocadas (por vezes com monossílabos), não significando necessariamente que prestados.
De resto, o Tribunal entende ter existido uma articulação e conjugação da restante prova produzida que permitiu, sem dúvida, dar como provados os factos elencados.
Começando pelas declarações prestadas pela Autora e não olvidando, obviamente, ser uma prova que emana da própria parte do processo, logo com interesse direto no desfecho da causa, a verdade é que para além de a Autora ter prestado declarações de forma coerente, escorreita e espontânea, tais declarações foram ainda corroboradas por outros meios probatórios, como infra se explanará.
Em traços largos, e de modo a deixar evidente a articulação da prova produzida, eis o relatado pela Autora:
- o Réu pediu à Autora, em setembro de 2010, que lhe emprestasse as quantias monetárias em causa para fazer face ao pagamento de negócios que mantinha com DD, nomeadamente para pagar o recheio da loja sita em Olhão, tendo se obrigado a restituir o dinheiro. A Autora declarou ainda que anuiu emprestar tais montantes ao Réu porque o mesmo se encontrava casado com a sua filha e que até ao divórcio dos mesmos tinha esperança que aquele lhe devolvesse o dinheiro.
Ora, as declarações prestadas pelas Autora foram ao encontro do depoimento prestado pela testemunha FF, que apresentou uma postura serena e um discurso coerente, escorreito e espontâneo, não evidenciado qualquer favoritismo por nenhuma das partes e demonstrando não ter qualquer interesse no desfecho da causa, merecendo assim credibilidade perante este Tribunal. Esta testemunha afirmou ter sido contabilista da esposa de DD, sendo que tinha mais contacto com este por ser ele a tratar da parte contabilística do negócio que exploravam no estabelecimento comercial sito na Avenida ..., ..., Edifício ..., em Olhão (concretizando ser uma loja que vendia bijutaria e cosmética).
Relatou ainda que DD lhe transmitiu que a sua esposa queria voltar para o Brasil e que quem ficaria com o referido negócio seriam CC (filha da Autora) e o Réu, o que veio efetivamente a ocorrer, pois ficou contabilista de CC por ser “a dona do negócio”, não obstante o negócio ser explorado por ambos (o que reforça a alegação da Autora de que o empréstimo servia ainda para a entrega da chave do estabelecimento comercial).
No entanto, no que concerne ao facto de o Réu ter pedido dinheiro emprestado à Autora ou de como foi efetivamente realizado o negócio entre DD e o Réu e CC, afirmou ter completo desconhecimento.
Ora, do depoimento prestado pela testemunha FF ficou evidenciado que a mesma não se inibiu de prestar um depoimento que até poderia ser prejudicial às partes (por um lado, veio deixar claro que existia relações negociais entre o Réu e DD ao contrário do alegado por aquele e, por outro lado, evidenciou que CC, filha da Autora, também estava envolvida no referido negócio, sendo aliás “a dona”; dúvidas houvessem da imparcialidade da testemunha, as mesmas desvaneceram quando afirmou que não tinha qualquer conhecimento de a Autora ter emprestado dinheiro ao Réu, nem tão pouco sabia como foi realizado o negócio entre DD e o Réu e CC), demonstrando não estar preocupado em salientar determinados factos (favoráveis a qualquer das partes) e procurando ocultar outros (prejudiciais a qualquer das partes), limitando-se a responder às questões que lhe eram colocadas de modo espontâneo e objetivo.
Mais, a testemunha FF afirmou ainda que, em virtude das suas funções, tem conhecimento que DD tinha contas bancárias em Portugal, o que pode suscitar dúvidas da razão pela qual o dinheiro foi transferido para uma conta sediada no Brasil. Ora, não deixa de se afigurar como provável que tal ocorrência teve como causa o que a testemunha começou por relatar: o negócio instalado no estabelecimento comercial sito na Avenida ..., ..., Edifício ..., ..., em Olhão ficaria para CC e Réu porque DD e a sua esposa queriam voltar para o Brasil.
Assim, não só as declarações prestadas pela Autora foram corroboradas pelo depoimento prestado pela testemunha FF, como foram ao encontro do teor da prova documental junta aos autos.
De facto, como resulta do teor do aviso de livro de reclamações de fls. 11, tal livro pertence a AA, é datado de 14/12/2010 (três meses após as transferências bancárias) e referente à Avenida ..., ..., Edifício ..., ... Olhão, resultando ainda do teor do “contrato de fornecimento de energia elétrica” de fls. 11 (verso) celebrado com a EDP, a assinatura do Réu como cliente (assinatura que não foi impugnada) e do qual consta como morada a Avenida ..., ..., ..., Olhão e como data acordada para ligação o dia 10/01/2011 (cerca de um mês após a aquisição do livro de reclamações).
O facto de o nome II constar como o nome da proprietária no documento de fls. 11 (verso) em nada invalida a veracidade dos factos, pois explorar um estabelecimento não equivale necessariamente a ser proprietário do mesmo.
No mais, a versão dos factos apresentada pela Autora não deixa de ser conforme com as regras da experiência e a normalidade do acontecer. Se, por um lado, não é comum o empréstimo de quantias elevadas sem que haja a preocupação de ficar na posse de um documento escrito que ateste tal facto, por outro lado, importa ter em consideração o contexto em que tal circunstância ocorreu: no seio familiar, onde reinam, em regra, relações de confiança.
Neste seguimento, não pode deixar se afigurar como verosímil a versão relatada pela Autora, no sentido de que até ao momento em que a sua filha e o Réu se divorciaram, a mesma teve esperança que este lhe restituísse o dinheiro (note-se que o divórcio entre CC e o Réu teve lugar em finais do ano de 2021 e a Autora intentou a presente ação em janeiro de 2022).
Deste modo, para dar como provados os factos n.ºs 1 a 8 o Tribunal alicerçou a sua convicção nas declarações prestadas pela Autora, bem como do depoimento prestado pela testemunha FF, conjugados com a análise do teor da ata de tentativa de conciliação de divórcio sem consentimento do outro cônjuge de fls. 6 (verso) a 10 (da qual consta a sentença, datada de 29/09/2021, a decretar o divórcio por mútuo consentimento entre HH e o Réu), o aviso de livro de reclamações de fls. 11, o contrato de fornecimento de energia elétrica de fls. 11 (verso), o extrato de conta corrente de fls. 13 e a certidão de casamento de fls. 28 (verso) (onde é possível constatar que HH e Réu se casaram em 31/01/2004, sob o regime de comunhão parcial de bens e de onde resulta ser aquela filha da Autora).
Sem prescindir, o Tribunal não poderia deixar de consignar que do depoimento prestado pela testemunha FF (que afirmou que CC era “a dona do negócio”) e das declarações prestadas pela Autora que, não obstante ter negado que a sua filha, CC, também lhe pediu dinheiro emprestado conjuntamente com o Réu, a verdade é que no decurso das suas declarações proferiu expressões que deixaram o Tribunal na dúvida quanto a tal facto (afirmou que a sua filha disse que tinham de devolver o dinheiro”, que a referida loja estava em nome daquela e que não a notificou para a presente ação por ser sua filha).
Assim, sendo certo que o Tribunal ficou na dúvida se CC pediu dinheiro à Autora conjuntamente com o Réu, tendo-se igualmente obrigado a restituir, dúvidas não subsistem, pelos motivos supra expostos, de que o Réu o fez.
Os factos n.ºs 9 e 10 resultaram provados das declarações prestadas pela Autora (que afirmou que o Réu sempre que se desloca a Portugal, de 15 (quinze) em 15 (quinze) dias vai buscar e levar o filho a sua casa), bem como do teor da ata de tentativa de conciliação de divórcio sem consentimento do outro cônjuge de fls. 6 (verso) a 10 (da qual consta o acordo do exercício das responsabilidades parentais do filho que CC e o Réu têm em comum, JJ, em que foi fixada a residência junto da avó Materna, aqui Autora).
Consigna-se ainda que foi tentada a notificação de CC e de DD a fim de prestarem depoimento como testemunhas, a qual não se logrou possível.
Por fim, no que respeita aos factos n.ºs 11 e 12 (alegados pela Autora), resultaram provados por simples cálculo aritmético, tendo os factos n.ºs 13 a 15 resultado provados da consulta do site do Banco Central Europeu (BCE).
Ora, a Autora refere uma taxa com arredondamento à centésima, o que não permite efetuar a conversão com precisão semelhante à do BCE, o qual apresenta uma taxa de conversão EUR/BRL com 4 casas decimais. Na verdade, considerando a taxa de conversão EUR/BRL do BCE com arredondamento à décima, esta coincide com a taxa EUR/BRL fornecida pela Autora, embora isto não seja suficiente para afirmar que a taxa de conversão utilizada foi a apesentada pelo BCE, dada a incerteza associada ao arredondamento.
Já a taxa alegada pelo Réu tem como fonte um site (cf. fls. 26 (verso) a 28) que apresenta taxas de variadas fontes, não estando explicitamente indicado qual das fontes foi utilizada. Considerando a taxa BRL/EUR alegada pelo Réu, podemos comparar esta com a taxa fornecida pelo BCE, invertendo a conversão EUR/BRL para BRL/EUR com arredondamento à milésima (3 casas decimais): No dia 03/09/2010, a taxa fornecida pelo réu (0.488) e a taxa obtida no BCE (0.452) diferem. Também para o dia 27/09/2010, a taxa BRL/EUR fornecida pelo réu (0.435) não coincide com a taxa obtida no site do BCE (0.434).
Relativamente à argumentação do Réu de que a conversão feita pela Autora é efetuada com base na taxa cambial de euro/real quando teria necessariamente de ser efetuada à taxa cambial real/euro, a verdade é que, matematicamente, converter de EUR para BRL é a mesma coisa que converter de BRL para EUR e a taxa fornecida em BRL/EUR pode ser convertida em EUR/BRL facilmente utilizando uma regra de três simples.
No entanto, em termos lógicos, assiste total razão ao Réu, uma vez que faz sentido que o valor em BRL seja convertido em EUR, já que o valor devido é BRL e será esse o valor a converter. Assim sendo, deverá ser apresentada a taxa em BRL/EUR e não EUR/BRL.
O facto n.º 16 resultou provado do teor do aviso de receção (cf. referência citius n.º 9869517).
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Os factos não provados E) e F) assim o resultaram por ter sido produzida prova em sentido contrário nos termos supra explanados.
Os factos A), B) e C) resultaram não provados, uma vez que a prova produzida foi insuficiente para que se formasse convicção no sentido de que tais factos se verificaram.
No que respeita ao facto A), não obstante a Autora ter afirmado que o Réu se obrigou a restituir o dinheiro no prazo de 1 (um) ano, quando questionada novamente sobre tal questão não soube concretizar, tendo até afirmado que o Réu “lhe deu a entender que seria por pouco tempo”.
Quanto ao facto B), o Tribunal também não ficou convencido que o mesmo se tenha verificado, pois foi a própria Autora a afirmar que quando confrontava o Réu para este lhe restituir o dinheiro o mesmo retorquia que não o iria fazer dizendo-lhe que “não tinha nada escrito”, nunca relatando falsas promessas de pagamento.
Relativamente o facto C), apenas foi junta a certidão do casamento celebrado entre HH e o Réu proveniente da República Federativa do Brasil e da qual consta que o casamento foi celebrado “sob o regime de comunhão parcial de bens” (cf. fls. 28 (verso)).
Por fim, o facto não provado D) assim o resultou por não ter sido produzida prova nesse sentido.
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2.3. Apreciação do recurso
1.ª Questão
Determinar se a sentença recorrida padece do vício de nulidade por omissão de pronúncia (art.º 615.º n.º 1, al. d), do Código de Processo Civil), por não ter dado como provado o seguinte facto: “Em .../.../2004, o réu e CC casaram, no Brasil, sob o regime da comunhão parcial de bens
Entende o apelante que a sentença recorrida padece de nulidade por vício de omissão de pronúncia porquanto nela não se fez constar (não se deu como provado) que “Em .../.../2004, o réu e CC casaram, no Brasil, sob o regime da comunhão parcial de bens”, facto que resulta da certidão de casamento de fls. 28 e verso”.
Relativamente às nulidades da sentença, começamos por citar Abrantes Geraldes para salientar a inexplicável frequência com que as partes suscitam, sem o mínimo de fundamento legal, nulidades atinentes ao ato decisório, pretendendo desviar o conhecimento das questões substantivas do caso em litígio para o conhecimento de questões estritamente formais, que apenas consomem meios humanos, sem qualquer utilidade substantiva para a resolução definitiva/substantiva do litígio, sendo certo que, mesmo a existirem tais nulidades, sempre cabe, por princípio, ao Tribunal da Relação avançar para o conhecimento da questão substantiva, suprindo a eventual nulidade cometida (art.º 665.º, n.º 1, do Código de Processo Civil), não ocorrendo, pois, regra geral, a remessa dos autos ao Tribunal de 1.ª instância. [Recursos no Novo Código de Processo Civil, p. 92-93].
De facto, no caso dos autos, a invocação de tal nulidade por omissão de pronúncia só pode, com o devido respeito, justificar-se por desconhecimento sobre os fundamentos legais que estão na base daqueles vícios do ato decisório.
Dito isto, cumpre conhecer da mesma.
Nos termos do art.º 615.º, do Código de Processo Civil, e no que para o caso interessa:
“1 - É nula a sentença quando:
(…)
d) O juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento;
(…)”.
As nulidades da sentença são, assim, tipificados, vícios formais, intrínsecos de tal peça processual, reportando-se à estrutura, à inteligibilidade e aos limites, sendo vícios do silogismo judiciário inerentes à sua formação e à harmonia formal entre as premissas e a conclusão, que não podem ser confundidas com erros de julgamento, de facto ou de direito [cf., entre muitos, acórdão do TRE, de 03.11.2016, consultável em www.dgsi.pt]. Trata-se de um error in procedendo, nada tendo a ver com os erros de julgamento (error in judicando), seja em matéria de facto, seja em matéria de direito.
Como escreve A. Varela, Manual de Processo Civil, 2.ª edição, p. 689-690, trata-se de vício dedutivo e lógico em que a fundamentação jurídica do julgador aponta num sentido e a decisão do mesmo segue caminho oposto ou direção diferente, nada tendo, pois, que ver com a eventual discordância da parte quanto ao julgamento de facto e ou de direito da causa, enquanto erro de julgamento («error in judicando» versus «error in procedendo»).
Quanto à omissão de pronúncia, é um vício que tem a ver com os limites da atividade de conhecimento do tribunal, estabelecidos no art.º 608.º, n.º 2, do Código de Processo Civil, sendo que, a esse respeito, continuam mais uma vez plenamente válidos, ainda hoje, os ensinamentos do professor Alberto dos Reis, [Código de Processo Civil Anotado, 5.º vol., p. 143], quando sustentava que “uma coisa é o tribunal deixar de pronunciar-se sobre questão que devia apreciar, outra invocar razão, boa ou má, procedente ou improcedente, para justificar a sua abstenção”, sendo, na verdade, coisas diferentes “deixar de conhecer a questão de que devia conhecer-se, e deixar de apreciar qualquer consideração, argumento ou razão produzida pela parte.”
No mesmo sentido, Lebre de Freitas [A Ação Declarativa Comum à Luz do Código de Processo Civil de 2013, 3.ª Edição, Coimbra Editora, p. 320] ao referir que “Resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação não significa considerar todos os argumentos que, segundo as várias vias, à partida plausíveis, de solução do pleito, as partes tenham deduzido ou o próprio juiz possa inicialmente ter admitido. Como se refere no acórdão do STJ, de 30.04.2014 [em www.dgsi.pt], o juiz “não tem que esgotar a análise da argumentação das partes, mas apenas que apreciar todas as questões que devam ser conhecidas, ponderando os argumentos na medida do necessário e suficiente”.
Descendo ao caso concreto, o recorrente refere que o tribunal a quo omitiu pronúncia relativamente a um facto, qual seja o de que “Em .../.../2004, o réu e CC casaram, no Brasil, sob o regime da comunhão parcial de bens”.
Ora, o que alega o apelante não consubstancia qualquer omissão de pronúncia para efeitos do art.º 615.º, n.º 1, alínea d) (que tem por referência o art.º 608.º, n.º 2, do mesmo código), mas a sua estrita e simples discordância quanto à decisão do mérito da causa e quanto à consideração/fundamentação jurídica quanto ao alegado incumprimento dos empréstimos/mútuos em causa, só por si, já que entende que se trata de uma dívida sua e da sua mulher, CC (dívida comum, dívida comunicável) pois que à data da contratualização do mútuo, objeto da presente ação, eram casados em comunhão parcial de bens, sendo a dívida comum, incumprimento que, segundo o que consta da fundamentação de facto e/ou jurídica da sentença é apenas imputado ao recorrente.
Por conseguinte, o que o apelante esgrime não é um qualquer vício de omissão de pronúncia – pois que o tribunal se pronunciou quanto ao alegado incumprimento dos contratos por parte do apelante, ora réu, dando-o como demonstrado –, antes dissente é do julgamento de mérito dessa questão e o facto de ela ter sido julgada contra ele.
Sobre as nulidades da sentença referia, com a sua habitual clareza A. Varela, na obra citada, p. 686 que “(…) não se inclui entre as nulidades da sentença o chamado erro de julgamento, a injustiça de decisão, a não conformidade dela com o direito substantivo aplicável, o erro na construção do silogismo judiciário …”, mais acrescentando na p. 688 “… que o julgador não tem que analisar todas as razões jurídicas que cada uma das partes invoque em abono das suas posições …”, sendo que “… a fundamentação da sentença contenta-se com a indicação das razões jurídicas que servem de apoio à solução adoptada pelo jugador.”
Neste conspecto, constatando-se que todas as questões essenciais foram tratadas na decisão recorrida, não se verifica a nulidade da sentença por omissão de pronúncia, na medida em que a Senhora Juíza se pronunciou sobre as questões de direito relevantes, cumprindo antes aquilatar, conforme igualmente suscitado pelo apelante, se nessa apreciação, a julgadora incorreu ou não em erro de julgamento.
Portanto, só resta concluir que não há qualquer omissão de pronúncia.
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2.ª Questão
Da modificação da decisão da matéria de facto e de direito
Se deve ser aditada à matéria de facto provada que “No dia .../.../2004, o réu e CC casaram, no Brasil, sob o regime da comunhão parcial de bens” e que “As quantias em causa nunca foram entregues ao réu, nem estiveram na sua posse”e se deve ser modificada a decisão da matéria de facto no tocante aos factos provados vertidos nos pontos 1, 2, 3, 4, 5, 6 e 8
Entende réu apelante que o tribunal a quo incorreu em erro na apreciação da prova produzida quanto aos factos provados sob os números 1, 2, 3, 4, 5, 6 e 8 e que devem ser aditados à matéria de facto provada os seguintes factos:
- “No dia .../.../2004, o réu e CC casaram, no Brasil, sob o regime da comunhão parcial de bens.”;
- “As quantias em causa nunca foram entregues ao réu, nem estiveram na sua posse.
Decorre da conjugação dos art.ºs 639.º, n.º 1, e 640.º, n.ºs 1 e 2, do Código de Processo Civil, que quem impugna a decisão da matéria de facto deve, nas conclusões de recurso, especificar quais os pontos concretos da decisão em causa que estão errados e, ao menos no corpo das alegações, deve, sob pena de rejeição, identificar com precisão quais os elementos de prova que fundamentam essa pretensão, sendo que, se esses elementos de prova forem pessoais, deverá ser feita a indicação com exatidão das passagens da gravação em que se funda o recurso e qual a concreta decisão que deve ser tomada quanto aos pontos de facto em questão.
A respeito do disposto no referido art.º 640.º, do Código de Processo Civil, refere Abrantes Geraldes [Recursos em Processo Civil, 6.ª edição atualizada, 2020, p. 196-197]:
a) Em quaisquer circunstâncias, o recorrente deve indicar sempre os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados, com enunciação na motivação do recurso e síntese nas conclusões.
b) Deve ainda especificar, na motivação, os meios de prova, constantes do processo ou que nele tenham sido registados, que, no seu entender, determinam uma decisão diversa quanto a cada um dos factos.
c) Relativamente a pontos de facto cuja impugnação se funde, no todo ou em parte, em prova gravada, para além da especificação obrigatória dos meios de prova em que o recorrente se baseia, cumpre-lhe indicar, com exactidão, as passagens da gravação relevantes e proceder, se assim o entender, à transcrição dos excertos que considere oportunos.
(…)
e) O recorrente deixará expressa, na motivação, a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas, tendo em conta a apreciação crítica dos meios de prova produzidos, exigência que vem na linha do reforço do ónus de alegação, por forma a obviar à interposição de recursos de pendor genérico ou incongruente”.
E, mais adiante, escreve (p. 199-200) a “rejeição total ou parcial do recurso respeitante à impugnação da decisão da matéria de facto, designadamente quando se verifique a “falta de conclusões sobre a impugnação da decisão da matéria de facto”, a “falta de especificação, nas conclusões, dos concretos pontos de facto que o recorrente considera incorrectamente julgados”, a “falta de especificação, na motivação, dos concretos meios probatórios constantes do processo ou neles registados”, a “falta de indicação exacta, na motivação, das passagens da gravação em que o recorrente se funda”, bem como quando se verifique a “falta de posição expressa, na motivação, sobre o resultado pretendido relativamente a cada segmento da impugnação”, concluindo que a observância dos requisitos acima elencados visa impedir “que a impugnação da decisão da matéria de facto se transforme numa mera manifestação de inconsequente inconformismo”.
E também vem entendendo o Supremo Tribunal de Justiça (como no acórdão de 29.10.2015, relatado pelo Cons. Lopes do Rego e disponível em www.dgsi.pt) que do n.º 1, do art.º 640.º, do Código de Processo Civil resulta “um ónus primário ou fundamental de delimitação do objecto e de fundamentação concludente da impugnação (…) e um ónus secundário – tendente, não propriamente a fundamentar e delimitar o recurso, mas a possibilitar um acesso mais ou menos facilitado pela Relação aos meios de prova gravados relevantes (…)”.
Por outro lado, e impondo-se a especificação dos pontos concretos da decisão que estão erradamente julgados, bem como da concreta decisão que deve ser tomada quanto aos factos em questão, há de a mesma reportar-se ao conjunto de factos constitutivos da causa de pedir e das exceções invocadas. É que, face ao disposto no n.º 1, do art.º 5.º, do Código de Processo Civil, a decisão da matéria de facto tem por objeto, desde logo, os factos essências alegados pelas partes, quer integrantes da causa de pedir, quer integrantes das exceções invocadas.
Todavia, e porque do n.º 2, do mesmo art.º 5.º, resulta que o tribunal deve ainda considerar os factos instrumentais, bem como os factos complementares e concretizadores daqueles que as partes hajam alegado, e que resultem da instrução da causa, daí decorre que na decisão da matéria de facto devem esses factos ser tidos em consideração.
Tal não significa, no entanto, que a decisão da matéria de facto (provada e não provada) deve comportar toda a matéria alegada pelas partes e bem ainda aquela que resulte da prova produzida, já que apenas a factualidade que assuma juridicidade relevante em razão das questões a conhecer é que deve ser objeto dessa decisão.
Travejados destes princípios, e descendo ao caso concreto em apreciação, pode, desde logo afirmar-se que o recorrente deu cumprimento ao ónus primário de especificação acima referido, já que nas conclusões XXXII, XXXVI, XXXVIII, XXXIX, XLII, XLVI, L e LII concretiza o que pretende ver alterado na decisão da matéria de facto.
Por outro lado, ainda que de forma menos eficiente, somos do entendimento que o recorrente cumpre, igualmente, os ónus secundários previstos nas alíneas b) e c), do n.º 1, do art.º 640.º, do Código de Processo Civil, pois que indica as razões porque entende que tais factos devem ser dados como não provados, aditados e/ou alterados, referenciando as provas (por declarações, testemunhal e documental produzidas), admitindo-se, contudo, que pretendendo-se ver declarados não provados os factos torna-se mais oneroso para o recorrente indicar meios de prova que tal pressupõe. Elenca, porém, as razões pelas quais entendem porque tais factos não devem constar no elenco da factualidade assente ou devem ser modificados e/ou restringidos.
Concluímos, pois, que, no essencial, o que o réu apelante coloca em crise na decisão de facto tomada pelo tribunal recorrido são os factos que integram os elementos constitutivos do contrato de mútuo alegadamente celebrado com a autora (que entende não se mostrarem provados), mas também, os factos que o tribunal a quo não deu como provados, e no seu entender, deveria ter dado, que responsabilizam, igualmente, a sua ex – mulher CC, na restituição da quantia mutuada já que esta, a ter sido efetivamente entregue, foi em proveito comum do então casal, constituído por si e pela referida CC.
Vejamos.
A prova a reconsiderar está sujeita à livre apreciação do julgador.
Na reapreciação dos factos, o Tribunal da Relação altera a decisão proferida sobre a matéria de facto se a prova produzida, reapreciada a pedido dos interessados, impuser decisão diversa (art.º 662.º, n.º 1, do Código de Processo Civil).
Este tribunal forma a sua própria convicção relativamente aos concretos pontos impugnados (Abrantes Geraldes, Recursos, 3.ª edição, 2010, Almedina, p. 320), mas não se pode olvidar que existe uma incomensurável diferença entre a apreciação da prova em primeira instância e a efetuada em tribunal de recurso, ainda que com base nas transcrições dos depoimentos prestados, a qual, como é óbvio, decorre de que só quem o observa se pode aperceber da forma como o testemunho é produzido, cuja sensibilidade se fundamenta no conhecimento das reações humanas e observação direta dos comportamentos objetivados no momento em que tal depoimento é prestado, o que tudo só se logra obter através do princípio da imediação considerado este como a relação de proximidade comunicante entre o tribunal e os participantes de modo a que aquele possa obter uma perceção própria do material que haverá de ter como base da decisão.
A comunicação vai muito para além das palavras e mesmo estas devem ser valoradas no contexto da mensagem em que se inserem, pois como informa Lair Ribeiro, as pesquisas neurolinguísticas numa situação de comunicação apenas 7% da capacidade de influência é exercida através da palavra sendo que o tom de voz e a fisiologia, que é a postura corporal dos interlocutores, representam, respectivamente, 38% e 55% desse poder - Comunicação Global, Lisboa, 1998, p. 14 (autora e obra citada no acórdão do TRC de 15.12.2016).
Este tribunal poderá sempre controlar a convicção do julgador na primeira instância quando se mostre ser contrária às regras da experiência, da lógica e dos conhecimentos científicos. Para além disso, admitido que é o duplo grau de jurisdição em termos de matéria de facto, o tribunal de recurso poderá sempre sindicar a formação da convicção do juiz, ou seja, o processo lógico. Porém, o tribunal de recurso encontra-se impedido de controlar tal processo lógico no segmento em que a prova produzida na primeira instância escapa ao seu controle porquanto foi relevante o funcionamento do princípio da imediação.
Assim sendo, se a decisão do julgador se mostra devidamente fundamentada, segundo as regras da experiência e da lógica, não pode ser modificada, sob pena de inobservância do princípio da livre convicção.
Dito isto, e tendo presente estes elementos, cumpre conhecer, em termos autónomos e numa perspetiva crítica, à luz das regras da experiência e da lógica, da factualidade impugnada e, em particular, se a convicção firmada no tribunal recorrido merece ser por nós secundada por se mostrar conforme às ditas regras de avaliação crítica da prova, caso em que improcede a impugnação deduzida pelo apelante, ou não o merece, caso em que, ao abrigo dos poderes que lhe estão cometidos ao nível da reapreciação da decisão de facto e enquanto tribunal de instância, se impõe que este tribunal introduza as alterações que julgue devidas a tal factualidade.
Haverá ainda que ter presente que não é exigível que a convicção do julgador sobre a validade dos factos alegados pelas partes equivalha a uma certeza absoluta raramente atingível pelo conhecimento humano. Basta-lhe assentar num juízo de suficiente probabilidade ou verosimilhança.
Como refere Manuel de Andrade, [Noções Elementares de Processo Civil, p. 191] “a prova não é certeza lógica, mas tão só um alto grau de probabilidade suficiente para as necessidades práticas da vida”.
À luz destas considerações e princípios, cumpre reanalisar a decisão proferida sobre a matéria de facto que se foi impugnada.
O apelante entende que os factos provados sob os pontos 1 e 2 devem ser dados como não provados (conclusão XXXIII).
E que os factos vertidos nos pontos 3 e 4 da factualidade assente devem ser parcialmente dados como provados porquanto da redação dada deve retirar-se a seguinte expressão: “a pedido do Réu(conclusões XXXVI e XXXVII).
Mais requer que o facto constante do número 5 da matéria de facto provada passe a ter a seguinte redação:
Às datas referidas em 3) e 4) o Réu encontrava-se casado com CC, filha da Autora, excluindo-se a expressão “razão pela qual a Autora anuiu confiar-lhe tais montantes”, fazendo-se constar nos factos não provados o seguinte facto:
A Autora anuiu confiar ao Réu tais montantes por este à data se encontrar casado com a sua filha CC.” (conclusão XXXVIII).
Pretende, ainda, o apelante que no facto vertido no ponto 6 da factualidade assente deve ser excluída a expressão “também” (conclusão XLII).
Finalmente, entende que a factualidade vertida no ponto 8 dos factos provado foi dada erradamente como provada, face à prova produzida, devendo passar para o elenco dos factos não provados (conclusão XLVI).
O apelante requer, ainda, que seja aditado à matéria de facto provada, o seguinte facto, com base no documento de fls. 28 verso dos autos:
Em 31/01/2004 o Réu e CC casaram no Brasil sob o regime da comunhão parcial de bens.”.
Resulta, de facto, do teor do documento de fls. 28 verso, que constitui a certidão de casamento do réu com CC (que não foi impugnado), que os mesmos casaram um com o outro no dia .../.../2004, sob o regime da comunhão parcial de bens (casamento que o tribunal a quo deu como provado com base naquele documento, no ponto 5).
Pelo que, nesta parte, procede a pretensão da recorrente passando a constar nos factos provados um ponto 5 – A com a seguinte redação:
Em 31/01/2004 o Réu e CC casaram no Brasil sob o regime da comunhão parcial de bens.”.
Quanto aos factos impugnados pelo apelante a sua redação é a seguinte:
1.A Autora anuiu conceder ao Réu a quantia total de R$87.703,18 (reais brasileiros) e este comprometeu-se a devolver tal quantia à Autora.
2.O Réu pediu à Autora a quantia referida em 1) para fazer face ao pagamento de valores decorrentes de negócios que mantinha com DD, designadamente o pagamento do valor estabelecido para o recheio e a entrega da chave do estabelecimento comercial sito na Avenida ..., ..., Edifício ..., ..., em Olhão.
3.No dia 03/09/2010, a pedido do Réu, foi transferido o valor de R$47.703,18 (reais brasileiros) da conta n.º ... sediada no Sicoob – Sistema de cooperativas de Crédito do Brasil da titularidade da Autora para uma conta titulada por DD.
4.No dia 27/09/2010, a pedido do Réu, foi transferido o valor de R$40.000,00 (reais brasileiros) da conta n.º ... sediada no Sicoob – Sistema de cooperativas de Crédito do Brasil da titularidade da Autora para uma conta titulada por DD.
5.Às datas referidas em 3) e 4) o Réu encontrava-se casado com CC, filha da Autora, razão pela qual a Autora anuiu confiar-lhe tais montantes.
6.O estabelecimento comercial descrito em 2) foi também explorado pela filha da Autora, CC.
8.O Réu, após o descrito em 7), foi interpelado pela Autora para restituir as quantias referidas em 3) e 4).
O que verdadeira e essencialmente o réu apelante coloca em crise quando impugna tal factualidade é o pedido de empréstimo que efetuou à autora, o qual lhe terá sido concedido, obrigando-se a restituir a quantia mutuada, tendo sido interpelado para o efeito, negando, portanto, que pediu e lhe foi emprestada a quantia em causa – R$ 87.703,18 (reais brasileiros) – e se comprometeu a devolver-lhe tal quantia e que a mesma se destinou ao pagamento de valores decorrentes de negócios que mantinha com DD; que, a admitir-se que a autora lhe mutuou tal quantia, pretende que este tribunal julgue de direito no sentido de que montante beneficiou, também, a sua ex- mulher (CC), filha da ora autora, com aquela casado à data do mútuo, por tal resultar da prova produzida em sede de audiência de julgamento, mormente das declarações de parte da autora e do depoimento da testemunha FF, arredando-se assim, no seu entender, as dúvidas a que o tribunal a quo chegou e que fez verter na motivação fáctica da sentença.
Na motivação da decisão de facto explanada na decisão sob recurso, na parte que ora importa, justifica-se o decidido nos seguintes termos:
O Tribunal alicerçou a sua convicção nas declarações prestadas pela Autora, bem como nos depoimentos prestados pelas testemunhas EE, FF e GG, conjugados com a análise do teor da prova documental carreada para os autos, mais concretamente a ata de tentativa de conciliação de divórcio sem consentimento do outro cônjuge de fls. 6 (verso) a 10, o aviso de livro de reclamações de fls. 11, o contrato de fornecimento de energia elétrica de fls. 11 (verso), o extrato de conta corrente de fls. 13 e a certidão de casamento de fls. 28 (verso).
Concretizando.
Primeiramente, cumpre salientar que no que concerne aos depoimentos prestados pelas testemunhas EE (irmã da Autora) e GG (amiga da Autora e madrinha da filha da Autora, CC), revelou-se terem apenas conhecimento direto de que foram transferidos os montantes de R$47.703,18 (reais brasileiros) e R$40.000,00 (reais brasileiros) para a conta de DD (a testemunha EE porque foi quem fez os depósitos, uma vez que era procuradora da sua irmã, aqui Autora; e a testemunha GG porque a Autora lhe pediu para transferir as quantias para uma conta corrente), factos que se encontram admitidos por acordo e resultam evidentes da análise do teor do extrato de conta corrente de fls. 13 (sendo possível constatar a disponibilização de tais quantias e as subsequentes transferências bancárias nos dias 03/09/2010 e 27/09/2010 nos valores de R$47.703,18 (reais brasileiros) e R$40.000,00 (reais brasileiros), respetivamente, da conta n.º ... sediada no Sicoob – Sistema de cooperativas de Crédito do Brasil da titularidade da Autora (BB) para uma conta titulada por DD), documento com a qual a Autora foi confrontada e confirmou o seu teor.
O facto cerne e que se encontra controvertido, isto é, que tais valores foram transferidos a pedido do Réu, as referidas testemunhas afirmaram que o seu conhecimento acerca de tais factos teve como fonte as declarações da Autora.
(…)
De resto, o Tribunal entende ter existido uma articulação e conjugação da restante prova produzida que permitiu, sem dúvida, dar como provados os factos elencados.
Começando pelas declarações prestadas pela Autora e não olvidando, obviamente, ser uma prova que emana da própria parte do processo, logo com interesse direto no desfecho da causa, a verdade é que para além de a Autora ter prestado declarações de forma coerente, escorreita e espontânea, tais declarações foram ainda corroboradas por outros meios probatórios, como infra se explanará.
Em traços largos, e de modo a deixar evidente a articulação da prova produzida, eis o relatado pela Autora:
- o Réu pediu à Autora, em setembro de 2010, que lhe emprestasse as quantias monetárias em causa para fazer face ao pagamento de negócios que mantinha com DD, nomeadamente para pagar o recheio da loja sita em Olhão, tendo se obrigado a restituir o dinheiro. A Autora declarou ainda que anuiu emprestar tais montantes ao Réu porque o mesmo se encontrava casado com a sua filha e que até ao divórcio dos mesmos tinha esperança que aquele lhe devolvesse o dinheiro.
Ora, as declarações prestadas pelas Autora foram ao encontro do depoimento prestado pela testemunha FF, que apresentou uma postura serena e um discurso coerente, escorreito e espontâneo, não evidenciado qualquer favoritismo por nenhuma das partes e demonstrando não ter qualquer interesse no desfecho da causa, merecendo assim credibilidade perante este Tribunal.
Esta testemunha afirmou ter sido contabilista da esposa de DD, sendo que tinha mais contacto com este por ser ele a tratar da parte contabilística do negócio que exploravam no estabelecimento comercial sito na Avenida ..., ..., Edifício ..., em Olhão (concretizando ser uma loja que vendia bijutaria e cosmética).
Relatou ainda que DD lhe transmitiu que a sua esposa queria voltar para o Brasil e que quem ficaria com o referido negócio seriam CC (filha da Autora) e o Réu, o que veio efetivamente a ocorrer, pois ficou contabilista de CC por ser “a dona do negócio”, não obstante o negócio ser explorado por ambos (o que reforça a alegação da Autora de que o empréstimo servia ainda para a entrega da chave do estabelecimento comercial).
No entanto, no que concerne ao facto de o Réu ter pedido dinheiro emprestado à Autora ou de como foi efetivamente realizado o negócio entre DD e o Réu e CC, afirmou ter completo desconhecimento.
Ora, do depoimento prestado pela testemunha FF ficou evidenciado que a mesma não se inibiu de prestar um depoimento que até poderia ser prejudicial às partes (por um lado, veio deixar claro que existia relações negociais entre o Réu e DD ao contrário do alegado por aquele e, por outro lado, evidenciou que CC, filha da Autora, também estava envolvida no referido negócio, sendo aliás “a dona”; dúvidas houvessem da imparcialidade da testemunha, as mesmas desvaneceram quando afirmou que não tinha qualquer conhecimento de a Autora ter emprestado dinheiro ao Réu, nem tão pouco sabia como foi realizado o negócio entre DD e o Réu e CC), demonstrando não estar preocupado em salientar determinados factos (favoráveis a qualquer das partes) e procurando ocultar outros (prejudiciais a qualquer das partes), limitando-se a responder às questões que lhe eram colocadas de modo espontâneo e objetivo.
Mais, a testemunha FF afirmou ainda que, em virtude das suas funções, tem conhecimento que DD tinha contas bancárias em Portugal, o que pode suscitar dúvidas da razão pela qual o dinheiro foi transferido para uma conta sediada no Brasil. Ora, não deixa de se afigurar como provável que tal ocorrência teve como causa o que a testemunha começou por relatar: o negócio instalado no estabelecimento comercial sito na Avenida ..., ..., Edifício ..., ..., em Olhão ficaria para CC e Réu porque DD e a sua esposa queriam voltar para o Brasil.
Assim, não só as declarações prestadas pela Autora foram corroboradas pelo depoimento prestado pela testemunha FF, como foram ao encontro do teor da prova documental junta aos autos.
De facto, como resulta do teor do aviso de livro de reclamações de fls. 11, tal livro pertence a AA, é datado de 14/12/2010 (três meses após as transferências bancárias) e referente à Avenida ..., ..., Edifício ..., ... Olhão, resultando ainda do teor do “contrato de fornecimento de energia elétrica” de fls. 11 (verso) celebrado com a EDP, a assinatura do Réu como cliente (assinatura que não foi impugnada) e do qual consta como morada a Avenida ..., ..., ..., Olhão e como data acordada para ligação o dia 10/01/2011 (cerca de um mês após a aquisição do livro de reclamações).
O facto de o nome II constar como o nome da proprietária no documento de fls. 11 (verso) em nada invalida a veracidade dos factos, pois explorar um estabelecimento não equivale necessariamente a ser proprietário do mesmo.
No mais, a versão dos factos apresentada pela Autora não deixa de ser conforme com as regras da experiência e a normalidade do acontecer. Se, por um lado, não é comum o empréstimo de quantias elevadas sem que haja a preocupação de ficar na posse de um documento escrito que ateste tal facto, por outro lado, importa ter em consideração o contexto em que tal circunstância ocorreu: no seio familiar, onde reinam, em regra, relações de confiança.
Neste seguimento, não pode deixar se afigurar como verosímil a versão relatada pela Autora, no sentido de que até ao momento em que a sua filha e o Réu se divorciaram, a mesma teve esperança que este lhe restituísse o dinheiro (note-se que o divórcio entre CC e o Réu teve lugar em finais do ano de 2021 e a Autora intentou a presente ação em janeiro de 2022).
Deste modo, para dar como provados os factos n.ºs 1 a 8 o Tribunal alicerçou a sua convicção nas declarações prestadas pela Autora, bem como do depoimento prestado pela testemunha FF, conjugados com a análise do teor da ata de tentativa de conciliação de divórcio sem consentimento do outro cônjuge de fls. 6 (verso) a 10 (da qual consta a sentença, datada de 29/09/2021, a decretar o divórcio por mútuo consentimento entre HH e o Réu), o aviso de livro de reclamações de fls. 11, o contrato de fornecimento de energia elétrica de fls. 11 (verso), o extrato de conta corrente de fls. 13 e a certidão de casamento de fls. 28 (verso) (onde é possível constatar que HH e Réu se casaram em 31/01/2004, sob o regime de comunhão parcial de bens e de onde resulta ser aquela filha da Autora).
Sem prescindir, o Tribunal não poderia deixar de consignar que do depoimento prestado pela testemunha FF (que afirmou que CC era “a dona do negócio”) e das declarações prestadas pela Autora que, não obstante ter negado que a sua filha, CC, também lhe pediu dinheiro emprestado conjuntamente com o Réu, a verdade é que no decurso das suas declarações proferiu expressões que deixaram o Tribunal na dúvida quanto a tal facto (afirmou que a sua filha disse que “tinham de devolver o dinheiro”, que a referida loja estava em nome daquela e que não a notificou para a presente ação por ser sua filha).
Assim, sendo certo que o Tribunal ficou na dúvida se CC pediu dinheiro à Autora conjuntamente com o Réu, tendo-se igualmente obrigado a restituir, dúvidas não subsistem, pelos motivos supra expostos, de que o Réu o fez.
Consigna-se que se procedeu à audição integral das declarações de parte da autora e do depoimento da testemunha FF. Não apenas das passagens indicadas e transcritas pelo apelante.
E a referida audição veio reforçar o que já resultava da motivação da decisão de facto levada a efeito pelo tribunal recorrido.
De tal prova e, em especial, na parte transcrita pelo réu, não se vislumbra minimamente que imponha decisão diversa da tomada pelo tribunal a quo.
O apelante, perante a motivação exposta pelo tribunal a quo, esgrime razões que radicam, no essencial, na sua discordância relativamente à convicção do Tribunal a quo.
Importa, pois, salientar que a alteração da matéria de facto só deve ser efetuada pelo Tribunal da Relação quando o mesmo, depois de proceder à análise da prova invocada pelos impugnantes, conclua, com a necessária segurança, no sentido de que a mesma, conjugada com a restante prova produzida, apontam em direção diversa, e delimitam uma conclusão diferente daquela que vingou na 1.ª instância.
Ora, não é manifestamente o caso.
Revemo-nos, pois, nesta apreciação da prova realizada pelo tribunal de primeira instância, que consideramos correta, pelo que se mantêm incólumes os factos provados sob os pontos 1, 2, 3, 4, 5, 6 e 8.
Cumpre, ainda, assinalar que relativamente às declarações de parte, como meio probatório, não se pode olvidar que são declarações interessadas, em que quem as produz tem um manifesto interesse na causa. Seria de todo insensato que sem mais, nomeadamente, sem o auxílio de outros meios probatórios, sejam eles documentais ou testemunhais, o Tribunal desse como provados os factos pela própria parte alegados e por ela, tão só, admitidos.
No caso concreto as declarações de parte da autora mereceram credibilidade à senhora juíza a quo, e a este tribunal da relação também, pela forma como a mesma depôs: de forma emocionada (fazendo, neste aspeto, menção ao neto), objetiva, inequívoca, sem contradições, escorreita, declarações que foram corroboradas, como assinalou o tribunal recorrido, por outros meios de prova.
O apelante pretende, em primeira mão, colocar em crise e ver dados como não provados os factos que integram os elementos constitutivos do contrato de mútuo que, segundo a autora, aquele com ela celebrou: a pedido do réu, a autora emprestou-lhe a quantia de R$ 47.703,18 (reais brasileiros) e de R$ 40.000,00 (reais brasileiros), obrigando-se este a restituir-lhe tais quantias.
Mas se assim não se entender, ou seja, se for entendimento do tribunal que o réu é mutuário, deve também concluir-se que o é também a filha da autora, CC, consigo casada à data do mútuo.
Foi nesta perspetiva e neste entendimento, que o apelante arguiu a sua ilegitimidade passiva para a presente ação, por preterição de litisconsórcio necessário passivo.
Mas efetivamente poderia vir a entender-se, após a apreciação da impugnação da matéria de facto, e valorada a prova produzida, em especial a prova oral produzida em sede de audiência de julgamento, que o empréstimo realizado pela autora poderia ter beneficiado, igualmente, a sua filha CC. As declarações de parte da autora foram no sentido de afirmar perentoriamente que a única pessoa que lhe pediu emprestado dinheiro foi o réu; a única pessoa que a abordou para o efeito foi o réu, admitiu e esclareceu que as quantias emprestadas se destinaram a fazer face ao pagamento de valores decorrentes de negócios com DD, designadamente o pagamento do valor estabelecido para o recheio e a entrega da chave do estabelecimento comercial sito na Avenida ..., ..., Edifício ..., em Olhão, que a sua filha também explorou, juntamente com o réu e que, aliás, o tribunal de primeira instância deu como provado (ponto 6).
Chegou, inclusive, a autora a admitir, em sede de declarações de parte, que não demandou CC por ser sua filha e que esta admitiu, perante si, ser sua devedora.
Pergunta-se: poderia o tribunal a quo conhecer de tais factos? E tem este tribunal da relação poderes para tomar em conta tais factos que sobrevieram da instrução da causa?
É que a resposta não é inócua, na medida em que se tal for possível, o destino da presente ação poderá ser outro e o desfecho ser diverso, levando-nos para a questão das dívidas do casal, da comunicabilidade das dívidas, do proveito comum do casal e, em última instância, à ilegitimidade substantiva do réu apelante para a presente ação.
Porém, cumpre salientar o seguinte: a autora intentou contra o réu a presente ação e como causa de pedir invocou um contrato de mútuo celebrado com o réu.
Este, na sua contestação limitou-se a impugnar os factos alegados pela autora, isto é, que nunca pediu qualquer empréstimo à autora, que esta não lhe concedeu qualquer empréstimo, que nunca se obrigou a restituir as quantias por ela alegadamente mutuadas (vg. artigos 2.º, 3.º, 4.º, 7.º, 13.º, 15.º e 16.º da contestação).
Ou seja, o réu nunca alegou na sua contestação que, de facto, as quantias em causa foram mutuadas a si e à sua mulher, na data dos empréstimos. Nunca deu uma outra versão dos factos que pudesse ser objeto de prova.
Não houve qualquer articulado superveniente.
E foram os factos trazidos ao processo que o tribunal de primeira instância julgou.
Efetivamente, às partes cabe alegar os factos principais da causa, isto é, os que integram a causa de pedir e os que fundam as exceções (art.º 5.º, n.º 1, do Código de Processo Civil), alegação que é feita nos articulados [José Lebre de Freitas, Introdução ao Processo Civil, Conceito e princípios gerias à luz do novo código, Coimbra Editora, 2013, p.165].
A par destes preveem-se os factos que, igualmente essenciais, sejam complementares ou concretizadores de outros inicialmente alegados – factos estes que, embora necessários para a procedência das pretensões deduzidas, não cumprem a função individualizadora do tipo legal. Quanto a estes, pode e deve o juiz conhecê-los, desde que “resultem da discussão da causa” e “desde que sobre eles as partes tenham tido a oportunidade de se pronunciar” – al. b), do n.º 2, do art.º 5.º, do Código de Processo Civil.
Quanto aos factos instrumentais que resultem da discussão da causa não precisam de ser alegados pelas partes, podendo ser oficiosamente considerados pelo juiz – al. a), do n.º 2, do art.º 5.º, do Código de Processo Civil.
Por outro lado, em sede de processo civil, afirma-se o princípio da concentração dos meios de defesa e a obrigatoriedade de os alegar, sob pena de perda do direito de invocação, preclusão, estando tais princípios ligados à estabilidade das decisões, o que tem a ver com o instituto do caso julgado, e com o dever de lealdade e de litigar de boa fé (processual).
Com efeito, o princípio da preclusão é um dos princípios enformadores do processo civil, decorre da formulação da doutrina e encontra acolhimento nos institutos da litispendência e do caso julgado – art.º 580.º, n.º 2, do Código de Processo Civil – e nos preceitos de onde decorre o postulado da concentração dos meios de alegação de factos essenciais da causa de pedir e as razões de direito – art.º 552.º, n.º 1, al. d) – e das exceções, quanto à defesa – art.º 573.º, n.º 1, do Código de Processo Civil.
Ora, como notam Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís de Sousa [Código de Processo Civil Anotado, Vol. I, p. 670]:
Do princípio da preclusão resulta que todos os meios de defesa não invocados pelo réu na contestação ficam prejudicados, não podendo ser alegados mais tarde. O princípio da eventualidade significa que, dado o risco de preclusão, o réu há de dispor todos os seus argumentos de maneira a que cada um deles seja atendido no caso (ou na eventualidade) de qualquer dos anteriores improceder.”
Como acima se disse, o réu apelante não invocou em sede de contestação que a sua ex-mulher foi, igualmente, beneficiária do empréstimo concedido pela autora, apenas o tendo vindo a fazer agora em sede de recurso.
Ora, admitir-se que o réu pudesse invocar, agora tais factos, seria contornar o efeito preclusivo da invocação factual e de todos os meios de defesa, desconsiderando-se o princípio da concentração da defesa.
A decisão judicial, enquanto prestação do dever de julgar, deve conter-se dentro do perímetro objetivo e subjetivo da pretensão deduzida pelo autor, em função do qual se afere também o exercício do contraditório por parte do réu, não sendo lícito ao tribunal desviar-se desse âmbito ou desvirtuá-lo. Incumbe ao tribunal proceder a qualificação jurídica que julgue adequada, nos termos do art.º 5.º, n.º 3, do Código de Processo Civil, mas dentro da fronteira da factualidade alegada e provada e nos limites do efeito prático-jurídico pretendido, sendo-lhe vedado enveredar pela decretação de uma medida de tutela que extravase aquele limite, ainda que pudesse, porventura, resultar da instrução da causa.
Assim o exige o princípio da concentração da defesa na contestação consagrado no art.º 573.º, do Código Processo Civil, que dispõe:
1 -Toda a defesa deve ser deduzida na contestação, excetuados os incidentes que a lei mande deduzir em separado.
2 - Depois da contestação só podem ser deduzidas as exceções, incidentes e meios de defesa que sejam supervenientes, ou que a lei expressamente admita passado esse momento, ou de que se deva conhecer oficiosamente.”
Esta norma, faz recair sobre o réu o ónus de, na contestação, alegar os factos que sirvam de base a qualquer exceção dilatória ou perentória, que são aquelas que importam a absolvição total ou parcial do pedido e consistem na invocação de factos que impedem, modificam ou extinguem o efeito jurídico dos factos articulados pelo autor.
Na contestação deve o réu: i) individualizar a ação; ii) expor as razões de facto e de direito por que se opõe à pretensão do autor; iii) expor os factos essenciais em que se baseiam as exceções deduzidas, especificando-as separadamente, sob pena de os respetivos factos não se considerarem admitidos por acordo por falta de impugnação –, salvo os casos excecionais a que alude o n.º 2 do mesmo artigo, ou seja, de exceções, incidentes e meios de defesa que sejam supervenientes, ou que a lei expressamente admita passado esse momento ou de que se deva conhecer oficiosamente, sob pena de preclusão da possibilidade de o fazer posteriormente – neste sentido, o acórdão do STJ, de 11.03.2021, consultável em www.dgsi.pt. – tem o ónus de apresentar em juízo todos os seus argumentos de defesa, na primeira oportunidade que lhe seja concedida para o efeito. Se o não fizer, já não o pode realizar mais tarde.
Segue-se do exposto, que estava vedado ao tribunal servir-se de factos que resultaram da instrução da causa – art.º 5.º, n.º 1, e n.º 2, alínea b) do Código de Processo Civil.
Igualmente não pode este tribunal de recurso ter em consideração tal factualidade, improcedendo, nestes termos, a questão da impugnação da matéria de facto invocada pelo réu apelante, mantendo-se, a matéria de facto que o tribunal de 1.ª instância deu como provada e não provada.
No mais, e concretamente quanto à celebração do contrato de mútuo entre a autora e o réu, dir-se-á que dependendo o pedido de alteração do decidido na sentença proferida nos autos no que à interpretação e aplicação do direito respeita, do prévio sucesso da impugnação da decisão sobre a matéria de facto, não tendo o apelante logrado impugnar, com sucesso, tal matéria, que assim se mantém inalterada, fica, necessariamente, prejudicado o seu conhecimento, o que aqui se declara, nos termos do n.º 2, do art.º 608.º, aplicável ex vi parte final, do n.º 2, do art.º 663.º e do n.º 6, deste artigo.
Questão diferente é a que irá ser analisada de seguida, qual seja a de decidir se, em face dos factos que já se mostravam provados e do aditamento à matéria de facto provada, resultado da impugnação da mesma por parte do apelante, (“Em 31/01/2004 o Réu e CC casaram no Brasil sob o regime da comunhão parcial de bens.” – facto 5 -A), a dívida que resultou do mútuo celebrado entre a autora e o réu apelante responsabiliza CC, à data casada com aquele, por ter sido contraída em proveito comum do casal e, em caso de resposta afirmativa decidir se ocorre preterição de litisconsórcio necessário passivo, e, consequentemente, declarar-se o réu parte ilegítima na presente ação, por não ter sido demandada a sua mulher, CC, à data da contração da dívida.
*
3.ª Questão
Determinar, em face da matéria de facto provada, se a dívida em apreço responsabiliza ambos os cônjuges (o apelante e CC, à data casados entre si) por ter sido contraída em proveito comum do casal
Insurge-se o réu contra a decisão que julgou a ação procedente.
O apelante não logrou impugnar, com sucesso, a matéria de facto constante dos pontos 1, 2, 3, 4, 5, 6 e 8, que assim se mantém inalterada.
Aditou-se, porém, aos factos provados o seguinte facto (5.º - A):
Em 31/01/2004 o Réu e CC casaram no Brasil sob o regime da comunhão parcial de bens.”.
No que à interpretação e aplicação do direito respeita, há que alterar a decisão?
Entende o réu apelante que tendo o tribunal dado por provado que o réu e CC eram casados à data do alegado empréstimo, por força do teor da certidão de casamento (fls. 28 verso), e constando da fundamentação que os mesmos casaram no Brasil, em .../.../2004, sob o regime da comunhão parcial de bens, e que o estabelecimento comercial foi explorado pela CC, nunca o réu poderia ser o único a ser condenado por uma alegada dívida comum ao casal.
Mais entende que, tratando-se de dívida comum do casal e necessariamente de uma situação de litisconsórcio necessário passivo, nem sequer poderia o tribunal a quo decidir pela restituição pelo réu da sua meação na dívida.
Vejamos os factos que se provaram relacionados com esta questão:
1. A Autora anuiu conceder ao Réu a quantia total de R$87.703,18 (reais brasileiros) e este comprometeu-se a devolver tal quantia à Autora.
2. O Réu pediu à Autora a quantia referida em 1) para fazer face ao pagamento de valores decorrentes de negócios que mantinha com DD, designadamente o pagamento do valor estabelecido para o recheio e a entrega da chave do estabelecimento comercial sito na Avenida ..., ..., Edifício ..., ..., em Olhão.
3. No dia 03/09/2010, a pedido do Réu, foi transferido o valor de R$47.703,18 (reais brasileiros) da conta n.º ... sediada no Sicoob – Sistema de cooperativas de Crédito do Brasil da titularidade da Autora para uma conta titulada por DD.
4. No dia 27/09/2010, a pedido do Réu, foi transferido o valor de R$40.000,00 (reais brasileiros) da conta n.º ... sediada no Sicoob – Sistema de cooperativas de Crédito do Brasil da titularidade da Autora para uma conta titulada por DD.5.
5. Às datas referidas em 3) e 4) o Réu encontrava-se casado com CC, filha da Autora, razão pela qual a Autora anuiu confiar-lhe tais montantes.
5 -A . Em 31/01/2004 o Réu e CC casaram no Brasil sob o regime da comunhão parcial de bens. (facto agora aditado)
6.O estabelecimento comercial descrito em 2) foi também explorado pela filha da Autora, CC.
7.Por sentença datada de 29/09/2021 foi decretado o divórcio entre CC e o Réu.
O réu sustenta que tem de considerar-se que a dívida contraída reverteu em proveito comum do, então casal, porque contraída com vista à realização de um interesse comum ao casal; CC explorou também o estabelecimento comercial em causa o que inculca a comunicabilidade da dívida contraída para o pagamento do valor estabelecido para o recheio e a entrega da chave do referido estabelecimento comercial.
Importa, pois, averiguar se, de facto, estamos perante uma dívida que responsabiliza ambos os cônjuges por ter sido contraída em proveito comum do casal, ou se trata apenas de uma dívida da responsabilidade do réu.
Vejamos.
Nos termos do n.º 1, do art.º 1 691.º, do Código Civil, são da responsabilidade de ambos os cônjuges:
a) as dívidas contraídas, antes ou depois da celebração do casamento, pelos dois cônjuges, ou por um deles com o consentimento do outro;
b) as dívidas contraídas por qualquer dos cônjuges, antes ou depois da celebração do casamento, para ocorrer aos encargos normais da vida familiar;
c) as dívidas contraídas na constância do matrimónio pelo cônjuge administrador, em proveito comum do casal e nos limites dos seus poderes de administração;
d) as dívidas contraídas por qualquer dos cônjuges no exercício do comércio, salvo se se provar que não foram contraídas em proveito comum do casal ou se vigorar entre os cônjuges o regime de separação de bens;
e) as dívidas consideradas comunicáveis nos termos do n.º 2 do artigo 1 693.º.
Está em causa uma dívida contraída pelo réu apelante no exercício do comércio.
O art.º 15.º, do Código Comercial, estatui que “as dívidas comerciais do cônjuge comerciante presumem-se contraídas no exercício do seu comércio”.
Como referia Antunes Varela in Direito da Família, 1982, p. 330, “para harmonizar os dois textos da lei comercial e do Código Civil estabeleceu-se deste modo uma dupla e articulada presunção: - as dívidas comerciais de qualquer dos cônjuges, desde que comerciantes, presumem-se realizadas no exercício da sua actividade comercial; e, desde que presuntivamente realizadas no exercício do comércio do devedor, presumem-se contraídas em proveito comum do casal”.
Essa expressão "dividas contraídas... em proveito comum do casal” tem sido entendida correntemente na nossa doutrina e jurisprudência com o sentido de não ser necessário que das dívidas advenha num beneficio efetivo para os cônjuges, bastando a simples expectativa ou possibilidade dele e que resulta da constituição da própria divida, ou seja, diretamente desta.
Sendo consensual que “O proveito comum do casal, no sentido do n.º 2 do art.º 1691.º do Código Civil, deve aferir-se pelo fim visado pelo cônjuge que contraiu a dívida” [acórdão do STJ, de 25.5.23, disponível em www.dgsi.pt].
No caso dos autos, a autora emprestou ao réu a quantia total de R$87.703,18 (reais brasileiros) a fim de que este pudesse proceder ao pagamento de valores decorrentes de negócios que mantinha com DD, designadamente o pagamento do valor estabelecido para o recheio e a entrega da chave do estabelecimento comercial sito na Avenida ..., ..., em Olhão.
Por outro lado, apurou-se que, à data do empréstimo, o réu era casado com CC, sob o regime da comunhão parcial de bens e que tal estabelecimento foi também explorado por esta.
De facto, o dinheiro emprestado destinou-se a uma atividade comercial do réu. O mútuo em causa, embora não sendo ato objetivamente comercial, é um ato de comerciante. Quer dizer, embora não sendo ato objetivamente comercial, é-o subjetivamente.
É, pois, uma dívida comercial de cônjuge comerciante que, nos termos do art.º 15.º, do Código Comercial, se presume contraída no exercício do comércio.
E, como tal, é da responsabilidade de ambos os cônjuges, salvo se se provar, que não foi contraída em proveito comum do casal ou que entre os cônjuges vigorar o regime de separação de bens - art.º 1 691.º, n.º 1, al. d).
Ou seja, a responsabilização pela dívida de CC, casada com o réu à data do empréstimo – setembro de 2010 – deriva da sua participação num negócio de exploração de um estabelecimento comercial com um escopo lucrativo comum.
Não foi ilidida a presunção prevista na alínea d), do citado art.º 1 691.º, do Código Civil – “salvo se se provar que não foram contraídas em proveito comum do casal”.
Pelo que, temos de concluir que a o mútuo contraído pelo réu apelante foi contraída em proveito comum do casal, constituído por si e por CC, à data do mesmo, tratando-se de uma dívida comum.
Questão diferente é a de saber se, em face da comunicabilidade da dívida em causa, estamos perante preterição de litisconsórcio necessário passivo nesta ação, devendo declarar-se o apelante parte ilegítima.
É o que infra se irá analisar e decidir.
*
4.ª Questão
Em caso de resposta afirmativa determinar se ocorre preterição de litisconsórcio necessário passivo, e, consequentemente, declarar-se o réu parte ilegítima na presente ação, por não ter sido demandada a sua mulher, CC, à data da contração da dívida
O art.º 30.º, do Código de Processo Civil estabelece que:
1 - O autor é parte legítima quando tem interesse direto em demandar; o réu é parte legítima quando tem interesse direto em contradizer.
2 - O interesse em demandar exprime-se pela utilidade derivada da procedência da ação e o interesse em contradizer pelo prejuízo que dessa procedência advenha.
3 - Na falta de indicação da lei em contrário, são considerados titulares do interesse relevante para o efeito da legitimidade os sujeitos da relação controvertida, tal como é configurada pelo autor.
E no art.º 33.º do Código de Processo Civil:
1- Se, porém, a lei ou o negócio exigir a intervenção dos vários interessados na relação controvertida, a falta de qualquer deles é motivo de ilegitimidade.
2 – É igualmente necessária a intervenção de todos os interessados quando, pela própria natureza da relação jurídica, ela seja necessária para que a decisão produza o seu efeito útil normal.
2 – A decisão produz o seu efeito útil normal sempre que, não vinculando os restantes interessados, possa regular definitivamente a situação concreta das partes relativamente ao pedido formulado.
Por fim, com interesse, dispõe o art.º 34.º, do Código de Processo Civil:
1 - Devem ser propostas por ambos os cônjuges, ou por um deles com consentimento do outro, as ações de que possa resultar a perda ou a oneração de bens que só por ambos possam ser alienados ou a perda de direitos que só por ambos possam ser exercidos, incluindo as ações que tenham por objeto, direta ou indiretamente, a casa de morada de família.
2 - Na falta de acordo, o tribunal decide sobre o suprimento do consentimento, tendo em consideração o interesse da família, aplicando-se, com as necessárias adaptações, o disposto no artigo 29.º.
3 - Devem ser propostas contra ambos os cônjuges as ações emergentes de facto praticado por ambos os cônjuges, as ações emergentes de facto praticado por um deles, mas em que pretenda obter-se decisão suscetível de ser executada sobre bens próprios do outro, e ainda as ações compreendidas no n.º 1.” – sublinhado nosso.
Ora, o litisconsórcio necessário passivo decorre da imposição legal, da própria natureza da relação jurídica, o que também sucede nas obrigações solidárias em que corresponde à pluralidade de sujeitos uma única relação material controvertida.
No caso dos autos, a autora pretende obter do Tribunal a declaração de nulidade do contrato de mútuo celebrado com o réu apelante e a condenação deste a restituir-lhe a importância de 39 074,56 €, acrescida de juros legais desde a citação até efetivo pagamento; ou seja, ato praticado apenas pelo réu que não exige o exercício ou o consentimento deste último, não havendo litisconsórcio necessário ou voluntário.
Nem a relação material controvertida respeita ao cônjuge, nem o legislador exige a intervenção do cônjuge na ação de declaração de nulidade ou anulação, não havendo interesse igual ao do réu.
No litisconsórcio necessário todos os interessados devem demandar ou ser demandados, originando a falta de qualquer deles uma situação de ilegitimidade. Os critérios que orientam a previsão do litisconsórcio necessário são essencialmente dois: o critério da indisponibilidade individual (ou da disponibilidade plural) do objeto do processo e o critério da compatibilidade dos efeitos produzidos.
Não estamos, claramente, perante um caso de litisconsórcio necessário passivo, pois como se estatui na segunda parte, do n.º 3, daquele art.º 34.º, estando em causa facto praticado por um dos cônjuges (no caso, o exercício do comércio) a autora só tinha que propor a presente ação contra ambos os cônjuges (o apelante e CC, casados um com o outro à data do mútuo) se com ela pretendesse obter decisão suscetível de ser executada sobre bens próprios de CC, (sua filha) no caso, decisão que considerasse a dívida da responsabilidade de ambos os cônjuges, pois nesse caso responderiam por ela os bens comuns do casal e, na falta ou insuficiência destes, solidariamente os bens próprios de qualquer deles, como se prevê no art.º 1 695.º, n.º 1, do Código Civil.
A sua demanda na presente ação, nesse pressuposto, teria a vantagem adicional de o réu poder obter na própria ação em que é demandado pela totalidade, título executivo contra os condevedores não demandados. Não se verificando uma situação de litisconsórcio necessário passivo, sempre pela alegação dos factos pertinente se poderia configurar uma situação de “litisconsórcio conveniente”, nas palavras de Abrantes Geraldes, Luís Pimenta e Pires de Sousa, [Código de Processo Civil Anotado, Vol. I, 2019, p. 643], mas nunca necessário, a impor a demanda de ambos os membro do casal, que, em caso de preterição impusesse a declaração de ilegitimidade do réu para a presente demanda.
Neste conspecto, improcede a questão suscitada pelo apelante da preterição litisconsórcio necessário passivo.
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As custas serão suportadas pelo apelante uma vez que ficou vencido (n.ºs 1 e 2, do art.º 527.º, do Código de Processo Civil).
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III – DECISÃO
Pelo exposto, acordam os juízes que integram a 1.ª secção cível deste Tribunal da Relação de Évora, em julgar improcedente a apelação, confirmando-se a sentença recorrida.
Custas pelo apelante (art.º 527.º, n.ºs 1 e 2, do Código de Processo Civil).
Notifique.
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Évora, 18 de dezembro de 2023
(o presente acórdão foi elaborado pela relatora e integralmente revisto pelas suas signatárias)

Maria José Cortes (Relatora)
Maria João Sousa e Faro (1.ª Adjunta)
Ana Pessoa (2.ª Adjunta)