Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
13/24.7T8PTM.E1
Relator: SÓNIA MOURA
Descritores: IMPUGNAÇÃO DA DECISÃO DE FACTO
ÓNUS DO RECORRENTE
GRAVAÇÃO DA PROVA
LITIGÂNCIA DE MÁ FÉ
Data do Acordão: 12/10/2025
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA PARCIALMENTE A SENTENÇA RECORRIDA
Área Temática: CÍVEL
Sumário: Sumário:

1. Relativamente à prova gravada, a indicação das passagens relevantes ou a sua transcrição só é dispensável quando a respetiva omissão não dificulte gravemente o exercício do contraditório e o exame pelo tribunal de recurso, numa ponderação do ónus de impugnação guiada pelos princípios da proporcionalidade e da razoabilidade.


2. A omissão da identificação das passagens relevantes ou a sua transcrição dificultam gravemente o exame da prova pelo Tribunal da Relação, num caso em que se trata de ouvir integralmente doze depoimentos, que constituem a quase totalidade da prova testemunhal produzida em audiência (treze testemunhas), com referência à impugnação de um bloco de dezasseis factos não provados.


Semelhante procedimento traduzir-se-ia na realização de um segundo julgamento pelo Tribunal da Relação, o que não corresponde à finalidade dos recursos.


3. Em sede de impugnação da decisão de facto, a afirmação pelo A. da versão dos factos que o próprio propugna não tem o condão de determinar necessariamente que se julgue provada essa versão, desde logo, porque existe nos autos uma versão antagónica desta, pelo que competia ao A. indicar as razões objetivas que determinavam a prevalência do seu depoimento sobre a demais prova, infirmando a apreciação crítica da prova efetuada pelo Tribunal a quo.


4. Tratando-se, em sede de litigância de má fé, de apurar se as partes alteraram a verdade dos factos e deduziram pretensões infundadas, impõe-se que se tenham afirmado na sentença os factos verdadeiros e que deles resulte que as partes tinham conhecimento dos mesmos, o que não sucede com respeito aos factos não provados, dos quais não se extrai que tenham ocorrido os factos contrários a estes.


5. Não obstante, devemos olhar de forma global e integrada para todos os factos, pois o confronto com os factos não provados pode contribuir para definir o sentido e alcance dos factos provados.


(Sumário da responsabilidade da Relatora, nos termos do artigo 663.º, n.º 7 do Código de Processo Civil)

Decisão Texto Integral: ***

Apelação n.º 13/24.7T8PTM.E1


(1ª Secção)


***


Acordam na 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora:


I - Relatório


1. AA instaurou a presente ação declarativa, sob a forma de processo comum, contra BB e CC, pedindo que seja declarado único proprietário e legítimo possuidor do prédio urbano, sito na Praia 1, Cidade A, inscrito na matriz predial da freguesia de Cidade A sob o artigo 2285 e descrito na Conservatória do Registo Predial de Cidade A sob o n.º 200/19850509, ordenando-se o cancelamento do registo a favor dos RR., e se ordene a inscrição no registo da propriedade da favor do A..


Alega que comprou o imóvel em 1985, mas registou-o em nome do seu irmão, o aqui R., para facilitar o acesso a crédito bancário com juros bonificados. Desde então, pagou todas as despesas relacionadas com o imóvel, incluindo a construção, manutenção e impostos, e há mais de 38 anos que detém a posse pública, pacífica, contínua do imóvel e sem oposição, pelo que o adquiriu por usucapião.


2. Os RR. contestaram, alegando que o imóvel foi adquirido com as suas economias e que suportaram todas as despesas relacionadas com a sua aquisição, demolição e reconstrução, pelo que o imóvel lhes pertence.


Em reconvenção, os RR. formularam os seguintes pedidos:


a) Deve o A. ser condenado reconhecer a propriedade do R. desde a data da compra e, em consequência:


b) Deve o A. ser condenado a restituir o locado livre de pessoas e bens ao R.;


c) Deve o pedido reconvencional ser julgado provado e procedente e, em consequência, o A. condenado a reconhecer o crédito do R. no montante de € 1.000.000,00, acrescido de juros legais vencidos e vincendos, desde a data da citação até integral pagamento;


d) Deverão as custas da ação e da reconvenção ser suportadas pelo A., uma vez que foi este quem deu causa aos autos, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 527.º do Código de Processo Civil.


Alegam, ainda, os RR. que o A. alterou a verdade dos factos e deduz pretensão cuja falta de fundamento não podia ignorar, pelo que deve ser condenado como litigante de má fé, nomeadamente, numa indemnização a seu favor em montante não inferior a € 50.000,00.


3. Em resposta, o A. pugnou pela improcedência da reconvenção e alegou que quem falta à verdade são os RR., os quais alegam factos que sabem não ser verdadeiros, pelo que devem ser condenados como litigantes de má fé.


4. Foi admitida a intervir na ação, ao lado do A., DD, sua mulher.


Realizou-se audiência prévia, tendo sido:


- proferido despacho saneador;


- admitida a reconvenção quanto ao pedido de condenação do A. no reconhecimento de que o R. é o proprietário do prédio, e rejeitada no mais;


- fixado o valor da ação em € 420.751,38, correspondente ao valor do imóvel;


- identificado o objeto do litígio e enunciados os temas da prova.


5. Realizou-se a audiência de julgamento, após o que foi proferida sentença, com o seguinte dispositivo:


“Pelo exposto, decido:


1. Julgar a ação improcedente por não provada e, em consequência, absolvo os réus dos pedidos formulados pelos autores;


2. Julgar parcialmente procedente a reconvenção e, em consequência, reconhecer o direito de propriedade dos réus sobre o prédio urbano, sito na Praia 1, Rua 2, n.º 10, da União de Freguesias de Cidade A, inscrito na matriz predial sob o artigo 4056º e descrito na Conservatória do Registo Predial de Cidade A sob o nº 200/19850509.


3. Condenar o autor como litigante de má fé numa multa que fixo em 10 (dez) Ucs.”


6. Inconformados com a sentença, vieram os A. apelar da mesma, terminando as suas alegações com as seguintes conclusões:


“A – Os Recorrentes pedem que sejam declarado(s) único(s) proprietário(s) e legítimo(s) possuidores do prédio urbano, sito na Praia 1, Cidade A, inscrito na matriz predial da freguesia de Cidade A sob o artigo 2285º e descrito na Conservatória do Registo Predial de Cidade Asob o nº 200/19850509, ordenando-se o cancelamento do registo a favor dos Recorridos, e se ordene a inscrição no registo da propriedade da favor do Recorrente marido, porque foi este quem na verdade, pagou todas as despesas relacionadas com o imóvel, incluindo a construção, manutenção e impostos.


B - Os Recorrentes também há mais de 38 anos, que detém a posse pública, pacífica, contínua do imóvel e sem oposição, pelo que o adquiriram por usucapião.


C – Os Recorridos, em sede de Contestação, alegaram que o imóvel foi adquirido por si, com as suas economias, e que todas as despesas relacionadas com a aquisição demolição e reconstrução foram também suportadas por si, pelo que o imóvel lhes pertence.


D – Foram indevidamente julgados os factos constantes dos Pontos 10., 21., 22., 25. e 29., que foram considerados como provados quando assim não deveria ter sido.


E – Indevida e infundadamente, a convicção do Tribunal a quo assentou maioritariamente em parte/excertos das cartas juntas aos autos pelos ora Recorridos, desvalorizando-se toda a restante prova.


F - Mostra-se violado o princípio da Igualdade das Partes e da Livre apreciação da prova, considerando a quase total desvalorização da prova apresentada pelos Recorrentes e, ao invés, dando-se total valorização apenas a parte/excertos das cartas juntas aos autos pelos ora Recorridos.


G – Aquelas cartas são apenas conversas preliminares relativamente àquilo que efetivamente veio a ocorrer, já que estas não foram as únicas comunicações havidas entre as partes para efeitos de concretização do negócio, muito pelo contrário e do teor das mesmas, assim resulta, já que eram assuntos para serem tratados em família e que foram tratados em família.


H - O Recorrente marido sempre trabalhou em total colaboração e apoio de sua mãe, tendo alias sido dos três filhos, o único que a acompanhou ao longo de toda a sua vida, mormente, na velhice e na doença, algo que os seus dois irmãos (o Recorrido marido e a sua irmã, a testemunha EE), não fizeram e, mais grave ainda, abandonaram-na por completo, não a visitando ou dando qualquer assitência ou apoio durante décadas e até ao final da sua vida.


I - O Recorrente marido trabalhou incialmente com a sua mãe na mercearia e gelataria que esta possuiu naquela Rua 2, em Praia 1 e, após ter vindo da tropa, tomou as rédeas do negócio da mãe, chegando a explorer três negócios em simultâneo (mercearia, gelataria e agente de gás) e, para além disso, começou a projetar um negócio no prédio sub judice, para ser o seu local de trabalho e também dos demais elementos da família, para o que iria constituir uma firma.


J - O Recorrente marido queria expandir o negócio e para isso impunha-se a aquisição do imóvel sub judice, cuja aquisição foi inicialmente intenção da sua mãe, mas veio apenas a ser adquirido pelo Recorrente marido, já que o Recorrido marido tampouco tinha intenções de tão cedo regressar a Portugal quando refere na sua missiva junta como documento 4 junta com a Contestação.


L - O teor do Ponto 10. dos Factos Provados deverida passar a ter o seguinte teor: “Autor e réu acordaram que o imóvel seria para o Autor, mas comprado em nome do réu, para poderem aceder ao crédito bancário com juros bonificados concedidos a emigrantes, num empréstimo a contrair junto do Banco Espírito Santo para pagamento de parte do preço do imóvel;”


K - O Ponto 21. dos factos provados deverá passar a ter a seguinte redação: “Após a reconstrução, a mãe do autor e do réu passou a habitar o 3º andar, cedido pelo autor, onde residiu até poucos anos antes da sua morte, quando foi morar para um lar”.


M – O Ponto 23. dos factos provados, donde resulta que “A 28 de Abril de 1989 o réu BB declarou dar de arrendamento à sociedade FF, Lda. por si representada, a loja correspondente ao prédio referido em 17, supra, para o exercício da atividade comercial de mercearia, pelo prazo de 1 ano, renovável, mediante o pagamento da renda mensal de 20.000$00; (Doe: 5 contestação)”, deveria ao mesmo ser aditado que tal contrato foi outorgado unilateralmente pelos aqui Recorridos, do qual nunca foi dado conhecimento aos Recorrentes – Cfr. Doc. 6 junto com a Contestação.


N - É parciamente falso o constante do Ponto 30. dos factos provados, que “Desde 1989, tem sido o autor quem, através da sociedade, e com a ajuda da sua progenitora, prosseguiu com a exploração do supermercado instalado no imóvel e ajudou a mãe na mercearia;”, nem tal resultou provado.


O – Dos factos constantes dos Pontos 2, 4, 5, 6, 7, 8, 9, 10,11,12,13,14,15,16,17, 18,19, 20 e 21 indevidamente julgados como não provados e que deveriam ter sido julgados como provados.


P – No Ponto 2. dos factos não provados, erradamente não se conclui que “O senhorio tenha proposto ao autor a venda do prédio pelo preço de quatro milhões e quinhentos mil escudos”, o que veio a provar-se que afinal foi este o valor final acertado para o negócio, que é o que consta da escritura publica de compra e venda - conforme o Recorrente marido esclareceu e resulta do documento junto.


Q – Mais deveria aquele Ponto 4. dos factos não provados, ter considerado que o autor e os réus tenham acordado que estes contrairiam um crédito bancário e comprariam o imóvel e que o autor os reembolsaria da totalidade do valor empréstimo contraído junto da instituição bancária, o que veio a suceder e, logo que estivesse liquidado, o empréstimo, os réus transmitiriam a propriedade do imóvel para o autor; - Confirmado pelas declarações do Recorrente marido e demais prova documental.


R – No Ponto 5. dos factos provados, deveria ter sido considerado como provado que no dia da escritura de compra e venda, o autor pagou, em numerário, parte do preço do imóvel, o que resulta das declarações do Recorrente marido quem foi à escritura e quem diligenciava junto do então seu advogado, o Sr. GG, sendo que até terá sido por sugestão deste que o negócio deveria ser feito nos moldes em que o foi, por forma a ter acesso mais barato e facilitado ao crédito bancário - cartas juntas com a Contestação como Doc.s 2, 3 e 4e depoimento dos Recorrente e dos Recorridos.


S - Nos Ponto 6. a 21. inclusive dos factos provados, deveria o teor dos mesmos ter sido considerado como provado, já que se reportam à confirmação de pagamento de despesas com construção e manutenção suportados pelos Recorrentes e confirmados não só pelo Recorrente marido, como confirmado pelas testemunhas HH, II, JJ, KK, LL, MM, NN, OO e PP, como assumido pelos Recorridos que quanto a isso nada fizeram, alegando apenas que os recibos estão em seu nome.


T - O Tribunal a quo apenas aproveitou a versão dos Recorridos, porque afinal são eles quem tem registada em seu nome o prédio sub judice, afigurando-se a mais confortável e menos problemática.


U - Andou o Tribunal a quo ao descurar toda a prova careada para os autos por banda dos Recorrentes e, mais grave que isso, IGNORANDO as próprias palavras do Recorrido marido quando em sede de audiência de julgamento, prestando as suas declarações, e contrariando por completo a sua versão dos factos apresentada na sua Contestação, afirma que afinal não consideran, nem nunca considerou que aquele prédio sub judice é só seu, pois é da família (dele e dos dois irmãos).


V - Tal depoimento foi ainda confirmado pela Recorrida mulher.


X - O Recorrente marido trabalhava com a mãe nos estabelecimentos, contudo e depois de sair da tropa tomou as rédeas dos negócios da mãe e passou a ser ele a gerir o negócio da mercearia, da gelataria e após a demolição e construção do prédio sub judice.


Z - Foi o Recorrente marido quem para além de ter promovido e pago por isso, também procedeu á instalação de um estabelecimento no r/c daquele prédio, o qual também passou a ser de sua responsabilidade – Cfr. Depoimento das testemunhas HH, II, JJ, KK, LL, MM, NN, OO e PP.


Y - No que respeita ao negócio de aquisição do imóvel as posições das partes nos articulados são completamente opostas, já que os Recorridos, por sua vez, afirmaram, na contestação, que foram eles quem adquiriu o imóvel, como forma de investimento, e quem pagou o preço, com recurso às suas economias e com o empréstimo que contraíram. Admitindo depois em julgamento que a mãe de ambos tenha pago algumas prestações, ou seja uma versão TOTALMENTE DIFERENTE, ao afirmaram que nunca consideraram que o imóvel fosse seu, que o imóvel é de todos, referindo-se a si e aos irmãos, porque – dizem eles Recorridos - foi a sua mãe quem pagou parte do valor.


W - Os Recorridos também referiram não se recordar e não saber como foi feito o pagamento no ato da escritura de compra e venda.


AA - Os Recorridos faltam claramente à verdade e referem não saber e/ou não se recordar de factos essenciais, porque bem sabem que nunca fizeram tais pagamentos, pois neste momento continuam com o prédio registado a seu favor, sem que nunca nada tivessem pago por isso.


AB – é por essa razão que durante cerca de 40 (quarenta) anos, nunca os Recorridos reclamaram para si o que quer que fosse do prédio sub judice, pois bem sabiam que não é seu, que não lhes pertence, que não o compraram verdadeiramente e que nada pagaram por isso, daí a razão pela qual sempre se mantiveram afastados e em silêncio.


AC - O Recorrido marido (e também da mulher) faltam à verdade quando alegam que o Recorrente não tinha qualquer dinheiro e apenas vivia do que mãe lhe dava, mas afinal lá esclareceram que aquele também tinha acabado de comprar uma casa, então algum dinheiro teria – mais uma contradição proferida pelos Recorridos, só para não admitirem, ao contrário das demais testemunhas que após ter saído da tropa, o Recorrente marido assumira os negócios dos pais.


AD - Impunha-se dar como provado que, quer a compra, quer o pagamento do preço, quer a demolição, reconstrução e manutenção do imóvel em apreço foi totalmente suportado pelos Recorrentes,


AE - Justificado que ficou que todos os pagamentos efetuados foram efetuados pelos Recorrentes – Cfr. os unicos comprovativos de pagamentos foram unicamente apresentados pelos Recorrentes, e não pelos Recorridos, os quais estavam na posse daqueles porque efetivamente foram quem procedeu aos seu pagamento, conforme também confirmado pelas testemunhas arroladas pelos Recorrentes.


AF - Não podem os Recorridos alegar que efetuaram tais pagamentos e não justificar o porquê de estarem na posse do Recorrente marido, já que há quase cerca de 40 anos que não se falam, nem se relacionam.


AG - Não foi a mãe das aqui partes que efetuou tais pagamentos, já que esta entregara os negócios ao seu filho/ Recorrente marido e nas ultimas décadas foi sempre este quem teve a direcção dos negócios, o que confrontado com o depoimento das testemunhas arroladas pelos Recorrentes, que o confirmaram e merecem todo o valor probatório.


AH - Os Recorridos admitem que desde pelo menos 1988 nunca mais voltaram àquele prédio, nem nunca mais se interessaram por nada que lhe dissesse respeito, pelo que não conseguem justificar o pagamento das aludidas despesas durante estes ultimos cerca de 40 anos.


AI - A outra conclusão não poderia o Tribunal a quo ter chegado senão dar como provada a máteria dos Pontos 2, 4, 5, 6, 7, 8, 9, 10,11,12,13,14,15,16,17, 18,19, 20 e 21, indevida e erradamente julgados como não provados e que deveriam e devem ser julgados como provados, reversão que se impõe.


AL – Foi o aqui Recorrente quem fez o negócio, através do crédito bancário dos Recorridos, negócio que mantém até hoje.


AK – As 3 cartas juntas pelos Recorridos têm datas e contéudos distintos, sendo que os Recorridos apenas juntaram aos autos parte dessa correspondência, sendo que existiu muita outra subsquente que, como não lhes era conveniente, não juntaram aos autos, já que a haviam guardado e curiosamente fotocopiado, ao contrário dos Recorrentes.


AM - Na 1ª carta datada de 6/2/85 junta como doc. 3 com a Contestação, é referido pelo Recorrente marido que a mãe pretende/tem intenção adquirir o imóvel para os três filhos – mas pretender não é fazer!


AN - Na 2ª carta datada de 28.02.85, junta como doc. 4 com a Contestação alegadamente redigida e assinada pelos Recorridos que ao invés de responderem à carta que lhes for a enviada pelo Recorrente marido, enviaram esta nova carta à mãe do Recorrente e do Recorrido marido (e à revelia deste), pedindo à mãe que o financie naquela aquisição, pois o melhor é fazer a compra no nome do Recorrido marido que “…no futuro será mais fácil resolver…” – eis desde logo o plano dos Recorridos, nas costa e à revelia do aqui Recorrente marido!!! – não juntaram a resposta da MÃE!


AO – Na 3ª carta de 10/03/85, o Recorrente marido – desconhecendo o teor daquela carta de 28.02.85 – se voltou a dirigir aos Recorridos, mantém a versão dos factos por si já apresentados na sua missive de 6/2/85, mas salientando que esse negócio seria o seu futuro local de trabalho/negócio e que apesar da sugestão ser o imóvel ficar em nome dos Recorridos, o aqui Recorrente manifesta sentir-se confidante com tal situação, tamanha era a confiança que depositava no irmão e na cunhada, ora recorridos, pelo que passamos a citar “…ficando a casa em teu nome sinto-me tão seguro como se estivesse em nome da mãe ou em meu nome.”


AP – O Recorrido marido, dirigem carta à mãe de ambos, no sentido de a convencer a financiar- lhe para si aquela compra e colocar o prédio em nome dos Requeridos, argumentando com a mãe no sentido de “…a mãe tem trés ossos dificeis de roer, e que lhe dá que pensar; o pai, o AA, e a QQ…quanto ao AA tem ai os planos dele; é normal que queira as coisas á vontade dele…Quanto à mãe se me adiantar algum dinheiro será uma divida que terei que ter em conta e pagar mais cedo ou mais tarde…”


AQ - O negócio definitivo/compra do imóvel em apreço apenas veio a ocorrer a 29.10.1985, pelo que desde Fevereiro/Março até finais de Outubro, mediaram cerca de 7 (sete) meses, período dentro do qual outras conversas e circunstâncias foram acordadas entre as aqui partes.


AR - A versão que resulta das cartas, não se aproxima da que os Recorridos apresentaram depois em audiência, apenas vêm demonstrar que já nessa altura os Recorridos agiam “nas costas e à falsa fé” contra o Recorrente marido, que aqui sempre trabalhou durante cerca de 40 anos para pagar e manter o imóvel sub judice, que os Recorridos pretendem agora com falsidades e apenas por que dizem que “sim”, fazer valer a sua versão.


AS - Tal versão dos Recorrentes é suportada pela prova documental e testemunhal careada para os presentes autos.


AT – O Tribunal a quo ignorou por completo que EE, afinal saiu de Praia 1 á cerca de 40 anos e não mais teve contacto com sua mãe, o que apenas sucedeu esporádicamente, pelo que também acabou por confirmar que, assim sendo, não podia afirmar se a mãe tinha ou não economias, como é bem de ver, já que não mantinham contacto regular, nem eram próximas, como não foram até ao final de vida de sua mãe.


AU - Os Recorridos não sabem, nem se lembram de como procederam ao pagamento do preço na escritura, ao invés, o Recorrente marido que se lembra bem de ter efetuado o remanescente do preço em numerário no dia da escritura, pois, esteve presente na mesma e, repete-se, procedeu ao pagamento do preço em numerário, sendo o resmanescente do preço pago através do aludido empréstimo bancário.


AV - O pagamento das prestações do empréstimo contraído em nome do Recorrido, foram pagos por débito na conta bancária daquele, no Banco Espirita Santo (...) para onde o Recorrente marido transferia os referidos valores através da sua conta no mesmo banco (...), é o que retratam os documentos n.º s126 a 133, 136, 137, 140 a 159, 161 a 195 204 e 207 juntos com a petição.


AX - O recorrente marido adquiriu o imóvel em apreço, em nome dos recorridos, por estes terem mais fácil acesso ao crédito, e paga a dívida os Recorridos recusaram-se e recusam-se até hoje a reconher o direitos dos Recorrentes sobre aquele prédio. – esta é a verdade!


AZ - A mãe e Rocorrido marido nunca tiveram nenhuma conta conjunta, ao contrário do que alega o Recorrido marido e que nada demonstrou a esse propósito.


AY - Naqueles depósitos bancários figura o nome de sua mãe e não do aqui Recorrente, o que apenas sucedia porque a conta usada para essas transferências era uma conta conjunta, da qual o Recorrente marido era o 2º titular, sendo que aquando da emissão do talão das transferências apenas aparecia o nome do 1º titular e não do 2º.


AW – Os Recorridos fácilmente poderiam fazer a prova de terem pago as prestações do empréstimo juntando os extratos da conta de onde resultasse que eles abasteciam a conta com os valores necessários para fazer os pagamentos, o que que não fizeram! E porquê??? Porque o dinheiro ali colocado para pagamento daquele empréstimo nunca foi seu, nem nunca foram os Recorridos que aprovisionaram aquela conta bancária para efeito de pagamento daquele empréstimo.


BA - Os Recorridos nem sequer tinham condições financeiras para o efeito, já que a são pessoas de fracos recursos económicos, conforme explicaram o seu regresso a Portugal e a sua eventual necessidade de até voltarem a emigrar.


BB - É o Recorrente marido quem tinha toda essa documentação em sua posse, diga-se, faturas/recibos e, para além disso e conforme já supra demonstrado, as testemunhas por si arroladas e que tiveram intervenção direta na realização daquela obra, confirmaram sob juramento, que tais pagamentos foram efetivamente feitos pelo Recorrente marido, o que foi totalente desvalorizado.


BC – As testemunhas arroladas pelos Recorrentes, confirmaram que foi o autor quem lhes pagou os serviços que prestaram nas obras, como foi o caso de RR, PP e SS, tal significa que o dinheiro desses pagamentos era dos Recorrentes, tampouco foi demonstrado o contrário.


BD - Outra conclusão não poderia o Tribuanl a quo retirar que não fosse que aqueles pagamentos NÃO FORAM EFETUADOS NEM PELOS RECORRIDOS, NEM COM DINHEIRO SEU OU DA SUA MÃE.


BE – O Recorrente negae/ou desconhecia ter sido celebrado um contrato de arrendamento que o Recorrido juntou como documento n.º 5 da contestação, o que não se percebe, já que do mesmo nunca deram conhecimento aos Recorrentes, nem o mesmo nunca serviu para coisa nehuma e, muito menos, para que fosse pedida a licença necessária em seu nome junto da Câmara Municipal, como efetivamente veio a acontecer.


BF – Não se afigura credivel que os Recorridos, que nunca interpelaram a sociedade para que procedesse ao pagamento das rendas, já que se arrogam ser titulares daquele contrato de arrendamento, nunca fizeram qualquer interpelação para o pagamento de quaisquer rendas, quando – na sua versão – estiveram durante todos eses anos a suportar os pagamentos com o empréstimo para aquisição do imóvel, com as obras, licenças, encargos, impostos…absolutamente tudo, sem nada pedirem em troca.


BG - É absolutamente verdade que o Recorrente marido ao longo dos anos tenha contraído empréstimos para fazer face às despesas com a construção e manutenção do imóvel em causa e, não falamos só do emréstimo da Locapor, que apesar de assinado também pelo Recorrido marido, mais uma vez este afastou-se do imóvel e da família nada tendo pago a esse título ou qualquer outro, ou seja, assume a obrigação, é verdade, mas quanto a pagamentos nunca fez nenhum, nem sequer disse o contrário.


BH - D desde os anos 80 até ao ano de 2023, o Recorrido marido apenas esteve presente numa das ultimas assembleias da sociedade, uma única vez e, ainda assim, fazendo-se representar por advogado.


BI - O Recorrente marido, e não os Recorridos, sempre assegurou e pagou os impostos relativos ao imóvel. Para tanto juntou os documentos juntos com a P.I. (n.º 317 a 359) respeitantes a contribuição autárquica e IMI provam o pagamento desses impostos ao longo dos anos, já que tem na sua posse posse os competentes recibos e prova testemunhal a confirmar tal circunstância, ao contrário dos Recorridos que absolutamente nada provaram quanto a tais pagamentos, fosse com prova documental, fosse com prova testemunhal, nem o poderiam fazer, já que na verdade nunca nada pagaram. Limitam-se a dizer, fomos nós, porque a documentação está no nosso nome, contudo não conseguem explicar como e quando procederam a tais pagamentos.


BJ – Impõe-se o reconhecimento aos Recorrentes da propriedade do imóvel inscrito na matriz predial da freguesia de Cidade A sob o artigo 2285º, atual 4056 da Freguesia de Cidade A, e descrito na Conservatória do Registo Predial de Cidade Asob o nº 200/19850509, não se decidindo assim, não se fazo justiça, não se apurou a correta, nem a concreta verdade dos factos em discussão nos autos, nem se apreciou a prova que se impunha com imparcialidade e isenção.


BG - Configura tal decisão configura, no mínimo, um enriquecimento sem causa por banda dos Recorridos à custa do empobrecimento dos Recorrentes.


BH - Impunha-se igualmente a total improcedência do pedido reconvencional deduzido contra os Recorrentes, improcedência essa que igualmente se reclama.


BI – O Recorrente marido adquiriu o imóvel sub judice por aquisição por usucapião e assim deverá ser declarado e, ao não decidir assim, mostram-se violados os artigos 1287º e 1251º do Código Civil.


BJ – Mostram-se preenchidos em relação ao aqui Recorrente marido, os dois requisitos para que haja aquisição por usucapião, designadamente o Corpus e o animus.


BK - O n.º 2, do artigo 1252.º, do Código Civil dispõe que, em caso de dúvida, presume-se a posse naquele que exerce o poder de facto, que no caso em apreço, está provado que não obstante o imóvel ter sido adquirido em nome dos Recorridos, foi o Recorrido marido quem negociou a sua compra, quem fez a sua compra, quem encetou todas as demarches legais para a sua demolição e reconstrução e suportou os seus custos, aí instalando o seu negócio, o que se maNtém até hoje!


BM - Pelo menos desde 1989 que os Recorridos não voltaram a usar o imóvel ou a usufruir do mesmo, tendo-se afastados da família.


BN - Desde então e por mais de 30 anos, o imóvel, composto por três andares, foi usado apenas no seu ultimo piso, com autorização do Recorrente marido pela mãe de ambos para sua habitação, até poucos anos antes do seu falecimento em 2022, e pelo Recorrente marido, que instalou um negócio no rés-do chão daquele prédio que tem gerido e mantido até hoje.


BO - De igual modo o Recorrente marido tem feito uso próprio dos andares intercalares.


BP - O uso do imóvel pelo Recorrente marido correspondente ao exercício do direito de propriedade, que é feito enquanto proprietário (desde logo pelo menos de facto) do imóvel, tendo instalado a sua mãe na fração existente no ultimo piso do prédio onde esta residiu até ir para o lar e da qual o Recorrente marido desfrutava juntamente com a sua familia, diga-se, mulher e filhos, onde ainda hoje confecciona as suas refeições e p.e. dorme a folga – Cfr. Resulta do depoimento do Recorrente marido que se encontra gravado e das testemunhas, II, MM e JJ.


BQ - O contrato de arrendamento agora apresentado pelos Recorridos não lhe é oponível, já que do mesmo nunca dele teve conhecimento e, tanto assim foi que nunca aqueles fizeram qualquer interpelação para efeitos de cobrança da renda devida e/ou comunicaram a existência de tal contrato à Fazenda Pública – o que também não lograram demonstrar.


BR - O Recorrente marido detinha e detém a posse daquele imóvel em nome próprio, que perdura no tempo por mais de 30 (TRINTA) anos e cerca de 40, de forma pública, sem oposição de quem quer que seja (nem memso dos Recorridos) e também de forma pacífica e, por isso, suscetível de levar à aquisição do direito de propriedade sobre o imóvel, por usucapião.


BS - O Recorrente marido manteve-se durante cerca de quatro décadas sempre a trabalhar e a pagar pelo prédio em apreço, agindo na convicção séria de que aquele prédio lhe pertence e é seu, trabalhando e fruindo do imóvel em apreço, efetuando o pagamento de todos os encargos inerentes, fosse manutenção, restauração, remodelação do mesmo, diante de todos, de forma pública, pacífica, continuada e sem oposição de quem quer que fosse.


BT - O Recorrente marido detém a posse, pública, pacífica, continuada e sem oposição de quem quer que seja, desde o ano de 1985, ou seja, há pelo menos 40 (quarenta) anos, do prédio urbano, sito na Praia 1, Cidade A, inscrito na matriz sob o artº 2285 e descrito junto da Conservatória do registo predial de Cidade A sob o nº 200/19850509 – freguesia de Cidade A.


BU - O Recorrente marido vem exercendo, de forma reiterada, os poderes de facto sobre aquele imóvel, ao longo de quase quarenta anos, de forma ininterrupta ou contínua, sem oposição de ninguém, à vista de toda a gente ou de modo público, sempre na convicção de agir como dono, tudo constitutivo dos requisitos objectivos e subjectivos, necessários à prova da aquisição originária do direito de propriedade por usucapião.


BV - O Recorrente marido é o verdadeiro e único proprietário do prédio sub judice.


BX - A posse suscetível de conduzir à usucapião, tem de revestir sempre duas características, quais são as de ser pública e pacífica (arts. 1293°, al. a), 1297° e 1300°, n.° 1) – que no caso mostram-se violados por banda do Tribunal a quo que assim não considerou – Cfr. AC. STJ, proc. 460/11.4TVLSB.L1.S2, do Relator Dr. Silva Gonçalves.


BY - É absolutamente falso que o Recorrente marido alegue factos que sabe não corresponderem à verdade e que omitiu outros que são relevantes, deduzindo uma pretensão cuja falta de fundamento não podia ignorer, não litigando de má fé.


BW – São os Recorridos quem se contradizem e faltam claramente á verdade, está escrito e gravado p.e. que se por um lado em sede de Contestação os Recorridos vêm pugnar pela propriedade do imóvel, porque o compraram, porque o pagaram, porque foi esse o negócio alcançado, quando em sede de declarações vieram os Recorridos dizer que afinal não considerava que o prédio é de sua propriedade ou que lhe pertença,que afinal pertença à herança deixada pela mãe!!!


CA - Os Recorridos acabam por dizer que então terão aqueles aludidos pagamentos sido efetuados pela sua mãe, o que na verdade não podem saber, já que nos seus ultimos quase 40 anos de vida nunca mais falaram com ela, praticamente nem se relacionado.


CB - Admitem contudo os Recorridos não ter efetuado a totalidade dos pagamentos, remetendo- os para a mãe das aqui partes.


CC - O Recorrente marido que não cometeu qualquer contradição ou disse qualquer facto que não correpondesse á verdade e que não estivesse sustentado com a documentação junta e demais prova testemunhal produzida.


CD - Foi o Recorrente marido quem fez todas as demarches para a concretização do negócio, fosse com o vendedor do prédio, fosse com o advogado que tratou da documentação, fosse intercedendo junto dos Recorridos (que à data já nas suas costas e à sua revelia foi fazer proposta diferente à mãe – Cfr. Doc. 4 junto com a Contestação), fosse junto das demais entidades para a demolição e construção do edifício, fosse procedendo a todos os pagamentos.


CE - São os Recorridos que através de omissões, falsos e contraditórios argumentos são assim condecorados com a presunção de propriedade do imóvel a seu favor, só por causa de uma regra básica do CRP.


CF - O Tribunal a quo ignorou o teor da carta redigida pelo Recorrido marido e dirigida à sua mãe, datada de 28.02.85 onde logo após ter recebido a carta inicial por banda do Recorrente marido, vem tentar a convencer a mãe a fazer coisa diferente: diga-se, a emprestar-lhe o dinheiro para aquela aquisição, ficando o imóvel em seu nome – E é o Recorrente marido o litigante de má fé.


CG - O Recorrente usa a presente lide para obter o reconhecimneto de um direito que bem sabe ter, devendo cair a sua condenação como litigante de má, bem como na multa determinada.


CH - Os Recorridos faltam à verdade e alegam factos que sabem ser falsos e contradizem-se, o que até chegou a ser reconhecido pelo Tribunal a quo quando refere que “…No que respeita à conduta processual dos réus, a sua defesa apresenta-se em alguns pontos contraditória nos seus próprios termos. Se é certo que também estes alegam que foram eles que adquiriram o imóvel e que pagaram todos os valores, concedem em algumas quantias terem sido pagas pela mãe, assumindo mesmo, em audiência, o entendimento de que não se consideram donos do imóvel.”


CK - Os Recorridos litigam de má fé, apresentando um pedido contraditíorio com o direito a que se arrogam.


CL - A própria juiz a quo chegou desde logo a essa conclusão, que efetivamente os Recorridos faltavam à verdade e apresentaram versões contraditórias, dirigindo-se ao Recorrido marido, no seu depoimento que se encontra gravado, concluiu que: “O seu irmão não tem lá nada, eu percebo o que é que o senhor me está a dizer, mas eu queira que o senhor percebesse é que eu não posso tomar essa decisão que o senhor entende que é justa aqui neste processo, porque é aquilo que… o seu irmão está a dizer “isto é meu” e a posição da sua contestação é “não, isto é meu, está registado em meu nome” e agora o senhor chega aqui e diz-me assim “não, isto é… isto é da herança da minha mãe.”


CM - Deverão os Recorridos serem condenados como litigantes de má fé e o Recorrido considerado litigante de boa fé.


CN - Mostando-se violado o previsto no artigo 527.º, nºs 1 e 2 do Código de Processo Civil, por aquela sentença ora recorrida determinar que no decaimento das partes nos pedidos formulados e posição assumida pelos Recorridos, que apenas decaiu no pedido de restituição do imóvel, que não tem valor tributário autónomo, de harmonia com, as custas são a cargo dos autores.


CO - Foi decidida logo em sede de Despacho Saneador a improcedência dos pedidos deduzidos pelos ora Recorridos, designadamente que o Recorrente marido seja condenado a reconhecer um crédito ao réu de € 1.000.000,00, pelo que não tendo o mesmo sido admitido e indeferido, sobre o mesmo deverão incidir as custas de processo, de harmonia com o previsto no artigo 527.º, nºs 1 e 2 do Código de Processo Civil, porque só ao Recorridos dizem respeito.


CP - A sua não fixação implica a violação daquela citada disposição legal.”


7. Os RR. contra-alegaram, pugnando pela improcedência do recurso.


8. Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.


II – Questões a Decidir


1. O objeto do recurso está delimitado pelas conclusões da apelação, não sendo objeto de apreciação questões novas suscitadas em alegações, exceção feita para as questões de conhecimento oficioso (artigos 608.º, n.º 2, 635.º, n.º 4 e 639.º, n.º 1 do Código de Processo Civil).


Não se encontra também o Tribunal ad quem obrigado a apreciar todos os argumentos apresentados pelas partes, sendo livre na interpretação e aplicação do direito (artigo 5.º, n.º 3 do Código de Processo Civil).


2. Nas alegações de recurso e nas respetivas conclusões, os AA. anunciam que impugnam os factos provados sob 10., 21., 22., 25. e 29..


No corpo das alegações, em desenvolvimento desta impugnação, os AA. aludem aos facto provados sob 10., 21., 23., 29. e 30..


Nas conclusões, em desenvolvimento desta impugnação, os AA. aludem aos factos provados sob 10., 21., 23. e 30..


Por outro lado, quando compulsado o corpo das alegações, vemos que onde se identifica o facto provado sob 23. se refere o conteúdo do facto provado sob 22., o que se sucede, de igual modo, na alínea M das conclusões; onde se identifica o facto provado sob 29. se refere o conteúdo do facto provado sob 25., mas não há qualquer referência ao conteúdo correspondente ao facto 25. nas conclusões; onde se identifica o facto provado sob 30. se refere o conteúdo do facto provado sob 29., o que sucede, de igual modo, na alínea N das conclusões.


Ora, são as conclusões que delimitam o objeto do recurso, sustentadas na fundamentação vertida no corpo das alegações, pelo que não constituem objeto do recurso as questões que se contêm apenas no corpo das alegações e aquelas que, apesar de serem enunciadas nas conclusões, estão desprovidas de suporte no corpo das alegações (neste sentido, entre outros, o Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 10.10.2024 (António Fernando Marques da Silva) (Processo n.º 2037/20.4T8STB-B.E1, in http://www.dgsi.pt/).


Assim, deverão considerar-se impugnados os factos identificados nas conclusões e que encontram respaldo nas alegações, atendendo-se ao conteúdo descrito pelos Recorrentes, pelo que será conhecida a impugnação da decisão de facto, no que tange aos factos provados, com respeito aos factos 10., 21., 22., 25. e 29..


3. Deste modo, no caso em apreço cumpre apreciar:


a) a impugnação da decisão de facto, respeitante, quanto aos factos provados, aos que se encontram numerados sob 10., 21., 22., 25. e 29.;


b) se a sentença deve ser revogada e se deve ser julgada procedente a ação e improcedente a reconvenção;


c) se devem ser os AA. absolvidos do pedido de condenação por litigância de má fé e os RR. condenados por litigância de má fé;


d) se deve ser alterada a decisão sobre as custas contida na sentença, atendendo-se ao decaimento dos RR. quanto ao pedido de restituição do imóvel, bem como quanto ao pedido indemnizatório que foi rejeitado no despacho saneador.


III – Fundamentação de Facto


1. O Tribunal a quo julgou provados os seguintes factos:


“1. O autor e o réu são irmãos, ambos filhos de TT, falecido em ........2003, e de UU, falecida a ........2022; (docs. 1 a 4 da PI)


2. Em data não apurada, os pais do autor e do réu tomaram de arrendamento o prédio urbano sito na Praia 1, Rua 2, nº 10, atualmente da União de freguesias de Cidade A, à data composto apenas por rés-do-chão e 1º andar, anteriormente inscrito na matriz sob o artigo 2526º, e atualmente sob o artigo matricial número 4056º, descrito na conservatória do registo predial de Cidade A sob o nº 200/19850509; (docs. 5 e 6 da PI)


3. E aí passaram a residir;


4. A mãe do autor e do réu, UU, possuía um estabelecimento comercial de mercearia do outro lado da rua, e uma gelataria, alguns metros mais à frente, no largo da Praia 1;


5. No ano de 1985, os réus residiam em França e só passavam férias em Portugal;


6. O autor trabalhava com os pais, com quem sempre trabalhou, quer na mercearia, quer na gelataria da família;


7. Em finais de 1984, início de 1985, o senhorio manifestou intenção de vender o prédio referido em 2, supra;


8. A mãe do autor e do réu manifestou intenção de comprar o imóvel para a família;


9. Nem o autor nem os réus dispunham de dinheiro suficiente para a aquisição do imóvel;


10. Autor e réu acordaram com a mãe que o imóvel seria comprado em nome do réu, para poderem aceder ao crédito bancário com juros bonificados concedidos a emigrantes, num empréstimo a contrair junto do Banco Espírito Santo para pagamento de parte do preço do imóvel;


11. No dia 29 de outubro de 1985, foi outorgada escritura pública de compra e venda no Cartório Notarial de Cidade A, pela qual os réus, representados pelo advogado GG, adquiriram, pelo preço de 4.500.000$00, o prédio referido em 2, tendo os vendedores declarado, nesse ato, terem recebido dos compradores o preço; (Doc. 7 petição)


12. Nesse mesmo ato, os réus declararam ser devedores da importância de 3.000.000$00 ao Banco Espirito Santo e Comercial de Lisboa que lhes concedeu o empréstimo ao abrigo do sistema de poupança crédito emigrante, o qual seria a liquidar em 12 anos, e 24 prestações semestrais, tendo sido constituída hipoteca sobre o imóvel para garantia de tal crédito; (Doc. 7 petição)


13. Tal aquisição foi registada pela apresentação de 25.9.1985 na Conservatória do Registo Predial a favor dos réus; (Doc. 6 petição)


14. Durante os 12 anos que durou o empréstimo referido em 12 a mãe do autor e do réu transferiu para a conta de que o réu era titular no Banco Espirito Santo valores para pagamento das prestações do empréstimo;


15. Por contrato outorgado a 4 de Julho de 1986, em que o réu esteve representado por advogado, foi constituída a sociedade comercial por quotas com a firma FF Lda., com sede na Rua 2 em Cidade A, tendo por objeto a exploração de supermercados com o capital social de 1.500.000$00, dividido em duas quotas de 750.000$00 cada uma, uma da titularidade o aqui autor, e outra do aqui réu; (Doc. 8 e 9 petição)


16. Ambos os sócios foram nomeados gerentes; (Doc. 8 e 9 petição)


17. Após a aquisição referida em 11, supra, o imóvel foi demolido e, no seu local, foi construído um novo edifício de quatro pisos, composto por rés-do-chão, 1º e 2º andar que se destinam a comércio e o 3º andar que se destina a habitação; (doc. 5 PI)


18. Todas as licenças necessárias e faturas relativas às obras e compra de materiais necessários à realização da obra foram emitidas em nome do réu;


19. Em 1987 os réus regressaram definitivamente a Portugal;


20. As obras do edifício ficaram concluídas em 1989; (Doc. 11 petição)


21. Após a reconstrução, a mãe do autor e do réu passou a habitar o 3º andar, onde residiu até poucos anos antes da sua morte, quando foi morar para um lar;


22. A 28 de Abril de 1989 o réu BB declarou dar de arrendamento à sociedade FF, Lda. por si representada, a loja correspondente ao prédio referido em 17, supra, para o exercício da atividade comercial de mercearia, pelo prazo de 1 ano, renovável, mediante o pagamento da renda mensal de 20.000$00; (Doc. 5 contestação)


23. Com data de 9 de Junho de 1989, a Câmara Municipal de Cidade A concedeu à sociedade FF, Lda. licença sanitária para a instalação de um estabelecimento de mercearia no prédio referido em 17, supra; (Doc. 12 petição)


24. Em 1 de Agosto 1989 a sociedade FF, Lda., representada pelo aqui réu, contraiu um empréstimo junto da Locapor – Companhia Portuguesa de Locação Financeira Mobiliária, S.A., (Doc. 125 petição)


25. Durante o ano de 1989 o autor e o réu trabalharam em conjunto para por o negócio a funcionar;


26. Na sequência de uma discussão com o autor, ocorrida em data indeterminada desse ano de 1989, os réus deixaram de comparecer no imóvel e desinteressaram-se da exploração do estabelecimento de supermercado que foi aí instalado;


27. Não voltam a entrar no imóvel não fruíram do mesmo, não o ocuparam, não realizaram quaisquer obras;


28. Até ao ano de 2023, o réu não participou na vida da sociedade FF, Lda.;


29. Desde 1989, tem sido o autor quem, através da sociedade, e com a ajuda da sua progenitora, prosseguiu com a exploração do supermercado instalado no imóvel e ajudou a mãe na mercearia;


30. Tem sido o autor quem diariamente trabalhou no imóvel;


31. O que tem feito à vista de toda a gente e sem oposição de ninguém, inclusivamente dos réus.”


2. E julgou não provados os seguintes factos:


“1. Os réus fossem arrendatários do imóvel referido em 2 dos factos provados;


2. O senhorio tenha proposto ao autor a venda do prédio pelo preço de quatro milhões e quinhentos mil escudos;


3. O réu quando soube que o senhorio queria vender o prédio tenha decidido adquiri-lo para si e para ajudar os pais;


4. O autor e os réus tenham acordado que estes contrairiam um crédito bancário e comprariam o imóvel e que o autor os reembolsaria da totalidade do valor empréstimo contraído junto da instituição bancária, e, logo que estivesse liquidado, o empréstimo, os réus transmitiriam a propriedade do imóvel para o autor;


5. No dia da escritura de compra e venda, referido em 11 dos factos provados, o autor tenha pago, em numerário, parte do preço do imóvel;


6. Tenha sido o autor, sozinho, quem procedeu à demolição e reconstrução do prédio, diligenciado junto da Camara Municipal de Cidade A pela obtenção das licenças necessárias às obras e apresentou projeto de arquitetura necessário para o efeito;


7. Tenha sido o autor a pagar todos os valores necessários a esse licenciamento;


8. Tenha sido o autor, sozinho, quem projetou e executou a obra contratando os profissionais necessários para o efeito;


9. Tenha sido o autor quem, com dinheiro seu, tenha pago a esses profissionais;


10. Com vista à construção do edifício autor tenha adquirido com dinheiro próprio, mármores e cantarias, serralharia, azulejos, cimento, louças de casa de banho, eletricista e material de eletricidade;


11. Tenha sido o autor quem adquiriu com dinheiro seu o elevador existente no prédio, e tratou da sua manutenção e substituição;


12. Tenha sido o autor quem fez todas as diligências necessárias à constituição da sociedade e pago as inerentes despesas;


13. O valor do empréstimo contraído pela sociedade junto da Locapor tenha sido usado para pagar as despesas de construção do prédio;


14. Tenha sido o autor a reembolsar tal empréstimo;


15. Ao longo dos 12 anos previstos no contrato de mútuo referido em 12 dos factos provados, o autor tenha transferido/creditado na conta de que os réus são titulares no Banco Espírito Santo e Comercial de Lisboa, com o nº 248/09820/000.0... o valor das prestações mensais previstas para o reembolso do valor mutuado, juros e despesas através da através de conta conjunta que o autor possuía com a sua mãe, UU, no mesmo banco, com o nº 248/06669/000.2..., agência de Cidade B;


16. E, após o pagamento daquele crédito, tenha sido o autor, que, a expensas suas, procedeu ao distrate da hipoteca;


17. Para suportar todas as despesas com o pagamento do mútuo contraído pelos réus, suportar as despesas de construção e manutenção do edifício ao logo dos anos, o autor tenha recorrido a crédito bancário e a empréstimos obtidos junto de pessoas amigas e tenha que subscrito letras e livranças para esse efeito;


18. Tenha sido o autor a pagar todas as despesas junto de entidades publicas, nomeadamente da EDP - Eletricidade de Portugal;


19. Tenha sido o autor quem contratou seguro de incêndio para o edifício;


20. E pagou, com dinheiro seu, os impostos inerentes ao imóvel;


21. O autor contraiu empréstimos para equipar, mobilar e rechear o estabelecimento;


22. Tenha sido o réu que, juntamente com a mãe, decidiu demolir o prédio e no local fazer um edifício novo;


23. Tenha sido o réu quem pagou o preço de aquisição do imóvel, parte no ato da escritura e outra parte através do crédito que contraiu junto do Banco Espírito Santo, S.A.,


24. Todo o processo de licenciamento relacionado coma o prédio e a sua afetação no Rés do chão a mercearia, tenha sido tratado pelos réus pessoalmente ou através do seu procurador;


25. Tenha sido o réu quem apresentou todos os projetos tendentes à execução da presente construção;


26. E contratado pessoal para a execução das as obras;


27. Todas as despesas, licenças, técnicos de obra envolvidos, canalizadores, fornecedores de equipamentos de cozinha, entidades públicas e de fazenda nacional, serralheiros, aquisição e montagem de tetos falsos, fornecimento de mármores, escadarias, cantarias e ferragens, fornecedores de azulejos, tenham sido pagos pelo réu;


28. Tenham sido sempre os réus quem procedeu ao pagamento das faturas de água e eletricidade, bem como a todos os pagamentos a entidades públicas relativos ao imóvel em questão;


29. Tenham sido os réus que procederam aos contactos, contratos e pagamentos incluindo a baixada de eletricidade com a empresa fornecedora de eletricidade, a então EDP;


30. Tenham sido os réus a pagar todos os impostos relacionados com o imóvel, nomeadamente a contribuição autárquica, quer o atual IMI;


31. Todos os orçamentos tenham sido solicitados e pagos pelos réus;


32. Os réus tenham pago todas as despesas relacionadas com os materiais de construção.”


3. Ónus de impugnação


3.1. No n.º 1 do artigo 662.º do Código de Processo Civil, norma atinente à “modificabilidade da decisão de facto”, prescreve-se que “a Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa.”


E no artigo 640.º do Código de Processo Civil, sob a epígrafe “ónus a cargo do recorrente que impugne a decisão relativa à matéria de facto”, estabelece-se que:


“1 - Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:


a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;


b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;


c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.


2 - No caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte:


a) Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes;


b) Independentemente dos poderes de investigação oficiosa do tribunal, incumbe ao recorrido designar os meios de prova que infirmem as conclusões do recorrente e, se os depoimentos tiverem sido gravados, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda e proceder, querendo, à transcrição dos excertos que considere importantes.”


A ideia fundamental que se extrai da norma transcrita é a de que deve o recorrente delimitar de forma clara o objeto do recurso, identificando os segmentos da decisão de facto que pretende impugnar e os meios de prova que impõem decisão diversa.


A razão desta exigência encontra-se na circunstância dos recursos se destinarem à reapreciação das decisões proferidas em 1ª instância e não à prolação de uma decisão inteiramente nova (entre outros, os Acórdãos do Tribunal da Relação de Guimarães de 28.06.2018 (Jorge Teixeira), Processo n.º 123/11.0TBCBT.G1, e do Tribunal da Relação do Porto de 08.03.2021 (Fátima Andrade), Processo n.º 16/19.3T8PRD.P1, ambos in http://www.dgsi.pt/).


3.2. Revertendo ao caso em apreço, constata-se que os Recorrentes indicaram os concretos pontos de facto de cuja decisão discordam, bem como os meios de prova que, no seu entendimento, impõem decisão diversa, apontando ainda a decisão que se lhes afigura que seria a mais correta em face desses meios de prova, exceto:


- no que tange aos factos não provados sob 6. a 21., com respeito aos quais foi efetuada impugnação conjunta, e foi indicada prova testemunhal que justificaria decisão diversa, elencando-se os nomes das testemunhas HH, II, JJ, KK, LL, MM, NN, OO e PP, sem se indicarem as passagens da gravação onde se contêm os segmentos destes depoimentos que são relevantes, nem se proceder à sua transcrição, com ressalva do depoimento da testemunha HH.


Aliás, ainda em sede de impugnação da decisão de facto, mas numa apreciação global da motivação do Tribunal a quo, os AA. acrescentam à lista antecedente os nomes das testemunhas VV, WW, EE e XX, de igual modo, sem indicação dos segmentos relevantes de tais depoimentos, nem a respetiva transcrição.


Ora, no que tange à impugnação conjunta, a mesma só é admissível quando os factos englobados na mesma impugnação estejam conexos, como se decidiu, entre outros, no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 01.06.2022 (Mário Belo Morgado) (Processo n.º 1104/18.9T8LMG.C1.S1, in http://www.dgsi.pt/):


“II - A impugnação da matéria de facto deve, em regra, especificar os concretos meios probatórios que impunham decisão diversa da recorrida, relativamente a cada um dos pontos da matéria impugnada.


III - Tendo em conta os princípios da proporcionalidade e da razoabilidade ínsitos no conceito de processo equitativo (artigo 20.º, n.º 4, da CRP), nada obsta a que a impugnação da matéria de facto seja efetuada por “blocos de factos”, quando os pontos integrantes de cada um desses blocos apresentem entre si evidente conexão e, para além disso - tendo em conta as circunstâncias do caso concreto, nomeadamente, o número de factos impugnados e a extensão e conexão dos meios de prova -, o conteúdo da impugnação seja perfeitamente compreensível pela parte contrária e pelo tribunal, não exigindo a sua análise um esforço anómalo, superior ao normalmente suposto.”


Relativamente à prova gravada, a indicação das passagens relevantes ou a sua transcrição só é dispensável quando a respetiva omissão não dificulte gravemente o exercício do contraditório e o exame pelo tribunal de recurso, como se decidiu no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 03.10.2019 (Lopes do Rego) (Processo n.º 77/06.5TBGVA.C2.S2, in http://www.dgsi.pt/):


“I. Para efeitos do disposto nos artigos 640º e 662º, nº 1, ambos do Código de Processo Civil, impõe-se distinguir, de um lado, a exigência da concretização dos pontos de facto incorretamente julgados, da especificação dos concretos meios probatórios convocados e da indicação da decisão a proferir, previstas nas alíneas a), b) e c) do nº1 do citado artigo 640º, que integram um ónus primário, na medida em que têm por função delimitar o objeto do recurso e fundamentar a impugnação da decisão da matéria de facto.


E, por outro lado, a exigência da indicação exata das passagens da gravação dos depoimentos que se pretendem ver analisados, contemplada na alínea a) do nº 2 do mesmo artigo 640º, que integra um ónus secundário, tendente a possibilitar um acesso mais ou menos facilitado aos meios de prova gravados relevantes para a apreciação da impugnação deduzida.


II. Na verificação do cumprimento dos ónus de impugnação previstos no citado artigo 640º, os aspetos de ordem formal devem ser modelados em função dos princípios da proporcionalidade e da razoabilidade.


III. Nesta conformidade, enquanto a falta de especificação dos requisitos enunciados no nº1, alíneas a), b) e c) do referido artigo 640º implica a imediata rejeição do recurso na parte infirmada, já, quanto à falta ou imprecisão da indicação das passagens da gravação dos depoimentos a que alude o nº 2, alínea a) do mesmo artigo, tal sanção só se justifica nos casos em que essa omissão ou inexatidão dificulte, gravemente, o exercício do contraditório pela parte contrária e/ou o exame pelo tribunal de recurso.


IV. Tendo os recorrentes indicado, nas suas alegações de recurso, apenas o início e o termo de cada um dos depoimentos das testemunhas e das declarações de parte, sem acompanhar essa indicação de qualquer transcrição dos excertos das declarações e depoimentos tidos pelos recorrentes como relevantes para o julgamento do objeto do recurso, impõe-se concluir que os recorrentes não cumpriram o núcleo essencial do ónus de indicação das passagens da gravação tidas por relevantes, nos termos prescritos nº art. 640º, nº 2, al. a) do CPC, na medida em que, nestas circunstâncias, a falta de indicação das passagens concretas de tais excertos torna extramente difícil, quer a respetiva localização por parte do Tribunal da Relação, quer o exercício do contraditório pelos recorridos.”


No caso em apreço, os factos sindicados pelos AA. estão globalmente interligados, pelo que é admissível a impugnação conjunta.


Relativamente aos depoimentos, verifica-se que as nove testemunhas inicialmente indicadas nas alegações correspondem à totalidade da prova testemunhal que os AA. arrolaram, e, se levarmos em linha de conta as quatro testemunhas que foram acrescentadas mais adiante nas alegações, teremos toda a prova testemunhal arrolada por ambas as partes, treze testemunhas, sendo que os AA. só transcrevem o excerto do depoimento de uma destas testemunhas.


É, pois, evidente que a omissão da identificação das passagens relevantes ou a sua transcrição dificultam gravemente o exame da prova pelo Tribunal da Relação, atendendo a que se trata de ouvir integralmente doze depoimentos, com referência à impugnação de dezasseis factos não provados.


Na realidade, semelhante procedimento traduzir-se-ia na realização de um segundo julgamento pelo Tribunal da Relação, o que não corresponde à finalidade dos recursos, como se disse acima.


Assim, deve ser rejeitada a impugnação da decisão de facto na parte relativa à prova testemunhal invocada com respeito aos factos não provados sob 6. a 21., exceto no que concerne ao depoimento da testemunha HH.


3.3. Importa ainda assinalar que, por força do atual regime de recursos compete ao Tribunal da Relação apreciar a prova sindicada pelo recorrente, de acordo com as regras legais pertinentes, em ordem a formar a sua própria convicção, “por isso, a Relação poderá e deverá modificar a decisão da matéria de facto se e quando puder extrair dos meios de prova, com ponderação de todas as circunstâncias e sem ocultar também a livre apreciação da prova, um resultado diferente que seja racionalmente sustentado.” (Abrantes Geraldes, Recursos em Processo Civil, 7ª ed., Coimbra, 2022, p. 348).


Não se trata, no entanto, de um poder de modificação irrestrito, precisamente porque não se visa proferir uma decisão inteiramente nova, mas apenas de reapreciar a decisão proferida pela 1ª Instância, assim, “se a Relação, procedendo à reapreciação dos meios de prova postos à disposição do Tribunal a quo, conseguir formar, relativamente aos concretos pontos impugnados, a convicção acerca da existência de erro, deve proceder à correspondente modificação da decisão.” (Abrantes Geraldes, ob. cit., p. 350).


No mesmo sentido se decidiu no Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 02.11.2017 (Maria João Matos) (Processo n.º 501/12.8TBCBC.G1, in http://www.dgsi.pt/) que:


“I. O uso, pela Relação, dos poderes de alteração da decisão da 1ª Instância sobre a matéria de facto só deve ser usado quando seja possível, com a necessária segurança, concluir pela existência de erro de apreciação relativamente a concretos pontos de facto impugnados, nomeadamente por os depoimentos prestados em audiência, conjugados com a restante prova produzida, imporem uma conclusão diferente (prevalecendo, em caso contrário, os princípios da imediação, da oralidade, da concentração e da livre apreciação da prova).


4. Passamos à apreciação da impugnação da decisão de facto.


4.1. Factos provados


- Facto provado sob 10.


Consta deste facto que “Autor e réu acordaram com a mãe que o imóvel seria comprado em nome do réu, para poderem aceder ao crédito bancário com juros bonificados concedidos a emigrantes, num empréstimo a contrair junto do Banco Espírito Santo para pagamento de parte do preço do imóvel”.


Pretendem os AA. que a redação do facto exposto seja alterada nos seguintes termos: “Autor e réu acordaram que o imóvel seria para o Autor, mas comprado em nome do réu, para poderem aceder ao crédito bancário com juros bonificados concedidos a emigrantes, num empréstimo a contrair junto do Banco Espírito Santo para pagamento de parte do preço do imóvel”.


Os AA. sustentam a impugnação:


- na interpretação da carta junta como doc. 2 com a cont., sublinhando que consta desta carta que “Bom, tudo isto é assunto para ser discutido pessoalmente em família”, excerto de onde se extrai que aquilo que se mostra aí relatado corresponde apenas a conversas preliminares sobre a compra do prédio;


- no depoimento do A., do qual transcrevem um excerto.


O Tribunal a quo motivou assim a sua resposta:


“No que respeita ao negócio de aquisição do imóvel as posições das partes nos articulados são completamente opostas. O autor afirma que a compra, ainda que titulada em nome do irmão, foi ele (autor) quem negociou as condições de aquisição e pagou o preço, embora o irmão, aqui réu, lhe tenha feito o favor de contrair um empréstimo em seu nome, ao abrigo de condições especiais atribuídas aos emigrantes, para fazer o pagamento, mas que lhe devolveu a totalidade do valor do empréstimo. Os réus, por sua vez, afirmaram, na contestação, que foram eles quem adquiriu o imóvel, como forma de investimento, e quem pagou o preço, com recurso às suas economias e com o empréstimo que contraíram. Admitido que a mãe de ambos tenha pago algumas prestações.


Todavia, em audiência, os réus apresentaram uma versão ligeiramente diferente: o afirmaram que nunca consideraram que o imóvel fosse seu, que o imóvel é de todos, referindo-se a si e aos irmãos, porque foi a sua mãe quem pagou parte do valor. O réu referiu não se recordar como foi feito o pagamento no ato da escritura de compra e venda, que julga terá sido feito através do banco, mas sabe que as prestações do empréstimo foram pagas através da sua conta e que a mãe suportou parte das prestações do empréstimo bancário.


Para além das versões do autor e dos réus, temos os documentos que foram juntos aos autos e dos quais não se pode retirar que tenha sido o autor ou o réu quem fez os pagamentos que cada um alega ter feito, quer relativamente ao pagamento do preço do imóvel, quer relativamente às obras que foram feitas. Os documentos que titulam os pagamentos estão juntos ao processo, mas nenhum faz prova de quem pagou os valores neles inscritos.


O autor entende que a posse dos documentos prova que foi ele quem pagou as quantias neles inscrita. O réu, em nome de quem quase a totalidade dos documentos estão emitidos, entende que isso demonstra que foi ele que pagou.


Esses documentos têm que ser apreciados conjugadas com as demais provas e à luz daquilo que foram os negócios e acordos entre autor e réu e a mãe de ambos.


Com muito interesse para a compreensão do negócio que está subjacente aos autos, temos a correspondência trocada entre o autor, os réus e a mãe, e que consta dos documentos 1 a 4 da contestação. Dessa correspondência o que se retira é que, não obstante o autor esteja envolvido na negociação da compra, quem quer avançar para o negócio da compra do imóvel é a mãe, e é esta quem tem dinheiro para avançar com o negócio, sendo sua intenção comprar o prédio para os três filhos, passar para lá o negócio da mercearia e ter lá os filhos a trabalhar juntos. Veja-se o que o autor escreve ao réu na carta de 10.3.1985: “Em relação à compra da casa a mãe aceitou comprá-la (…) o que a mãe sempre quis e quer é comprar a casa e pô-la em nome dos três filhos. Eu não a contrariei, porque o dinheiro é dela, e tenho feito tudo para que ela compre a casa , como te pedir para seres tu a fazê-lo embora a mãe te reembolse desse valor (…) se te for possível fazê-lo e estiveres de acordo com aquilo que a mãe quer (…) todos podemos ter um local de trabalho.”


A versão que resulta das cartas, que se aproxima da que os réus apresentaram depois em audiência, é a mais plausível, e que explica todo o comportamento do autor e dos réus ao longo destes quase 40 anos. Versão, essa, que não é contrariada pela documentação junta pelo autor ao processo.


A mãe do autor e do réu, foi retratada em audiência como uma pessoa ativa, trabalhadora e com visão para o negócio. Explorava dois estabelecimentos comerciais na mesma rua e tinha dinheiro próprio, conforme foi referido pela testemunha EE, irmã do autor e do réu e pela testemunha JJ, que desde 1970 trabalhou na mercearia de que ela era proprietária. Era uma pessoa que movimentava contas bancárias, fazia investimentos e poupanças, é o que resulta dos documentos bancários juntos pelo autor como documentos n.º s126 a 133, 136, 137, 140 a 159, 161 a 195 204 e 207, da petição.


Nas cartas trocadas entre o autor e o réu, nunca o autor referiu que iria ele próprio comprar o imóvel ou que tinha dinheiro para isso. O que o autor pretendia era um local de trabalho, como já tinha junto da mãe. Veja-se a carta de 10 de Março de 1985, onde ele diz que aceita aquilo que a mãe quiser fazer, que está disposto a ajudar no que for preciso e que está disposto a trabalhar nos próximos anos sem ver lucro para poder trabalhar nesse comércio com segurança.


Nem autor nem réu apresentaram qualquer prova de que tenham pago o valor entregue no ato da escritura de compra e venda. No que respeita ao pagamento das prestações do empréstimo contraído em nome do réu, foram pagos por débito na conta bancária do réu no Banco Espirito Santo (...) para onde a mãe transferia os referidos valores através da sua conta no mesmo banco (...), é o que retratam os documentos n .º s126 a 133, 136, 137, 140 a 159, 161 a 195 204 e 207 juntos com a petição.


Não convenceu a argumentação do autor quando refere que ele depositava o dinheiro para pagamento do empréstimo na conta da mãe e desta ia para a conta do irmão. Versão que seria compatível com as transferências da conta da mãe para a conta do irmão, porque nenhum documento juntou que demonstre que tivesse feito qualquer depósito ou transferência para a conta do irmão. Mesmo para a conta da mãe, o autor não provou ter feito qualquer transferência de valores de conta sua, ou depositado cheques seus. Os talões de depósito que juntou a provar depósitos em numerário na conta da mãe, assinados por si, (docs. 160, 196 a 199, 201-202, 205, 206, 209, 218 a 222, 236 a 241, 244 a 247), não demonstram a origem do dinheiro, muito menos que o dinheiro fosse seu. É que trabalhando o autor juntamente com a mãe, numa altura em que muitos pagamentos se faziam em numerário, é normal que quer o autor quer a mãe se dirigissem ao banco depositar os valores do negócio. Esses talões de deposito são semelhantes aos que se encontram juntos ao processo também feitos pela mãe na mesma conta (dos. 214, 224 a 234, 242 a 243 da petição).


Relativamente ao réu, seria fácil fazer a prova de ter pago as prestações do empréstimo juntando os extratos da conta de onde resultasse que ele réu abastecia a conta com os valores necessários para fazer os pagamentos, o que que não fez.


O mesmo se diga relativamente aos pagamentos das obras e serviços relacionados com a reconstrução do prédio e instalação do negócio no local. A documentação, quase na sua totalidade, está em nome do réu não demonstra que tivesse sido o réu a pagar os valores que estão inscritos. Muito menos resultou que tivesse sido o autor, que, dentro da vasta documentação que juntou ao processo, não consta um único extrato da sua conta bancária a demonstrar ter pago seja o que for. E o facto algumas testemunhas a dizer que foi o autor que lhes pagou os serviços que prestaram nas obras, como foi o caso de RR, PP e SS, tal não significa que o dinheiro desses pagamentos fosse do autor ou do réu. O autor trabalhava com a mãe, a mãe era a dona do negócio, foi a mãe que decidiu comprar o prédio, na carta de 6 de Fevereiro de 1985, o autor diz ao réu que se ele aceitar fazer o empréstimo para a compra do imóvel , “a mãe ficaria com algum dinheiro para fazer algumas obras e passar o comércio para lá”. Além disso, foi dito pelo réu no seu depoimento e pela testemunha YY, que a mãe vendeu o estabelecimento de gelataria e o valor dessa venda terá sido usado nas obras.


O facto de os documentos estarem em poder do autor não indica que tenha sido ele fazer os pagamentos. O que ficou provado, e que resulta das versões do autor e do réu, foi que quando se desentenderam, numa altura em que o prédio estava concluído o negócio pronto a funcionar, o réu afastou-se e não mais voltou ao local ou reivindicou o que quer que fosse, e nesse local, onde também se encontravam os pertences da mãe que residia no prédio, com elevada probabilidade, ficou toda a documentação que o autor, que aí permaneceu e acompanhou a mãe o resto da sua vida, agora junta ao processo.


A convicção do tribunal relativamente ao negócio de compra do prédio, reconstrução e colocação em funcionamento do estabelecimento, é a de que a mãe do autor e do réu, detentora de algum capital que havia amealhado com os seus negócios, idealizou, organizar um negócio para a família e nele investiu o dinheiro que tinha e que foi auferindo com o negócio que já vinha desenvolvendo. Em todo este processo, em que os dois filhos estiveram empenhados e trabalharam juntos, é possível que também estes tenham despendido alguns valores no pagamento de um ou outro serviço ou compra, mas maioritariamente terá sido a mãe que investiu no prédio. E esta versão da qual o tribunal se convenceu tem sustentação, além das provas que já foram referidas, no comportamento tanto do autor como do réu nos mais de trinta anos que se passaram desde a zanga que tiveram: enquanto a mãe foi viva nenhum dos dois fez nada, o réu que tem o direito de propriedade sobre o prédio registado em seu nome não o reivindicou do autor, e este, que alegadamente pagou tudo desde a aquisição até à instalação do estabelecimento, manteve-se despojado da sua suposta propriedade, sem nada fazer para fazer valer o seu alegado direito sobre o prédio e obrigar o réu a transferir a propriedade do prédio. A mãe era a testemunha direta dos factos que um e outro alegam, mas que, nem um nem outro, quiseram que fosse considerada para resolver o diferendo que mais cedo ou mais tarde teriam que enfrentar.


A prova dos factos enunciados sob os números 8, 9, 10, resulta do teor dos documentos 1 e 2 da contestação.”


Assim, com respeito à argumentação expendida pelos AA., sublinhe-se que ainda que o assunto em causa devesse ser falado mais tarde, pessoalmente, em família, os AA. apenas alegam, a este respeito, que mediaram cerca de sete meses entre a carta aludida na motivação e a celebração da escritura, “período dentro do qual outras conversas e circunstâncias foram acordadas entre as partes”.


Porém, esta alegação é manifestamente insuficiente, pois nada concretiza sobre as aludidas conversas – onde se realizaram, quando, quem esteve presente, o que foi dito - e, sobretudo, não indica qual ou quais os meios de prova que demonstram essas conversas.


Por outro lado, lido o excerto do depoimento do A. que os AA. transcrevem, verifica-se que o A. afirma aí que foi ele quem comprou o prédio.


Contudo, a afirmação pelo A. da versão dos factos que o próprio propugna não tem o condão de determinar necessariamente que se julgue provada essa versão, desde logo, porque existe nos autos uma versão antagónica desta.


Efetivamente, decidiu-se no acima citado Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 02.11.2017 que “II. O recorrente que pretenda contrariar a apreciação crítica da prova feita pelo Tribunal a quo terá de apresentar razões objectivas para contrariar a prevalência dada a um meio de prova sobre outro de sinal oposto, ou o maior crédito dado a um depoimento sobre outro contrário, não sendo suficiente para o efeito a mera transcrição de excertos de alguns dos depoimentos prestados, já antes ouvidos pelo julgador sindicado e ponderados na sua decisão recorrida (art. 640º do C.P.C.).”


Os AA. apontam, então, que a versão dos RR. de que foram eles que compraram o prédio carece de credibilidade, na medida em que em audiência modificaram essa versão, declarando que só pagaram uma parte do preço e a mãe pagou o remanescente, pelo que, afinal, o prédio pertence a todos, isto é, à mãe e aos três filhos (o A., o R. e a testemunha EE), e não foram capazes de explicar o pagamento do preço, nem possuíam recursos económicos para o efeito.


Acresce que nunca reclamaram para si o que quer que fosse do prédio em causa ao longo de cerca de 40 anos, o que é revelador de que sabiam que o prédio não lhes pertence.


Mas resulta, precisamente, da motivação do Tribunal a quo o reconhecimento dessa falta de credibilidade da versão dos RR., tanto assim que foi julgado não provado que tenha sido o R. a pagar o preço (facto não provado sob 23.).


Sem prejuízo, assinale-se que o argumento esgrimido pelos AA. no sentido de que a falta de razão dos RR. assoma na circunstância de nunca terem reclamado o que quer que fosse ao longo de 40 anos é, na realidade, reversível, como bem aponta o Tribunal a quo, pois também os AA. nada reclamaram ao longo desses mesmos quarenta anos e, ao contrário dos RR., não possuem qualquer título de aquisição – a escritura de compra e venda foi celebrada exclusivamente pelos RR., que têm a seu favor a inscrição definitiva de aquisição no registo predial.


Advogam ainda os AA. que mesmo a versão avançada em audiência pelos RR. de que foi a mãe quem pagou parte do preço não é correta, na medida em que o Tribunal a quo considerou, neste sentido, os depoimentos dos RR. e da testemunha EE, referindo que nos últimos quase 40 anos de vida os RR. nunca mais falaram com a mãe, e que desde que saiu do Praia 1, há 40 anos, a testemunha EE nunca mais teve contacto com a mãe, pelo que não podia saber se esta tinha ou não economias.


E alegam também que a testemunha JJ referiu que a mãe do A. e do R. era analfabeta e era a testemunha quem lhe preenchia os cheques.


Ora, a escritura pública de compra e venda foi outorgada há precisamente 40 anos, no ano de 1985, pelo que se a testemunha EE manteve contacto com a mãe até há 40 anos, então é verosímil que fosse conhecedora da sua situação financeira na data do negócio, o mesmo sucedendo com os RR..


Aliás, no que tange aos RR., a correspondência junta aos autos revela adicionalmente que o negócio foi detalhadamente discutido entre a mãe e os dois irmãos.


A este respeito deve sublinhar-se, desde logo, que ao contrário do que alegam os AA., é absolutamente evidente que há quatro cartas juntas aos autos e não três, e que uma dessas cartas é a resposta do R. à proposta formulada pelo A..


Consta, assim, o seguinte das cartas juntas como docs. 1 a 4 com a cont.:


- carta dirigida pelo A. ao R., datada de 06.02.1985, na qual o A. explica a sua ideia de compra do prédio: “Todo este assunto tem sido tratado com a ajuda do “GG” e ele falou-me na possibilidade de seres tu a comprar, pois que com “mil e quinhentos contos” em moeda francesa levantarias três mil contos cá num Banco, com uma taxa de juro de 12%, com amortização em doze anos, ou seja, ter tudo pago ao Banco ao fim de doze anos, pagando mensalmente o valor que de momento não sei. Se estiveres de acordo e te for possível, a mãe ficaria com dinheiro para fazer algumas obras e passar o comércio para lá.” (doc. 2 junto com a cont.);


- carta dirigida pelo R. ao A., datada de 19.02.1985, na qual o R. responde à proposta do A. formulada na carta que antecede: “AA cá recebi a tua carta (…) vejo que me queres meter em trabalhos (…) não vejo nada contra; é mais um sacrifício, em não gastar o dinheiro noutra coisa.


Pois eu já tinha na ideia em gastar algum dinheiro este ano, e tu metes-me a gastar mais do que eu já tinha previsto.


Para te ser franco, só há a possibilidade de o fazer com a poupança crédito, e mesmo assim não terei a massa toda. Mas caso a mãe tape um buraco, realiza-se.” (doc. 4 junto com a cont.);


- carta dirigida pelo R. à mãe, datada de 28.02.1985, na qual o R. explica à mãe o ponto da situação quanto ao negócio proposto pelo irmão, na sequência da resposta que deu ao irmão: “Mãe após a carta do AA vejo que me querem por nos vossos planos, e ao mesmo tempo fazerem-me gastar dinheiro: para mim não vejo nada contra.


Mas a mãe deve imaginar que eu não tenho a quantia disponível que o ZZ pede, mas com a formula crédito poupança de emigrantes e se a mãe me ceder o resto como empréstimo é possível fazer a compra. (…)


Mais se tem dinheiro é seu; faz do dinheiro o emprego ou destino que lhe apetecer (…) Porque o dinheiro que tem ganho-o com bastantes privações e sacrifícios a pensar como teria as suas economias” (doc. 3 junto com a cont.);


- carta dirigida pelo A. ao R., datada de 10.03.1985, onde o A. escreve o seguinte: “A mãe aceitou comprá-la pelo pedido feito do “ZZ”, isto é, os “seis mil e quinhentos contos” e tal como te escrevi na outra carta, na possibilidade de seres tu a comprar com as ditas facilidades de emigrante, isso viria a ajudar muito. A carta que escreveste à mãe deixou-a ficar um bocado confusa, o que a fez perguntar-me o que eu te tinha escrito, dada a interpretação que fizeste. Eu expliquei-lhe que te tinha escrito para seres tu a comprar a casa (…)


(…) o que a mãe sempre quis e quer é comprar a casa e pô-la em nome dos três filhos. Eu não a contrariei, porque o dinheiro é dela, e tenho feito tudo para que ela compre a casa, como te pedir para seres tu a fazê-lo embora a mãe te reembolse desse valor” (doc. 1 junto com a cont.).


Destas cartas resulta, pois, ao contrário do que sustentam os AA. nas suas alegações, que o R. não agiu nas costas do A. e não tentou convencer a mãe a fazer coisa diferente do que havia combinado com o A..


Quem propôs ao R. a compra do prédio foi o A. e, na resposta a esta proposta, o R. explicou direta e claramente ao irmão que a mesma não era inteiramente viável, pois apesar de ter economias, não eram suficientes para cobrir aquele valor e, por isso, adiantou, de imediato, ao irmão que o negócio só poderia concretizar-se nos moldes que este lhe propôs se a mãe pagasse uma parte do preço.


Deste modo, na carta seguinte, dirigida à mãe, o R. limita-se a repetir o que já havia dito ao irmão, sublinhando que não pretendia que a mãe suportasse esse encargo, pelo que a quantia que a mãe adiantasse seria por ele considerada um empréstimo, portanto, uma quantia que o R. restituiria à mãe.


Por outro lado, a referida carta que o R. dirigiu à mãe foi do conhecimento do A., pois o A. foi interpelado pela mãe para a esclarecer sobre o que tinha dito ao irmão acerca do negócio, atento o teor da carta que a mãe tinha recebido, como decorre do relato feito pelo A. ao R. na carta seguinte que lhe dirigiu, datada de março, onde o A. informa adicionalmente o irmão que aquilo que ele viesse a gastar com a compra do imóvel ser-lhe-ia reembolsado pela mãe. Ou seja, apesar da compra ser formalizada pelo R., para beneficiar das condições favoráveis dos empréstimos concedidos aos emigrantes, os encargos com a aquisição seriam suportados pela mãe.


Acentuamos ainda que, nesta correspondência, em momento algum o A. se propõe ele próprio avançar com qualquer quantia, sendo o negócio gizado sempre para ser pago pelo irmão ou pela mãe.


E, nessa correspondência, reconhecem ambos, A. e R., que a mãe tinha economias.


Trata-se, além do mais, de facto que se enquadra na demais matéria de facto provada, de onde decorre que os estabelecimentos comerciais foram criados pela mãe do A. e do R. (facto provado sob 4.) e que o A. foi trabalhar com os pais nesses estabelecimentos (facto provado sob 6.).


Ou seja, não faria sentido que sendo a mãe do A. e do R. titular de estabelecimentos comerciais, que explorava diretamente, não possuísse rendimentos da sua atividade.


Por outro lado, a circunstância da mãe ser analfabeta não implica necessariamente que fosse uma pessoa incapaz de gerir negócios e o fazer de forma rentável, sobretudo se tivermos em consideração que estamos a falar de acontecimentos ocorridos há mais de 40 anos, numa época em que as burocracias eram menores e os níveis de literacia da população eram globalmente mais baixos.


Aliás, os AA. admitem, nas suas alegações, que a mãe do A. “foi uma comerciante e com alguma visão para o negócio”.


No que concerne à prova documental, os AA. sustentam que se há talões de depósitos efetuados pelo A. e se tais talões se encontram na sua posse, então estes factos demonstram que o dinheiro depositado era seu.


Porém, como salientou o Tribunal a quo, a circunstância dos depósitos terem sido efetuados pelo A. não implica necessariamente que o dinheiro depositado fosse seu, atentas as circunstâncias.


Com efeito, tratou-se sempre de depósitos em numerário, não tendo sido feito o rastreio destas quantias, isto é, não foi demonstrada a proveniência do dinheiro.


Por outro lado, o A. trabalhava com a mãe e, de entre os talões de depósitos juntos aos autos, encontram-se, além dos depósitos efetuados pelo A., outros realizados pela mãe, também relativos a numerário, e todos destinados a uma conta bancária identificada como sendo da titularidade da mãe, conforme consta expressamente dos referidos talões.


Assinale-se ainda que a afirmação dos AA. de que essa conta era conjunta da mãe e do A. não encontra qualquer eco na prova produzida, pois como se disse acima, a conta surge identificada como sendo da titularidade da mãe, não se fazendo aí ou noutro doc. qualquer referência a um segundo titular.


Em conclusão, da motivação transcrita resulta que o Tribunal a quo analisou de forma detalhada e rigorosa a prova produzida nos autos, retirando conclusões que se afiguram inteiramente plausíveis à luz das regras da experiência comum e que não são abaladas pela argumentação expendida pelos AA..


Deve, portanto, manter-se inalterado o facto provado sob 10..


- Facto provado sob 21.


Consta o seguinte deste facto: “Após a reconstrução, a mãe do autor e do réu passou a habitar o 3º andar, onde residiu até poucos anos antes da sua morte, quando foi morar para um lar”.


Os AA. pretendem a alteração do facto nos seguintes termos: ““Após a reconstrução, a mãe do autor e do réu passou a habitar o 3º andar, cedido pelo autor, onde residiu até poucos anos antes da sua morte, quando foi morar para um lar”.


Os AA. sustentam a impugnação no depoimento do A., do qual transcrevem um excerto, e lido o mesmo, verifica-se ser aí afirmado pelo A. que ofereceu a casa à mãe para ela morar.


Pese embora os AA. declarem que esta afirmação do A. não foi contrariada por qualquer pessoa, é evidente que semelhante versão dos factos colide frontalmente com a rejeição da versão de que o prédio foi adquirido pelo A., pois só se o A. tivesse adquirido o prédio é que faria sentido a aludida oferta.


Assim, atento o que se julgou provado sob 10., deve manter-se inalterado o facto 21..


- Facto provado sob 22.


O Tribunal a quo julgou provado que “A 28 de Abril de 1989 o réu BB declarou dar de arrendamento à sociedade FF, Lda. por si representada, a loja correspondente ao prédio referido em 17, supra, para o exercício da atividade comercial de mercearia, pelo prazo de 1 ano, renovável, mediante o pagamento da renda mensal de 20.000$00; (Doc. 5 contestação)”


Pretendem os AA. que seja aditado a este facto o seguinte segmento: “tal contrato foi outorgado unilateralmente pelos aqui Recorridos, do qual nunca foi dado conhecimento aos Recorrentes”.


Em suporte desta impugnação, os AA. limitam-se a remeter para o doc. 6 junto com a cont., sem que esclareçam de que modo a escritura de arrendamento infirma o que se mostra aqui provado.


Consignou o Tribunal a quo na motivação desta resposta que “É facto adquirido das versões, nesta parte coincidentes, do autor e do réu, que com vista a explorar o negócio de mercearia/supermercado no prédio reconstruído foi constituída uma sociedade comercial da qual os dois ficaram sócios. Embora o autor negue ter sido celebrado um contrato de arrendamento que o réu juntou como documento n.º 5 da contestação, tal contrato além de celebrado por escritura pública, numa data em que o autor e o réu ainda estavam de boas relações, era necessário para a sociedade comercial, entidade jurídica diferente do autor e do réu, poder explorar o estabelecimento no prédio que se encontrava registado em nome do réu, e poder pedir a licença necessária em seu nome junto da Câmara Municipal, como efetivamente veio a acontecer. (dos. 12 da petição)”.


Assim, apesar de na escritura pública apenas ter tido intervenção o R., em nome próprio e em representação da sociedade comercial, desse facto não decorre necessariamente que o A. desconhecesse o contrato, atendendo ao demais circunstancialismo referido pelo Tribunal a quo na motivação, em concreto, o facto dos irmãos manterem o contacto nessa data.


No mais, isto é, quanto ao aludido doc. 12 junto com a petição inicial, trata-se de um “alvará de licença sanitária” concedido à sociedade FF, Lda., “para explorar um estabelecimento de mercearia (…) instalado no prédio BB”, não se fazendo aí menção ao contrato de arrendamento.


Não está, assim, demonstrado que para a concessão da licença tenha sido ponderado o contrato de arrendamento, porém, não está também demostrado o contrário.


Com efeito, não se conhecem os termos completos do processo de licenciamento, em particular, quais os documentos e informações solicitados e fornecidos, a que acresce a circunstância do alvará obedecer a um modelo pré-elaborado, no qual são apenas consignados os elementos correspondentes aos campos que dele constam.


Deve, em face de todo o exposto, manter-se inalterado o facto 22..


- Facto provado sob 25.


Está provado que “Durante o ano de 1989 o autor e o réu trabalharam em conjunto para por o negócio a funcionar”.


Pretendem os AA. que este facto seja julgado não provado, invocando, em suporte desta pretensão, o depoimento do R., do qual transcrevem um excerto.


A este propósito escreveu o Tribunal a quo que “Os factos provados sob os pontos 25, 26, e 27, são a versão admitida desses acontecimentos pelos autor e réus.”


Ora, no excerto transcrito, o R. responde que esteve no supermercado, pela última vez, no ano de 1988, porém, não se limita a apontar essa data, antes identifica o evento associado a tal data, dizendo: “Foi 8 dias antes do supermercado abrir”.


Compulsada a matéria de facto provada constata-se que as obras do edifício ficaram concluídas em 1989 (facto provado sob 20.) e que em 09.06.1989 foi concedida licença sanitária à sociedade FF, Lda., para a instalação de um estabelecimento de mercearia no prédio (facto provado sob 23.).


Aliás, no artigo 53º da petição inicial os AA. assumem que o início da exploração do estabelecimento se situou em 1989 e, no artigo 49º da petição inicial declaram que os RR. deixaram de comparecer no imóvel logo após o licenciamento do prédio.


Assim, a presente impugnação envolve uma flagrante contradição com o que os AA. alegaram na petição inicial a este respeito.


Em conclusão, não pode extrair-se do depoimento do R. que este esteve no supermercado pela última vez em 1988, mas sim em 1989, atendendo ao evento que constitui a referência com base na qual o R. indicou a referida data e, bem assim, o que os próprios AA. referem a este respeito na petição inicial.


Deve, consequentemente, manter-se inalterado o facto 25..


- Facto provado sob 29.


Está provado que “Desde 1989, tem sido o autor quem, através da sociedade, e com a ajuda da sua progenitora, prosseguiu com a exploração do supermercado instalado no imóvel e ajudou a mãe na mercearia”.


Os AA. alegam ser parcialmente falso o que se mostra aqui consignado, mas não propõem qualquer alteração ao facto em apreço, antes requereram que fosse julgado não provado.


Relativamente aos meios de prova que suportam esta impugnação, remetem para o excerto do depoimento do A. transcrito na impugnação ao facto 10..


O Tribunal a quo motivou, assim, a sua resposta: “O mesmo se diga relativamente aos factos provados sob os pontos 29, 30 e 31. Ambas as partes os admitem tal como foram provados e resulta dos documentos 414 a 452 da petição, maioritariamente emitidos em nome da sociedade.


Desde 1989 até 2023 a relação entre o autor e os réus foi pacifica, porque o réu afastou-se do prédio e dos negócios, permitindo que o autor aí ficasse a explorar o estabelecimento instalado no prédio juntamente com a mãe.”


No aludido excerto do seu depoimento o A. afirma que era ele quem explorava a mercearia, e não a mãe, apesar da mãe o ajudar.


Compulsados os articulados, vemos que este facto proveio do artigo 56º da petição inicial, onde os AA. alegam que “Perante a ausência dos RR., o A. seguiu trabalhando com a ajuda da progenitora, UU, no estabelecimento de mercearia que esta possuía nessa mesma Rua 2 e, bem assim, explorando o novo estabelecimento constituído naquele identificado prédio, sito no nº 10, da Rua 2, em Praia 1.”


No artigo 56º da contestação, os RR. impugnam este facto, conjuntamente com outros, ainda que da subsequente fundamentação decorra que não discutem o facto de que era o A. quem explorava o supermercado.


Assim, a forma como os AA. se expressam naquele artigo 56º da petição inicial aponta no sentido da afirmação de uma diferença essencial: o negócio da mercearia é da mãe (“estabelecimento de mercearia que esta possuía”), nele trabalhando o A. e a mãe, ainda que ali se indique o trabalho do A. como prevalente; o negócio do supermercado é da sociedade constituída entre o A. e o R., sendo explorado pelo A..


Em face desta diferença essencial, afigura-se correto o teor deste facto em apreço, no qual se distinguem aquelas duas realidades, isto é, a mercearia da mãe e o supermercado da sociedade.


Deve, consequentemente, manter-se inalterado o facto 29..


4.2. Factos não provados


- Facto não provado sob 2.


Foi julgado não provado que “O senhorio tenha proposto ao autor a venda do prédio pelo preço de quatro milhões e quinhentos mil escudos”.


Pretendem os AA. que este facto seja julgado provado, com a seguinte redação: “O senhorio aceitou a venda do prédio pelo preço de quatro milhões e quinhentos mil escudos, conforme proposta do autor”.


Os AA. ancoram a sua pretensão no doc. 2 junto com a cont. e no doc. 7 junto com a p.i., bem como no depoimento do A., do qual transcrevem um excerto.


Todavia, comparando a redação da sentença e aquela que é sufragada pelos AA. no recurso verificamos que, na realidade, são convergentes, uma vez que se a proposta do preço foi apresentada pelo A., como é alegado pelos próprios, então semelhante proposta não proveio do senhorio.


Logo, é exato o facto não provado sob 2..


Sem prejuízo, assinale-se que o doc. 7 junto com a petição inicial é a escritura de compra e venda, da qual decorre tão somente o preço da aquisição, facto já provado sob 11., e o doc. 2 junto com a cont. é uma carta dirigida pelo A. ao R., onde este lhe comunica que está a negociar o preço com o vendedor, mas que não conseguiu, até àquela data, que o vendedor baixasse do valor de seis mil e quinhentos contos: “neste momento, a minha oferta é “cinco mil contos” e ele ficou-se nos “seis mil e quinhentos contos”.


Ou seja, é evidente que a carta referida não demonstra o facto alegado pelo A..


A mesma evidência assoma no depoimento do A. que se mostra transcrito, pois este diz: “o valor da casa, que o senhorio pediu, foi de 4.500 contos”.


Em conclusão, deve manter-se inalterado o facto não provado sob 2..


- Facto não provado sob 4.


Foi julgado não provado que “O autor e os réus tenham acordado que estes contrairiam um crédito bancário e comprariam o imóvel e que o autor os reembolsaria da totalidade do valor empréstimo contraído junto da instituição bancária, e, logo que estivesse liquidado, o empréstimo, os réus transmitiriam a propriedade do imóvel para o autor”.


Pretendem os AA. que este facto seja julgado provado, apresentando, em suporte da sua pretensão, o depoimento do A., do qual transcrevem um excerto.


A este propósito, para além do que já consta acima, escreveu o Tribunal a quo na motivação: “Relativamente aos factos não provados, nenhuma prova foi feita que os demonstre ou estão contrariados pelos que se deram por provados. (…)


Nenhuma prova se fez dos alegados acordos subjacentes à compra do imóvel alegados pelo autor.”


Ora, os AA. não indicam de que forma o segmento do depoimento do A. transcrito nas alegações dá guarida à modificação que almejam, aliás, lido esse excerto constata-se que no mesmo o A. não afirma a existência do acordo descrito neste facto, declarando essencialmente que o empréstimo foi contraído pelo seu irmão por causa dos juros bonificados associados à sua qualidade de emigrante e que era o A. quem depositava dinheiro na conta do irmão para suportar as prestações do empréstimo.


O primeiro aspeto versado no depoimento foi julgado provado sob 10..


No mais, já acima nos pronunciámos sobre a questão dos pagamentos, importando apenas acentuar adicionalmente que se não se conhece a proveniência do dinheiro depositado pelo A. na conta titulada pela mãe, não pode depois afirmar-se, sob pena de contradição, que as transferências efetuadas a partir dessa conta para a conta do R. respeitaram a dinheiro que pertencia ao A..


Não se mostra, pois, abalado o juízo probatório do Tribunal a quo, devendo manter-se inalterado o facto não provado sob 4..


- Facto não provado sob 5.


Foi julgado não provado que “No dia da escritura de compra e venda, referido em 11 dos factos provados, o autor tenha pago, em numerário, parte do preço do imóvel”.


Os AA. pretendem que este facto seja julgado provado, com base no depoimento do A., conjugadamente com os docs. 2, 3 e 4 juntos com a cont., e com os depoimentos dos RR..


Para além do que já acima consta a este respeito, escreveu ainda o Tribunal a quo que “O autor não comprovou os pagamentos que alegou ter feito, não junta um único extrato da sua conta bancária pessoal à data dos factos de onde resulte que tinha dinheiro para investir.”


No essencial, a pretensão do A. decorre, de novo, da circunstância de ter afirmado em juízo que foi ele quem pagou, por contraposição às afirmações, que reputa de frágeis, por parte do seu irmão e da mulher, de que tinham sido eles, ao invés, a proceder, pelo menos, a uma parte do pagamento, tendo o demais sido suportado pela mãe do A. e do R..


As cartas aludidas pelos AA. são invocadas, de acordo com as suas alegações, para demonstrar que os moldes em que o negócio foi feito resultaram das diligências do A. junto do advogado que acompanhou o mesmo, mas semelhante facto em nada contende com o pagamento do preço, que é um facto diferente.


Por outro lado, as conclusões alcançadas pelo Tribunal a quo sobre o pagamento do preço do negócio e que constam acima, implicaram a ponderação da credibilidade das declarações do A. e do R. a este respeito, tendo sido entendido que nem um nem outro lograram demonstrar esse pagamento, pelo que a mera afirmação por parte do A. de que as suas declarações são credíveis e as do seu irmão e cunhada não, ignoram o juízo probatório global desenvolvido pelo Tribunal a quo, não possuindo, pois, a virtude de o colocar em crise.


Deve, pois, manter-se inalterado o facto não provado sob 5..


- Factos não provados sob 6. a 21.


Pretendem os AA. que estes factos sejam julgados não provados, fazendo uma impugnação conjunta dos mesmos.


Atento o que foi acima decidido a este respeito, no que concerne à prova testemunhal invocada em suporte da impugnação, será considerado apenas o depoimento da testemunha HH.


Para além do que já acima se reportou a este respeito, na sua motivação o Tribunal a quo aduziu ainda que “Toda a documentação de compra e obras foi emitida em nome do réu pela simples razão de que ele era o proprietário registado do imóvel. (docs. 255 a 270 da petição)


O autor não demonstra ter contraído empréstimos para pagar o prédio/obras porque os documentos que junta para o efeito, docs. 254 a 270 da petição, sem complemento de outras provas, nada demonstram a respeito.


O autor também não provou ter pago os impostos relativos ao imóvel. Os documentos juntos pelo autor (n.º 317 a 359) respeitantes a contribuição autárquica e IMI provam o pagamento desses impostos ao longo dos anos, mas não quem os fez. Os documentos n.º 328 e 329, mencionam expressamente ter sido AAA (mãe do autor e do réu)”.


Ora, lido o excerto do depoimento da testemunha HH transcrito nas alegações verifica-se que a testemunha diz que sempre viu o A. tratar das questões das obras com o seu marido (que as executou) e fazer os correspondentes pagamentos, nunca tendo visto o R. tratar deste assunto.


Mas o Tribunal o quo analisou este depoimento concreto, assim como outros, aliás, e concluiu, acertadamente, que do facto de ter sido o A. a efetuar esses pagamentos não decorre, necessariamente, que o dinheiro fosse seu.


Assim, os motivos que o Tribunal a quo elenca para as respostas que deu não ficam prejudicados pelo depoimento aludido, pois o que está em causa aqui é saber de quem eram as quantias que satisfizeram os pagamentos, o que é um facto distinto de saber quem acompanhou estes assuntos e se apresentou a fazer tais pagamentos.


Devem, consequentemente, manter-se inalterados os factos não provados sob 6. a 21..


4.3. Os AA. invocaram ainda, para além de todo o exposto, a violação do princípio da igualdade das partes e do princípio da livre apreciação da prova, “considerando a quase total desvalorização da prova apresentada pelos Recorrentes e, ao invés, dando-se total valorização apenas a parte/excertos das cartas juntas aos autos pelos ora Recorridos.”


O princípio da igualdade das partes mostra-se enunciado no artigo 4.º do Código de Processo Civil nos seguintes termos: “O tribunal deve assegurar, ao longo de todo o processo, um estatuto de igualdade substancial das partes, designadamente no exercício de faculdades, no uso de meios de defesa e na aplicação de cominações ou de sanções processuais.”


O princípio da livre apreciação da prova está consagrado no n.º 5 do artigo 607.º do Código de Processo Civil, onde se estabelece que “O juiz aprecia livremente as provas segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto”.


Ora, decorre dos termos do processo que os AA. puderam, tal como os RR., apresentar e produzir meios de prova.


Porém, o Tribunal a quo decidiu julgar não provada a versão dos factos apresentada pelos AA..


Essa conclusão não foi alcançada em violação do princípio da igualdade das partes, porquanto resultou da análise conjugada e crítica da prova produzida nos autos, estando espelhado na motivação da decisão de facto o percurso lógico efetuado pelo Tribunal a quo, precisamente em cumprimento do aludido princípio da livre apreciação da prova.


Sublinhe-se que existindo duas posições antagónicas no processo, necessariamente a decisão não poderá acolher as duas, por manifestamente incompatíveis entre si, pelo que cumprirá avaliar os meios de prova, em ordem a determinar qual a versão que se considera mais verosímil e que, por isso, deverá ser julgada provada.


Assim, conclui-se que a decisão sindicada não viola os princípios referidos.


III - Fundamentação de direito


1. No caso em apreço pretendem os AA. que se declare que são os proprietários do prédio que identificam, alegando que o A. fez um acordo com o R. no sentido de que este assumiria a compra do mesmo, para beneficiar de condições mais vantajosas no empréstimo necessário para financiar a aquisição, mas seria o A. a pagar o empréstimo e, quando tal se mostrasse feito, o R. passaria a propriedade do prédio para o A..


Mais alegaram que pagaram todas as despesas com as obras de reconstrução do prédio e que vêm usando o prédio e suportando todos os encargos associados ao mesmo há quarenta anos, pelo que adquiriram a propriedade do prédio por usucapião.


Os RR. opuseram-se a esta pretensão, advogando que o prédio lhes pertence.


A final, entendeu-se que os AA. apresentaram duas causas de pedir em suporte do seu pedido, tendo a ação sido julgada improcedente, quanto à alegada interposição real de pessoas, por não ter ficado demonstrado o acordo invocado pelos AA., e quanto à usucapião, em virtude do uso do prédio pelo A. não ser realizado em nome próprio, mas antes em nome da sociedade comercial constituída pelos irmãos, e de tal suceder ao abrigo de um contrato de arrendamento.


Por sua vez, a reconvenção foi julgada procedente, atenta a presunção de titularidade, decorrente do artigo 7.º do Código de Registo Predial, de que beneficiam os RR., presunção esta que não foi ilidida.


No recurso, os AA. pugnam pela procedência da ação, fazendo assentar a sua pretensão na modificação da decisão de facto.


Ora, como resulta do acima exposto, foi julgada totalmente improcedente a impugnação da decisão de facto, o que prejudica a reapreciação da decisão final relativa ao pedido formulado pelos AA..


Neste sentido, pronunciou-se o acima citado Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 02.11.2017: “IV. Dependendo a apreciação do recurso pertinente à interpretação e aplicação do Direito ao caso concreto, do prévio sucesso do simultâneo recurso interposto sobre a matéria de facto fixada, sendo este rejeitado, fica necessariamente prejudicado o conhecimento daquele primeiro (art. 608º, nº 2, I parte, aplicável ex vi do art. 663, nº 2, ambos do C.P.C.).” (no mesmo sentido, os Acórdãos do Tribunal da Relação do Porto de 08.11.2021 (Eugénia Cunha), Processo n.º 1398/18.0T8MTS.P1, do Tribunal da Relação de Évora de 27.06.2024 (Ana Margarida Leite), Processo n.º 110/22.3T8STB.E, e de 09.04.2025 (Elisabete Valente), Processo n.º 752/21.4T8ABF.E1, todos in http://www.dgsi.pt/).


2. Litigância de má fé


2.1. Na contestação, os RR. peticionaram a condenação dos AA. por litigância de má fé, com fundamentos nas alíneas b) e d) do n.º 2 do artigo 542.º do Código de Processo Civil, em multa e indemnização em montante não inferior a € 50.000,00.


Na réplica, os AA. peticionaram a condenação dos RR. por litigância de má fé, em multa, indemnização e honorários de mandatário, em montantes a arbitrar pelo tribunal.


A final, foi o pedido dos AA. julgado improcedente e foi julgado parcialmente procedente o pedido dos RR., tendo os AA. sido condenados no pagamento de multa no valor de 10 UC.


Os AA. pugnam, no recurso, pela revogação da decisão que os condenou por litigância de má fé e que absolveu os RR. de igual pedido.


2.2. Preceitua o artigo 542.º do Código de Processo Civil o seguinte:


“1 - Tendo litigado de má-fé, a parte é condenada em multa e numa indemnização à parte contrária, se esta a pedir.


2 - Diz-se litigante de má-fé quem, com dolo ou negligência grave:


a) Tiver deduzido pretensão ou oposição cuja falta de fundamento não devia ignorar;


b) Tiver alterado a verdade dos factos ou omitido factos relevantes para a decisão da causa;


c) Tiver praticado omissão grave do dever de cooperação;


d) Tiver feito do processo ou dos meios processuais um uso manifestamente reprovável, com o fim de conseguir um objetivo ilegal, impedir a descoberta da verdade, entorpecer a ação da justiça ou protelar, sem fundamento sério, o trânsito em julgado da decisão.”


A litigância de má fé é descrita por António Menezes Cordeiro (Litigância de Má-Fé, Abuso do Direito de Ação e Culpa «in Agendo», 2ª ed., Coimbra, 2011, p. 59) como um “instituto processual, de tipo público e que visa o imediato policiamento do processo”, tendo em vista assegurar que na dedução de pretensões em juízo e na correspondente defesa se observem princípios de conduta éticos, pautados por deveres de verdade, de lealdade e de respeito.


Esta orientação estrutural de conteúdo ético é, aliás, expressamente proclamada no artigo 8.º do Código de Processo Civil, onde se estabelece que “as partes devem agir de boa-fé”.


Referem, a este propósito, Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa (Código de Processo Civil Anotado, vol. I, 3ª ed., Coimbra, 2024, pp. 38-39), que “A boa-fé objetiva estabelece as balizas de atuação de todos os que participam na relação jurídica processual, impondo uma conduta proba e leal. A regra da boa-fé constitui um limite imanente da atuação processual, o qual deriva de forma mediata da necessidade de proteger os direitos fundamentais da tutela efetiva, da defesa, da igualdade e de um processo com todas as garantias (…) A regra da boa-fé é uma norma cogente, de ordem pública no sentido de que atua independentemente da vontade dos interessados e mesmo contra a vontade destes, que não podem impedir a sua aplicação. Neste sentido, pode afirmar-se que a boa-fé objetiva atua como norma delimitadora do exercício doutros princípios processuais, como o do contraditório e o da igualdade das partes”.


O quadro sancionatório previsto no artigo 542.º do Código de Processo Civil constitui, assim, uma garantia da observância dos referidos princípios da lealdade, verdade e respeito, exercendo também uma função de prevenção geral e especial.


A má fé pode ser substancial (alíneas a), b) e c)) ou processual (alínea d)), sendo essencial a ideia de que o dano não constitui elemento integrador do instituto, relevando apenas “o próprio comportamento, mesmo que, pelo prisma do prevaricador, ele não tenha conduzido a nada” (Litigância de Má-Fé…, p. 56).


2.3. Na fundamentação de direito da sentença escreveu-se o seguinte a este respeito:


“Os réus pedem a condenação do autor como litigante de má-fé em indemnização não inferior a € 50.000,00.


Invoca, para o efeito, que o autor alegou factos que sabe não corresponderem à verdade e omitiu outros que são relevantes, e deduziu pretensão cuja falta de fundamento não podia ignorar.


O aqui autor pediu o reconhecimento do direito de propriedade sobre um imóvel alegando que a aquisição desse imóvel pelo réu, a favor de quem tal direito está registado, se devia a um acordo que ambos haviam feito com vista a poder usufruir de crédito bancário bonificado cujos requisitos de acesso só os réus cumpriam e que o réu se tinha obrigado a reverter a propriedade a seu favor. Não só não se provou a existência de tal acordo como se provou ter existido outro, esse que envolvia a mãe de ambos, que pretendeu adquirir o imóvel para a família e que pagou, pelo menos, uma parte substancial do empréstimo, factos que o autor, conhecia, por ser o autor das cartas de onde eles resultam, e que omitiu com vista a obter reconhecimento de um direito pleno de propriedade sobre o imóvel a que sabia não ter direito. Além do mais, usando documentos pertencentes à sua mãe, tentou fazer crer que foi ele a fazer tais pagamentos. Conclui-se, pois, que, o autor fez uso reprovável do processo, deduzindo pretensão cuja falta de fundamento não ignorava, usando o processo e os meios processuais para obter para si uma vantagem a que sabia não ter direito e, por isso, ilegal. Além de ter alegado factos que sabia não ser verdadeiros. Conclui-se, pois, que o autor litiga de má fé. (…)


Em resposta, o autor pediu também a condenação dos réus como litigantes de má fé, alegando que são eles que faltam à verdade e alegam factos que sabem ser falsos.


No que respeita à conduta processual dos réus, a sua defesa apresenta-se em alguns pontos contraditória nos seus próprios termos. Se é certo que também estes alegam que foram eles que adquiriram o imóvel e que pagaram todos os valores, concedem em algumas quantias terem sido pagas pela mãe, assumindo mesmo, em audiência, o entendimento de que não se consideram donos do imóvel. A sua defesa em vez de negligente ou dolosa afigura-se um pouco ingénua, permitindo o levantar da suspeita de que o direito que têm registado em seu nome, e de cuja presunção gozam, não lhes pertence, ou não lhes pertence na totalidade. E ainda que não tenham feito prova de factos que alegaram, dessa falta de prova não se pode retirar que tenham faltado à verdade ou que tais factos são falsos.”


Decorre, assim, da fundamentação da decisão sobre a litigância de má fé que o Tribunal a quo concluiu que só os AA. faltaram à verdade, enquanto a conduta dos AA. não é dolosa nem negligente, revelando-se apenas “ingénua”.


Ora, por princípio, a decisão sobre a litigância de má fé deve assentar sobre os factos provados e não sobre os factos não provados ou sobre as razões aduzidas na respetiva motivação (Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 30.06.2022 (Conceição Sampaio), Processo n.º 20786/20.5T8PRT-A.G1, in http://www.dgsi.pt/).


Com efeito, tratando-se de apurar se as partes alteraram a verdade dos factos e deduziram pretensões infundadas, impõe-se que se tenham afirmado na sentença os factos verdadeiros e que deles resulte que as partes tinham conhecimento dos mesmos, o que não sucede com respeito aos factos não provados, dos quais não se extrai que tenham ocorrido os factos contrários a estes.


Acresce que as razões aduzidas na motivação, consistentes nas conclusões extraídas da apreciação conjugada e crítica dos meios de prova, não constituem factos.


Não obstante, devemos olhar de forma global e integrada para todos os factos, pois o confronto com os factos não provados pode contribuir para definir o sentido e alcance dos factos provados.


Assim, na decisão da matéria de facto constam como factos provados que foi a mãe quem quis comprar o prédio para a família; que nenhum dos dois filhos tinha dinheiro suficiente para o pagamento do preço; que por acordo entre o A., o R. e a mãe, o imóvel foi comprado em nome do R., para poder aceder ao crédito bancário com juros bonificados, destinado a pagar parte do preço do imóvel; que durante todo o período que durou o empréstimo a mãe transferiu para a conta do R. os valores para o pagamento do empréstimo (factos provados sob 8., 9., 10. e 14.).


Por outro lado, não resultou provado que o A. e os RR. tenham acordado que estes contrairiam um crédito bancário e comprariam o imóvel e que o A. os reembolsaria da totalidade do valor do empréstimo contraído junto da instituição bancária, e, logo que estivesse liquidado o empréstimo, os RR. transmitiriam a propriedade do imóvel para o A.; no dia da escritura tenha sido o A. a pagar, em numerário, parte do preço do imóvel; que tenha sido o A. a reembolsar o empréstimo; e que tenha sido o R. quem pagou o preço, sendo uma parte no dia da escritura e outra parte através do crédito (factos não provados sob 4., 5., 14. e 23.).


Nas suas peças processuais as partes defendem posições diametralmente opostas, sustentando cada um deles que é o proprietário exclusivo do prédio e, sobretudo, afirmando cada um deles que pagou todas as despesas envolvidas na aquisição do prédio.


Os vetores fundamentais que se cruzam aqui são, assim, os factos provados de que quem pretendia comprar o prédio para a família era a mãe, e por isso foi a mãe quem acordou com os filhos a forma de concretizar o negócio, conjugadamente com o facto não provado de que quem queria comprar o imóvel para si era o A. e de que este acordou com o R. a aquisição do prédio, com o compromisso de posteriormente o R. transferir a respetiva propriedade para o A.; os factos provados de que nem o A. nem o R. dispunham de fundos suficientes para suportar a aquisição do prédio, e de que o empréstimo foi pago através de transferências efetuadas da conta bancária da mãe para a conta bancária do R., conjugadamente com os factos não provados de que tenham sido o A. ou o R. a pagar o preço.


É certo que em audiência os RR. fizeram aquilo que pode ser considerado uma retratação parcial, admitindo que, afinal, algumas quantias poderão ter sido pagas pela mãe, pelo que o prédio não lhes pertence, sendo antes propriedade da mãe e de todos os irmãos em conjunto.


Mas este recuo na sua afirmação inicial não tem o condão de a apagar, aliás, a retratação do R. coloca em evidência que tomou consciência de que estava a defender uma posição que não correspondia à verdade.


Deste modo, é tão deliberada e consciente a afirmação por parte do A. de que pagou o preço, como o é igual afirmação por parte do R., pelo que ambos atuaram com dolo, alterando a verdade dos factos e deduzindo pretensões infundadas, ou seja, ambos incorreram em litigância de má fé.


2.4. Conforme o disposto no n.º 3 do artigo 27.º do Regulamento das Custas Processuais, nos casos de condenação por litigância de má fé, a multa é fixada entre 2 UC e 100 UC, o que Salvador da Costa (As Custas Processuais, 10ª ed., Coimbra, 2024, p. 210) considera uma solução “que se conforma com o relevo no nosso ordenamento processual do dever de boa fé”.


A unidade de conta tem presentemente o valor de € 102,00, por força do disposto no artigo 5.º, n.ºs 1 e 2 do Regulamento das Custas Processuais, em conjugação com o artigo 296.º da Lei n.º 45-A/2024, de 31.12.


Assim, a multa deve ser fixada entre € 204,00 e € 10.200,00.


Escreveu-se no Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 08.11.2022 (Edgar Taborda Lopes) (Processo n.º 7819/18.4T8LSB-D.L1-7, in http://www.dgsi.pt/) que:


“V – Constatada a litigância de má fé impõe-se a aplicação de uma multa (não apenas simbólica, para não perder o valor sancionatório), cuja concretização haverá de decorrer do prudente arbítrio do juiz, que pondere a maior ou menor intensidade do dolo/negligência grave do litigante, a gravidade e as consequências da intenção malévola, o valor e natureza da causa, a situação económico-financeira do litigante de má-fé e a maior ou menor gravidade dos riscos corridos pelos interesses funcionais do Estado, mas também a função pedagógica que assume (e que implica a necessidade de desincentivar outras litigâncias malévolas, em processos judiciais).”


Como se disse acima, as condutas das partes equivalem-se, na parte em que ambos afirmaram o pagamento do preço, mas no caso do A. acresce ainda a afirmação de que o negócio foi feito com vista a que o próprio adquirisse a propriedade do imóvel.


Importa ainda atender à retratação dos RR. em audiência, porquanto do ponto de vista ético e da lealdade processual é mais correto reconhecer que se faltou à verdade e fazê-lo num momento em que ainda é possível refletir essa retratação na decisão da causa, como sucedeu no caso em apreço, do que não o fazer.


Deste modo, afigura-se adequada a multa de 10 UC aplicada aos AA. pelo Tribunal a quo, e, no que tange aos RR., afigura-se que a multa deve ser fixada em 4 UC.


2.5. No que tange à indemnização, rege o artigo 543.º do Código de Processo Civil, com o seguinte teor:


“1 - A indemnização pode consistir:


a) No reembolso das despesas a que a má-fé do litigante tenha obrigado a parte contrária, incluindo os honorários dos mandatários ou técnicos;


b) No reembolso dessas despesas e na satisfação dos restantes prejuízos sofridos pela parte contrária como consequência direta ou indireta da má-fé.


2 - O juiz opta pela indemnização que julgue mais adequada à conduta do litigante de má-fé, fixando-a sempre em quantia certa.


3 - Se não houver elementos para se fixar logo na sentença a importância da indemnização, são ouvidas as partes e fixa-se depois, com prudente arbítrio, o que parecer razoável, podendo reduzir-se aos justos limites as verbas de despesas e de honorários apresentadas pela parte.


4 - Os honorários são pagos diretamente ao mandatário, salvo se a parte mostrar que o seu patrono já está embolsado.”


Conforme explicam Lebre de Freitas e Isabel Alexandre (Código de Processo Civil Anotado, vol. 2°, 3ª ed., Coimbra, 2017, p. 463), no citado normativo contemplam-se, assim, duas categorias de indemnizações:


- reembolso das despesas a que a má fé do litigante tenha obrigado a parte contrária, incluindo os honorários dos mandatários ou técnicos (al. a)), ou seja, “danos emergentes diretamente causados à parte contrária pela atuação de má-fé”;


- reembolso dessas despesas e satisfação dos restantes prejuízos sofridos pela parte contrária como consequência direta ou indireta da má fé (al. b)), ou seja, “todos os prejuízos que ela sofre, incluindo lucros cessantes, em consequência, direta ou indireta, da atuação de má-fé”.


Ora, pese embora os RR. peticionem uma quantia certa, a saber, € 50.000,00, não indicam a que prejuízos concretos respeita este valor.


Os AA. não quantificam a indemnização peticionada e, apesar de aludirem genericamente a prejuízos, aludem depois apenas aos honorários de mandatário.


Assim, no caso dos RR., apenas se pode concluir que a circunstância dos RR. serem demandados na ação os fez necessariamente incorrer em despesas com a taxa de justiça devida pela dedução de contestação e produção de prova, da mesma forma que a defesa apresentada pelos RR. determinou que os AA. tenham produzido prova e, consequentemente, satisfeito a correspondente taxa de justiça.


O Tribunal a quo entendeu, porém, a este respeito, que tendo os RR. dado causa a esta ação, por força da sua inércia na resolução extrajudicial da questão, não lhes assiste o direito a qualquer indemnização.


Trata-se, no fundo, de fazer operar no caso o instituto da culpa do lesado (artigo 570.º, n.º 1 do Código Civil).


E, na realidade, o mesmo raciocínio é aplicável aos AA., sendo certo que esta problemática que envolve os dois irmãos se prolonga há quarenta anos, tendo atingido o pico do conflito após o falecimento da mãe de ambos, em 2022, o que culminou na presente ação.


Improcedem, pois, ambos os pedidos indemnizatórios.


3. Custas


3.1. Peticionaram, por fim, os AA., no recurso, a alteração do decidido na sentença quanto às custas, entendendo que deve ser atendido o decaimento dos RR. quanto ao pedido de restituição do imóvel, bem como quanto ao pedido indemnizatório que foi rejeitado.


O Tribunal a quo decidiu o seguinte quanto às custas:


“Ponderado o decaimento das partes nos pedidos formulados e posição assumida pelo réu, que apenas decaiu no pedido de restituição do imóvel, que não tem valor tributário autónomo, de harmonia com o previsto no artigo 527.º, nºs 1 e 2 do Código de Processo Civil, as custas são a cargo dos autores.”


Ora, como se disse acima, em sede de audiência prévia, o Tribunal a quo rejeitou liminarmente a reconvenção, exceto no que tange ao pedido dos RR. de reconhecimento do direito de propriedade sobre o imóvel em discussão nos autos.


Por outro lado, para fixar o valor da ação, o Tribunal a quo não considerou o valor dos pedidos reconvencionais que rejeitou liminarmente, pois o valor da ação foi fixado em € 420.751,38, correspondente unicamente ao valor do imóvel, conforme indicado pelos AA. na petição inicial.


Acresce que tanto o despacho que rejeitou a admissão da reconvenção, quanto o despacho que fixou o valor da ação se mostram já transitados em julgado, possuindo, portanto, força de caso julgado formal (artigo 620.º, n.º 1 do Código de Processo Civil).


É certo, não obstante, que na sentença foi apreciado e decidido o pedido reconvencional de restituição do prédio, porém, porque não foi interposto recurso desse segmento da sentença, semelhante decisão transitou em julgado, o que veda o conhecimento da questão convocada por tal situação.


Em conclusão, deve manter-se a decisão contida na sentença relativa às custas.


3.2. As custas do recurso são suportadas pelos AA., atento o respetivo decaimento (artigo 527.º, n.ºs 1 e 2 do Código de Processo Civil), não obstando a esta conclusão a decisão atinente à litigância de má fé, porquanto este pedido não influi no valor da ação (neste sentido, os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 22.11.2006 (Pinto Hespanhol), Processo n.º 06S1542, e do Tribunal da Relação de Coimbra de 20.06.2012 (Alberto Ruço), Processo n.º 391/10.5TBTNV-A.C1, ambos in http://www.dgsi.pt/; Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, ob. cit., p. 461).


V - Dispositivo


Pelo exposto, acordam os Juízes da Secção Cível deste Tribunal da Relação em julgar parcialmente procedente a apelação, condenando os RR. por litigância de má fé, em multa no valor de 4 UC, o que corresponde a € 408,00, e mantendo, em tudo o mais, a decisão recorrida.


Custas do recurso pelos AA..


Notifique e registe.


Évora, 10 de dezembro de 2025.


Sónia Moura (Relatora)


Ana Pessoa (1ª Adjunta)


Maria João Sousa e Faro (2ª Adjunta)