Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
210/23.2GAORQ.E1
Relator: RENATO BARROSO
Descritores: CORRUPÇÃO ACTIVA
CONSUMAÇÃO
TENTATIVA
Data do Acordão: 05/21/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: I - À semelhança do que sucede com a corrupção passiva, também na corrupção ativa não se exige, para a sua consumação, a aceitação pelo funcionário do “suborno” que lhe é proposto, sendo até indiferente, para a existência do crime, a verificação dessa aceitação.
II - O crime consuma-se quando a promessa do “pagamento” é feita, bastando, pois, o mero oferecimento ou promessa de “suborno” para que se verifique uma situação de corrupção ativa (na forma consumada), na medida em que nesse momento já se mostra violada a imparcialidade, transparência e igualdade, que são os bens jurídicos protegidos pela norma incriminadora.
III - O arguido “ofereceu” aos militares da GNR que o abordaram a quantia de 600 euros para que estes não procedessem à sua fiscalização (com vista a que não fosse detetada a TAS com que, na altura, conduzia um veículo automóvel), pelo que, apesar dessa “promessa” ter sido recusada pelos respetivos destinatários, o crime de corrupção ativa foi cometido na forma consumada (e não na forma tentada).
Decisão Texto Integral:

ACORDAM OS JUÍZES, EM CONFERÊNCIA, NA SECÇÃO CRIMINAL DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE ÉVORA

1. RELATÓRIO


A – Decisão Recorrida

No processo abreviado nº 210/23.2GAORQ, do Tribunal Judicial da Comarca de Beja, Juízo de Competência Genérica de Almodôvar, o MP deduziu acusação contra o arguido J, pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, p.p., pelos Artsº 292 nº1 e 69 nº1 al. a) do C. Penal, dois crimes de injúria agravada, p.p., pelos Artrsº 181 nº1 e 184, ambos do C. Penal e um crime de corrupção activa, p.p., pelo Artº 374 nº1 do citado Código.

Efectuado julgamento, decidiu-se (transcrição):

Pelo exposto, julga-se a acusação totalmente procedente por provada e, em consequência:
A) Condena-se o arguido J, como autor material, pela prática de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, p. e. p. pelos art. 292.º, n.º 1 e 69.º, n.º 1, al. a) do Código Penal, na pena de 70 dias de multa, à taxa diária de € 6,00;
B) Condena-se o arguido J, como autor material, pela prática de dois crimes de Injúria Agravados, p. e. p. pelos artigos 181.º, n.º 1 e 184.º do Código Penal, na pena de 90 dias de multa por cada um dos crimes;
C) Condena-se o arguido J, em cúmulo jurídico, na pena única de 150 dias de multa, à taxa diária de € 6,00, o que perfaz o valor global de € 900,00, cfr. art. 71.º e 77.º do CP;
D) Condena-se o arguido J pela prática de um crime de Corrupção Activa, na forma tentada, p.e.p. pelo art. 374.º, n.º 1 e 3 do Código Penal, na pena de 3 meses de prisão;
E) Substitui-se a pena de prisão ora aplicada ao arguido J pela pena de 90 dias de multa, à razão diária de € 6,00, o que perfaz o valor global de € 540,00, cfr. art. 45.º e 47.º, n.º 1 e 2 do Código Penal;
F) Condena-se o arguido J, na sanção acessória de proibição de conduzir veículos com motor pelo período de 3 meses, com a advertência de que, se não entregar a carta na secretaria deste tribunal ou em qualquer posto de polícia, em 10 dias a contar do trânsito em julgado da presente decisão, incorrerá na prática de um crime de desobediência, cfr. art. 69.º, n.º 1, al. a) e n.º 3 do CP e 500.º, n.º 2 do Código de Processo Penal;

B – Recurso

Inconformado com o assim decidido, recorreu o MP, tendo concluído as respectivas motivações da seguinte forma (transcrição):

i. O Ministério Público não se conformando com a alteração da forma consumada para a forma tentada do crime de corrupção activa na sentença (ref.ª nº 34164314), de 02.02.2024, vem da mesma interpor recurso.
ii. Nos presentes autos, o Ministério Público deduziu acusação na forma de processo abreviado contra o arguido J pela prática – entre outros crimes e para o que releva para o presente recurso – em autoria material (artigo 26.º, do Código Penal), dolosamente (artigos 14.º, n.º 1, do Código Penal), na forma consumada de um crime corrupção activa p. e p. pelo artigo 374.º n.º 1 do Código Penal.
iii. Em sede de Audiência de Discussão e Julgamento o arguido confessou integralmente os factos pelo qual vinha acusado, tendo os mesmos sido dados como provados, nos termos do artigo 344.º do Código de Processo Penal.
iv. Assim, com pertinência para o objecto do presente recurso foram dados como provados os seguintes factos:
Foi, então, o arguido advertido que a recusa a efectuar o referido teste o faria incorrer na prática de um crime de desobediência, tendo em resposta o arguido dito aos militares da GNR F e H que “lhes dava € 600,00 e que o assunto ficava resolvido”, tendo os militares recusado a oferta do arguido.
(…)
Ao oferecer dinheiro aos militares da GNR o arguido pretendia alcançar a impunidade para o delito por si praticado para que estes não cumprissem o seu dever de o submeter ao teste qualitativo de álcool no sangue, de modo a não lhe vir a ser imposta posteriormente qualquer pena e/ou, medida proibitiva do exercício da condução, bem sabendo o arguido que o dinheiro prometido não era devido aos visados, querendo o arguido que o mesmo servisse de contrapartida para a “compra” de um favor contrário aos deveres funcionais dos militares.
(…)
O arguido agiu de forma livre, voluntária e consciente sabendo que a sua conduta era proibida por lei e criminalmente punida.
v. Na sentença recorrida datada de 02.02.2024 foi o arguido condenado pela prática – entre outros crimes – “por um crime de Corrupção Activa, na forma tentada, p. e p. pelo art. 374.º, n.º 1 e 3 do Código Penal, na pena de 3 meses de prisão” a qual foi substituída “pela pena de 90 dias de multa, à razão diária de € 6,00, o que perfaz o valor global de € 540,00, cfr. art. 45.º e 47.º, n.º 1 e 2 do Código Penal.”
vi. Na sentença recorrida constam os seguintes fundamentos para a alteração da forma consumada para a forma tentada do crime de corrupção activa:
“Perscrutados os factos em causa, verifica-se que o arguido ofereceu € 600,00 aos militares da GNR que o abordaram, com o intuito de que os mesmos não procederem à sua fiscalização, concretamente, para que não lhe fosse administrado o teste de pesquisa de álcool. Vantagem esta que os Guardas recusaram.
Assim, face ao sobredito, a conduta do arguido integra o crime de Corrupção Activa, na modalidade de dádiva de vantagem. Sendo que a mesma foi recusada pelos funcionários em causa, tal crime não se consumou, constituindo, ainda assim, a oferta por parte do arguido um acto de execução, conforme art. 22.º, n.º 1 e 2, al. b), verificando-se a comissão do crime na sua forma tentada. Tentativa essa que, nos termos do art. 374.º, n.º 3 do Código Penal, é punível.”
vii. Não concordamos com a interpretação que consta na sentença recorrida de que o caso concreto se trata de uma “dádiva de uma vantagem”.
viii. No nosso entendimento, os factos provados são uma “promessa de vantagem” porquanto o arguido disse aos militares da GNR que “lhes dava € 600,00 e que o assunto ficava resolvido”.
ix. Nos presentes autos, o arguido prometeu que dava aos Militares € 600,00. Seria uma “dádiva” se, por exemplo, o arguido tivesse tirado da carteira € 600,00 e os tivesse entregue aos militares aquando os factos.
x. Vide, a título comparativo o caso analisado no Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa processo nº 28/08.2GGLSB.L1-5, datado de 22-05-2012, do Relator Agostinho Torres, no qual, o arguido entregou ao agente policial dinheiro colocado dentro dos documentos da viatura aquando a fiscalização, tendo tal comportamento sido qualificado jurídico-penalmente como uma “dádiva”.
xi. A contrario, o caso dos presentes autos qualifica-se como uma “promessa” de vantagem, por não haver, por parte do arguido, um acto material de entrega do dinheiro, o arguido apenas verbalizou que iria dar € 600,00 euros aos Militares, sendo neste caso, irrelevante para a consumação do crime que os Militares da GNR tenham recusado a oferta do arguido, devendo o mesmo ter sido condenado nos precisos termos em que vinha acusado, pela prática do crime da corrupção activa na forma consumada.
xii. Apenas tal entendimento é conforme à Jurisprudência já existente nesta matéria designadamente o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto Proc. 102/16.1TRPRT.P1 datado de 14-04-2021, Relatora Maria Deolinda Dionísio: “Na promessa de suborno, a consumação do crime de corrupção ativa não depende do efetivo recebimento da vantagem ou do suborno, não sendo sequer necessário que o corruptor tenha a intenção de efetivamente cumprir a promessa e entregar o suborno ou a peita ao funcionário
xiii. No caso dos presentes autos, estamos perante uma promessa do arguido uma vez que como não existiu um acto material de entrega do dinheiro, não se sabe sequer se o arguido tinha mesmo a intenção de dar os € 600,00 aos Militares, ou se só o disse “da boca para fora”, para testar os Militares.
xiv. É precisamente a censurabilidade de tal conduta do arguido, que visou colocar os Militares à prova, tentando-os a omitir a realização de teste qualitativo de álcool no sangue, que torna irrelevante para a consumação do crime que os Militares tenham recusado porque o arguido com a sua conduta, criou o perigo de os Militares poderem vir a ceder e omitir um acto que era devido numa situação de fiscalização rodoviária.
ix. Pelo exposto, entendemos que a sentença recorrida deveria ter condenado o arguido pelo crime de corrupção activa p. e p. pelo artigo 374.º n.º 1 do Código Penal, na forma consumada.
Do pedido
Nestes termos, deve ser dado provimento ao Recurso interposto, alterando-se a sentença recorrida na parte relativa ao crime da corrupção activa, devendo o arguido condenado pela prática do crime de corrupção activa p. e p. pelo artigo 374.º n.º 1 do Código Penal na forma consumada, fazendo-se, desta forma, a desejada e costumada Justiça.

C – Resposta ao Recurso

Inexiste resposta ao recurso.

D – Tramitação subsequente

Aqui recebidos, foram os autos com vista ao Exmº Procurador-Geral Adjunto, que pugnou pela manutenção da decisão recorrida.
Efectuado o exame preliminar, determinou-se que o recurso fosse julgado em conferência.
Colhidos os vistos legais e tendo o processo ido à conferência, cumpre apreciar e decidir.


2. FUNDAMENTAÇÃO

A – Objecto do recurso

De acordo com o disposto no Artº 412 do CPP e com a Jurisprudência fixada pelo Acórdão do Plenário da Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça n.º 7/95, de 19/10/95, publicado no D.R. I-A de 28/12/95 (neste sentido, que constitui jurisprudência dominante, podem consultar-se, entre outros, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 12 de Setembro de 2007, proferido no processo n.º 07P2583, acessível em HYPERLINK "http://www.dgsi.pt/" HYPERLINK "http://www.dgsi.pt/"www.dgsi.pt, que se indica pela exposição da evolução legislativa, doutrinária e jurisprudencial nesta matéria), o objecto do recurso define-se pelas conclusões que o recorrente extrai da respectiva motivação, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso.
Na verdade e apesar de o recorrente delimitar, com as conclusões que extrai das suas motivações de recurso, o âmbito do conhecimento do tribunal ad quem, este contudo, como se afirma no citado aresto de fixação de jurisprudência, deve apreciar oficiosamente da eventual existência dos vícios previstos no nº2 do Artº 410 do CPP, mesmo que o recurso se atenha a questões de direito.
As possibilidades de conhecimento oficioso, por parte deste Tribunal da Relação, decorrem, assim, da necessidade de indagação da verificação de algum dos vícios da decisão recorrida, previstos no nº 2 do Artº 410 do CPP, ou de alguma das causas de nulidade dessa decisão, consagradas no nº1 do Artº 379 do mesmo diploma legal.
O objecto do recurso cinge-se às conclusões do recorrente, nas quais alega que a factualidade dada como provada no tocante ao crime de corrupção activa, consubstancia o cometimento de tal ilícito no seu modo consumado e não, como entendeu a decisão recorrida, na sua forma tentada.

B – Apreciação

Definida a questão a tratar, importa considerar o que se mostra fixado, em termos factuais, pela instância recorrida.
Aí, foi dado como provado e não provado, o seguinte (transcrição):

1. No dia 13 de Novembro de 2023, pela 03 horas e 19 minutos, na Rua 1º de Maio, em Castro Verde, o arguido J conduziu o veículo automóvel ligeiro de passageiros, marca “BMW”, com a matrícula (…..), após ter ingerido bebidas alcoólicas;
2. Nessa ocasião, o arguido foi fiscalizado pela GNR e recusou-se a ser submetido a teste qualitativo de álcool no sangue, através de aparelho “Drager”;
3. Foi, então, o arguido advertido que a recusa a efectuar o referido teste o faria incorrer na prática de um crime de desobediência, tendo em resposta o arguido dito aos militares da GNR F e H que “lhes dava € 600,00 e que o assunto ficava resolvido”, tendo os militares recusado a oferta do arguido;
4. Nas mesmas circunstâncias de dia, hora e lugar, o arguido dirigiu-se aos militares da GNR F e H e afirmou num tom sério, alto e agressivo: “Filhos da puta! Cabrões!”;
5. Após alguma insistência por parte dos militares da GNR, o arguido acabou por aceder e realizar o teste qualitativo apresentando uma taxa de álcool no sangue de 1,95 g/l, o que corresponde pelo menos a 1,853 g/l;
6. Ao oferecer dinheiro aos militares da GNR o arguido pretendia alcançar a impunidade para o delito por si praticado para que estes não cumprissem o seu dever de o submeter ao teste qualitativo de álcool no sangue, de modo a não lhe vir a ser imposta posteriormente qualquer pena e/ou, medida proibitiva do exercício da condução, bem sabendo o arguido que o dinheiro prometido não era devido aos visados, querendo o arguido que o mesmo servisse de contrapartida para a “compra” de um favor contrário aos deveres funcionais dos militares;
7. Ao dirigir as expressões acima referidas aos ofendidos F e H, faltou o arguido com o respeito devido aos referidos militares da GNR, que estavam devidamente uniformizados e no exercício das suas funções, como era do conhecimento do arguido, atingindo-os, assim, na sua honra e consideração, quer a nível pessoal, quer a nível profissional;
8. O arguido quis agir como agiu, bem sabendo que se apresentava sob a influência do álcool em limites superiores aos legais e que, nessas circunstâncias, lhe estava vedada a condução de veículos a motor na via pública ou equiparada;
9. O arguido agiu de forma livre, voluntária e consciente sabendo que a sua conduta era proibida por lei e criminalmente punida.
Mais se apurou que:
10. O arguido vive com os pais, em casa própria destes;
11. Trabalha para o Município de Castro Verde;
12. Recebe € 1.200,00 mensais;
13. Tem 1 filho menor de idade que reside em Braga com a mãe;
14. Paga cerca de € 210,00 mensais a título de pensão de alimentos;
15. Conforme estipulado no acordo de regulação do exercício das responsabilidades parentais, o arguido desloca-se a Braga para estar com o filho de 6 em 6 semanas;
16. Com as referidas deslocações despende cerca de € 300,00;
17. É licenciado;
18. No âmbito do seu trabalho tem de se deslocar pelas aldeias de Castro Verde para dar aulas a crianças e a idosos;
19. Tais deslocações são feitas de carro;
20. Mostrou-se arrependido dos factos em causa;
21. Deslocou-se, entretanto, ao Posto da GNR de Castro Verde e pediu desculpa aos Guardas;
22. Não tem quaisquer condenações averbadas no seu CRC.

Estabelecida a base factual na sentença em análise, importa apreciar da bondade do peticionado pelo recorrente:

B.1. Do crime de corrupção

Invoca o recorrente que a factualidade em causa consubstancia, por parte do arguido, o cometimento do crime de corrupção activa na sua forma consumada e não, como entendeu o tribunal recorrido, em modo tentado.
Atente-se à forma como, por este, foi tratada esta matéria (transcrição):

Por fim, o arguido vem acusado da prática de um crime de corrupção activa, p.e.p. pelo art. artigo 374.º n.º 1 do Código Penal.
O bem jurídico protegido é a integridade do exercício das funções públicas pelo funcionário.
Apresenta duas modalidades: a dádiva ou a promessa de vantagem. Sendo que no primeiro caso é um crime de dano e de resultado e na segunda modalidade é um crime de perigo abstracto e de mera actividade.
No caso da dádiva de uma vantagem, o crime apenas se consuma com a sua aceitação por parte do funcionário, já que «“dar” não é a mesma coisa que “oferecer”, já que a oferta pode ser recusada, mas uma vantagem que foi “dada” a outrem já foi aceite por essa pessoa» (PAULO PINTO DE ALBUQUERQUE, in Comentário do Código Penal à Luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, 4.ª ed. Actualizada, Agosto de 2021, Lisboa, Universidade Católica Editora, Pp. 1273.)
Assim, uma vez que nesta modalidade o crime só se consuma com a aceitação da vantagem pelo funcionário, a «simples oferta da vantagem constitui, portanto, um mero acto de execução, que pode dar lugar à punição a título de tentativa, se a oferta da vantagem for recusada pelo funcionário ou não chegar ao conhecimento do funcionário ou se não se provar que o funcionário a tenha compreendido com clareza» (2 Idem, Pp. 1274 ).
Já na modalidade de promessa de vantagem, o crime consuma-se com a mera comunicação da mensagem por parte do corruptor ao funcionário, não sendo necessária a sua aceitação ou efectivo recebimento.
O tipo objectivo do crime em causa consiste na i) dádiva ou promessa ii) a funcionário de iii) uma vantagem indevida para que o mesmo pratique ou omita um acto em violação dos deveres do seu cargo.
O conceito relevante de funcionário para este efeito é o previsto no art. 386.º do Código Penal, abrangendo o n.º 1, al. c) «quem mesmo provisória ou temporariamente, mediante remuneração ou a título gratuito, voluntária ou obrigatoriamente, tiver sido chamado a desempenhar ou a participar no desempenho de uma actividade compreendida na função pública administrativa ou jurisdicional», o que abrange os órgãos de polícia criminal, como é o caso da GNR.
O tipo subjectivo admite qualquer das modalidades de dolo previstas no art. 14.º do Código Penal.
Perscrutados os factos em causa, verifica-se que o arguido ofereceu € 600,00 aos militares da GNR que o abordaram, com o intuito de que os mesmos não procederem à sua fiscalização, concretamente, para que não lhe fosse administrado o teste de pesquisa de álcool. Vantagem esta que os Guardas recusaram.
Assim, face ao sobredito, a conduta do arguido integra o crime de Corrupção Activa, na modalidade de dádiva de vantagem. Sendo que a mesma foi recusada pelos funcionários em causa, tal crime não se consumou, constituindo, ainda assim, a oferta por parte do arguido um acto de execução, conforme art. 22.º, n.º 1 e 2, al. b), verificando-se a comissão do crime na sua forma tentada. Tentativa essa que, nos termos do art. 374.º, n.º 3 do Código Penal, é punível.
Assim, encontram-se preenchidos os elementos típicos objectivos de subjectivos de que depende a condenação do arguido pela prática de um crime de corrupção activa, na forma tentada, sendo que o mesmo lhe é imputável a título doloso e sem que se verifiquem quaisquer circunstâncias que excluam a ilicitude da conduta, ou a culpa do arguido.

É sabido que desde tempos imemoriais, desde que o homem se relacionou com o seu semelhante, que é conhecida a sua propensão para a venalidade, para o suborno, para a aceitação de vantagens indevidas pelo exercício de poderes públicos, para a corruptio, como é designada em latim.
Nessa medida, já desde os romanos que existe a preocupação de punir aqueles que corrompem os serviços do Estado, aproveitando-se do cargo que aí desempenham para obterem vantagens a que, de outra forma, não teriam acesso, sendo curioso notar que no ordenamento romano a censurabilidade destas condutas resultava, desde logo, da gratuitidade do exercício das funções públicas.
A corrupção fragiliza a própria autoridade estadual, coloca em causa o exercício dos poderes públicos, a administração da justiça, a igualdade dos cidadãos perante a lei, numa palavra, mina as estruturas das instituições e o próprio coração do exercício quotidiano de um Estado de Direito Democrático.
Ninguém duvida que o fenómeno da corrupção não é indiferente ao concreto momento histórico em que se vivencia, bem como, às respectivas estruturas funcionais de poder e ao modo com as mesmas se interpenetram.
Em qualquer caso, a variedade das condutas corruptivas, a diferente complexidade das mesmas, a sua inerente opacidade, a reserva inerente a esses comportamentos e a inevitável comunhão de interesses entre quem corrompe e quem é corrompido, gera assinaláveis dificuldades às instâncias formais de controlo, gerando por vezes, no tecido social, a errada impressão que tais condutas, sendo menos transparentes para a justiça penal, dela passam incólumes.
Acresce ainda um outro facto e que se prende com a circunstância de muitas vezes se rotular o crime de corrupção como um crime sem vítima, radicado na inexistência de um confronto evidente entre um agente e a sua vítima – ao contrário do que sucede, por exemplo, nos crimes de homicídio, roubo, violação – ou na denominada dispersão da vitimização.
A verdade é que tal distinção - entre crimes com vítima e crimes sem vítima, como seriam os crimes económicos contra o Estado, entre os quais a corrupção – não se mostra correcta, na medida em que todos os crimes provocam necessariamente efeitos de vitimização, uma vez que, em última instância, é a comunidade, no seu conjunto, que é vítima, por terem sido defraudadas as regras que enformam o seu funcionamento e que correspondem aos padrões aceites.
Isso mesmo acontece na corrupção, em que, apesar de não serem individualizadas vítimas concretas, a vítima é a sociedade no seu todo, abalada que foi na sua confiança pela violação da norma.
A Lei 108/2001, de 28/11, inovou sobre esta matéria, com a eliminação da exigência de prova de sinalagma, retirando o conceito de contrapartida, tradicional no nosso Direito Penal, assim se facilitando, de algum modo, a prova desses crimes.
Na exposição de motivos da respectiva proposta de lei, diz-se que “No domínio da corrupção, as alterações justificam-se… sobretudo pela necessidade de aumentar a eficácia da repressão criminal destas condutas... um dos principais obstáculos à punição efectiva pela prática de crimes de corrupção prende-se com a necessidade da prova do nexo de causalidade entre a entrega por parte do agente da corrupção activa e a prática do acto, lícito ou ilícito, por parte do agente da corrupção passiva... este é um pseudo-sinalagma, na medida em que devem ser considerados crimes de corrupção e punidos como tal aqueles casos em que, à luz dos critérios de expectativa comum, a simples dádiva — tendo em conta, cumulativamente, o seu exagerado valor e as circunstâncias em que ocorreu ou a pessoa de quem proveio — não se mostre justificável de outro modo…”.
A punibilidade da corrupção tem…uma tipologia assente na solicitação ou aceitação de vantagem, patrimonial ou não patrimonial, não devida a funcionário pelo exercício das funções. Afasta-se, de forma inequívoca, a exigência de verificação de um nexo causal entre a vantagem e o acto ou omissão do funcionário, antecedente ou subsequente… esclarece-se que a censura ético-social recai sobre a solicitação ou aceitação de vantagem não devida, relevando aqui a perigosidade inerente à criação de condições que possam conduzir ao cometimento do favor, lícito ou ilícito. Deste modo, a vantagem não necessita de estar referida a uma determinada actuação funcional, mas apenas ao exercício de funções em geral
Apesar de algumas divergências doutrinárias em relação ao bem jurídico protegido com a incriminação - a autonomia intencional da Administração, ou seja, a legalidade administrativa, para uns, a integridade do exercício das funções públicas pelo funcionário para outros -, a verdade é que, o que está em causa, prima facie, são os critérios de legalidade, objectividade e independência exigíveis a qualquer Estado de Direito, no modo como se relaciona com os cidadãos, ou seja, na forma isenta como estas podem esperar que este se comporte na sua esfera pública de actuação.
Genericamente, fala-se em corrupção quando uma pessoa, que ocupa uma posição dominante, aceita receber uma vantagem indevida em troca da prestação de um serviço, o que implica a conjugação dos seguintes elementos: uma ação ou omissão, a prática de um ato lícito ou ilícito, e a contrapartida de uma vantagem indevida, para o próprio ou para terceiro
A corrupção pode ser activa ou passiva, dependendo se a acção ou omissão for praticada pela pessoa que corrompe ou pela pessoa que se deixa corromper.
A corrupção será para acto lícito se o acto ou omissão não for contrário aos deveres de quem é corrompido, caso haja violação desses deveres, então, estaremos na presença de corrupção para acto ilícito.
É importante reter que pode haver crime de corrupção, passiva e activa, ainda que o valor do suborno não seja proporcional ao do acto a praticar, que este acto não venha a ter lugar ou não seja possível de concretização e/ou determinação e ainda, que o funcionário em causa não chegue a recebera vantagem prometida ou solicitada.
Nos termos do Artº 374 do C. Penal, existe corrupção activa quando alguém oferece ou promete, a funcionário, ou a terceiro, com conhecimento daquele, uma vantagem patrimonial ou não patrimonial, sem que aquele a mereça, como contrapartida da prática ou da omissão de acto, no exercício dos seus poderes funcionais.
Este é tipo objectivo da norma, pensada quer para os casos em que o acto é contrário aos deveres do cargo (nº1), quer seja conforme a tais deveres (corrupção activa própria e imprópria).
No primeiro caso a pena é de prisão entre 1 a 5 anos e no segundo, com pena de prisão até 3 anos, ou pena de multa até 360 dias.
Ao contrário da corrupção passiva, este não é um crime específico, mas antes um ilícito comum, passível de ser cometido por qualquer pessoa, ainda que, na perspectiva passiva, ou seja, de quem recebe a oferta/promessa, seja obviamente exigível a qualidade de funcionário, sem o qual não estamos na presença de crime de corrupção.
Na corrupção passiva, o funcionário comete o crime se aceita uma promessa para a prática de uma tarefa antijurídica, mesmo que não a chegue a executar.
Nessa medida, o crime consuma-se no momento em que a solicitação ou aceitação, por parte do funcionário, cheguem ao conhecimento do destinatário, pois só aí, com uma efectiva violação da esfera jurídica da actividade do Estado, é que há crime, razão pela qual, dogmaticamente, o crime se postula como um crime de dano, de consumação instantânea, e material ou de resultado.
Para a sua consumação, não é, portanto, necessário que o suborno seja efectivamente recebido pelo funcionário, bastando que ele comunique o seu propósito nesse sentido.
O crime tem autonomia dogmática, no sentido de que pode existir corrupção activa sem condenação por corrupção passiva, bastando que um dos actores – funcionário corrupto ou cidadão corruptor – pratique o acto para que haja corrupção.
Neste crime, é também naturalmente exigível um directa conexão entre a prática do acto e as funções levadas a cabo pelo funcionário, ou seja, entre a acção solicitada e o cargo por aquele exercido, entre a sua capacidade de decisão, ainda que, sobre a matéria em causa, possa não ser o único com esse poder.

À semelhança do que sucede com a corrupção passiva, também na corrupção activa não se exige, para a sua consumação, a aceitação do funcionário ao suborno que lhe é proposto, sendo até indiferente, para a existência do crime, a verificação dessa aceitação.
O crime consuma-se quando a promessa do pagamento é feita, basta o mero oferecimento ou promessa de suborno por parte do agente, para que se verifique uma situação de corrupção activa, na medida em que nesse momento já se mostra violada a imparcialidade, transparência e igualdade, que são os bens jurídicos protegidos pela norma.
Retomando a situação dos autos, torna-se claro, pela factualidade provada, que estamos na presença de uma promessa de vantagem, na medida em que o arguido ofereceu aos militares da GNR que o abordaram, a quantia de € 600 para que estes não procedessem à sua fiscalização, com vista a que não fosse detectada a TAS com que na altura conduzia o veículo automóvel.
Não há, assim, e com o devido respeito por opinião contrária, a dádiva de uma vantagem referida pela instância recorrida, mas antes, uma verdadeira promessa de vantagem, pois o que ocorreu foi essa proposta, por parte do arguido de oferecer aos militares em causa uma determinada quantia para que estes, como contrapartida, não cumprissem o dever de o fiscalizar, promessa por aqueles rejeitada.
Não ocorreu qualquer entrega de dinheiro, apenas a verbalização de uma oferta patrimonial, sendo que, como atrás se expôs, é irrelevante para a consumação do crime que aquela tenha sido recusada pelos respectivos destinatários, porquanto, como se referiu, a consumação do crime de corrupção activa não depende do efectivo recebimento da vantagem ou do suborno, nem sequer de qualquer acto ou omissão praticada pelo funcionário a que a mesma se dirige. (Cfr, neste sentido, Acórdão da RP de 14/04/21, Proc. 102716.1TRPRT.E1)
Como diz o recorrente, é “…a censurabilidade de tal conduta do arguido, que visou colocar os Militares à prova, tentando-os a omitir a realização de teste qualitativo de álcool no sangue, que torna irrelevante para a consumação do crime que os Militares tenham recusado porque o arguido com a sua conduta, criou o perigo de os Militares poderem vir a ceder e omitir um acto que era devido numa situação de fiscalização rodoviária.”
Serve o exposto para se concluir que a factualidade apurada consubstancia, como plasmado na acusação pública, a prática, pelo arguido, de um crime de corrupção activa, na forma consumada, p.p., pelo Artº 374 nº1 do C. Penal.
Procede, pois, o recurso, cabendo à instância recorrida elaborar nova decisão em que condene o arguido por tal ilícito, assim se determinando porquanto, de outra forma - ou seja, procedendo, desde já, a tal condenação - estar-se-ia a preterir um grau de jurisdição de recurso, com manifesto prejuízo para o arguido.

3. DECISÃO

Nestes termos, decide-se conceder provimento ao recurso e em consequência, revoga-se a sentença recorrida na parte relativa à condenação do arguido pelo crime de corrupção activa na forma tentada, que deverá ser substituída por outra que o condene pela prática de um crime de corrupção activa, na forma consumada, p. e p. pelo Artº 374 nº 1 do C. Penal.
Sem custas.
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Consigna-se, nos termos e para os efeitos do disposto no Artº 94 nº2 do CPP, que o presente acórdão foi elaborado pelo relator e integralmente revisto pelos signatários.

Évora, 21 de maio de 2024
Renato Barroso
Filipa Costa Lourenço
Carlos de Campos Lobo