Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
3487/22.7T8PTM-A.E1
Relator: SUSANA FERRÃO DA COSTA CABRAL
Descritores: ACÇÃO DE DIVISÃO DE COISA COMUM
PEDIDO RECONVENCIONAL
Data do Acordão: 10/10/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: Na ação especial de divisão de coisa comum, ainda que inexista litígio quanto à aquisição do imóvel em compropriedade e à sua natureza indivisível é admissível o pedido reconvencional para apurar se o réu tem direito a receber pelo valor, superior à sua quota, que terá pago para a aquisição do imóvel, pois apesar de aos pedidos corresponderem formas de processo diversas, não seguem uma tramitação manifestamente incompatível, há interesse relevante e a apreciação conjunta das pretensões é indispensável para a justa composição do litígio.
(Sumário da Relatora)
Decisão Texto Integral: Relatora: Susana Ferrão da Costa Cabral
Primeiro Adjunto: Filipe Osório Rodrigues
Segunda Adjunta: Maria Adelaide Domingos

Acordam na 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora
1. Relatório:
(…) intentou, no Juízo Local Cível de Portimão, ação especial de divisão de coisa comum, contra (…), pedindo:
a) A declaração da indivisibilidade da fração autónoma designada pela letra A, destinada a habitação correspondente, à cave e rés do chão do prédio urbano, situado no (…), Lote 6, da União das freguesias de Estômbar e Parchal e concelho de Lagoa, descrito na Conservatória do Registo Predial de Lagoa (Algarve) sob o n.º (…), e inscrito na matriz predial urbana sob o artigo (…), da União das freguesias de Estômbar e Parchal.
b) A fixação das quotas de Autora e Réu na proporção de metade cada um.
c) A adjudicação, da supra identificada fração em direito de superfície à autora, em caso de acordo na conferência a que alude o artigo 929.º, n.º 2, do CPC.
d) Que, caso não se concretize tal acordo, se ordene a venda a terceiros da referida fração autónoma.
Em abono da sua pretensão, invoca em breve síntese, que:
- Autora e Réu são proprietários inscritos, da referida fração autónoma;
- A Autora não pretende manter a situação de compropriedade;
- O Réu opõe-se à divisão;
O Réu contestou, sem pôr em causa a compropriedade e a indivisibilidade da fração, mas deduziu pedido reconvencional, pedindo a condenação da autora a pagar-lhe a quantia de € 22.500,00, acrescida de juros; Alega, para este efeito, resumidamente, que:
- A fração em causa foi adquirida por A. e R. a 10 de Agosto de 1993, pelo valor de € 45.000,00 (quarenta e cinco mil euros).
- Antes da escritura foi entregue pelo R. aos promitentes-vendedores, o montante de € 5.000,00 (cinco mil euros), a título de sinal e princípio de pagamento.
- Para aquisição da fração A. e Réu contraíram empréstimo no valor de cerca de € 40.000,00 (quarenta mil euros).
- A. e R. viveram em união de facto e, em comunhão de vida, leito e habitação após contraírem casamento em 1995.
- Em janeiro de 2010, a Autora saiu de casa e não mais contribuiu monetariamente para o pagamento do empréstimo tendo o Réu suportado as prestações sozinho.
- Na Tentativa de Conciliação realizada em sede de divórcio, ocorrida em 06-02-2014, a utilização da casa de morada de família ficou atribuída ao Réu que continuou a custear o empréstimo referente à aquisição da fração sozinho, até ao seu termo em agosto de 2018.
Conclui, assim, pela Condenação da autora a pagar-lhe o valor de € 22.500,00 que corresponde à metade do valor respeitante ao sinal e prestações vencidas do empréstimo contraído na CGD, que, no entender do réu, deveria ter sido pago pela autora e não foi.
*
Após dar oportunidade ao Réu de se pronunciar sobre a possibilidade de o tribunal vir a decidir pela inadmissibilidade do pedido reconvencional, o que o Réu fez, por requerimento de 24-01-2024, o Tribunal a quo, por despacho de 14-04-2024, não admitiu o pedido reconvencional com o seguinte fundamento: “A ação de divisão de coisa comum segue tramitação especial e, como tal, incompatível com a tramitação de processo para apreciação do pedido do réu – artigos 925.º e seguintes e 266.º, n.º 3, do Código de Processo Civil. Por isso, não admito o pedido reconvencional”.
*
Inconformado com este despacho, interpôs o Réu o presente recurso, o qual motivou, apresentando a seguinte síntese conclusiva:
1) A decisão do Tribunal a quo de não admitir o pedido reconvencional é destituída de fundamento e contraria a jurisprudência recente sobre esta temática (v.g. Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Guimarães, de 25-09-2016, e de 25-05-2017, Acs. do Tribunal da Relação de Lisboa de 24-09-2015 de 15-03-2018 e de 02-03-2023 in www.dgsi.pt e Ac. do Supremo Tribunal de Justiça, datado de 25-05-2021, referente ao Proc. 1761/19.9T8PBL.C1.S1, disponível em www.jurisprudencia.pt);
2) O pedido reconvencional deduzido nos autos é admissível ao abrigo do disposto nos artigos 266.°, n.º 2, alínea c) e n.º 3, do C.P.C.;
3) O novo Código do Processo Civil reforçou dos poderes de direção, agilização, adequação e gestão processual do juiz;
4) O Tribunal a quo em vez de decidir em primeiro lugar da possibilidade de proferir logo decisão sobre as questões suscitadas pelo pedido de divisão deveria ter começado por reconhecer o interesse relevante na admissão da reconvenção e verificar da impossibilidade de conhecer sumariamente as questões suscitadas, mandando seguir os termos, subsequentes à contestação, do processo comum.
5) A questão colocada em sede de pedido reconvencional é essencial para a justa composição do litígio sendo vital que o Tribunal a quo sobre ela se pronuncie.
6) Por outro lado, a douta decisão do Tribunal a quo a manter-se, conduzirá a que, por falta de recursos financeiros imediatos, o imóvel onde outrora foi casa de morada de família, que o recorrente ainda habita e tem o centro da sua vida social, afetiva e económica desde há largos anos, poderá em última instância ser vendida a terceiros causando graves danos morais a este manifestamente desnecessários, resultantes exclusivamente pelo modo / forma como o Tribunal a quo optou na condução processual destes autos.
7) Debalde, seguir desde logo para a conferência de interessados e atribuir as tornas ao comproprietário que não adjudica o prédio, calculadas apenas de acordo com as quotas respetivas, significa criar uma situação de impossibilidade de acordo, quando um dos interessados invoca créditos sobre o requerente relativos ao próprio prédio, suscetíveis de fundamentar a compensação.
8) Assim, ao não admitir o pedido reconvencional o Tribunal a quo violou o disposto nos artigos 6.º, n.º 1, 266.º, 547.º e 926.º e seguintes, todos do C.P.C..
9) O despacho recorrido deverá ser revogado e substituído por outro que admita o pedido reconvencional deduzido nos autos”.
*
A autora contra-alegou apresentando as seguintes conclusões:
1) A admissibilidade de reconvenção depende da verificação de um dos pressupostos de natureza substancial ou fatores de conexão estabelecidos nas diversas alíneas do n.º 2 do artigo 266.º do Código de Processo Civil.
2) Só há lugar para a ponderação da verificação do pressuposto da compatibilidade processual entre o pedido do autor e o pedido reconvencional, nos termos do n.º 3 do artigo 266.º do Código de Processo Civil, se verificar-se algum dos fatores de conexão estabelecido no n.º 2 desse artigo.
3) O n.º 3 do artigo 266.º não constitui uma via alternativa ao n.º 2 para a admissão da reconvenção.
4) A falta de algum dos elementos de conexão objetiva elencados no n.º 2 do artigo 266.º impede a admissibilidade da reconvenção, o que torna inútil a apreciação da questão da eventual compatibilidade processual entre o pedido reconvencional e o pedido da autora.
5) Configura-se, pois, correta, adequada e sensata a decisão proferida pelo Tribunal a quo.
6) Não merecendo, desta forma o douto despacho recorrido quaisquer reparos.
*
O objeto do recurso, salvo questões de conhecimento oficioso, é delimitado pelas conclusões dos recorrentes, como resulta dos artigos 608.º, n.º 2, 635.º, n.º 4 e 639.º, n.º 1, do Código de Processo Civil. Assim, considerando o teor das conclusões apresentadas, a questão essencial a decidir consiste em:
Ø saber se o pedido reconvencional não deve ser admitido conforme se decidiu no despacho recorrido, por se considerar que ao pedido reconvencional corresponde uma forma de processo incompatível com o pedido de divisão de coisa comum formulado na petição inicial, ou, pelo contrário, se o pedido reconvencional deve ser admitido porque “embora aos pedidos correspondam formas de processo diversas, não seguem uma tramitação manifestamente incompatível”, há interesse relevante e a apreciação conjunta das pretensões é indispensável para a justa composição do litígio.
*
2. Fundamentação
Os factos relevantes para apreciação do recurso são os que constam do relatório supra.
O despacho que julgou inadmissível o pedido reconvencional, conforme já se referiu considerou que “A ação de divisão de coisa comum segue tramitação especial e, como tal, incompatível com a tramitação de processo para apreciação do pedido do réu” fundando-se no n.º 3 do artigo 266.º do Código de Processo Civil, que estabelece que:
Não é admissível a reconvenção, quando ao pedido do réu corresponda uma forma de processo diferente da que corresponde ao pedido do autor, salvo se o juiz a autorizar, nos termos previstos nos n.os 2 e 3 do artigo 37.º, com as necessárias adaptações”.
De facto, não há qualquer dúvida que ao pedido formulado na petição inicial corresponde o processo especial de divisão de coisa comum, que segue uma tramitação própria distinta do processo comum a que corresponde o pedido reconvencional deduzido, pois que aqui está em causa o valor que o réu considera ter a receber, por ter adiantado o valor do sinal e pago as prestações do crédito bancário para aquisição da fração comum.
Porém, do exposto não resulta sem mais que a tramitação seja incompatível.
Vejamos:
A ação de divisão de coisa comum tem um processado específico, que conforme resulta do disposto nos artigos 925.º e seguintes do CPC, contém uma fase declarativa, dirigida a definir o direito à divisão, seguida de uma fase executiva, destinada a efetivar esse direito;
A questão da admissibilidade da reconvenção suscita-se desde logo na fase declarativa.
Esta fase declarativa também contém especificidades, pois se as questões suscitadas não forem complexas, o juiz profere decisão sumária, segundo as regras procedimentais dos incidentes da instância e só se constatar a inviabilidade ou inconveniência de tal forma de decisão, é que determina que se siga os termos subsequentes à contestação, do processo comum.
No caso concreto, a autora invocou a compropriedade e a indivisibilidade do imóvel a dividir, que aliás foi a casa de morada de família, e o réu não contestou nem a aquisição em compropriedade do imóvel, nem a indivisibilidade do mesmo.
Por isso, concluiu-se na decisão recorrida que o processo estava em condições de ser decidido sumariamente, de prosseguir para a fase executiva que se inicia com a conferência de interessados e, por conseguinte, pela inadmissibilidade da reconvenção por incompatibilidade processual.
Mas será assim?
Entendemos que não, pois é o próprio artigo 926.º, n.º 3, que refere que se as questões suscitadas pelo pedido de divisão não puderem ser sumariamente decididas o juiz manda seguir o processo subsequente à contestação do processo comum, no qual o pedido reconvencional é admissível.
Ora, o Réu/recorrente confessou a aquisição do imóvel em compropriedade e a natureza indivisível da coisa mas questionou o valor com que cada um contribuiu para aquisição da fração pelo que à semelhança do decidido no Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 20-02-2024, no Processo n.º 183/22.9T8PNI-B.C1, publicado in www.dgsi.pt, “o litígio entre as partes centra-se essencialmente na ausência de entendimento sobre as quantias pecuniárias com que cada contribuiu para a aquisição do imóvel”, pelo que importa concluir, como neste acórdão, que “as questões suscitadas pelo pedido de divisão acabam por ser as relativas à compensação do valor que um deles haja suportado a mais com a aquisição, com o valor das tornas a haver pelo outro”, pelo que deve ser admitida a reconvenção e prosseguir o processo como ação comum.
Esta tem sido, aliás, a posição mais recente de toda a jurisprudência (embora na década passada tenha existido alguma divergência), conforme os acórdãos citados pelo recorrente. O nosso mais alto Tribunal também já se pronunciou sobre esta questão em diversos acórdãos, tendo designadamente no Acórdão de 28 de março de 2023 (proc. n.º 249/21.2T8VVC.E1.S1, publicado in www.dgsi.pt, decidido que:
“Na fase declarativa da ação de divisão de coisa comum, não havendo contestação e/ou estando as partes de acordo, ou não se suscitando a questão da indivisibilidade da coisa em substância, fixadas as respetivas quotas de compropriedade, será proferida decisão acerca das questões suscitadas pelo pedido de divisão da coisa de forma sumária e sem necessidade de produção de provas.
Pode, no entanto, a instauração da ação de divisão de coisa comum e a consequente modificação ou extinção do direito de propriedade sobre a coisa comum, fazer emergir na titularidade dos comproprietários direitos originados durante a vigência da situação de compropriedade, e por causa dela, e que terão de ser considerados em caso de indivisibilidade, na justa composição final do litígio e na repartição do valor da coisa adjudicada a um dos comproprietários ou vendida a terceiros.
É esse o caso não só do direito ao valor das benfeitorias úteis e necessárias efetuadas de boa-fé na coisa comum por um dos comproprietários de que o futuro proprietário irá beneficiar bem como o do direito à restituição de valores gastos com a aquisição da coisa para além da proporção da respetiva quota”.
Face ao exposto, importa concluir que inexiste qualquer incompatibilidade de pedidos impeditiva da admissibilidade da reconvenção e a situação exige, ao invés, face ao disposto no artigo 37.º, n.º 2 e 3, do CPC, para o qual remete o artigo 266.º, n.º 3, do mesmo diploma e nos termos dos quais:
“2 - Quando aos pedidos correspondam formas de processo que, embora diversas, não sigam uma tramitação manifestamente incompatível, pode o juiz autorizar a cumulação, sempre que nela haja interesse relevante ou quando a apreciação conjunta das pretensões seja indispensável para a justa composição do litígio.
3 - Incumbe ao juiz, na situação prevista no número anterior, adaptar o processado à cumulação autorizada”.
que seja admitida a reconvenção, quer por haver interesse relevante, quer porque a apreciação conjunta das pretensões é indispensável para a justa composição do litígio.
Como se explica no acórdão do STJ de 26 de janeiro de 2021 na revista 1923/19.9T8GDM-A.P1.S1, publicado em www.dgsi.pt que aderiu à tendência menos formalista e restritiva, “a reconvenção para assegurar a justa composição do litígio, quando tenha sido suscitada a compensação de alegado crédito por despesas suportadas para além da quota respetiva, com o crédito de tornas que venha a ser atribuído ao requerente, devendo a ação seguir os termos do processo comum, para que sejam decididas tais questões, só então se entrando na fase executiva do processo com a conferência de interessados, destinada ao preenchimento dos quinhões em espécie ou por equivalente (…) Se assim não for, na conferência de interessados, no caso de se adjudicar o imóvel a um dos comproprietários, o valor de tornas a entregar ao outro não terá em conta o verdadeiro cerne do litígio, tudo se passando como se ambos tivessem contribuído igualmente na proporção da quota respetiva”. Este Acórdão conclui que “não existe razão para lançar mão de outro processo judicial com vista à resolução daquilo que, efetivamente, separa as partes: o encontro entre o “deve” e o “haver”, entre a contribuição de cada um para o valor da sua quota. (….) V. Está em causa o interesse em discutir e decidir todas as questões que, para além da divisão, envolvem os prédios dividendos. Importa evitar que o Requerido se veja compelido a propor uma outra ação para ver o seu direito reconhecido”.
Concluímos, assim, pela admissibilidade da reconvenção, pois só apreciando o pedido reconvencional, se resolve definitivamente o litígio entre as partes, o que não sucederia se se adjudicasse o bem a um deles, mas após o réu tivesse que propor outra ação para discutir o valor das tornas ou se se vendesse a fração a terceiro e tivesse que ser intentada, a posteriori, outra ação para discutir qual o valor a atribuir à autora e ao réu.
Existe, por conseguinte, um interesse relevante em decidir tudo nesta ação, interesse este que corresponde, aliás, ao facto de a apreciação conjunta das pretensões ser indispensável para a justa composição do litígio.

Sumário (…)

3. Decisão:
Por todo o exposto, acorda-se em julgar procedente o recurso e, em consequência, revoga- -se o despacho recorrido, o qual se substitui por outro que admite o pedido reconvencional deduzido e determina o prosseguimento dos autos, para apreciação do pedido reconvencional.
Custas pela recorrida.
Notifique.
Évora, 10 de outubro de 2024
Relatora: Susana Ferrão da Costa Cabral
Primeiro Adjunto: Filipe Osório Rodrigues
Segunda Adjunta: Maria Adelaide Domingos