Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
2027/22.2T8PTM-A.E1
Relator: SÓNIA MOURA
Descritores: ROL DE TESTEMUNHAS
ADMISSÃO
Data do Acordão: 12/05/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário:
1. Os casos em que a parte omite o preenchimento do formulário Citius na parte relativa à prova testemunhal, mas apresenta rol de testemunhas no articulado que acompanha o formulário, integram-se no n.º 10 do artigo 144.ºdo Código de Processo Civil, que replica a redação dos n.ºs 1 e 2 do artigo 7.º da Portaria n.º 280/2013, de 26.08, onde se equiparam aqueles casos às situações em que o formulário é preenchido de modo distinto do articulado anexo.
2. O n.º 4 do artigo 7.º da Portaria n.º 280/2013, de 26.08, representa uma concretização do disposto no n.º 2 do mesmo preceito, fazendo prevalecer o formulário sobre o articulado nos casos acima indicados, pois estabelece que se a parte não proceder à inserção das testemunhas no formulário, depois de notificada para o efeito, se considerará apenas o conteúdo do formulário.
3. Representa, também, esse n.º 4 uma concretização do n.º 3 do mesmo preceito, onde se prevê a possibilidade de correção das desconformidades por iniciativa da parte ou determinação oficiosa do tribunal, assim como do n.º 2 do artigo 146.º do Código de Processo Civil, que consagra a possibilidade de correção de vícios ou omissões puramente formais de atos praticados, desde que a falta não deva imputar-se a dolo ou culpa grave e o suprimento ou a correção não implique prejuízo relevante para o regular andamento da causa.
4. Deste modo, o n.º 4 do artigo 7.º da Portaria n.º 280/2013, de 26.08, é conforme à disciplina contida no n.º 10 do artigo 144.ºdo Código de Processo Civil.
(Sumário elaborado pela relatora)
Decisão Texto Integral:
Apelação n.º 2027/22.2T8PTM-A.E1

(1ª Secção)


***

Relatora: Sónia Moura

1º Adjunto: Filipe Aveiro Marques

2º Adjunto: Francisco Xavier

Acordam na 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora:

I – Relatório

1. AA e BB intentaram a presente ação declarativa, sob forma de processo comum, contra EMP01... Lda., EMP02..., Lda., e Victoria Seguros, S.A..

2. A R. EMP02..., Lda., apresentou contestação, na qual arrolou uma testemunha, não tendo indicado essa testemunha no formulário Citius através do qual submeteu a contestação a juízo.

Não foi ordenada, nem efetuada notificação à R. para preencher o formulário na parte atinente à prova testemunhal.

3. Após a realização de audiência prévia foi proferido despacho saneador, onde, após fixação do objeto do litígio e temas da prova, foram apreciados os requerimentos probatórios das partes, tendo sido decidido, designadamente, o seguinte:

“Uma vez que a 2.ª Ré nenhuma testemunha indicou no formulário da contestação, sendo este que prevalece (conforme o artigo 7.º da Portaria n.º 280/2013, de 26 de agosto), não se admite a testemunha que indicou na contestação.”

4. Inconformada com o despacho transcrito, veio a R. EMP02..., Lda., apelar do mesmo, rematando as suas alegações com as seguintes conclusões:

“I- No despacho saneador, e em sede do item “prova testemunhal”, a Mma. Juiz da 1º Instância lavrou o seguinte:

“Uma vez que a 2ª Ré nenhuma testemunha indicou no formulário, sendo este que prevalece (conforme o artigo 7º da Portaria nº 280/2013, de 26 de agosto), não se admite a testemunha que indicou na contestação”.

II- Não tem razão, como atesta a grande maioria dos Arestos dos Tribunais superiores, dos quais nos permitimos destacar os seguintes: Ac. da RL de 23/4/24, tirado no proc. nº 21761/22.0T8LSB-A.L1-7, relatado por Diogo Ravara; Ac. RL de 23/9/21, tirado no proc. nº 18412/20.1T8LSB-A.L1-8, relatado por Carla Mendes; Ac. RP de 28/1/13, tirado no proc. nº 5930/11.1TBMAI-A.P1, relatado por Manuel Domingos Fernandes; Ac. RG de 11/5/10, tirado no proc. nº 5834/09.8TBBRG-C.G1, relatado por Pereira da Rocha; e, Ac. RL de 18/2/10, tirado no proc. nº 6/09.4TBSCF-A.L1-8, relatado por Luís Correia de Mendonça, acórdãos cujos sumários pedimos vénia para aqui dar por integralmente reproduzidos, para todos os legais efeitos.

III- Todos estes acórdãos são unânimes em considerar que, como se diz no sumário do da RG de 11/5/10, tirado no proc. nº 5834/09.8TBBRG-C.G1, relatado por Pereira da Rocha: “Deve ser admitido o rol de testemunhas constante do requerimento probatório anexo ao formulário de requerimento probatório disponibilizado pelo sistema informático CITIUS, apesar da omissão de preenchimento do campo daquele formulário destinado ao arrolamento de testemunhas”.

IV- Assim sendo, devem, V. Exas., Mmos. Juízes Desembargadores, alterar o despacho saneador, na parte em que foi decidido não admitir o rol de testemunhas da Ré/apelante, por o mesmo se não achar vertido no formulário,

V- Determinando, nas suas vezes, a dita admissão.”

5. Não foram apresentadas contra-alegações.

6. Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.

II – Questões a Decidir

O objeto do recurso está delimitado pelas conclusões da apelação, não sendo objeto de apreciação questões novas suscitadas em alegações, exceção feita para as questões de conhecimento oficioso (artigos 608.º, n.º 2, 635.º, n.º 4 e 639.º, n.º 1 do Código de Processo Civil).

Não se encontra também o Tribunal ad quem obrigado a apreciar todos os argumentos apresentados pelas partes, mas é livre na interpretação e aplicação do direito (artigo 5.º, n.º 3 do Código de Processo Civil).

Assim, no caso em apreço importa decidir se deve ser rejeitado ou admitido o rol de testemunhas que é apresentado apenas na peça processual contestação, não se mostrando inserido no formulário Citius através do qual aquela peça foi submetida a juízo.

III – Fundamentação

1. Os factos relevantes para a apreciação do recurso são os que constam do relatório.

2. A questão que constitui o objeto deste recurso tem evoluído de forma significativa.

Assim, diz-se na norma em causa, o artigo 7.º da Portaria n.º 280/2013, de 26.08, que regula a tramitação eletrónica dos processos judiciais, na redação introduzida pela Portaria n.º 267/2018, de 20.09, epigrafada “Preenchimento dos formulários”:

“1 - Quando existam campos no formulário para a inserção de informação específica, essa informação deve ser indicada no campo respetivo, não podendo ser apresentada unicamente nos ficheiros anexos.

2 - Em caso de desconformidade entre o conteúdo dos formulários e o conteúdo dos ficheiros anexos, prevalece a informação constante dos formulários, ainda que estes não se encontrem preenchidos.

3 - O disposto no número anterior não prejudica a possibilidade de a mesma ser corrigida, a requerimento da parte, sem prejuízo de a questão poder ser suscitada oficiosamente.

4 - Nos casos em que o formulário não se encontre preenchido na parte relativa à identificação das testemunhas e demais informação referente a estas, constando tais elementos dos ficheiros anexos referidos na alínea a) do n.º 1 do artigo anterior, a secretaria procede à notificação da parte para preencher, no prazo de 10 dias, o respetivo formulário, sob pena de se considerar apenas o conteúdo do formulário inicial.

5 - Existindo um formulário específico para a finalidade ou peça processual que se pretende apresentar, deve o mesmo ser usado obrigatoriamente pelo mandatário.”

Sublinhe-se que na sua versão original esta norma esta era composta, apenas, pelos dois primeiros números, com a exata redação que têm ainda hoje.

Esta norma deve ser articulada com o artigo 144.º do Código de Processo Civil, na redação introduzida pelo Decreto-Lei n.º 97/2019, de 26.07, no qual se prevê, designadamente, o seguinte:

“1 - Os atos processuais que devam ser praticados por escrito pelas partes são apresentados a juízo por via eletrónica, nos termos definidos na portaria prevista no n.º 2 do artigo 132.º, valendo como data da prática do ato processual a da respetiva expedição. (...)

10 - Quando a peça processual seja apresentada por via eletrónica e o sistema de informação através do qual se realiza a apresentação preveja a existência de formulários com campos para preenchimento de informação específica:

a) Essa informação deve ser indicada no campo respetivo, não podendo ser apresentada unicamente em ficheiros anexos;

b) Em caso de desconformidade entre o conteúdo dos formulários e o conteúdo dos ficheiros anexos, prevalece a informação constante dos formulários, ainda que estes não se encontrem preenchidos.”

A alteração operada em 2019 neste preceito legal traduziu-se na introdução dos n.ºs 9 a 14.

Comparando as duas normas transcritas verificamos, desde logo, que o n.º 10 do artigo 144.º do Código de Processo Civil replica os n.ºs 1 e 2 do artigo 7.º da Portaria n.º 280/2013, de 26.08.

Não foi, contudo, reproduzida no artigo 144.º do Código de Processo Civil a disciplina vertida nos n.ºs 3 a 4 do artigo 7.º da Portaria n.º 280/2013, de 26.08.

Com relevo para o caso importa ainda evidenciar o artigo 552.º, n.º 6 do Código de Processo Civil, onde se estabelece que “no final da petição, o autor deve apresentar o rol de testemunhas”, o mesmo devendo fazer o réu na contestação, em conformidade com o disposto no artigo 572.º, al. b) do mesmo diploma legal.

A questão objeto do recurso foi já apreciada em vários arestos, designadamente, os seguintes (todos acessíveis em http://www.dgsi.pt/):

- Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 24.09.2020 (Alda Martins) (Processo n.º 1167/19.0T8VRL-A.G1):

“3. O n.º 10 introduzido por aquele decreto-lei no art. 144.º do Código de Processo Civil limita-se a reproduzir os n.ºs 1 e 2 do art. 7.º da Portaria n.º 280/2013, devendo continuar a ser tido em conta o disposto nos n.ºs 3 e 4 desta Portaria, nos termos dos quais:

- a desconformidade entre o conteúdo dos formulários e o conteúdo dos ficheiros anexos não prejudica a possibilidade de a mesma ser corrigida a requerimento da parte, que pode ser suscitada oficiosamente;

- no caso específico de o formulário não se encontrar preenchido na parte relativa à identificação das testemunhas e demais informação referente a estas, mas constando tais elementos dos ficheiros anexos, a secretaria procede à notificação da parte para preencher, no prazo de 10 dias, o respectivo formulário, sob pena de se considerar apenas o conteúdo do formulário inicial.”

- Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 23.09.2021 (Carla Mendes) (Processo n.º 18412/20.1T8LSB-A.L1-8):

“A norma constante do art. 7/4 da Portaria 280/2013 de 26/8 (indicação das testemunhas no formulário), revela-se excessiva e desproporcional, porquanto prejudica o direito de acção por parte do autor, uma vez que este, na p.i., elencou o rol de testemunhas.”

- Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 07.09.2023 (Maria Catarina Gonçalves) (Processo n.º 864/20.1T8FIG-A.C1):

“I – Em conformidade com o previsto e determinado no n.º 4 do art.º 7.º da Portaria n.º 280/2013 de 26/08, se o formulário não se encontrar preenchido na parte relativa à identificação das testemunhas e se a parte persistir nessa omissão depois de notificada, nos termos previstos na citada disposição legal, para a corrigir, não pode ser considerada a indicação de prova testemunhal que apenas foi feita no ficheiro anexo a esse formulário.

II – A norma em questão não padece de inconstitucionalidade por violação do art.º 20.º da CRP, sendo certo que a sua aplicação não interfere, de forma arbitrária, excessiva e desproporcionada, com o direito da parte de apresentar prova testemunhal.”

- Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 23.04.2024 (Diogo Ravara) (Processo n.º 21761/22.0T8LSB-A.L1-7):

“I - A norma do nº 4 do art.º 7º da Portaria nº 280/2013, de 26-08, na redação que lhe foi conferida pela Portaria nº 267/2018, de 20-09 é formal e organicamente inconstitucional, por consagrar uma cominação processual não prevista na Lei processual civil, violando por isso o disposto nos art.ºs 112º, 161º, al. c), e 198º, nº 1, al. a), todos da Constituição da República Portuguesa.

II - Consequentemente, devem os Tribunais recusar a aplicação desta norma – art.º 204º da CRP.

III - Nas situações em que o autor ou o réu, na petição inicial, na contestação, ou na réplica arrolam testemunhas, mas não inserem no respetivo formulário eletrónico, a informação respeitante à prova testemunhal, não ocorre contradição entre o articulado e o formulário, mas antes omissão do preenchimento de um dos campos deste último.

IV - Nas circunstâncias descritas em III- não tem aplicação a cominação prevista no art.º 144º, nº 10, al. b) parte final do CPC e no art.º 7º, nº 2 da Portaria nº 280/2013, antes se devendo simplesmente considerar regularmente apresentado o rol de testemunhas, por ser evidente a vontade da parte em indicar prova testemunhal, aliás em conformidade com o disposto nos art.ºs 552º, nº 6 e 572º, al. d) do CPC.”

- Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 07.10.2024 (Eugénia Cunha) (Processo n.º 5343/23.2T8VNG-A.P1):

“II - Nas situações de falta de inserção no respetivo formulário eletrónico da informação respeitante à prova testemunhal oferecida no articulado, não ocorre contradição entre este e aquele, mas uma omissão de preenchimento de um dos campos deste.

III - Assim, nas referidas circunstâncias do caso, não tem aplicação a especial cominação (cfr. nº4, do art. 7º, da Portaria nº 280/2013, de 26/08), inconstitucional, nem a prevista na al. b), do nº10, do art.º 144º, do CPC, e no nº2, do art.º 7º, da referida Portaria, antes se devendo considerar apresentado o rol de testemunhas, por ser evidente a vontade da parte em indicar prova testemunhal, em conformidade com o disposto nos art.ºs 552º, nº 6 e 572º, al. d) do CPC, sempre podendo a parte suprir a falta de preenchimento do formulário (cfr. nº2, do art. 146º, do CPC).

IV - Outra interpretação e aplicação dos preceitos legais atinentes à matéria em causa, da referida Portaria e do Código de Processo Civil, mostrar-se-ia violadora da lei constitucional e da lei ordinária, por se revelar desadequada e desproporcional e a contender com as exigências de um processo equitativo, conduzindo a injustas decisões de forma em prejuízo das desejadas, de mérito.”

A questão em apreço tem, assim, vindo a ser abordada na jurisprudência sob duas perspetivas complementares:

- saber se a imposição de preenchimento do formulário Citius quanto ao rol de testemunhas, não obstante essa informação constar de peça anexa, é excessiva ou desproporcional;

- saber se a cominação de desconsideração do rol de testemunhas, na eventualidade da parte não efetuar o preenchimento do formulário, mesmo depois de notificada para esse efeito, é orgânica e materialmente inconstitucional.

No que tange à primeira questão, sendo possível à parte suprir a omissão, uma vez que se estabelece que deve ser notificada para esse efeito, entendeu-se já não ser a norma em causa excessiva ou desproporcional.

A este propósito importa sublinhar que a digitalização dos processos judiciais é um caminho longo que implica, necessariamente, a imposição da forma eletrónica para a prática dos atos de todos os intervenientes processuais, pois só assim se assegura a integralidade da informação constante do sistema.

Esta plena digitalização envolve uma alteração profunda nas formas de trabalho, sendo aqui que se encaixam as exigências de preenchimento de formulários, os quais no tempo presente acompanham obrigatoriamente o envio de peças processuais – articulados, requerimentos, recursos.

Estas considerações encontram, aliás, eco no preâmbulo da Portaria n.º 267/2018, de 20.09, onde se proclama que, por via das alterações então introduzidas na Portaria n.º 280/2013, de 26.08, “fica assim praticamente concluído o processo de universalização da tramitação eletrónica nos tribunais portugueses.”

A esta luz, a exigência de preenchimento do formulário, seja quanto às testemunhas arroladas, seja quanto a todos os demais aspetos que aí são mencionados, designadamente, o nome das partes, não é, efetivamente, excessiva ou desproporcional, desde que assista à parte a possibilidade de corrigir desconformidades ou omissões de preenchimento.

Relativamente à segunda questão, há quem sufrague a inconstitucionalidade da cominação, baseando-se na circunstância desta se encontrar prevista apenas na Portaria, não encontrando acolhimento no Código de Processo Civil.

Há, por outro lado, um aspeto que avulta na argumentação desenvolvida nos arestos citados e que se reconduz à distinção entre a omissão de preenchimento do formulário e o preenchimento divergente relativamente ao articulado que o acompanha.

Diz-se, com efeito, que no primeiro caso estamos fora do âmbito de aplicação do n.º 2 do artigo 7.º da Portaria n.º 280/2013, de 26.08 e do n.º 10 do artigo 144.º do Código de Processo Civil.

Trata-se de entendimento adotado por Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa (Código de Processo Civil Anotado, vol. I, Coimbra, 2018, pp. 172-173), no comentário ao artigo 144.º do Código de Processo Civil, em data anterior à introdução do n.º 10, os quais apontavam que o artigo 7.º da Portaria n.º 280/2013, de 26.08 (do qual não constava ainda o atual n.º 4), não resolvia o problema da falta de sanção “para a eventual inobservância de preenchimento dos formulários, sendo de entender que haverá uma mera irregularidade, e não uma nulidade, já que o vício não é suscetível de influir no exame ou decisão da causa (art. 195º, nº 1, e RP 24-2-15, 1967/14). Por outro lado, ao falar em divergência entre o conteúdo dos formulários e o dos anexos, não cobre o caso da omissão absoluta de preenchimento do formulário, constando a informação apenas do anexo. Esta situação é particularmente significativa no campo da prova testemunhal, quando o rol de testemunhas é vertido no anexo, mas nada consta do formulário. Não se tratando de um caso de divergência ou desconformidade, é evidente que o teor (omisso) do formulário não pode impedir a consideração das testemunhas arroladas no anexo relativo à peça processual (RL 27-1-2016, 390/15)”.

Compulsando, porém, a mais recente edição da mesma obra (3ª ed., 2024) constata-se que aí se diz agora o seguinte:

"O nº 10 do art. 144º replica o nº 2 do art. 7º da Port. nº 280/13, de 26-8, impondo a obrigatoriedade de preenchimento dos campos constantes dos formulários para a inserção de informação específica, não devendo tal informação ser apresentada apenas nos ficheiros anexos. Todavia, tal como já ocorria com o preceito anterior, o regime deve articular-se com o disposto no art. 146º, nº 2, facultando-se à parte a retificação do lapso quando, por exemplo, tenha feito constar o rol de testemunhas do anexo, omitindo-o no formulário (cf. RL 21-11-19, 2775/19, RL 6-12-17, 16694/16, RL 27-1-16, 390/15 e RP 24-2-15, 1967/14). Solução diversa, pelo seu radicalismo, colocaria em crise o objetivo de proporcionar às partes processo equitativo (RL 27-1-16, 390/15)."

No artigo 146.º do Código de Processo Civil, atinente ao “suprimento de deficiências formais de atos das partes”, estabelece-se que:

“1 - É admissível a retificação de erros de cálculo ou de escrita, revelados no contexto da peça processual apresentada.

2 - Deve ainda o juiz admitir, a requerimento da parte, o suprimento ou a correção de vícios ou omissões puramente formais de atos praticados, desde que a falta não deva imputar-se a dolo ou culpa grave e o suprimento ou a correção não implique prejuízo relevante para o regular andamento da causa.”

3. Revertendo ao caso em apreço, constata-se, desde logo, que não foi observado o procedimento instituído pelo n.º 4 do artigo 7.º da Portaria n.º 280/2013, de 26.08, porquanto não foi notificada a parte para proceder ao preenchimento do formulário quanto ao rol de testemunhas.

Em face do debate jurisprudencial acerca da norma evidenciada, o problema tem duas soluções alternativas:

i) a norma evidenciada é conforme à Constituição, logo, se a parte, devidamente notificada para o efeito, não proceder à inserção das testemunhas no correspondente formulário Citius, no prazo que lhe for fixado, as testemunhas não serão consideradas pelo Tribunal;

ii) a norma é inconstitucional, logo, deve ser recusada a sua aplicação e, em consequência, deve admitir-se a prova testemunhal indicada no articulado.

Mas esta tomada de posição tem presente a orientação que distingue a pura omissão de indicação de testemunhas no formulário e a divergência de conteúdo entre o formulário e o articulado que o acompanha, decorrente do preenchimento de ambos de forma distinta, e que exclui a primeira categoria de casos da previsão do artigo 144.º do Código de Processo Civil.

Com efeito, na economia do artigo 7.º da Portaria n.º 280/2013, de 26.08, o n.º 4 surge como uma concretização do n.º 2 do mesmo dispositivo, representando uma forma específica de prevalência do formulário sobre o articulado, num caso de omissão do preenchimento do formulário, de modo que se o formulário não contiver a indicação de testemunhas, ainda que elas constem do articulado anexo, considera-se que a parte não arrolou testemunhas.

Assim, podia afirmar-se que a disciplina contida no artigo 7.º da Portaria n.º 280/2013, de 26.08, era não apenas diferente, mas verdadeiramente conflituante com as regras constantes do Código de Processo Civil a este respeito, ao estabelecer a prevalência do formulário para um caso em que a lei processual civil não estabelecia essa solução.

É neste contexto que se enquadram as considerações tecidas na jurisprudência sobre a hierarquia normativa.

Efetivamente, compete ao Governo, em sede administrativa, “fazer os regulamentos necessários à boa execução das leis” (artigo 199.º, alínea c) da Constituição).

Segundo o artigo 135.º do Código do Procedimento Administrativo, consideram-se regulamentos administrativos as normas jurídicas gerais e abstratas que, no exercício de poderes jurídico-administrativos, visem produzir efeitos jurídicos externos.”

Estes regulamentos de execução podem assumir formas variadas – decretos, portarias, despachos, resoluções, circulares (Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, vol. II, 4ª ed., Coimbra, 2014, p. 488).

Por outro lado, “nenhuma lei pode (…) conferir a actos de outra natureza o poder de, com eficácia externa, interpretar; integrar; modificar; suspender ou revogar qualquer dos seus preceitos” (artigo 112.º, n.º 5 da Constituição).

Existe, pois, uma hierarquia de normas, que é encabeçada pelas leis, surgindo os regulamentos de execução numa posição vinculada e dependente das leis, de tal modo que “os regulamentos devem indicar expressamente as leis que visam regulamentar” (artigos 112.º, n.º 7 da Constituição, e 136.º, n.º 2 do Código do Procedimento Administrativo).

Daqui se retira que a Portaria em apreço deve ser considerada um regulamento destinado a dar execução ao ato normativo que instituiu o processo eletrónico (artigo 132.º, n.º 2 do Código de Processo Civil), pelo que não podia exceder os limites definidos pelas regras de tramitação contidas no diploma legal matriz, sob pena de ilegalidade.

Como refere Freitas do Amaral (Curso de Direito Administrativo, vol. II, Coimbra, 2001, p. 160), “os regulamentos de execução são, tipicamente, regulamentos “secundum legem”, sendo portanto ilegais se colidirem com a disciplina fixada na lei, de que não podem ser senão o aprofundamento”.

No mesmo sentido, aduz Ana Raquel Gonçalves Moniz (A Recusa de Aplicação de Regulamentos pela Administração com Fundamento em Invalidade, Dissertação de Doutoramento em Ciências Jurídico-Políticas, Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, Janeiro 2011, pp. 404-405, in https://estudogeral.uc.pt/bitstream/10316/17968/1/Tese_Ana%20Raquel%20Moniz.pdf, consultado em 26.11.2024) que por força da necessária mediação entre a Constituição e o regulamento efetuada pela lei, bem como por causa do princípio da preferência ou preeminência da lei, pode perguntar-se se sempre que um regulamento viole a lei é inconstitucional, por ofensa do daquele princípio constitucional de subordinação do regulamento à lei.

Conclui a Autora que a resposta para o problema reside no conceito de inconstitucionalidade indireta, que encerra no seu seio os casos em que a ofensa à Constituição se circunscreve ao preceito que estabelece a hierarquia das normas, não correspondendo a uma inconstitucionalidade em sentido próprio, mas a uma mera ilegalidade, pois “o único interesse constitucional aí considerado assume uma natureza essencialmente formal, correspondente ao interesse da «ordenação do sistema jurídico» e de «repartição de funções normativas»” (ibidem, p. 409).

É certo, no entanto, que pode um regulamento ser julgado inconstitucional, no caso de ofender diretamente a Constituição, seja por razões materiais, por exemplo, por conter normas que importem violação de direitos fundamentais ou invasão da esfera da reserva de lei; seja por razões formais, por exemplo, por omitir a referência à lei habilitante (ibidem, p. 410).

Todavia, como se disse acima, a norma em causa não ofende os princípios que caracterizam o processo equitativo, pelo que não se vislumbra que atente diretamente contra uma norma constitucional.

Em conclusão, como explica Rui Medeiros (Constituição Portuguesa Anotada, tomo III, Coimbra Editora, 2007, p. 63; no mesmo sentido, Gomes Canotilho e Vital Moreira, ob. cit., pp. 521-522), o artigo 204.º da Constituição contém um “princípio geral que decorre da própria subordinação dos tribunais à lei (em sentido amplo) expresso no artigo 203.º”, pelo que devem os tribunais recusar não só a aplicação de normas que ofendam a Constituição, como também de “normas infralegislativas que desrespeitem qualquer norma legal”, o que consentiria a recusa de aplicação da norma em evidência por ilegalidade.

Era este o cenário antes de 2019.

4. Após a introdução do referido n.º 10 no artigo 144.º do Código de Processo Civil desenha-se, contudo, um outro quadro.

Na verdade, passou a constar da lei processual civil, concretamente, da alínea b) daquele artigo 144.º, a equiparação adotada no n.º 2 do artigo 7.º da Portaria n.º 280/2013, de 26.08, entre omissão de preenchimento do formulário e o seu preenchimento de modo distinto do que consta da peça processual anexa: “em caso de desconformidade entre o conteúdo dos formulários e o conteúdo dos ficheiros anexos, prevalece a informação constante dos formulários, ainda que estes não se encontrem preenchidos.”

Ou seja, constitui desconformidade o preenchimento do formulário e da peça processual anexa de modo divergente – o rol vertido na petição ou na contestação tem mais ou menos testemunhas do que aquelas que foram inseridas no formulário, ou são indicadas pessoas diferentes num lado e no outro-, mas também constitui desconformidade a circunstância de não constarem testemunhas no formulário e ser apresentado rol na peça processual anexa.

Nestas circunstâncias não pode entender-se que a Portaria vai além da lei processual civil ou colide com ela, antes deve concluir-se que a solução plasmada no regulamento de execução é conforme à lei processual civil, tendo particularmente presente que o significado da prevalência do formulário sobre a peça processual anexa é o de se considerar o conteúdo do formulário em detrimento do conteúdo da peça processual anexa.

Ou seja, como acima dissemos, o n.º 4 do artigo 7.º da Portaria n.º 280/2013, de 26.08, constitui uma mera concretização do seu n.º 2, não estabelecendo uma solução inovadora ou distinta deste.

Por outro lado, o n.º 3 da Portaria n.º 280/2013, de 26.08, consagra uma solução análoga àquela que se mostra enunciada no artigo 146.º, n.º 2 do Código de Processo Civil, no sentido da possibilidade de correção das desconformidades, a requerimento da parte ou por determinação oficiosa do tribunal.

Não sendo estabelecido qualquer prazo específico para este efeito, deverá atender-se ao prazo supletivo legal de 10 dias, previsto no artigo 149.º, n.º 1 do Código de Processo Civil.

De novo, a esta luz, o n.º 4 representa uma mera concretização desta possibilidade de correção consagrada no n.º 3.

Assim, entendemos que não pode, atualmente, sustentar-se a ilegalidade da disciplina contida no artigo 7.º da Portaria n.º 280/2013, de 26.08, pelo que nada obsta à sua aplicação.

Consequentemente, cumpre revogar a decisão recorrida, atendendo a que não foi observado o disposto no n.º 4 do artigo 7.º da Portaria n.º 280/2013, de 26.08, pois não foi notificada a parte para, no prazo de 10 dias, preencher o formulário quanto à prova testemunhal, sob pena de se considerar apenas o conteúdo do formulário.

5. As custas da apelação serão suportadas pela parte vencida a final, porquanto sendo o recurso procedente, o Recorrente não é parte vencida, mas não tendo as demais partes contra-alegado, não são também partes vencidas; por outro lado, tratando-se de um recurso interlocutório, não está ainda definida a responsabilidade pelas custas da ação (neste sentido, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 12.01.2021 (Acácio das Neves), Processo n.º 6590/17.1T8FNC.L1.S1, in http://www.dgsi.pt/).

IV – Dispositivo

Pelo exposto, acordam os Juízes da Secção Cível deste Tribunal da Relação em julgar procedente o recurso, revogando a decisão recorrida.

Custas pela parte vencida a final.

Notifique e registe.

Évora, 5 de dezembro de 2024.

Sónia Moura

Filipe Aveiro Marques

Francisco Xavier