Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
1440/06.7TASTB-B.E1
Relator: ANTÓNIO JOÃO LATAS
Descritores: CONSTITUIÇÃO DE ASSISTENTE
LEGITIMIDADE
Data do Acordão: 05/24/2011
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NÃO PROVIDO
Sumário: O Instituto da Conservação da Natureza e da Biodiversidade (ICNB), não tem legitimidade para se constituir assistente em processo-crime em que está em causa a prática de um crime de desobediência, p. e p. pelas disposições conjugadas dos art. 348.º, n.º1, al. a) do CP e art. 100.º, n.º1, do Decreto-Lei n.º555/99, de 16 de Dezembro, por desrespeito de ordem de embargo de obra nova.
Decisão Texto Integral: Em conferência, acordam os Juízes na 2ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:

I. Relatório

1. – Nos presentes autos de processo comum com intervenção do tribunal singular que correm termos no 1º juízo do Tribunal Judicial de Setúbal, é arguido Francisco D., que foi pronunciado como autor de um crime de desobediência p. e p. pelo art. 348º nº1 al. a) do Código Penal, com referência ao art. 100º, n.º 1 do Decreto-Lei n.º 555/99, de 16 de dezembro, na redação que lhe foi dada pelo Decreto-Lei n.º 177/01, de 4 de junho.

2. - Depois de designada data para a audiência de julgamento, o Instituto da Conservação da Natureza e da Biodiversidade, requereu em 07.05.2010 (fls. 262) a sua constituição como assistente, o que foi indeferido por despacho judicial de 01.07.2010

3. – Inconformado, veio o Instituto Conservação da Natureza e da Biodiversidade recorrer daquele mesmo despacho, extraindo da sua motivação as seguintes

« CONCLUSÕES:


O arguido encontra-se acusado e pronunciado da prática do crime de desobediência, previsto e punido no art. 348º, n.º1 do Código Penal, conjugado como o art. 100º, n.º1 do Decreto-Lei n.º555/99, de 16 de Dezembro, por factos noticiados pelo Recorrente, por meio de competente denúncia junto do Ministério Público do Tribunal Judicial de Setúbal.


Veio o Recorrente requerer a sua constituição como assistente, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 68º do Código de Processo Penal, estando em tempo, estando representado por Mandatária e tendo procedido ao pagamento da taxa de justiça.


O Ministério Público, bem como o arguido não se opuseram a tal requerida constituição como assistente.


Todavia, foi proferido o douto despacho pelo Tribunal a quo, que indeferiu a pretensão do Recorrente.


A ordem de embargo foi proferida pelo Recorrente, efectivamente, no exercício das suas atribuições, pelo que o crime de desobediência, que consiste precisamente na violação da ordem inserta em tal embargo.


Após violação da referida ordem de embargo, o recorrente, também no exercício das suas atribuições, procedeu à respectiva denúncia junto do Ministério Público do Tribunal Judicial de Setúbal.

O crime de desobediência, previsto e punido no art. 348º, n.º1, al. a) do Código Penal, conjugado como o art. 100º, n.º1 do Decreto-Lei n.º555/99, de 16 de Dezembro, comporta um bem jurídico supra individual e em simultâneo, individual.


Dos factos carreados para os autos, é precisamente com desiderato de prosseguir o interesse público que decorre a este propósito do art.1º do Decreto-Lei n.º 136/2007, de 27 de Abril, que o Recorrente apresentou a respectiva denúncia.


Pelo que, à luz do disposto no art. 68º, n.º1, al.a) do Código de Processo Penal, o Recorrente tem legitimidade processual para se constituir como assistente.

10º
Ao contrário, do que é defendido no douto Despacho de indeferimento proferido pelo Tribunal a quo, o Recorrente tem um interesse particular ofendido, nomeadamente, a própria defesa do conteúdo e efeitos, da ordem por si exarada, dotada portanto, de autoridade pública.

11º
Em momento algum, o disposto no art. 68º do Código de Processo Penal, restringe ou condiciona a legitimidade para a constituição como assistente, à natureza jurídica da entidade ou pessoa, que pretenda requerê-lo para o efeito, considerar o contrário seria ter uma visão marcadamente restritiva e limitadora do disposto no art. 68º, n.º1, al. a) do Código Penal, com a qual não se concorda.

12º
Compulsada a jurisprudência citada, resulta evidente que deve ser admitida a constituição como assistente, do ofendido nos crimes de natureza jurídico-processual pública, entendendo-se que o bem jurídico deste não é exclusivamente supra-individual.

13º
Assim, se é verdade, que o facto da entidade pública Recorrente exarar uma decisão administrativa legítima, válida e eficaz, que impõe restrições ao próprio arguido, no tocante ao exercício do seu ius aedificandi, não é menos verdade, que o desrespeito por parte desta coloca em causa a própria autoridade pública, que a pessoa colectiva de direito público embargante in casu, detém por força do Decreto-Lei n.º 136/2007, de 27 de Abril.

14º
O crime de desobediência é no caso vertente, interpretado como um meio de compulsão, destinado a sancionar desrespeito, por parte do destinatário, da obediência que este deve prestar, a ordem ou mandado legítimos, emanados de autoridade competente.

15º
Com efeito, é por demais evidente, que o Recorrente é ofendido no caso sub judice, por ser igualmente, titular do interesse concreto protegido e tutelado pela norma penal incriminadora vertida no art. 348º, n.º1 do Código Penal, conjugado como o art. 100º, n.º1 do Decreto-Lei n.º555/99, de 16 de Dezembro.

16º
Consequentemente, só se pode extrair a conclusão, que o Recorrente tem plena legitimidade processual para se constituir como assistente, no presente caso sub judice.

17º
É assim ilegal, por violação do disposto no artigo 68.º, n.º 1, alínea a) do Código de Processo Penal, a decisão do Meritíssimo Juiz do Tribunal a quo que indeferiu a constituição como assistente do ora Recorrente, devendo ter interpretado tais normas no sentido oposto àquele que resulta da decisão recorrida.

18º
Ademais, deve também considerar-se o douto Despacho de indeferimento proferido pelo Meritíssimo Juiz do Tribunal a quo, encontra-se eivado de inconstitucional material, por violação do preceituado nos artigos 20.º, n.º a 4 e 5 e 32.º, n.º 7 da Constituição da República, a norma extraída pelo Meritíssimo Juiz do Tribunal a quo do disposto no artigo 68.º, n.º 1, alínea do Código de Processo Penal, segundo a qual à entidade prejudicada com o incumprimento de uma decisão administrativa, não lhe é permitido constituir-se assistente no âmbito do processo-crime que vise o apuramento da responsabilidade criminal decorrente da desobediência à mesma ordem administrativa decretada, pelo facto do bem jurídico protegido pela incriminação ser supra individual, não se atendendo ao facto de o bem jurídico em causa, ser misto, comportando por um lado, o interesse público e por outro, o interesse particular, na defesa e protecção da própria autoridade pública do conteúdo essencial, das decisões administrativas.

Nestes termos e nos melhores de Direito e com o sempre mui douto suprimento de V. Exas., deve a decisão proferida pela Mmo. Juiz de Direito do Tribunal Judicial de Setúbal ser revogada e substituída por outra que admita a constituição do Recorrente como assistente nos presentes autos, com todas as consequências legais. »

4. - Em 1ª instância, apenas o MP apresentou resposta, pugnando pela improcedência do recurso e a consequente confirmação do acórdão recorrido.

5.- Nesta Relação, a senhora magistrada do MP apresentou parecer no mesmo sentido.

7. – Cumprido o disposto no art. 417º nº2 do CPP, o Instituto recorrente veio reafirmar a sua pretensão, solicitando a aplicação da fixação de jurisprudência decorrente do acórdão do STJ nº 10/2010.

8. – O despacho recorrido:

«O Instituto da Conservação da Natureza e da Biodiversidade, I. P. veio requerer em 07.05.2010 (fls. 262) a sua constituição como assistente nos presentes autos.

Notificados do pedido de constituição de assistente, o Ministério Público e o arguido nada disseram.
Cumpre decidir.

Nos presentes autos foi proferido despacho de pronúncia (fls. 178, ex vi fls. 66-68) imputando a Francisco D. a prática, como autor material, de um crime de desobediência, p. e p. pelo artigo 348º, n.º 1, alínea a) do Código Penal, por referência ao artigo 100º, n.º 1 do Decreto-Lei n.º 555/99, de 16 de Dezembro, na redacção que lhe foi dada pelo Decreto-Lei n.º 177/01, de 4 de Junho.

Por despacho de 02.02.2009 (fls. 192-196) foi designado o dia 18.10.2009 para a realização da audiência de discussão e julgamento.

Assim, e em face do disposto no artigo 68º, n.º 3, alínea a) do Código de Processo Penal o pedido de constituição de assistente foi tempestivamente apresentado.

Além disso, o requerente encontra-se devidamente representado por mandatário nos termos prescritos pelo artigo 70º, n.º 1 do Código de Processo Penal.

No que concerne à legitimidade do mesmo há, contudo, que ter em conta que, salvo disposição especial que outra coisa preveja, assistente é o sujeito processual que encarna os interesses particulares prejudicados pelo crime.

Antes de mais, convém referir que a noção de assistente não coincide com a de ofendido; é mais ampla. O ofendido é, apenas, uma das pessoas ou entidades a quem a lei atribui o direito de se constituir assistente (cfr. artigo 68º, nº1 do Código de Processo Penal).

Todavia, também é certo que quando o ofendido pretende constituir-se como assistente (como ocorre in casu) deve entender-se que só tem legitimidade para tal, aquele que a norma incriminatória particularizou como objecto da tutela, ainda que em concurso com outros interesses (cfr. doutrina do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º 1/2003, publicado no Diário da República - I Série A, de 27 de Janeiro de 2003.

De facto, conforme se extrai do recente Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, Processo n.º 1208/08.6TDLSB.C1, de 28.01.2010, disponível em www.dgsi.pt, “não se integram no âmbito do conceito de ofendido os titulares de interesses cuja proteção é puramente mediata ou indireta, ou vítimas de ataques que põem em causa uma generalidade de interesses e não os próprios e específicos do candidato a assistente; da própria expressão legal deriva que não basta uma ofensa indireta a um determinado interesse para que o seu titular se possa candidatar à categoria de assistente; a legitimação do ofendido deve ser aferida em relação ao crime específico que estiver em causa.”

Mais se refere no mencionado Acórdão que “ (…) a circunstância de ser protegido um interesse de ordem pública não afasta, sem mais a possibilidade de, ao mesmo tempo, ser também imediatamente protegido um interesse suscetível de ser corporizado num concreto portador, assim se afirmando a legitimidade material do ofendido para se constituir assistente (vide Acórdão do STJ para Fixação de Jurisprudência n°1/2 publicado no Diário da República n°49, 1 Série — A, de 27 de fevereiro de 2003). Todavia, para esse efeito, impõe-se interpretar o tipo incriminador em ordem a aferir se há uma pessoa concreta cujos interesses são protegidos com a incriminação.
De facto, a consideração de que o crime ofende primacialmente interesses da comunidade não determina, por si só, que não possa ofender interesses de um concreto particular.” (sublinhado nosso).

Ora, nos presentes autos o arguido é acusado de um crime de desobediência, porquanto em março de 2006 levava a efeito a construção de duas moradias, na Estrada …, Casais da Serra, violando normas prescritas no Regulamento do Parque Natural da Serra da Arrábida. Determinado o embargo da obra e notificado o mesmo ao arguido, este prosseguiu os trabalhos de execução da obra (cfr. fls. 178, ex vi fls. 66-68).

O crime de desobediência integra o Título V, Dos Crimes Contra o Estado do Livro II (parte especial) do Código Penal.

No crime de desobediência o bem jurídico protegido é a “autonomia intencional do Estado”, visando tutelar-se a autoridade pública do Estado, revelada na atuação dos diversos membros e agentes, desde que agindo com o reflexo da soberania, de jus soberanum (cfr. Cristina Líbano Monteiro, Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo III, pág 350).

Ora, numa situação, como a dos presentes autos em que o arguido alegadamente não acatou uma ordem legitima de uma autoridade competente, que lhe foi devidamente comunicada, o âmbito da ilicitude abrange apenas interesses públicos de que o Estado é único titular imediato - concretamente o cumprimento e aceitação de decisões emanadas dos seus órgãos legitimados para tal.

Não existem quaisquer interesses particulares do ora requerente, mesmo que este se considere prejudicado com o não acatamento da referida ordem. De facto, quando muito poder-se-ia falar quanto a este de uma proteção indireta, de segunda linha ou reflexa (neste sentido, Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, Processo n.º 0545946, de 19.04.2006, disponível em www.dgsi.pt). Mas não estão em causa, quaisquer concretos interesses que a norma incriminadora tenha particularizado como objeto de proteção.

De facto, o bem jurídico protegido com a incriminação não é a natureza, mas antes o da proteção da autoridade pública, da autoridade do Estado. O qual, é apodítico, é bem jurídico axiologicamente relevante, protegido constitucionalmente e cuja violação pode pôr em causa o próprio Estado de Direito.

Em face do exposto, considerado o facto ilícito em causa nestes autos, indefere-se a requerida constituição como assistente do Instituto da Conservação da Natureza e da Biodiversidade, I. P., por não ser este titular de qualquer interesse que a lei queira proteger com a incriminação.
*
Elaborado em computador e revisto pelo signatário – artigo 94.º, n.º 2 do Código do Processo Penal

Setúbal, 01.07.2010»

Cumpre agora apreciar e decidir o presente recurso.

II. Fundamentação

1. Delimitação do objeto do recurso e dos poderes de cognição do tribunal ad quem
É pacífico o entendimento de que o âmbito do recurso se define pelas conclusões que o recorrente extrai da respetiva motivação, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso.

No presente recurso, a questão a decidir é a de saber se o Instituo recorrente tem legitimidade para se constituir assistente, face ao disposto no art. 68º nº1 al. a) do CPP que a atribui aos «…ofendidos, considerando-se como tais os titulares dos interesses que a lei especialmente quis proteger com a incriminação…»

2. – Decidindo

2.1. – A questão da legitimidade para a constituição de assistente em alguns crimes, nomeadamente de natureza pública, tem-se colocado na doutrina e na jurisprudência por referência ao conceito de ofendido acolhido no citado art. 68º nº1 al. a) do CPP.

2.1.1. - Começando por distinguir entre um conceito restrito, ou estrito, de ofendido por oposição ao conceito alargado da mesma noção legal, pode afirmar-se, por todos, com o recente acórdão para fixação de jurisprudência (doravante AFJ) nº 10/2010 de 17.11.2010, que, conforme é entendimento tradicional “…a lei processual penal consagra um conceito estrito (ou restrito) de ofendido, com isso se querendo significar que nem todo o lesado, afetado ou prejudicado com a prática do crime, é reconhecido como «ofendido», mas apenas o titular dos interesses especialmente protegidos com a incriminação, cabendo unicamente a este, assim, o acesso à condição de assistente.”

Ou, na expressão de F. Dias e Anabela Miranda Rodrigues, o conceito estrito ou típico de ofendido abrange “…apenas aquelas pessoas (naturalmente: singulares ou coletivas) que, segundo o critério que se retira do tipo preenchido pela conduta criminosa, se apresentam como titulares do bem jurídico por aquele violado ou posto em perigo”. Cfr A legitimidade da sociedade portuguesa de autores em processo criminal (Parecer) in Direito de autor: gestão e prática judiciária. Temas de direito de autor SPA-3, 1989, p. 109.

Ficarão, pois, fora do conceito de ofendido legalmente desenhado, aqueles que devam considerar-se meros lesados ou prejudicados com a prática do crime, no sentido de ter sofrido danos por este produzidos e jurídico-civilmente avaliáveis, sem que possam considerar-se titulares do bem jurídico protegido com a incriminação.

Desenhada a noção legal de ofendido por sobre o bem jurídico protegido e o tipo legal de crime, a pergunta decisiva para aferir da qualidade de ofendido passa a ser, pois, a de saber quem deve reputar-se titular do bem jurídico protegido, no sentido da lei. – Cfr F. Dias e Anabela Rodrigues, est. cit. p. 112.

Ora, durante muito tempo a doutrina e a jurisprudência tenderam a fazer depender a possibilidade de um particular ser titular do bem jurídico protegido, do seu caráter individual, de tal modo que perante incriminações teleologicamente fundadas na tutela de bens jurídicos supraindividuais ou coletivos não se reconhecia ser o particular titular do interesse que a lei especialmente quis proteger com a incriminação.

O interesse especialmente protegido com a incriminação era entendido com o sentido de titular do interesse «direta», «imediata» e «predominantemente» protegido pela incriminação. Entendia-se, assim, que «Pode um tipo incriminador tutelar também um interesse ou bem jurídico pessoal, mas se este não ocupar o plano central da tutela, o seu titular não deve ser considerado ofendido e portanto não deve ser admitida a sua constituição como assistente.» - Cfr, criticamente, Augusto Silva Dias, A tutela do ofendido e a posição do assistente in Jornadas de direito processual penal e direitos fundamentais, Almedina-2004 pp. 56 e 57.

Conforme refere, por todos, este mesmo autor (loc.cit), a jurisprudência que adotava este critério, rejeitava a possibilidade de constituição como assistente nos crimes de desobediência, de falsificação de documento, de manipulação de mercado, de violação do segredo de justiça, de prevaricação e de denegação de justiça, não só com fundamento no argumento literal baseado na expressão “interesse que a lei quis especialmente proteger” da al. a) do nº1 do art. 68º, mas também por se entender que daquele modo se observava melhor a natureza pública do processo penal e a regra, a ela conforme, de que a titularidade da ação penal cabe ao MP, para além de outros argumentos referidos no texto ora citado.

b) Todavia, como se refere no citado AFJ 10/2010, a jurisprudência evoluiu e decisões dos tribunais superiores, designadamente do STJ, vieram a reconhecer a particulares o estatuto de ofendido, nos termos e para efeitos da al. a) do nº1 do art. 68º do CPP, em processos por alguns daqueles crimes. Assim sucedeu com o Ac STJ de 29.03.2000, num processo por crime de denúncia caluniosa, com o argumento de que a pessoa visada pela denúncia é portadora de um interesse especialmente protegido pela incriminação a par do interesse público mediato, o mesmo sucedendo com o AFJ 8/2006, que reconheceu ao caluniado legitimidade para se constituir assistente. Já anteriormente o AFJ 1/2003 decidira que, em processo por crime de falsificação previsto e punível pelo art. 256º nº1 al. a) do C.Penal, tinha legitimidade para se constituir assistente à pessoa cujo prejuízo seja visado pelo agente do crime.

c) Veio agora o citado AFJ nº 10/2010, em processo por crime de desobediência decorrente de violação de providência cautelar, p. e p. pelo art. 391º do C.P.Civil e 348º nº2 do C. Penal, decidir que o requerente da providência violada tem legitimidade para se constituir assistente, com fundamentos que, no essencial, acompanhamos.

Na verdade, como se refere no AFJ 10/2010, mesmo os crimes contra o Estado [como é caso do crime de desobediência] ou contra a vida em sociedade podem «esconder» algum ou alguns interesses particulares suficientemente valiosos para a lei lhes reconhecer proteção direta, a par do interesse público ou social que constitui o objetivo primeiro daqueles tipos de crimes.

“Em síntese [como se escreveu naquele AFJ] sempre que for identificado um interesse determinado, corporizado num concreto portador, que não se confunda com o interesse (típico do lesado) no simples ressarcimento do dano sofrido, nem com o interesse geral na mera vigência das normas penais (as chamadas «expectativas comunitárias»), estaremos perante um bem jurídico protegido.”

Como se diz no mesmo AFJ 10/2010, quando o crime de desobediência tem a sua causa na violação de providência cautelar requerida por particular, como ali sucedia, é a coercibilidade penal da providência decretada que a incriminação garante, em benefício manifesto de quem a requereu que é, assim, portador de um interesse próprio, específico, direto e identificável no cumprimento da ordem emanada da providência, pelo que a garantia penal consubstanciada na incriminação da violação da providência como desobediência representa uma garantia específica, uma garantia penal, dirigida à proteção dos interesses privados dos requerentes.

Donde conclui que, por isso, há que reconhecer a titularidade de um interesse específico, de um bem jurídico autónomo àqueles mesmo requerentes, impondo-se, assim, reconhecer-lhes legitimidade no processo crime relativo ao respetivo crime de desobediência.

2.1.2. - No caso presente, porém, a situação não corresponde à versada no AFJ 10/2010 nem a argumentação do Instituto recorrente é sobreponível à fundamentação daquele mesmo acórdão do STJ.

O Instituto da Conservação da Natureza e da Biodiversidade (ICNB) foi a entidade que procedeu ao embargo de obra nova, cuja violação terá feito incorrer o arguido no crime de desobediência, em face do disposto no art. 100º do dec-lei 555/99 de 16 de dezembro, e invoca a seu favor, como interesse igualmente protegido pela incriminação do art. 348º do C. Penal, a proteção da autoridade própria do Instituto recorrente, que, segundo entende, foi igualmente desrespeitada pelo alegado crime de desobediência do arguido, sendo assim o Instituto ofendido, nos termos do art. 368º nº1 al. a) do CPP (cfr, em especial, as conclusões 7ª, 10ª, 13ª e 15ª, da sua motivação de recurso).

Ora, à defesa da autonomia intencional do Estado que constitui o bem jurídico protegido de forma matricial pelo tipo penal de desobediência, não corresponde um interesse próprio, particular, do órgão, entidade ou serviço do Estado de onde emanou a ordem desrespeitada, distinto do interesse do próprio Estado no respeito da sua autoridade, pois esse é um interesse público que, por definição, radica no próprio Estado, cabendo ao MP defendê-lo. O recorrente é um instituto público na esfera da administração indireta do Estado, apenas dotado de autonomia administrativa e financeira, que prossegue atribuições do Ministério do Ambiente, do Ordenamento do Território e do Desenvolvimento Regional, sob superintendência e tutela do respetivo ministro (cfr nºs 1 e 2 do art. 1º do Dec-lei 136/2007 de 27 de abril) e que, portanto, não se distingue do Estado-administração, que integra. Não se verifica uma diferenciação de interesses entre o Instituto recorrente e o MP no que respeita à defesa da autoridade do Estado, que permita reconhecer no Instituto recorrente uma corporização do interesse na defesa dessa autoridade atributiva de alguma autonomia relativamente à atividade do MP nessa matéria. – Cfr Damião da Cunha, A participação dos particulares no exercício da ação penal in RPCC 8 (1998), fasc 4º, 635, pp 634 e 636, onde o autor manifesta o entendimento de que a autonomia do assistente em relação à actividade do MP implica uma diferenciação de interesses e sobretudo uma diferenciação de corporização de interesses. Conclui que não lhe parece que possa dizer-se que a administração (fiscal), corporize, por forma substancialmente diferente, um interesse que é assumido pela da justiça em que, em geral, se integra também o MP., desde logo porque Administração fiscal e administração da Justiça são funções de uma mesma pessoa (pelo que eventuais conflitos entre elas, se não deverão resolver tanto pelo mecanismo de resolução judiciária, mas talvez por via político-administrativa). – Cfr p. 636.

Assim, não pode considerar-se, para efeitos do art. 68º nº1 al. a) do CPP, que o órgão ou serviço do Estado cuja ordem foi alegadamente desrespeitada seja ofendido, pois não está em causa um direito próprio, autónomo, a ver respeitada a sua autoridade, visto que é a autonomia intencional do Estado, enquanto bem jurídico protegido pelo crime de desobediência, que é protegida.

Questão diversa desta é a de a lei ordinária, por razões de política criminal, poder conferir expressamente a certos órgãos ou serviços do próprio Estado o direito a constituir-se assistente, como se verificava com a administração fiscal, por força do art. 46º do RGIT, ou que atribua tal direito a qualquer pessoa em certos crimes, nos termos da al. e) do nº1 do art. 68º do CPP.

Na verdade, independentemente das questões de autonomia substantiva que aquela faculdade legal suscitava, a atribuição do direito a constituir-se assistente a pessoa ou entidade por lei especial, nos termos do art. 68º nº1, corpo, do CPP, não significa que se lhes reconheça, por essa via, um interesse próprio de ofendido, mas antes que a lei atribui o direito a constituir-se assistente a pessoas diversas do ofendido e, portanto, independentemente do interesse próprio exigido pelo mesmo art. 68º nº1 al. a) do CPP. Parafraseando o citado AFJ 10/2010, trata-se, nesses casos, de uma ampliação a não ofendidos da legitimidade para se constituir assistente e não de uma ampliação do conceito de ofendido.

Concluímos, pois, embora com fundamentação diversa do despacho recorrido, que o Instituto da Conservação da Natureza e da Biodiversidade (ICNB), ora recorrente, não tem legitimidade para se constituir assistente nos presentes autos, pelo que se nega provimento ao recurso por si interposto, mantendo a decisão recorrida.

III. Dispositivo
Nesta conformidade, acordam os Juízes na 2ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora, em negar provimento ao recurso, mantendo integralmente o despacho recorrido.

Custas pelo recorrente, fixando-se em 3 UC a taxa de justiça devida. – art.s 515ºº nº 1 b) do CPP e 87 nº1 b) do CCJ..

Évora, 24 de Maio de 2011

(Processado em computador. Revisto pelo relator.)
(António João Latas)
(Carlos Jorge Viana Berguete Coelho)