Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
5/12.9PEFAR-E1
Relator: RENATO BARROSO
Descritores: UNIDADE E PLURALIDADE DE INFRACÇÕES
CRIME CONTINUADO
CONCURSO APARENTE DE INFRACÇÕES
MEDIDA DA PENA
Data do Acordão: 04/29/2014
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: N
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NÃO PROVIDO
Sumário:
I - Para se firmar uma unidade resolutiva é necessário poder afirmar que o agente actuou de forma a não ter de renovar a sua motivação delitiva.

II – São fundamentalmente três os requisitos do crime continuado:

- o bem jurídico violado sucessivamente pelo agente tem de ser o mesmo, ainda que as infracções criminais por si cometidas se reportem a mais do que um tipo legal de crime aquilo a que o Prof. Eduardo Correia chamou a unidade do injusto do resultado;

- a execução criminógena tem de ser homogénea, ou seja, praticada sob o mesmo núcleo, em que a essência dos actos delitivos se enquadrem em idênticos procedimentos e com tais propósitos delituosos, aquilo a que, nos mesmos termos, foi denominado, respectivamente, a unidade do injusto objectivo da acção e a unidade do injusto pessoal da acção ;

- tal execução ter-se-á de desenrolar no quadro de uma situação exterior ao agente, de forma a se poder dizer que lhe era cada vez menos exigível se comportar de acordo com o direito.

III - A essência do crime continuado está na diminuição considerável da culpa, em virtude da persistência de uma situação exterior, exógena ao agente, que facilita a actividade delituosa e a continuação da antijuricidade. Não basta, portanto, uma mera diminuição da culpa para se poder falar em crime continuado. O que é fundamental, é que as múltiplas actividades criminosas tenham sido determinadas na disposição exterior das coisas, as quais, facilitam a repetição, sendo cada vez menos exigível ao agente que actue de acordo com os comandos legais.

IV – Há concurso efetivo de infrações nos casos em que o dano serve apenas como meio de cometimento de um crime de furto, por violar um bem juridico distinto e a conduta danosa não se mostrar compreendida na valoração da ilicitude social típica do crime de furto, já qualificado por outra circunstância.
Decisão Texto Integral:
ACORDAM OS JUÍZES, EM CONFERÊNCIA, NA SECÇÃO CRIMINAL DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE ÉVORA

I. RELATÓRIO
A – Decisão Recorrida

No processo comum colectivo nº 5/12.9PEFAR, do 2º Juízo do Tribunal da Comarca de Faro, foi, entre outro, o arguido A., absolvido da prática, em co-autoria, de um crime de tráfico de estupefacientes, p.p. pelo Artº 21 nº1 do D.L. 15/93, de 22/01 e condenado pela prática de :

- um crime de tráfico de estupefacientes de menor gravidade, p.p. pelo Artº 25 al. a) do D.L. 15/93, de 22/01, na pena de 2 ( dois ) anos e 3 ( três ) meses de prisão ;

- dois crimes de furto qualificado, p.p. pelos Artsº 203 nº1 e 204 nº1 als. b) e f), ambos do C.Penal, na pena, por cada um, de 14 ( catorze ) meses de prisão ;

- dois crimes de dano, p.p. pelo Artº 212 nº1 do C.Penal, na pena, por cada um, de 6 ( seis ) meses de prisão ;

Em cúmulo jurídico destas penas, na pena única de 4 ( quatro ) anos de prisão.

B – Recurso
Inconformado com o assim decidido, recorreu o arguido tendo concluído as respectivas motivações da seguinte forma (transcrição):
(...)

C – Resposta ao Recurso
O M.P., junto do tribunal recorrido, respondeu ao recurso, concluindo da seguinte forma (transcrição):

a) o arguido cometeu dois crimes de furto qualificado – e não um crime continuado – uma vez que há diferentes resoluções criminosas para cada um deles e cada um deles implica um juízo de desvalor autónomo;

b) não estão preenchidas, por isso, as exigências previstas no art. 30, nº:2 do CP, não podendo considerar-se um só crime de furto continuado as subtracções que o arguido praticou nos dois automóveis;

c) os crimes de furto qualificado praticados pelo arguido não consomem os crimes de dano, pois cada um desses crimes violou bens jurídicos distintos;

d) a medida da pena aplicada pelo crime de tráfico de estupefacientes de menor gravidade p. e p. no art. 25, a) do DL 15/93 está devida e correctamente fundamentada no acórdão;

e) considerando a pena excessiva, o recorrente não invoca circunstâncias que ponham em causa tal fundamentação e justifiquem uma medida diferente;

f) a pena aplicada ao recorrente não pode ser suspensa na sua execução face ás exigências de prevenção especial, nomeadamente tendo em conta as anteriores condenações e a prática de um dos crimes agora em apreciação durante o período de suspensão de outra pena de prisão;

g) pelo que o recurso não merece provimento, devendo ser mantido o acórdão recorrido.

D – Tramitação subsequente
Aqui recebidos, foram os autos com vista à Exmª Procuradora Geral Adjunta, que militou pela manutenção da decisão recorrida.

Observado o disposto no Artº 417 nº2 do CPP, não foram apresentadas respostas.

Efectuado o exame preliminar, determinou-se que o recurso fosse julgado em conferência.

Colhidos os vistos legais e tendo o processo ido à conferência, cumpre apreciar e decidir.

2. FUNDAMENTAÇÃO
A – Objecto do recurso

De acordo com o disposto no Artº 412 do CPP e com a Jurisprudência fixada pelo Acórdão do Plenário da Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça n.º 7/95, de 19/10/95, publicado no D.R. I-A de 28/12/95 (neste sentido, que constitui jurisprudência dominante, podem consultar-se, entre outros, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 12 de Setembro de 2007, proferido no processo n.º 07P2583, acessível em HYPERLINK "http://www.dgsi.pt/" HYPERLINK "http://www.dgsi.pt/"www.dgsi.pt, que se indica pela exposição da evolução legislativa, doutrinária e jurisprudencial nesta matéria) o objecto do recurso define-se pelas conclusões que o recorrente extraiu da respectiva motivação, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso.

Na verdade e apesar do recorrente delimitar, com as conclusões que retira das suas motivações de recurso, o âmbito do conhecimento do tribunal ad quem, este contudo, como se afirma no citado aresto de fixação de jurisprudência, deve apreciar oficiosamente da eventual existência dos vícios previstos no nº2 do Artº 410 do CPP, mesmo que o recurso se atenha a questões de direito.

As possibilidades de conhecimento oficioso, por parte deste Tribunal da Relação, decorrem, assim, da necessidade de indagação da verificação de algum dos vícios da decisão recorrida, previstos no nº 2 do Artº 410 do CPP, ou de alguma das causas de nulidade dessa decisão, consagradas no nº1 do Artº 379 do mesmo diploma legal.

In casu e cotejando a decisão em crise, não se vislumbra qualquer uma dessas situações, seja pela via da nulidade, seja ainda, pelos vícios referidos no nº2 do Artº 410 do CPP, os quais, recorde-se, têm de resultar do acórdão recorrido considerado na sua globalidade, por si só ou conjugado com as regras de experiência comum, sem possibilidade de recurso a quaisquer elementos que ao mesmo sejam estranhos, ainda que constem dos autos.

Efectivamente, do seu exame, não ocorre qualquer falha na avaliação da prova feita pelo Tribunal a quo, revelando-se a mesma como coerente com as regras de experiência comum e conforme à prova produzida, na medida em que os factos assumidos como provados são suporte bastante para a decisão a que se chegou, não se detectando incompatibilidade entre eles e os factos dados como não provados ou entre a fundamentação e a decisão.

Assim sendo, considera-se definitivamente fixada a decisão proferida pela 1ª Instância sobre a matéria de facto.

Também não se verifica a inobservância de requisito cominado sob pena de nulidade que não deva considerar-se sanada (Artº 410 nº3 do CPP).

Posto isto, inexistindo qualquer questão merecedora de aferição oficiosa, o objecto do recurso cinge-se, tão só, às conclusões do recorrente, nas quais se solicita o seguinte:

1) Aplicação da figura do crime continuado aos de furto qualificado e de dano pelos quais foi condenado;
2) Aplicação da figura do concurso aparente entre estes crimes;
3) Aplicação de penas parcelares mais baixas;
4) Aplicação, em cúmulo jurídico, de uma pena de prisão suspensa na sua execução;

B – Apreciação
Definidas as questões a tratar, importa considerar o que se mostra fixado, em termos factuais, pela instância recorrida.

Aí, foi dado como provado e não provado, o seguinte (transcrição):
2.Factos provados
(...)
Estabelecida a base factual pelo acórdão em análise, importa apreciar da bondade do peticionado pelo recorrente:

B.1. Do crime continuado:
Entende o recorrente, nesta sede, que a sua actuação ao nível dos crimes de furto qualificado e de dano deve ser enquadrada na figura de crime continuado, em relação a cada um dos ilícitos, por se tratar do mesmo tipo de crime, em ambos os casos, protector do mesmo bem jurídico, o património e foram executados de forma homogénea e no quadro de uma solicitação exterior que lhe diminui a culpa.

Salvo o devido respeito, não lhe assiste qualquer razão.

Atente-se contudo e primeiramente, no que, especificamente a tal propósito, se disse na decisão recorrida (transcrição):

Vindo imputada a prática de um crime de furto, verifica-se que o arguido, no interior da garagem, se apoderou de bens que se encontravam no interior de dois veículos distintos, tendo forçado o acesso a cada um deles. Estas são circunstâncias que justificam que se discuta a existência de eventual pluralidade delitiva.

Face ao art. 30º n.º1 do CP, e perante o preenchimento múltiplo do mesmo tipo de crime, o número de crimes efectivamente praticados será determinado pelo número de vezes que aquele tipo de crime foi preenchido. Para definir este valor, e de acordo com a solução proposta por E. Correia, existirá uma pluralidade delitiva quando o agente, de cada vez que praticou o mesmo crime, se sujeita a um novo ou renovado juízo de censura, o que acontecerá quando a cada preenchimento do mesmo tipo legal corresponda uma nova e diferente resolução criminosa. Diversamente, se se preenche por várias vezes o mesmo tipo legal mas ao abrigo da mesma resolução criminosa, então estar-se-á perante a prática unitária do mesmo crime. Em sentido diverso, entende F. Dias que, como cada tipo de ilícito é portador de um específico sentido de desvalor jurídico-penal que atinge um concreto comportamento humano numa concreta situação, a pluralidade delitiva existirá quando o(s) comportamentos(s) em causa revelarem uma pluralidade de sentidos sociais de ilicitude[1].

Está apurado que o arguido entrou na garagem com a intenção de fazer seus objectos de valor que lá encontrasse. Trata-se, naturalmente, de uma intenção genérica, de um dolo indeterminado[2], na medida em que o agente tem uma ideia imprecisa e indeterminada sobre os bens que se encontram na garagem. E se pode admitir que nele se encontrariam veículos, também é lícito admitir que ele ignora que veículos se encontram na garagem (número ou tipo), ou se neles se encontra qualquer bem susceptível de apropriação[3]. Assim, só perante as circunstâncias presentes na garagem é que o arguido concretiza esta intenção indeterminada. O que implica que escolha o veículo que primeiramente força, e, depois, decida ainda se se fica por esse veículo ou se força outro, e qual. Sendo que cada veículo funciona, no quadro do furto e no âmbito da concreta actividade do arguido, como um novo obstáculo à apropriação, que envolve energia física e psíquica (decisão e motivação) a ultrapassar. Significa isto que a ampla resolução delitiva do arguido tem, primeiro, que ser concretizada (na escolha do veículo que primeiro força) e, depois, renovada (quando decide continuar a forçar veículos, e procede à selecção). O que importa a existência de nova resolução criminosa, justificando a existência, no quadro deste critério, de uma pluralidade delitiva. Mas esta ocorre também do ponto de vista do sentido social da ilicitude pois, a autonomia física dos veículos forçados envolve uma reiteração de condutas que, embora análogas, surgem claramente destacadas e autónomas, envolvendo, como se disse, uma intenção e expressão física próprias, que justificam que, socialmente, se veja cada uma dessas condutas como portadora de um autónomo juízo de desvalor jurídico-penal (de ilicitude) no âmbito do comportamento global.

Justifica-se, pois, a imputação da prática de dois crimes de furto.

Há assim que determinar qual a correcta e adequada valoração juridico-criminal da factualidade apurada, tendo em conta as regras ínsitas no Artº 30 do C. Penal.

Nesta norma, assume-se no seu nº1, a regra basilar da punibilidade, ou seja, que a cada infracção criminal efectivamente cometida - seja de tipos diferentes, seja do mesmo tipo legal de crime - corresponde a prática de um crime.

O termo efectivamente, como ensina Eduardo Correia, cujas lições se seguem de perto (Cfr. Direito Criminal, Tomo II, 1971, págs. 197/222 e Unidade e Pluralidade de Infracções, págs. 160/291), relaciona-se com a circunstância de a anti-juridicidade de comportamentos se reportar não a uma mera contagem naturalística dos crimes cometidos - no sentido de que a cada acção criminosa corresponderia uma violação normativa - mas antes, à negação valorativa do agente de forma a que hajam tantos crimes como o número de valores por si violados em determinada actividade delitiva.

Se assim é, se diversos bens jurídicos são violados ainda que numa só acção, aqueles determinarão o número de crimes cometidos pelo agente e, ao contrário, para um só valor negado, apenas um crime se revelará, ainda que múltipla seja a actividade criminosa.

Contudo, este raciocínio básico não é suficiente para dirimir o número de infracção, porquanto, qualquer acção típica, para além da sua ilicitude material exige, naturalmente, a imputação ao nível da culpa, o mesmo é dizer, implica que sobre o agente seja possível formular um juízo de censura.

Daí que os problemas se levantem quando tal juízo concreto de reprovação tenha de ser feito várias vezes em relação a actividades violadoras do mesmo bem jurídico, já que a repetidos juízos de censura, ainda que incidentes sobre idêntica valoração criminal, terão de corresponder uma pluralidade de infracções.

Quid juris ?
Desde logo, como ensina o aludido Prof., assumir que a culpa é o limite da unidade da infracção.

Depois, ter como certo que a uma «... pluralidade de resoluções - de resoluções no sentido determinações da vontade, de realizações do projecto criminoso - o juízo de censura será plúrimo. » ( ob. cit., pág. 202)

Por fim e este é um elemento que se julga absolutamente indispensável para compreender a teoria da unidade e pluralidade de infracções, aferir a dinâmica criminosa em função da sua conexão temporal, ou seja, para se afirmar uma unidade resolutiva é necessário poder afirmar que o agente actuou de forma a não ter de renovar a sua motivação delitiva.

É neste conjunto de asserções, que de forma breve e concisa se julga ter exposto, que assenta o denominado critério teológico, que distingue entre unidade e pluralidade de infracções e que foi consagrado no nº1 do Artº 30 do C. Penal, supra citado, designadamente, na expressão efectivamente dele constante.

Contudo, excepções existem a esta regra geral.

Por um lado, as situações em que apesar de várias normas violadas só aparentemente se concretiza uma pluralidade de infracções.

Por outro lado, quando toda a pluralidade de resoluções não seja aparente, exigindo um outro tratamento dogmático.

No primeiro caso estamos perante as situações denominadas de concurso aparente de infracções, situações que nada relevaram para a apreciação dos autos e que por isso neles não nos deteremos, apenas se acrescentando, de forma muito sintética, que o concurso aparente de infracções se revela quando o comportamento do agente preenche vários tipos legais de crime, mas o conteúdo da conduta é totalmente abrangido por um só dos tipos, em virtude das diversas relacionações entre as normas, que se podem conjugar, seja por razões de especialidade, seja por razões de consumpção, seja ainda, por motivos de subsidiariedade, ou de se tratar de um facto posterior não punível.

Aí, defronta-se o problema do crime continuado, que é uma verdadeira excepção à regra da equiparação da pluralidade de tipos violados - ou violação plúrima do mesmo tipo abstracto - à pluralidade de crimes.

A figura do crime continuado tem na sua génese razões de economia processual, sentidas pela judicatura, relacionadas ainda com a extensão do caso julgado e com a determinação dos poderes cognitivos do juiz.

O Prof. Eduardo Correia, que foi determinante para a delimitação dogmática e conceptual da figura, ensina que ao contrário de uma compreensão estritamente lógico-jurídica do instituto, em que apenas se determinariam os elementos fácticos que poderiam explicar a unidade do crime, ter-se-ia que procurar a razão do mesmo na « ... gravidade diminuída que uma tal situação revela em face do concurso real de infracções e .... assim encontrar, no menor grau de culpa do agente a chave do problema.. »( 1ªob. citada, pág. 209 )

Foi esta construção de raiz teológica que presidiu à elaboração normativa plasmada naquilo que é hoje o nº2 do Artº 30 do C. Penal e que estava, de forma idêntica, reproduzido no C. Penal de 1982.

Aí se diz que «Constitui um só crime continuado a realização plúrima do mesmo tipo de crime ou de vários tipos de crime que fundamentalmente protejam o mesmo bem jurídico, executada de forma essencialmente homogénea e no quadro de solicitação de uma mesma situação exterior que diminua consideravelmente a culpa do agente »

São assim fundamentalmente três os requisitos do crime continuado:

- o bem jurídico violado sucessivamente pelo agente tem de ser o mesmo, ainda que as infracções criminais por si cometidas se reportam a mais do que um tipo legal de crime aquilo a que o Prof. Eduardo Correia chamou a unidade do injusto do resultado ;

- a execução criminógena tem de ser homogénea, ou seja, praticada sob o mesmo núcleo, em que a essência dos actos delitivos se enquadrem em idênticos procedimentos e com tais propósitos delituosos, aquilo a que, nos mesmos termos, foi denominado, respectivamente, a unidade do injusto objectivo da acção e a unidade do injusto pessoal da acção ;

- tal execução ter-se-á de desenrolar no quadro de uma situação exterior ao agente, de forma a se poder dizer que lhe era cada vez menos exigível se comportar de acordo com o direito.

Começando pelo fim e porque o último dos requisitos é, verdadeiramente, a pedra de toque de todo o instituto, o que lhe determina os limites e lhe configura a natureza, dir-se-á que a essência do crime continuado está na diminuição considerável da culpa, em virtude da persistência de uma situação exterior, exógena ao agente, que facilita a actividade delituosa e a continuação da antijuricidade.

Não basta, portanto, uma mera diminuição da culpa para se poder falar em crime continuado.

Se a sua última ratio reside na diminuição da culpa do agente, apenas se justifica este tratamento de favor em relação ao agente - fazendo cair apenas numa única incriminação todo um conjunto de condutas que por assentarem em múltiplas resoluções criminosas estariam fadadas para serem vistas como uma multiplicidade de infracções - se tal diminuição for considerável, o que quer dizer que o núcleo da questão terá de radicar, precisamente, no circunstancialismo exterior ao agente que lhe facilita a continuação da actividade delitiva.

Por outras palavras, o que é fundamental, é que as múltiplas actividades criminosas tenham sido determinadas na disposição exterior das coisas, as quais, facilitam a repetição, sendo cada vez menos exigível ao agente que actue de acordo com os comandos legais.

Esta disposição exterior das coisas para o facto, esta oportunidade favorável - que se pode traduzir na perpetuidade do objecto da acção, na disponibilidade sucessiva dos meios de execução, na possibilidade de alargar o âmbito da sua actividade criminosa, na relação que se estabelece entre o agente e a vítima, entre outros exemplos que a Doutrina e a Jurisprudência avança para a caracterização da figura - torna o fim criminoso mais facilmente atingível pelo arguido e foi-lhe criada, fundamentalmente, por factores externos, pelo quadro da solicitação exterior de que fala o nº2 do Artº 30 do C. Penal.

Este é que é o factor decisivo para que se justifique uma diminuição considerável do juízo de reprovação do agente, unificando-se todas as condutas criminosas numa só.

Ao contrário, se a realização plúrima do mesmo tipo de crime se deve a um desígnio inicialmente formado pelo agente de, através de actos sucessivos, violar o respectivo comando legal, a consumação dessas actividades parcelares não pode integrar a figura do crime continuado, como bem se referiu no Ac. do Supremo Tribunal de Justiça de 04/05/83, in B.M.J. 327/447.

Também nesse sentido, ou seja, de o crime continuado estar afastado nos casos em que o agente actua, ainda que de forma homogénea, no desenvolvimento de um plano que traçou previamente, o Ac. do S.T.J. de 07/12/93, no Proc. 437779 da 3ªSecção.

Ora, cotejando a factualidade apurada, desde logo, com o requisito em análise, facilmente se constata que o mesmo é, ali, inexistente.

Com efeito e ao contrário do que defende o recorrente, não se vislumbra a configuração de qualquer situação que lhe seja exterior, para a qual nada tenha contribuído e que o tenha determinado à repetida prática dos crimes de furto qualificado e de dano.

Nada se provou neste domínio, nenhum factor ou circunstância exógena ao agente que o tenha levado à configuração material do cenário em que se desenvolveu a actividade criminosa, nem o mesmo pode ser extraído, como parece concluir o recorrente, da circunstância da garagem estar fechada, desse modo se facilitando a prática dos crimes.

Ao contrário, aquela actividade, tal como foi apurada pelo Tribunal ad quem, foi criada, desenvolvida e paulatinamente renovada pelo arguido, no âmbito das suas intenções criminosas, sem ter sido minimamente condicionada ou provocada por factores que lhes fossem alheios.

Na verdade, como decorre da factualidade acima descrita, o arguido logrou entrar numa garagem que se encontrava fechada, com o intuito, naturalmente genérico, de se apropriar dos bens e valores que encontrasse nos veículos automóveis que ali se encontrassem.

Desse modo, dirigiu os seus propósitos para uma viatura, cuja destruição do respectivo vidro traseiro lhe permitiu fazer seus determinados bens que se se encontravam no interior do mesmo.

Em seguida, num evidente cenário de renovação da sua intenção delitiva, virou os seus olhos para outro veículo, perante o qual, com semelhança de comportamento, dele conseguiu também retirar objectos que não lhe pertenciam.

Onde está, assim, o circunstancialismo exógeno, que o levou à repetição criminosa e que lhe diminua sensivelmente a culpa?

Não se vislumbra, sendo seguro que a pluralidade delitiva ocorre, apenas e tão só, pela reiteração da sua intenção delitiva, querendo e conseguindo assaltar uma segunda viatura, depois de já ter furtado uma primeira - depois de, para tanto, previamente, ter destruído um dos respectivos vidros - não se olvidando, ainda, a autonomia física dos veículos forçados com as inerentes consequências ao nível do ilicitude e do desvalor social da acção, critérios, também eles, manifestamente impeditivos da pretendida continuação criminosa.

Assim sendo, em caso algum se pode configurar, nos autos, um cenário de crime continuado, desde logo, como se disse e agora se repete, pela ausência do primeiro dos vectores em aferição, e que consubstancia, recorde-se, o âmago desta figura jurídica, qual seja, a existência de um circunstancialismo exterior ao arguido, que o tenha conduzido à repetição criminosa com diminuição considerável da sua culpa.

Cabe então recordar a lição do Nosso Mais Alto Tribunal, em Acórdão de 25 de Junho de 1986, in B.M.J. 358/267, que mantêm plena actualidade e cujos ensinamentos têm vindo a ser sucessivamente repetidos, em que assinalou que a realização plúrima do mesmo tipo de crime pode constituir: um só crime, se ao longo de toda a realização persistir o dolo inicial; um só crime na forma continuada, se toda a actuação obedecer ao mesmo dolo, mas este estiver interligado por factores externos que arrastam o agente para a reiteração criminosa; ou ainda, não se verificando qualquer uma das duas hipóteses anteriores, um concurso de infracções.

Foi por este último sentido que decidiu e bem o tribunal recorrido, inexistindo qualquer violação do disposto no Artº 30 do C. Penal.

Falece por isso o recurso nesta parte.

B.2. Do concurso aparente entre os crimes de furto qualificado e dano

Invoca ainda o recorrente que a factualidade atrás descrita não permite a imputação autónoma dos dois crimes de dano em concurso efectivo com dois crimes de furto qualificado, na medida em que se trata de uma situação de concurso aparente de crimes, encontrando-se os imputados crimes de dano consumidos pelos de furto qualificado.

Funda esta conclusão, na circunstância do crime de dano ser meramente instrumental em relação ao de furto qualificado e que o arguido teve necessariamente que cometer para se apropriar dos objectos que se encontravam no interior das viaturas, sendo que a sua única intenção era a do furto, o que retira autonomia ao ilícito de dano.

Na decisão recorrida, a este propósito, escreveu-se (transcrição):

Quanto ao crime de dano, e nos termos do disposto no art. 212º n.º1 do CP, incorre em responsabilidade criminal quem destruir, no todo ou em parte, danificar, desfigurar, ou tornar não utilizável coisa alheia.

É manifesto que o arguido danificou os dois veículos. Nesta medida preencheu os elementos objectivos do tipo em causa, o que fez com conhecimento e vontade da acção adoptada. Evidentemente, este dano não vem previsto no concreto crime de furto qualificado imputado como modalidade tipicamente acompanhante da acção punida (tal só ocorre na hipótese da al. e) do n.º2 do CP), pelo que deve ser autonomamente imputado.

As razões expostas quanto ao furto justificam, por identidade de razão, a imputação, também aqui, de dois crimes de dano.

Também aqui, entendemos não assistir razão ao recorrente.

Tendo presente o que já atrás se escreveu a propósito do crime continuado e que aqui também releva, no que se reporta à unidade ou pluralidade de infracções, importa ainda acrescentar que, em regra, quando a actuação do agente é susceptível de diferentes qualificações jurídico-criminais, fala-se em concurso ideal e que o denominado concurso aparente pressupõe que a acumulação de normas aplicáveis à mesma acção é, tão-só, aparente, não se estando face a um concurso ideal mas a um mero concurso de normas, que será homogéneo ou heterogéneo, consoante se trate de infracções penais do mesmo tipo, ou de tipos diversos.

Esta realidade justifica-se por uma relação de consumpção entre as normas em concurso aparente, que, simultaneamente, reclamam aplicação à mesma situação de facto, representativas de diversos tipos de crime, encontrando-se os respectivos bens jurídicos, uns relativamente aos outros, em tais relações, que pode suceder que a reacção penal pela violação concreta de um deles já esteja suficientemente assegurada pelo manto de um outro, não se justificando, por isso, a aplicação da norma que protege o valor jurídico de menor dimensão.

Para além dessa relação de concorrência dos dois preceitos jurídicos em causa, numa relação de mais para menos – em função dos respectivos bens jurídicos que amparam - para que haja consumpção entre as mesmas, mister é que, no caso concreto, a protecção visada por um seja esgotada, consumida, pelo outro.

A doutrina vem distinguindo entre consumpção por especialidade e consumpção por subsidiariedade.

A primeira, radica numa relação de especialização entre as duas normas, resultante de uma delas conter, em si mesma, todos os elementos da outra, acrescendo-lhe ainda um elemento adicional, como sucede, por exemplo, entre o tipo geral de crime e o correspondente tipo agravado, qualificado ou privilegiado.

A segunda, terá lugar quando um tipo legal de crime apenas deva funcionar a título subsidiário, por não existir outro que, abstractamente, comine pena mais grave.

As situações de consumpção podem assim gerar, em regra, casos de concurso aparente de infracções, em que a conduta do agente apensar de formalmente preencher vários tipos de crime, apenas deve ser punida por um deles, que a abrange na totalidade e que excluí a aplicação dos demais.

Colocada assim a questão, parece claro que a existência de uma multiplicidade de protecção jurídica – decorrente da aplicação das duas normas – a que acrescem as preocupações atinentes com o bem jurídico como elemento estruturante de qualquer tipo penal e cuja manutenção a comunidade, no seu sentir social, quer ver assegurado – definirão a eventual redução do concurso.

Ora, postas assim as coisas, há que dizer que o critério do crime instrumental ou crime-meio, aludido pelo recorrente para fundar a sua pretensão, constitui apenas um dos critérios correntemente apontados como modo de resolver o problema do concurso, mas está longe de esgotar a questão, não tendo sequer a virtualidade de abranger todas as situações em que há que equacionar a verificação do concurso meramente aparente.

Defende o recorrente que para levar a cabo os furtos a que se propôs, teve necessariamente de produzir os mencionados danos, mas não quis,

Autonomamente, tal resultado, que mais não é que uma mera consequência, necessárias, da sua actuação e do seu dolo de furto, tendo em conta que os veículos se encontravam fechados, como o exige a al. b) do nº1 do Artº 204 do C. Penal

Há, assim, uma instrumentalidade do dano em relação ao furto, que faz com que aquele seja um meio de um fim principal – o furto – praticado apenas nessa condição e nela esgotando o seu sentido e efeitos, sendo que uma valoração autónoma e integral do crime-meio representaria uma violação da proibição jurídico-constitucional da dupla valoração.

Ora, o recorrente parece esquecer que a sua condenação por qualquer um dos dois crimes de furto se reporta, não apenas à al. b) do nº1 do Artº 204 do C. Penal, mas também, à al. f) do mesmo normativo legal, elemento absolutamente decisivo para afastar a pretendida situação de concurso aparente de crimes.

Com efeito, se previsão típica do furto não contém, nem compreende, directa ou indirectamente, a do dano, antes conservando os dois crimes as respectivas normas incriminatórias, continua a haver autonomia punitiva de ambas, a isso não obstando a circunstância de o crime de dano constituir ou servir de meio de execução do crime de furto.

Nesses casos, como o dos autos, sendo a conduta do arguido um mais em relação ao furto e dirigida a coisa distinta da furtada, não se pode falar em concurso aparente de normas, na medida em que a sua conduta danosa não pode ser plasmada, tão-somente, no âmbito da protecção normativa conferida pela previsão do furto, antes devendo ser punida autonomamente.

Estamos a falar de casos em que se verifica mais do que uma circunstância qualificativa do furto, inexistindo por isso motivos para que a conduta de dano não tenha autonomia punitiva, no âmbito de um concurso real de infracções.

Concorda-se assim inteiramente com os ensinamentos do Comentário Conimbricense do Código Penal, Coimbra Editora, 1999, Tomo II, págs. 234/235, quando se diz, numa situação em tudo idêntica à dos autos, que « … haverá concurso efectivo se o Dano servir apenas como meio para a prática do Furto... Nesta linha o STJ (Ac. De 6-5-93: “ O crime de dano (destruição do vidro de um automóvel), praticado como meio de cometimento de subsequente furto qualificado, por violar um bem jurídico distinto, concorre em concurso real com o crime de furto já qualificado por outra circunstância “ »

Ora, como é de toda a evidência, o arguido danificou os dois veículos, numa conduta objectiva e subjectivamente integradora do ilícito previsto no Artº 212 nº1 do C. Penal, sendo que esse comportamento e a sua consequência – a destruição dos vidros dos carros – é uma lesão que não está englobada na previsão normativa dos concretos furtos imputados ao arguido, devendo, por isso, ser punido de forma autónoma.

A esta diversidade de bens jurídicos, acrescenta-se, ainda, a circunstância em que a conduta danosa não se mostra compreendida na valoração da ilicitude social típica da infracção, pelo que neste caso, ainda que o dano tenha servido apenas para a prática do furto, reveste punibilidade independente no âmbito de típica relação de concurso real de infracções.

Conclui-se assim pela inexistência de consumpção entre os crimes de dano e de furto praticados pelo ora recorrente, nada havendo a censurar, sobre esta matéria, a decisão recorrida, improcedendo, em consequência, o recurso, nesta parte.

B.3. Aplicação de penas parcelares mais baixas

Defende depois o recorrente, que as penas parcelares fixadas pelo tribunal a quo são desajustadas e excessivas à factualidade dada como provada e às suas circunstâncias pessoais, solicitando a sua condenação nas seguintes penas: 1 ( um ) ano e 6 ( seis ) meses de prisão pela prática do crime de tráfico de estupefacientes de menor gravidade, 1 ( um ) ano de prisão por cada crime de furto qualificado na forma continuada e, para o caso de se entender que o dano não está consumido pelo furto, a pena de 6 ( seis ) meses de prisão pela prática deste ilícito, também na forma continuada.

Na decisão recorrida, a este propósito, escreveu-se (transcrição):

6. Determinação da sanção aplicável

São aplicáveis as seguintes penas:
- prisão de 1 a 5 anos (tráfico)
- prisão até 5 anos ou multa até 360 dias (furto)
- prisão até 3 anos ou multa até 360 dias (dano)

Atendendo à cominação de penas alternativas em alguns dos crimes imputados (furto e dano), importa proceder à escolha da espécie de pena a aplicar (arguido A.). No caso, é especialmente relevante a existência de anteriores condenações, mormente por crimes análogos aos ora imputados e em pena de prisão (suspensa), revelando que a fragilidade da situação do arguido não tolera a aplicação de penas de multa. De outro lado, e face à pena de prisão cominada para o crime de tráfico, a opção pela pena de multa seria, em princípio, de excluir, para evitar, na prática, os inconvenientes que se associam ás penas mistas de multa e prisão e que justificaram a sua expurgação do código penal [cfr. Acs. STJ proc. 04P151 (5.2.2004), 05P2106 (23.6.2005) e 2813/07 (6.12.2007), in 3w.dgsi.pt]. Assim, justifica-se a inversão da preferência legal que o art. 70º do CP consagra, impondo-se desta forma a opção pela pena detentiva.

A pena concreta a aplicar será determinada, dentro da moldura referida, em função da culpa do agente enquanto limite máximo da punição, e ainda das exigências de prevenção, geral e especial, postas pelo caso em apreço (art. 40º do CP) – em cuja valoração se atenderá a todas as concretas circunstâncias que, no caso, não fazendo parte do tipo legal, deponham contra ou a favor do agente (art. 71º n.º 2 do CP), designadamente:

- o grau de ilicitude do facto, ou seja, o modo de execução deste e a gravidade das suas consequências, bem como o grau de violação de deveres impostos ao agente [releva, no tráfico e para cada um dos arguidos, a natureza da droga em causa, a modalidade da acção (transacções efectivas), e, dentro do quadro (atenuado) do art. 25º do DL 15/93, a extensão não muito significativa da actividade desenvolvida; no furto, monta a concorrência de duas circunstâncias qualificativas (na medida em que uma delas deve relevar nesta sede - atendendo-se aqui à al. a), a circunstância de os factos ocorrerem de noite, e o número e valor dos objectos subtraídos; no dano, monta o valor apurado dos prejuízos e o seu carácter instrumental do furto];

- a intensidade do dolo ou negligência [o dolo foi directo e intenso em todos os casos];

- os sentimentos manifestados no cometimento do crime e os fins ou motivos que o determinaram [obtenção de vantagem patrimonial, no furto e dano];

- as condições pessoais do agente e a sua situação económica [o arguido A. tem um percurso escolar e profissional desinvestido e precário; o consumo de drogas mostra-se o pano de fundo recorrente do seu percurso de vida, condicionando-o;

- a conduta anterior ao facto e posterior a este [o arguido A. tem relevantes condenações anteriores…;

- a falta de preparação para manter uma conduta lícita, manifestada no facto, quando essa falta deva ser censurada através da aplicação da pena [nada se apurou com relevo nesta sede].

Neste quadro, é mediana a culpa dos arguidos no âmbito do tráfico, sendo mais elevada nos crimes de furto e dano (arguido A.); as exigências de prevenção especial não são muito acentuadas quanto ao arguido B, mas são muito fortes quanto ao arguido A., sendo relevantes as exigências de prevenção geral quanto a ambos os arguidos (dados os reflexos comunitários dos crimes em causa).

Tendo em conta estes dados, julga-se ajustada a fixação das seguintes penas:

- 1 ano e 4 meses de prisão (arguido B)
- 2 anos e 3 meses de prisão (arguido A - tráfico)
- 14 meses de prisão (arguido A – por cada furto)
- 6 meses de prisão (arguido A – por cada dano)

Como se sabe, na determinação da pena concreta, importa ter em conta, nos termos do Artº 71 do C. Penal, as necessidades de prevenção geral e especial que nos autos se imponham, bem como, as exigências de reprovação do crime, não olvidando que a pena tem de ser orientada em função da culpa concreta do agente e que deve ser proporcional a esta, em sentido pedagógico e ressocializador.

Como ensina Figueiredo Dias in Direito Penal, Parte Geral, Tomo 2, As consequências jurídicas do crime. 1988, pág. 279 e segs :

« As exigências de prevenção geral, ... constituirão o limiar mínimo da pena, abaixo do qual já não será possível ir, sob pena de se pôr em risco a função tutelar do Direito e as expectativas comunitárias na validade da norma violada.

As exigências de culpa do agente serão o limite inultrapassável de todas e quaisquer considerações preventivas, por respeito ao princípio politico-criminal da necessidade da pena ( Artº 18 nº2 da CRP ) e do principio constitucional da dignidade da pessoa humana ( consagrado no nº1 do mesmo comando).

Por fim, as exigências de prevenção especial de socialização, sendo elas que irão determinar, em último termo e dentro dos limites referidos, a medida concreta da pena»

Importa ainda ter em conta que :

«A função primordial de uma pena, sem embargo dos aspectos decorrentes de uma prevenção especial positiva, consiste na prevenção dos comportamentos danosos incidentes sobre bens jurídicos penalmente protegidos.

O seu limite máximo fixar-se-á, em homenagem à salvaguarda da dignidade humana do condenado, em função da medida da culpa revelada, que assim a delimitará, por maiores que sejam as exigências de carácter preventivo que social e normativamente se imponham.

O seu limite mínimo é dado pelo quantum da pena que em concreto ainda realize eficazmente essa protecção dos bens jurídicos.

Dentro destes dois limites situar-se-á o espaço possível para resposta às necessidades da reintegração social do agente.

Ainda, embora com pressuposto e limite na culpa do agente, o único entendimento consentâneo com as finalidades de aplicação da pena é a tutela de bens jurídicos e, (só) na medida do possível, a reinserção do agente na comunidade - cf. Anabela Miranda Rodrigues, RPCC, Ano 12º, nº 2, pág. 182» – Ac. do STJ de 4-10-07, Proc. nº 2692/07 - 5ª »

Ora, confrontando o raciocínio expendido pela instância recorrida, constata-se que ali foram tidos em conta, na determinação da pena a aplicar aos crimes cometidos pelo arguido, ora recorrente, todos os critérios legais a que alude o Artº 71 do C. Penal, não podendo aquele queixar-se de severidade por banda do tribunal a quo.

Na verdade, importa não olvidar que o tráfico de droga é, actualmente, a actividade mais importante do crime organizado ao nível internacional, afirmando-se como o segundo maior negócio do mundo, a seguir ao das armas.

Na imputação deste crime tem-se em vista a protecção de diversos bens jurídicos ( a vida, a integridade física, a liberdade de determinação dos consumidores de estupefacientes, entre outros ) que podem, no entanto, ser englobados no dever geral de protecção de saúde pública.

Tal faz com que o crime de tráfico seja um crime de perigo comum e abstracto, porquanto a norma protege uma multiplicidade de bens jurídicos, não se exigindo o dano nem o perigo concreto e bastando-se a incriminação com a mera perigosidade da acção.

Sendo certo que a legislação portuguesa não estabelece um critério de gravidade relativa das drogas, ou seja, de distinção entre drogas duras e drogas leves, é médica e cientificamente reconhecido que os efeitos das ditas drogas duras (a cocaína e principalmente a heroína) são bem mais perniciosos, nomeadamente pela habituação e dependência que provocam.

Há assim que concluir como particularmente censurável a actuação do arguido, tendo em conta a natureza do produto estupefaciente por si transacionado, sensação que sai reforçada pelas necessidades de prevenção associadas a este tipo de crime.

No mais, o cenário dos autos tem alguma gravidade, uma moderada ilicitude e um juízo de censura assinalável, tendo em conta os bens jurídicos em causa, os valores dos prejuízos provocados pelo arguido, o período temporal em que os crimes foram cometidos, sem olvidar a integração familiar e comunitária do arguido e a circunstância de ter vários antecedentes criminais registados, a que acresce o facto de não ter revelado ausência de arrependimento, o que suscita fundadas dúvidas sobre a desejada interiorização do desvalor social da sua conduta.

Nesta medida, o facto das penas parcelares terem sido fixadas, bem perto do limite mínimo – no caso dos crimes de furto qualificado e de dano – e abaixo do limiar médio da moldura abstracta – no que respeita ao crime de tráfico de estupefacientes de menor gravidade – é bem ilustrativo da ausência de fundamento para as queixas do recorrente, que parece esquecer os seus antecedentes criminais, onde se registam, em apenas 27 anos de vida, cinco condenações anteriores, reportadas ao cometimento de 20 crimes, 16 deles, furtos qualificados !!!

Por outro lado, a pretensão do recorrente, no que respeita aos crimes de furto qualificado e de dano, assentava no sucesso das questões anteriormente tratadas – o crime continuado dos mesmos e a consumpção entre o dano e o furto – as quais, como resulta do que se disse infra, não lograram provimento, o que acarreta, desde logo e nessa parte, o naufrágio do objectivo agora pretendido.

De todo o modo, as penas parcelares determinadas pela instância recorrida - em particular, a alusiva ao crime de tráfico de estupefacientes de menor gravidade - configuram-se como adequadas às finalidades da punição e satisfazem as necessidades de prevenção geral e especial que no caso se desenham, não havendo qualquer razão para as alterar, improcedendo, também aqui, o recurso.

B.4. Aplicação, em cúmulo jurídico, de uma pena de prisão suspensa na sua execução

Por fim, solicita o recorrente a suspensão da execução da pena única de prisão, na medida em que é possível a formulação de um juízo de prognose positiva, no sentido de se entender que a simples censura do facto e a ameaça da pena, realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição, tendo em conta a sua libertação do consumo de drogas que foi o factor que o levou ao cometimento dos crimes.

Eis o que, sobre isto, se disse na decisão sindicada (transcrição):

Vê-se que as penas dos crimes ora imputados ao arguido A. se encontram numa relação de concurso para os efeitos do art. 77º n.º1 do CP, importando assim proceder à realização do respectivo cúmulo.

Face ao disposto no n.º 2 do citado art. 77º, a moldura penal determinada pelo presente concurso tem como limiar máximo 5 anos e 7 meses de prisão, e como limiar mínimo 2 anos e 3 meses de prisão.

Ponderando globalmente as circunstâncias atinentes aos crimes em causa (cfr. art. 77º n.º1, 2ª parte), releva o lapso de tempo em causa (Junho de 2011 e início de 2012), a natureza dos crimes (crimes patrimoniais e um crime de perigo comum) e o percurso de vida do arguido, globalmente considerado - onde montam especialmente quer o carácter desviante desse percurso, quer as suas anteriores condenações.

Estes dados mostram que as exigências de prevenção, especial mas também geral de reafirmação da validade da ordem jurídica, presentes no caso são sensíveis.

Assim, considera-se ajustada a fixação da pena em 4 anos de prisão.

Por força do art. 50º n.º1 do CP, o tribunal suspende a execução da pena de prisão aplicada em medida não superior a 5 anos se, atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste, concluir que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição, finalidades estas que correspondem à protecção de bens jurídicos e à reintegração do agente na sociedade (v. art. 40º do CP).

Como é sabido, à opção pela suspensão da execução da pena de prisão, enquanto medida de reacção criminal autónoma, são alheias considerações relativas à culpa do agente, valendo exclusivamente as exigências postas pelas finalidades preventivas da punição, sejam as de prevenção geral positiva ou de integração, sejam as de prevenção especial de socialização (art. 40º n.º1 do CP). De molde que a opção por esta pena deverá assentar, em primeira linha, na formulação de um juízo positivo ou favorável à recuperação comunitária do agente através da censura do facto e da ameaça da prisão, sem a efectiva execução desta prisão, que ficaria suspensa, mas desde que esta opção não prejudique ou contrarie a necessidade de reafirmar a validade das normas comunitárias, ou seja, desde que o sentimento comunitário de crença na validade das normas infringidas não seja contrariado ou posto em causa com tal suspensão.

Quanto ao arguido A., a sua situação é bem diversa.

Assim, e em primeiro lugar, monta o carácter desestruturado do seu percurso de vida, sem investimento escolar nem laboral, sendo o consumo de drogas o pano de fundo onde se movimenta. Denotando-se ainda a fragilidade do arguido perante o apelo das drogas, de que não consegue libertar-se consistentemente (é certo que o arguido parou o consumo, actualmente, mas isso já ocorreu no passado, especialmente antes do seu julgamento no proc. 894/09, sem que perdure).

Depois, e em segundo lugar, releva a prática sucessiva de crimes (estando em causa cinco condenações por 19 crimes; o número impressiona especialmente quando se atenda à idade do arguido, actualmente com 27 anos). Notando-se que a imputação de sucessivas penas de prisão suspensas não o impediram de voltar a delinquir, tendo inclusive sido entretanto revogada a suspensão aplicada no proc. 234/03 (com o inerente cumprimento da pena de prisão que ficara suspensa). Cumpriu já, também, uma pena de prisão através de obrigação de permanência na habitação e, após, voltou a praticar crimes. O que tende a revelar quer o acentuado distanciamento do arguido face ao dever-ser jurídico-penal, quer o fracasso da suspensão da pena como instituto ressocializador. Acresce que o crime de tráfico ora imputado foi praticado no decurso do prazo de suspensão da pena aplicada no proc. 894/09. Processo este em cuja decisão tinha sido dito ao arguido, e sublinhado, que aquela era a última oportunidade que lhe era concedida (de se recuperar socialmente, sem cumprir pena de prisão). E o arguido, perante a oportunidade concedida, reincide na prática de crimes. É certo que fora ali condenado por crimes de natureza diversa (furtos) daquele que pratica durante o prazo de suspensão (tráfico de menor gravidade) mas isso apenas significa que, confrontado com uma hipótese de se recuperar, o arguido opta por «mudar de ramo» mas mantendo a sua «propensão delitiva». Alterou a trajectória criminosa, e não a inverteu, extinguiu, como devia. E se o novo «ramo» se reflecte em bens jurídicos diversos, ele não deixa de ter uma gravidade acentuada, pelo impacto comunitário desse crime, que tem como referente axiológico a saúde pública e assim também bens pessoais naquela diluídos[4]. Assim, esta mudança de via não pode ocultar a manifesta indiferença do arguido pelas condenações prévias e, em especial, pelo significado probatório da pena suspensão. Além disso, aquela decisão também impôs como condição da suspensa a abstinência do consumo de drogas, que o arguido não respeitou. Assim, o que se pode dizer do arguido, face a estes dados, é que é um delinquente persistente e consistente, que a (reiterada) suspensão da pena de prisão não sensibiliza.

É certo que se demonstra, como se referiu, que actualmente se afastou do consumo de drogas e do grupo de pares. Mas também no acórdão proferido no referido proc. 894/09 já se dizia algo de absolutamente idêntico e, como se disse, o arguido retomou, após aquela decisão, o seu padrão comportamental desviante (retomando mormente o consumo de drogas). Isto apenas revela, pois, que o arguido tem receio do julgamento (da decisão), pelo que antes desta se controla, mas que a pena, sendo suspensa, já não o motiva, retomando então o seu percurso delitivo. Ou, pelo menos, que o abandono do consumo de drogas nunca se mostra consistente - como aliás resulta dos factos provados, onde se reflecte a oscilação entre fases de consumo e fases de abstinência (e foi também considerado na decisão que determinou a aludida revogação da suspensão da pena de prisão aplicada no proc. 234/03.

Também consta que está inscrito no Centro de emprego, mas essa era situação que já ocorria no quadro daquele proc. 894/09.

E apurou-se também que o acompanhamento da pena aplicada no proc. 894/09 tem, na globalidade, decorrido de forma adequada, mas os factos ora apurados também revelam que esse acompanhamento não foi bastante para afastar o arguido quer do consumo de drogas, quer da prática de crimes (como se disse, os factos associados ao crime de tráfico ocorreram na pendência da pena suspensa de que o acompanhamento é tributário).

Assim, o único elemento verdadeiramente novo neste contexto é o cumprimento entretanto ocorrido da pena de prisão aplicada no proc. 234/03, mas trata-se de dado insuficiente para sustentar que a situação do arguido actual se mostra cristalizada, e que a partir de agora é que a suspensão da pena de prisão passará a ser sentida pelo arguido como instrumento de inflexão do seu percurso de vida. Não quando se atenta nos outros dados referidos. E quando se equaciona quer a inexistência de elementos objectivos que revelem que essa experiência impactou decisivamente a vida do arguido, quer a circunstância de o arguido já ter sofrido anterior privação de liberdade (embora em contexto diferente -permanência na habitação) que não teve efeitos relevantes.

Aliás, se a suspensão da pena de prisão já falhou os seus objectivos anteriormente, seria contraditório (ou ao menos ingénuo) admitir que agora a mera ameaça da prisão iria alcançar esse efeito, no quadro exposto e sem que existam alterações sensíveis na sua vida pessoal.

Deste modo, inexistem elementos, neste contexto, que permitam sustentar que a suspensão da pena de prisão seria ainda bastante para alcançar a recuperação social do arguido - ao invés, os dados expostos relevam que o arguido não só não valorizou a oportunidade que a suspensão das anteriores penas representava como, ao invés, as encarou como formas de impunidade.

A mesma conclusão (inviabilidade do juízo de prognose favorável) se alcança se se atender agora às exigências mínimas e irrenunciáveis de defesa do ordenamento jurídico, face à gravidade (e reiteração) dos factos em causa, no contexto das anteriores condenações do arguido: a comunidade não compreenderia que reiteradas agressões continuassem a ser tratadas com a mesma pena que já demonstrara ser ineficaz [objectivos de prevenção geral que, enquanto finalidade das penas, também devem ser atendidos, nos termos do citado art. 50º n.º1, parte final].

Donde não ser susceptível de suspensão a pena ora fixada.

O sistema de punição do concurso de crimes consagrado no Artº 77º do Código Penal, adoptando o sistema da pena conjunta, rejeita uma visão atomística da pluralidade de crimes e obriga a olhar para o conjunto, para a possível conexão dos factos entre si e para a necessária relação de todo esse bocado de vida criminosa com a personalidade do seu agente.

Por isso, determinadas definitivamente as penas parcelares correspondentes a cada um dos singulares factos, cabe ao tribunal, depois de estabelecida a moldura do concurso, encontrar e justificar a pena conjunta, cujos critérios legais de determinação são diferentes dos propostos para a primeira etapa.

Nesta segunda fase, quem julga há-de descer da ficção, da visão compartimentada que esteve na base da construção da moldura e atentar na unicidade do sujeito em julgamento, sendo que esta perspectiva nova, conjunta, não apaga a pluralidade de ilícitos, antes a converte numa nova conexão de sentido.

Aqui, o todo não equivale à mera soma das partes e, além disso, os mesmos tipos legais de crime são passíveis de relações existenciais diversíssimas, a reclamar uma valoração que não se repete, de caso para caso.

A este novo ilícito corresponderá uma nova culpa (que continuará a ser culpa pelo facto) mas, agora, culpa pelos factos que estão em relação entre si, afinal e numa palavra, a valoração conjunta dos factos e da personalidade de que fala o Código Penal.

Por outro lado, afastada a possibilidade de aplicação de um critério abstracto, que se reconduz a um mero enunciar matemático de premissas, impende sobre o juiz um especial ónus de determinar e justificar quais os factores relevantes de cada operação de formação de pena conjunta, quer no que respeita à culpa em relação ao conjunto dos factos, quer no que respeita à prevenção, quer, ainda, no que concerne à personalidade e factos considerados no seu significado conjunto.

Um dos critérios fundamentais em sede deste sentido de culpa, numa perspectiva global dos factos, é o da determinação da intensidade da ofensa e dimensão do bem jurídico ofendido, sendo certo que assume significado profundamente diferente a violação repetida de bens jurídicos ligados à dimensão pessoal em relação a bens patrimoniais.

Por outro lado, importa determinar os motivos e objectivos do agente no denominador comum dos actos ilícitos praticados e, eventualmente, dos estados de dependência, bem como a tendência para a actividade criminosa expressa pelo número de infracções, pela sua permanência no tempo, pela dependência de vida em relação àquela actividade.

O concurso de crimes tanto pode decorrer de factos praticados na mesma ocasião, como de factos perpetrados em momentos distintos, temporalmente próximos ou distantes, tanto pode ser constituído pela repetição do mesmo crime, como pelo cometimento de crimes da mais diversa natureza e tanto pode ser formado por um número reduzido de crimes, como englobar inúmeros crimes.

No sistema português, de cúmulo jurídico e não material, é forçoso concluir que com a fixação da pena conjunta se pretende sancionar o agente, não só pelos factos individualmente considerados, mas também e especialmente pelo respectivo conjunto, não como mero somatório de factos criminosos, mas enquanto revelador da dimensão e gravidade global do comportamento delituoso do agente, visto que a lei manda se considere e pondere, em conjunto ( e não unitariamente ), os factos e a personalidade do agente, pois só essa avaliação conjunta pode fornecer a gravidade global do ilícito perpetrado.

Tal concepção da pena conjunta obriga a que do teor da sentença conste uma especial fundamentação, em função de um tal critério, da medida da pena do concurso, só assim se evitando que esta surja como fruto de um acto intuitivo ou puramente mecânico, logo, arbitrário, embora se aceite que o dever de fundamentação não assume aqui, nem o rigor nem a extensão, pressupostos pelo nº2 do Artº 71 do Código Penal, ainda que o seu nº3 estipule que na sentença são expressamente referidos os fundamentos da medida da pena.

Ensina ainda Figueiredo Dias ( ob. citada, págs 290-292 ), que em sede de cúmulo jurídico, o legislador tem em vista « … sancionar os factos e a personalidade do agente no seu conjunto, o agente é punido tendo em atenção não apenas um mero somatório dos factos individualmente praticados, mas antes de forma mais elaborada, dando atenção àquele conjunto, numa dimensão penal nova que abrange o conjunto dos factos, a gravidade do ilícito global praticado, a culpa, as exigências gerais de prevenção, tanto geral, como de análise do efeito previsível da pena sobre o comportamento futuro do agente (exigências de prevenção especial de socialização) »

Acrescentando ainda, a pág. 421, « Imprescindível na valoração global dos factos, para fins de determinação da pena de concurso, é analisar se entre eles existe conexão e qual o seu tipo; na avaliação da personalidade releva sobretudo se o conjunto global dos factos é reconduzível a uma tendência criminosa, dando-se sinais de extrema dificuldade em manter conduta lícita, caso que exaspera a pena dentro da moldura de punição em nome de necessidades acrescidas de ressocialização do agente e do sentimento comunitário de reforço da eficácia da norma violada ou indagar se o facto se deve à simples tradução de comportamentos desviantes, meramente acidentes de percurso, que toleram intervenção punitiva de menor vigor, expressão de uma pluriocasionalidade, sem radicar na personalidade, tendo presente o efeito da pena sobre o seu comportamento futuro»

Também a jurisprudência alinha pelo mesmo diapasão, como se constata da leitura, entre tantos outros, do Acórdão do STJ de 14/10/09, Proc.328/07.9GFVFX.L1.S1, disponível em www.dgsi.pt, certeiramente referenciado pelo M.P. na sua resposta ao presente recurso e onde se diz :

« I - Na elaboração do cúmulo jurídico, a pena conjunta deverá ser encontrada em consonância com as exigências gerais de culpa e prevenção.

II - Determinadas definitivamente as penas parcelares correspondentes a cada um dos singulares factos, cabe ao tribunal, depois de estabelecida a moldura do concurso, encontrar e justificar a pena conjunta cujos critérios de determinação são diferentes dos propostos para a primeira etapa.


III - Na determinação da pena conjunta, o julgador tem de descer da visão compartimentada que esteve na base da construção da moldura e atentar na unicidade do sujeito em julgamento. A perspectiva nova, conjunta, não apaga a pluralidade de ilícitos, antes a converte numa nova conexão de sentido.


IV - Na operação da determinação da pena única, o todo não equivale à mera soma das partes: os mesmos tipos legais são passíveis de relações existenciais diversíssimas, a reclamar uma valoração que não se repete, de caso para caso.


V - Na formação da pena conjunta importa a visão de conjunto, a eventual conexão dos factos entre si e a relação desse “bocado de vida criminosa com a personalidade”

VI - Por isso, na valoração da personalidade do autor deve atender-se, antes de tudo, a saber se os factos são expressão de uma inclinação criminosa ou só constituem delitos ocasionais sem relação entre si, subsistindo a necessidade de examinar o efeito da pena na vida futura do autor, na perspectiva de existência de uma pluralidade de acções puníveis.

VIII – Um dos critérios fundamentais para a aferição da culpa, em sentido global, é o da determinação da intensidade da ofensa, a dimensão do bem (ou bens) jurídico ofendido, com profundo significado quando se trata da violação de bens eminentemente pessoais, mas também a determinação dos motivos e objectivos do agente no denominador comum dos actos praticados e, eventualmente, dos estados de dependência.

IX - Na avaliação da personalidade – unitária – do agente relevará a questão de saber se o conjunto dos factos é reconduzível a uma tendência (ou mesmo carreira) criminosa, ou tão só a uma pluriocasionalidade que não radica na personalidade: só no primeiro caso, será cabido atribuir à pluralidade de crimes um efeito agravante dentro da moldura penal conjunta.


X - Igualmente deve ser expressa a determinação da tendência para a actividade criminosa, a considerar, para além do número de infracções, pela sua perduração no tempo e pela dependência de vida em relação aquela actividade.


XI - Importa, ainda em sede de prevenção geral, verificar o significado do conjunto de actos praticados em termos de perturbação da paz e segurança dos cidadãos e, num outro plano, o significado da pena conjunta em termos de ressocialização, para o que será eixo essencial a consideração de antecedentes criminais do agente e a sua personalidade expressa no conjunto dos factos »

Ora, como se sabe, a pena única tem como limite mínimo, a pena parcelar mais grave e como limite máximo, a soma das penas concretamente determinadas, o que quer dizer, que, no caso dos autos, a baliza se situa entre um mínimo de 2 anos e 3 meses e um máximo de 5 anos e 7 meses de prisão.

Cotejando os critérios atrás expostos com a o decidido pelo tribunal recorrido conclui-se, com segurança, que na fixação da pena única se procedeu a um juízo de ponderação global, no qual foram sopesados todos os factos apurados, o número de crimes praticados, a sua natureza, a gravidade ínsita aos mesmos, o grau de ilicitude, a dimensão do juízo de censura que lhes é imanente, o lapso temporal do respectivo cometimento e a personalidade do arguido que daqueles factos sai reflectida, assim se alcançado uma pena única que se mostra justa, adequada e proporcional àqueles critérios, para além de ter sido fixada dentro dos critérios a que alude o nº2 do Artº 77 do C. Penal.

Por tudo quanto atrás se disse, tendo em conta todas as circunstâncias que no caso concorrem, atenuantes ou agravantes, torna-se claro que a pena única fixada pela instância recorrida, situada num valor intermédio entre a pena parcelar mais grave e o somatório material de todas as penas, em nada ultrapassa a medida da culpa global do arguido, devendo, por isso, permanecer inalterada.

E o mesmo sucede quanto à questão da pretendida suspensão da execução da pena.

Como se escreveu no Acórdão deste Tribunal, proferido em 08/04/10, no Proc. 398/09.PBELV.E1, relatado pelo Srº Desembargador Carlos Berguete Coelho «sendo a suspensão da execução da prisão facultativa, à luz da redacção do art.50º do CP, na medida em que, apenas verificando-se os respectivos pressupostos – formal e materiais -, deve o julgador por ela optar, tal não significa, porém, que se trate de mera faculdade deste, mas, ao invés, de um poder-dever, estritamente vinculado – v. Figueiredo Dias, in “Direito Penal Português – As Consequências Jurídicas do Crime”, Editorial Notícias, 1993, a págs.341/342.

Conforme Figueiredo Dias, ob. cit., a pág.343, A finalidade político-criminal que a lei visa com o instituto da suspensão é clara e terminante: o afastamento do delinquente, no futuro, da prática de novos crimes e não qualquer «correcção», «melhora» ou – ainda menos -«metanóia» das concepções daquele sobre a vida e o mundo e, a pág.501, Ela (a prevenção geral) deve surgir aqui unicamente sob a forma do conteúdo mínimo de prevenção de integração indispensável à defesa do ordenamento jurídico (…) como limite à actuação das exigências de prevenção especial de socialização. Quer dizer: desde que impostas ou aconselhadas à luz de exigências de socialização, a pena alternativa ou a pena de substituição só não serão aplicadas se a execução da pena de prisão se mostrar indispensável para que não sejam postas irremediavelmente em causa a necessária tutela dos bens jurídicos e estabilização contrafáctica das expectativas

A suspensão da execução da prisão consubstancia medida penal de conteúdo reeducativo e pedagógico, que tem a virtualidade de, além do mais, dar expressão a que a prisão (e sua execução) constitui “ultima ratio” da punição, apesar de limitada pela salvaguarda das referidas finalidades punitivas, obstando, assim, aos nefastos efeitos criminógenos que são comummente reconhecidos e correspondendo ao desiderato de restrição mínima e necessária de direitos (v. art.18º, nº.2, da CRP).

… Do ponto de vista dogmático, é uma pena de substituição, pois é necessariamente aplicada em substituição da execução da pena de prisão concretamente determinada, revestindo a natureza de verdadeira pena, com carácter autónomo e campo de aplicação, regime e conteúdo político-criminal próprios.

… Nomeadamente, é dever do juiz assentar o incontornável «juízo de prognose», favorável ou desfavorável, em bases de facto capazes de o suportarem com alguma firmeza …

… Todavia, só a partir de razões fundadas e sérias que levem a acreditar na capacidade do delinquente para a auto-prevenção do cometimento de novos crimes, deve a suspensão da execução da prisão ser determinada, sob pena de frustração das finalidades punitivas.

Na verdade, as exigências reclamadas pela prevenção geral nos termos referidos, sem que o prognóstico favorável minimamente se apresente, impedem que a pretendida suspensão da execução da prisão aplicada ao recorrente deva ser acolhida, pois não assegura as finalidades da punição.»

Ora, como se vê do que acima se transcreveu, a instância recorrida justificou, com bastante suficiência, a razão pela qual não suspendeu a execução da pena única de prisão aplicada ao arguido.

E fê-lo, de uma forma lógica, racional, compreensível, de um modo que nos parece inatacável e que quase dispensa considerações complementares, tão bem se espelham o evidente desprezo com que o arguido tem olhado as sucessivas oportunidades ressocializadoras que lhe têm sido concedidas pelo sistema de justiça, fazendo tábua rasa das advertências que nelas se plasmam e continuando a delinquir, mesmo no decurso desse períodos de suspensão e mesmo depois de já ter cumprido pena de prisão em consequência, precisamente, da revogação dessas suspensões !

O comportamento delituoso do arguido é bem revelador de uma postura em completa divergência com o dever-ser jurídico penal, que não é minimamente sensibilizado pela suspensão de execução de uma pena de prisão, sendo possível concluir que o mesmo não vê, nesta forma de pena, qualquer factor inibidor do cometimento de crimes, mas antes, ao que se induz, da possibilidade que lhe é dada de persistir no mundo da delinquência e no âmbito de uma relação com o consumo de drogas que está longe de estar resolvida, na medida em que já anteriormente havia suspendido esse consumo e isso não o impediu de voltar a cometer crimes.

A análise conjunta dos factos dos autos faz denotar, por parte do arguido, uma grave falta de interiorização dos valores ético-jurídicos vigentes e uma personalidade manifestamente indiferente aos ditames do direito, caracterizada pela falta de mecanismos auto-contentores.

Daí que se perceba inteiramente a decisão sindicada, quando afirma, reportando-se ao cumprimento de prisão sofrida pelo arguido em outro processo, « … trata-se de dado insuficiente para sustentar que a situação do arguido actual se mostra cristalizada, e que a partir de agora é que a suspensão da pena de prisão passará a ser sentida pelo arguido como instrumento de inflexão do seu percurso de vida. Não quando se atenta nos outros dados referidos. E quando se equaciona quer a inexistência de elementos objectivos que revelem que essa experiência impactou decisivamente a vida do arguido, quer a circunstância de o arguido já ter sofrido anterior privação de liberdade (embora em contexto diferente -permanência na habitação) que não teve efeitos relevantes.

Aliás, se a suspensão da pena de prisão já falhou os seus objectivos anteriormente, seria contraditório (ou ao menos ingénuo) admitir que agora a mera ameaça da prisão iria alcançar esse efeito, no quadro exposto e sem que existam alterações sensíveis na sua vida pessoal.

Deste modo, inexistem elementos, neste contexto, que permitam sustentar que a suspensão da pena de prisão seria ainda bastante para alcançar a recuperação social do arguido - ao invés, os dados expostos relevam que o arguido não só não valorizou a oportunidade que a suspensão das anteriores penas representava como, ao invés, as encarou como formas de impunidade.»

Tudo sopesado, torna-se manifesto, pelas considerações expostas, que a configuração de um cenário de reintegração social do arguido só poderá existir por uma crença abstracta na ressocialização, mas que não encontra nenhum apoio na factualidade apurada, de forma a ser possível dizer, que a simples censura do facto e a ameaça da pena bastariam para satisfazer as finalidades punitivas dos autos e afastá-lo da criminalidade.

Na verdade, as exigências reclamadas pela prevenção geral, decorrentes da própria natureza dos crimes em causa, a que acrescem as demandadas pela prevenção especial, muitíssimo evidentes pelos antecedentes criminais do arguido, tornam irrealizável o desejado prognóstico favorável para a pretendida suspensão da execução da pena de prisão aplicada ao recorrente, que não pode, por isso, ser acolhida.
Ao invés, do que factualmente se apurou, resulta inequívoca a necessidade de incutir no arguido o respeito pelos bens jurídicos estruturantes da sociedade, sendo por isso inevitável a sua condenação numa pena efectiva de prisão.

Não havendo, como se vê, qualquer violação, por banda da instância recorrida, do estatuído no Artº 50 do C. Penal, o recurso terá, ainda aqui, de improceder.

3. DECISÃO

Nestes termos, decide-se negar provimento ao recurso e em consequência, confirmar, na íntegra, o acórdão recorrido.

Custas a cargo do recorrente, fixando-se a taxa de justiça, atendendo ao trabalho e complexidade das questões suscitadas, em 5 UC, ao abrigo do disposto nos Artsº 513 nº1 e 514 nº1, ambos do CPP e 8 do Regulamento das Custas Processuais e tabela III anexa.

Consigna-se, nos termos e para os efeitos do disposto no Artº 94 nº2 do CPP, que o presente acórdão foi integralmente revisto e elaborado pelo primeiro signatário.

Évora, 29 de Abril de 2014

Renato Damas Barroso

António Manuel Clemente Lima
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[1] Não se atende à construção que, a partir de uma projecção pessoal do património (que se admite existir), defende o tratamento do crime de furto com um delito «pessoal», havendo tantos crimes quanto os ofendidos (proprietários dos bens subtraídos), por se considerar que tal não corresponde à estrutura, teleologia e referente axiológico do crime de furto, tal como decorrente do nosso CP.

[2] Ou alternativo ou geral (a terminologia oscila)

[3] A actuação do arguido permite excluir uma intenção de apropriação dos próprios veículos

[4] Em termos simples, fala-se de pluriofensividade deste crime, já que tutela uma pluralidade de bens jurídicos (a vida, a integridade física e a liberdade dos virtuais consumidores de estupefacientes; afecta a vida em sociedade, na medida em que dificulta a inserção social dos consumidores e possui efeitos criminógenos), embora se possam reconduzir a um mais geral, a saúde pública