Acórdão do Tribunal da Relação de Évora | |||
Processo: |
| ||
Relator: | MARIA ISABEL SILVA | ||
Descritores: | ALUGUER DE LONGA DURAÇÃO ALD USO NÃO PROFISSIONAL CONTRATO DE CONSUMO LEI ESPECIAL TRANSACÇÃO COMERCIAL | ||
![]() | ![]() | ||
Data do Acordão: | 01/31/2013 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
![]() | ![]() | ||
Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
![]() | ![]() | ||
Sumário: | a) - Um contrato de aluguer de longa duração, celebrado entre um profissional e uma pessoa singular que o destina a uso não profissional, merece a classificação de contrato de consumo e tem natureza civil. Os juros moratórios devidos são os juros civis. b) - O Decreto-Lei nº 32/2003 constitui uma lei especial, relativamente à lei geral do Código Comercial, pelo que se mantêm em vigor os artigos 1º, 2º, 99º e 102º deste último em todas as transacções comerciais não abrangidas por aquele. Ao delimitar o seu âmbito aos “pagamentos efectuados como remunerações de transacções comerciais”, e atento o conceito que no seu art. 2º nº 1 é dado de transacções comerciais, o Decreto-Lei nº 32/2003 restringe a sua aplicação apenas aos actos objectiva e bilateralmente comerciais, deixando incólumes todos os demais aspectos das relações comerciais, designadamente os actos de comércio ditos subjectivos ou unilaterais. Sumário da relatora | ||
![]() | ![]() | ||
![]() | ![]() | ||
Decisão Texto Integral: | ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE ÉVORA I - HISTÓRICO DO PROCESSO 1. V…, SA instaurou acção declarativa contra a ora oponente, pedindo a sua condenação a pagar-lhe a quantia de € 20.243,30, acrescida de juros moratórios vencidos no montante de € 6.826,81, bem como os vincendos. Em causa estava um contrato de aluguer de longa duração (ALD) de veículo automóvel, sendo que a oponente teria deixado de pagar as prestações em 26.06.2005, mantendo o veículo na sua posse. Após a devida tramitação, essa acção veio a ser julgada procedente, condenando-se a ora oponente a pagar à V… «(...) a quantia total de € 20.243,30, acrescida de juros de mora calculados com base nas taxas de juro legais sucessivamente em vigor e contados da data do vencimento de cada uma das mensalidades, até integral e efectivo pagamento.». Essa decisão transitou em julgado. Posteriormente, a V… instaurou acção executiva contra a Oponente, constituindo título executivo essa sentença. Veio então a Oponente deduzir oposição à execução, com fundamento no pagamento parcial da quantia exequenda e questionando a liquidação dos juros constante do requerimento executivo, uma vez que a exequente os liquidou segundo a taxa dos juros comerciais quando o deveria ter feito segundo a taxa dos juros civis. A V… contestou a oposição, alegando que os pagamentos referidos pela Oponente foram efectuados antes da propositura da acção declarativa e, por isso, já tidos em conta, quer na petição inicial dessa acção, quer na condenação no pedido. Apreciando a oposição, a M.mª Juíza proferiu sentença indeferindo à oposição. 2. Inconformada com tal decisão, dela apelou a Oponente, formulando as seguintes CONCLUSÕES [[1]]: A. «(...) B. A exequente fundou a execução em sentença datada de 28/03/2011 que julgou procedente a acção, “condenando a Executada a pagar à Exequente a quantia total de 20.243,30€, acrescida de juros de mora calculados com base nas taxas de juros legais sucessivamente em vigor e contados da data do vencimento de cada uma das mensalidades, até integral e efectivo pagamento.” C. A exequente, na demonstração da LIQUIDAÇÃO DA OBRIGAÇÃO solicita o pagamento de um “Valor dependente de simples cálculo aritmético” no total de 8.173,36 correspondente ao valor dos juros vencidos sobre as prestações da viatura e do seguro. D. A exequente contabiliza juros de mora comerciais às taxas aplicáveis no período compreendido entre 27-07-2005 e 30-03-2011. E. A exequente, ora apelante, deduziu oposição à execução invocando que os juros moratórios aplicáveis ao caso em apreço são os legais civis. F. O Tribunal Recorrido considerou que “No caso concreto, a Exequente celebrou um contrato de venda com a Executada no âmbito da sua actividade comercial, pelo que é um ato de comércio subjectivo, já que foi celebrado por comerciante e do próprio ato não resulta o contrário. Assim, deverá falecer a pretensão da Executada, sendo aplicável a taxa dos juros comerciais, nos termos do artigo 102º, § 3º do Código Comercial. Pelo exposto e sem necessidades de maiores considerações, nos termos das disposições legais supra citadas, indefere-se a presente Oposição à Execução.” G. Porém, e salvo mais douta opinião, os juros moratórios aplicáveis ao caso em apreço são os legais civis. H. As questões que se levantam neste recurso e que o fundamentam são o Erro da interpretação, aplicação e determinação do Direito aplicável. I. (...) J. Ora, o negócio "sub judice" é não comercial, ou seja, é um contracto civil pois fora estabelecida entre uma comerciante (a sociedade comercial) e um consumidor ( executada) K. A V... Lda tem como actividade principal o aluguer de veículos sem condutor, é uma Rent-a-Car, tendo apenas como actividade secundária a venda de veículos usados a terceiros. L. No contrato dos autos e na sentença condenatória que serviu de título executivo não ficou indicado ou estabelecido a taxa no que diz respeito aos juros de mora M. Os juros comerciais, resultantes da conjugação do artigo 102º do Código Comercial com as Portarias e os Avisos da DGT entretanto vigentes, apenas são aplicáveis às relações comerciais firmadas entre comerciantes e relativamente a contratos comerciais. N. Tal posição foi reforçada pela entrada em vigor do Decreto-Lei nº 32/2003, de 17/2, pois a sua alínea a) do nº 1 do artigo 2º, exclui do seu âmbito de aplicação as "transacções comerciais" estabelecidas entre "empresas" e "consumidores". O. Logo, não é aplicável o artigo 4º do mesmo diploma legal e, por conseguinte não são aplicáveis os juros comerciais previstos no artigo 102º do Código Comercial. P. (...) Q. Pelo art. 2º nº2 al. a) do DL, estão excluídos da aplicação do DL os contratos com os consumidores. E a executada é consumidor final. O contrato celebrado entre o vendedor final e o consumidor não tem natureza comercial mas civil. R. Logo, não é aplicável a taxa prevista no art. 4º nº1 do DL (juros comerciais). S. A executada e ora apelante entende que celebrou o contrato como consumidor, para o efeito da exclusão prevista no art. 2º nº2 al. a) do DL, e que portanto não lhe são aplicáveis os juros comerciais por força desse DL. T. Ora, a taxa normal dos juros legais civis, encontra-se fixada em 4%. U. Há portanto, excesso de execução também na parte em que o pedido de juros excede a taxa de 4% ao ano. V. (... W. Com efeito, se a transacção entre uma empresa comercial e um consumidor caía no domínio de aplicação do regime especial da lei comercial, fica hoje excluída daquele em virtude do disposto no art. 2º, n.º 1 al. a) do Decreto-lei n.º 32/2003, e da intencionalidade que lhe está subjacente - a protecção do consumidor, tratado como parte mais fraca do contrato. X. A obrigação de pagamento do consumidor ao comerciante é remetida para o regime geral da lei civil, devendo o consumidor apenas pagar os juros de mora decorrentes do art. 559º, CC, actualmente fixados em 4% pela Portaria n.º 291/2003, de 8 de Abril. Y. (...) 3. A exequente/recorrida não contra-alegou. Colhidos os vistos legais, cumpre decidir. II - FUNDAMENTAÇÃO 4. OS FACTOS Versando o recurso exclusivamente matéria de direito, e porque da decisão recorrida não constam factos provados (decisão proferida em sede de despacho saneador), remetemo-nos aqui para a factualidade constante do ponto I.1. desta peça. 5. O MÉRITO DO RECURSO O objecto do recurso é delimitado pelas questões suscitadas nas conclusões dos recorrentes, e apenas destas, sem prejuízo de a lei impor ou permitir o conhecimento oficioso de outras: art. 684º nº 2 e 3, art. 685º-A nº 1 e 660º n.º 2 Código de Processo Civil (CPC). QUESTÕES A RESOLVER: se os juros em cujo pagamento a Ré foi condenada são os juros civis ou os comerciais. 5.1. CLASSIFICAÇÃO DO CONTRATO COMO CIVIL OU COMERCIAL O que determina a sujeição de um determinado acto à lei comercial é a natureza do acto e não dos sujeitos que o praticam, assim o diz o art. 1º do Código Comercial (CC), “A lei comercial rege os actos de comércio, sejam ou não comerciantes as pessoas que neles intervêm.” Ora, de acordo com o art. 2º desse CC, serão considerados actos de comércio todos aqueles que se acharem especialmente regulados neste Código e, além deles, todos os contratos e obrigações dos comerciantes, que não forem de natureza exclusivamente civil, se o contrário do próprio acto não resultar. É consensual o entendimento de que na 1ª parte desse preceito se alude aos actos objectivamente comerciais, referindo-se a 2ª parte aos actos de comércio subjectivos. Extrai-se da sentença exequenda que o contrato aqui em causa é um “contrato de aquisição em Aluguer de Longa Duração” de um veículo automóvel. Como é sabido, o aluguer de longa duração (vulgo, ALD), corporizando a cedência do gozo temporário de uma coisa, tem como característica o facto de o locador adquirir o bem a locar, previamente escolhido pelo locatário. Assim, numa primeira leitura seriamos tentados a considerar que o contrato aqui em causa mereceria a classificação de acto comercial objectivo pois o aluguer mostra-se previsto no art. 481º do CC, em termos de “O aluguer será mercantil quando a coisa tiver sido comprada para se lhe alugar o uso”. Sucede que o ALD tem características específicas que o distinguem dum simples aluguer, designadamente a sua estrutura trilateral, o objectivo primacial de o locatário adquirir o bem no final do contrato. Atentas as especificidades do ALD, entendemos que ele não é subsumido ao aluguer a que alude o art. 481º do CC. [[2]] Desde logo, o ALD não se mostra especialmente regulado no CC (como exige o seu art. 2º), antes tendo regulamentação específica no Decreto-Lei nº 354/86, de 23.10 (com as alterações introduzidas pelo Dec.-Lei nº 373/90, de 27.111 e pelo Dec.-Lei nº 44/92, de 31.03). E, como tem sido entendimento jurisprudencial, «O denominado contrato de ALD retrata uma pluralidade multilateral de contratos interligados por uma relação de coligação funcional de três tipos contratuais distintos que constituem o seu esqueleto estrutural, ou seja, de um contrato de aluguer de longa duração, de um contrato de compra e venda a prestações e de um contrato-promessa de compra e venda do bem alugado.» [[3]] Nestes termos, e porque partilhamos do entendimento de não ser possível o recurso à analogia para a classificação como actos de comércio de outros actos previstos e regulados em legislação avulsa [[4]], concluímos que o contrato em causa não é um acto objectivamente comercial. Mas, sê-lo-á do ponto de vista subjectivo? A douta sentença ora em crise considerou que sim, e o raciocínio expendido não nos merece crítica. Na verdade, resultou provado na sentença exequenda que a aí Autora, ora Exequente, é uma sociedade comercial, que tem por objecto o aluguer e a venda de veículos automóveis, sendo que o contrato em causa foi concretizado no âmbito dessa actividade comercial. A ora Exequente é assim classificável de comerciante (art. 13º § 2º do CC), pelo que, tendo-o praticado no exercício do seu comércio, o acto/contrato seria um acto comercial subjectivo, por banda do locador. [[5]] E, nos termos do art. 99º do CC, “embora o acto seja mercantil só com relação a uma das partes será regulado pelas disposições da lei comercial quanto a todos os contratantes, salvas as que só forem aplicáveis àquele ou àqueles por cujo respeito o acto é mercantil, ficando, porém, todos sujeitos à jurisdição comercial”. [[6]] Mas, será que pelo facto de o contrato aqui em causa consubstanciar um acto de comércio pelo lado da Exequente, os juros moratórios ficam sujeitos à disciplina do CC, juros comerciais? Ou estará essa questão incluída na ressalva do art. 99º do CC, “salvas as que só forem aplicáveis àquele ou àqueles por cujo respeito o acto é mercantil”? A procura da resposta remete-nos para a consideração da qualidade de consumidor da ora Executada. 5.2. DA QUALIDADE DE CONSUMIDOR DA EXECUTADA E DA CLASSIFICAÇÃO DO CONTRATO COMO DE CRÉDITO AO CONSUMO O art. 2º da Lei n.º 24/96, de 31.07 define consumidor “todo aquele a quem sejam fornecidos bens, prestados serviços ou transmitidos quaisquer direitos, destinados a uso não profissional, por pessoa que exerça com carácter profissional uma actividade económica que vise a obtenção de benefícios.”. Na sentença que constitui título executivo, ficou provado que se tratou de um contrato de aquisição em Aluguer de Longa Duração; cujo pagamento seria efectuado em 60 mensalidades, iguais e sucessivas; que a Ré pagou € 3.950,00 a título de Entrada no negócio. Nada mais sendo dito, e atendendo ao nome, pessoa singular, da Executada, é de presumir que esta não destinava o veículo a uso profissional, o que lhe atribui a qualidade de consumidora. E, sendo assim, há que ter em conta o Decreto-Lei nº 133/2009, de 02.06, regulando os contratos de crédito ao consumo, em obediência à Directiva n.º 2008/48/CE, de 23.03? Segundo o art. 2º nº 1 al. d) deste diploma, estão excluídos do regime aí consignado os “Contratos de locação de bens móveis de consumo duradouro que não prevejam o direito ou a obrigação de compra da coisa locada, seja no próprio contrato, seja em contrato separado;”. Ora, se com os dados de facto disponíveis era lícita a ilação da qualidade de consumidora da ora Executada, já o mesmo se não pode dizer quanto a saber se o ALD aqui em causa previa o direito ou opção de compra. Na verdade, em termos de presunções, neste campo os factos levar-nos-iam em sentido contrário: na sentença exequenda, a ora Exequente pedia apenas as mensalidades em dívida, o valor do seguro e os juros moratórios; foi provado quais as mensalidades em dívida, seus valores, montantes do seguro e o montante que a Executada deu de entrada; contudo, não há a mínima referência a que no contrato estivesse estipulada a obrigação ou direito de a Executada comprar o veículo no final do contrato. Assim sendo, não se demonstrando que o contrato aqui em causa contemplava o direito ou obrigação de opção de compra, não pode a Executada beneficiar desse regime, por expressamente excluído pelo art. 2º nº 1 al. d) do Decreto-Lei nº 133/2009, de 02.06. [[7]] 5.3. DA INFLUÊNCIA DO DECRETO-LEI nº 32/2003, de 17.02 Acabamos de concluir que, no tocante ao contrato em causa nos autos, a Executada, pese embora a sua qualidade de consumidora, não beneficia do regime do Decreto-Lei nº 133/2009 (contratos de crédito ao consumo), atentas as características da contratação (não se demonstra o direito ou obrigação de opção de compra). Nas suas conclusões, a Recorrente faz apelo ao Decreto-Lei nº 32/2003, de 17.02. Mas, esse diploma teve como objectivo o estabelecimento de medidas de luta contra os atrasos de pagamento em transacções comerciais (em conformidade com os comandos da Directiva nº 2000/35/CE, de 29.06) e, como se pode ler no seu preâmbulo, «Não se aplica, porém, às transacções com os consumidores, aos juros relativos a outros pagamentos, como por exemplo os pagamentos efectuados nos termos da legislação em matéria de cheques ou de letras de câmbio, ou aos pagamentos efectuados a título de indemnização por perdas e danos, incluindo os efectuados por companhias de seguro.». E tal ficou expressamente consignado no seu art. 2º nº 2 al. a): o regime consignado no diploma não se aplica aos contratos celebrados com consumidores. Ora, se assim é, não há que fazer apelo a qualquer um dos seus preceitos. O Decreto-Lei nº 32/2003 constitui uma lei especial, relativamente à lei geral do Código Comercial, mas o simples facto de o ser (uma lei especial) não suprime a lei geral; a lei geral mantém-se em tudo que não colida com as normas especiais. O Código Comercial continuou em vigor, designadamente os seus artigos 1º, 2º, 99º e 102º, este na redacção que lhe foi conferida por esse Decreto-Lei nº 32/2003. Ao delimitar o seu âmbito aos “pagamentos efectuados como remunerações de transacções comerciais”, o Decreto-Lei nº 32/2003, deixou incólumes todos os demais aspectos das relações comerciais. Atendendo ao conceito que no seu art. 2º nº 1 é dado de transacções comerciais [[8]], o diploma restringe desde logo a sua aplicação apenas aos actos objectiva e bilateralmente comerciais. Concordamos que a exclusão, do seu âmbito de aplicação, dos contratos celebrados com consumidores terá o objectivo de protecção do consumidor. Mas, cremos nós, esse objectivo tem por razão subjacente o facto de o regime consignado nesse Decreto-Lei nº 32/2003 ser mais gravoso do que o regime geral, como se depreende da simples leitura dos seus artigos 4º e 5º (taxa de juros moratórios, regras supletivas do vencimento das obrigações, liberdade de estipulação de prazos de pagamento, responsabilidade pela mora a acrescer aos juros moratórios, etc). Concluindo, deste diploma nada extraímos de relevo para o caso em concreto. 5.4. DE REGRESSO AO CÓDIGO COMERCIAL Por fim, há que regressar ao raciocínio deixado em aberto no ponto 5.1., ou seja, situando-nos perante um acto/contrato subjectiva e unilateralmente comercial, há que completar a análise e daí extrair as consequências para a questão sob recurso. Portanto, neste tipo de actos, e de acordo com o estipulado no art. 99º do CC, há que excluir as disposições da lei comercial “que só forem aplicáveis àquele ou àqueles por cujo respeito o acto é mercantil”. Ora, uma dessas disposições é, a nosso ver, o art. 102º do CC, que só ganha fundamento, e só deve ser aplicável a comerciantes e não aos consumidores com quem estabelecem relações comerciais, vendendo ou locando os seus bens ou prestando os seus serviços. Submeter as relações comerciantes-consumidores ao domínio das leis comerciais, designadamente no âmbito dos juros moratórios, seria retirar do domínio civil os milhões de operações que se realizam diariamente! Não atentará contra a própria lógica comercial, a natureza das coisas, que uma compra de couves ou batatas na mercearia, a compra de um frigorífico ou o aluguer de uma máquina numa empresa, fiquem sujeitos a juros comerciais quando existe mora no pagamento?! Concordamos, pois, integralmente, com o entendimento de Calvão da Silva: «Por isso, porque, na summa divisio entre contratos civis e contratos comerciais, “as compras de quaisquer coisas móveis destinadas ao uso ou consumo do comprador ou da sua família” não são consideradas comerciais (art. 464º nº 1, 1ª parte, do Código Comercial), nenhuma dúvida séria e consistente pode existir quanto à natureza civil da compra e venda entre vendedor profissional e consumidor (...). Compra e venda civil entre vendedor profissional e consumidor a comprovar: que o Direito (privado) do Consumo faz parte do Direito Civil; que os modernamente chamados contratos de consumo são contratos civis. Resultado este nada surpreendente se não nos ativermos à espuma e superfície das coisas, e antes penetrarmos nas fundações do Direito Civil, Direito do cidadão homem comum __ e o que é o “consumidor”, pessoa singular não profissional contraparte de um profissional? __, Direito geral (também) dos contratos em que reluz o princípio tradicional da protecção da parte mais fraca.». [[9]] E, mais à frente (pág. 54), dando nota da equiparação da locação à compra e venda, para efeitos de atribuição da natureza civil a tais contratos, «”Locação de bens de consumo” é, seguramente, o aluguer de longa duração, nomeadamente de automóveis.». No mesmo sentido, Coutinho de Abreu, ao abordar o âmbito das ressalvas contidas no art. 99º do CC: «Deve, contudo, acrescentar-se uma categoria mais geral de excepções à aplicação das disposições da lei comercial. Quando o acto unilateralmente comercial seja contrato de consumo, aplicam-se a ambos os contratantes as regras especiais das relações de consumo.». [[10]] Ora, o contrato aqui em causa __ ainda que não entre na classificação de contrato de crédito ao consumo, sujeito ao regime especial do Decreto-Lei nº 133/2009, de 02.06 __ , não deixa por isso de ser um contrato de consumo. Enquanto contrato de consumo, ele tem natureza civil, pelo que os juros moratórios são os juros civis. III. DECISÃO 7. Pelo que fica exposto, acorda-se nesta secção cível da Relação de Évora em dar provimento ao recurso e revogar parcialmente a decisão recorrida, considerando procedente a oposição na parte respeitante aos juros moratórios em execução, que devem ser liquidados em conformidade com os juros civis (art. 559º do Código Civil). Sem custas, atento o provimento do recurso e por não ter havido contra-alegações. Évora, 31.01.2013 (Relatora) __________________________________________________(1ª Adjunta) (2º Adjunto) [1] [] Como é sabido, são as conclusões que delimitam o objecto do recurso ou “thema decidendum”; as alegações servirão para explanar os argumentos na defesa da tese do recorrente quanto à demonstração das questões suscitadas; já as conclusões devem referir, de forma sucinta, os pontos em que se considera ter havido erro de julgamento (seja quanto à matéria de facto, seja quanto à de direito), em conformidade com o nº 1 e 2 do art. 685º-A do CPC. Constactando-se que sob a epígrafe "conclusões", a Recorrente apenas reproduz os argumentos das alegações, dispensamo-nos de aqui reproduzir o que não são conclusões. [2] [] Segundo Pedro Pais de Vasconcelos, “Contratos Atípicos”, Almedina, pág. 245: «O contrato de “aluguer de longa duração” de automóveis novos é um contrato indirecto em que o tipo de referência é o aluguer e o fim indirecto é o da venda a prestações com reserva de propriedade. Qualificar este contrato simplesmente como contrato de aluguer de automóveis ou como contrato de venda a prestações com reserva de propriedade resulta, em qualquer dos casos, no desrespeito pela vontade contratual.». [3] [] Acórdão do STJ, de 01.02.2011 (processo 884/09.7YXLSB.L1.S1). No mesmo sentido, e do mesmo STJ, os acórdãos de 25.10.2011 (processo 1320/08.1YXLSB.L1.S1) e de 14.05.2009 (processo08P4096), todos disponíveis em http://www.dgsi.pt/, sítio a considerar nos demais arestos que vierem a ser citados sem outra menção de origem. [4] [] Sobre o recurso à analogia para a qualificação de outros actos não previstos especificamente no CC, cf. Guilherme Moreira, “Actos de Comércio”, Imprensa da Universidade de Coimbra, 1889, pág. 44 ss, Barbosa de Magalhães, “Direito Comercial”, Lições, 1924, pág. 87 ss, bem como, Ferrer Correia, “Licões de Direito Comercial”, vol. I, edição copigrafada, Coimbra, 1973, pág. 67 ss. [5] [] Ditos, na letra da lei, actos de comércio unilaterais (cf. Art. 99º do CC). [6] [] Não confundir jurisdição comercial com a existência de Tribunais de Comércio. [7] [] Assim o entendem os acórdãos referidos na nota 3. [8] [] E, como aí se diz, a transacção comercial é entendida apenas como “qualquer transacção entre empresas ou entre empresas e entidades públicas”. [9] [] In “Venda de Bens de Consumo”, Almedina, 3ª edição, pág. 45. [10] [] In “Curso de Direito Comercial”, vol. I, Almedina, 7ª edição, pág. 94. |