Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
167/04.9 TAMGR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: BRÍZIDA MARTINS
Descritores: PRINCÍPIO DA LIVRE APRECIAÇÃO DA PROVA
Data do Acordão: 05/13/2009
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE MARINHA GRANDE – 1º J
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 127º E 412º CPP
Sumário: 1. A ratio do citado artigo 412.º, n.º s 3 e 4 do CPP funda-se na possibilidade que se pretende conferir ao Tribunal superior de verificar se a prova (legalmente admitida) foi apreciada de acordo com os critérios legais.
2. O princípio da livre apreciação das provas não tem carácter arbitrário, nem se circunscreve a meras impressões criadas no espírito do julgador, estando antes vinculado às regras da experiência e da lógica comum, bem como às provas que não estão subtraídos a esse juízo, sendo imprescindível que este seja motivado, estando ainda sujeito aos princípios estruturantes do processo penal, exemplificativamente ditos princípios da legalidade das provas e do in dúbio pro reo.
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, na Secção (4.ª) Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra.

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I – Relatório.

1.1. F..., melhor identificada a fls. 683, foi pronunciada pela prática da factualidade constante da acusação de fls. 156 e segs. (para que remeteu o despacho que determinou a consequente submissão a julgamento, ut fls. 532/4), integradora, considerou-se, da co-autoria material de um crime de ofensa à integridade física, previsto e punido pelo artigo 143.º, n.º 1, do Código Penal [CP].

J..., também mais identificado nos autos, além de aí requerer a sua admissão na qualidade de assistente, o que viu deferido, deduziu tempestivo pedido de indemnização contra a arguida (e uma outra também conjuntamente submetida a julgamento) visando obter a sua condenação (solidária) a solver (em) -lhe € 6.000,00 (mas cujo cômputo não discriminou), para ressarcimento dos danos patrimoniais e não patrimoniais sofridos em virtude de ambas as condutas delitivas descritas. 

Findo o contraditório, em sentença proferida determinou-se, ao ora relevante, a condenação da dita arguida/demandada, pela co-autoria do assacado ilícito, na pena de 80 dias de multa, à taxa diária de € 8,00, bem como a pagar ao título ressarcitório reclamado a quantia arbitrada de € 1.000,00, acrescida de juros contabilizados desde a data dessa decisão e até seu integral pagamento ao demandante.

1.2. A arguida interpôs recurso, porque se não revê no veredicto assim emitido, extraindo da motivação oferecida as conclusões seguintes:

1.2.1. Não se fez qualquer prova nos autos dos factos que vinham imputados à arguida.

1.2.2. Existe contradição entre os pontos 2) e 3) com o ponto 4) da matéria de facto dada como provada e com a fundamentação.

1.2.3. A sentença recorrida refere que o assistente desceu para ir ter com a arguida e que a testemunha S...viu a pancada desferida pelo M..., mas não se encontra provado em lado nenhum que a arguida estabeleceu previamente um plano com o M....

1.2.4. A sentença recorrida omite qual o papel concreto da arguida nesse suposto plano previamente estabelecido.

1.2.5. A ter que existir responsabilidade criminal da arguida, a mesma estaria centrada ou num crime de ofensas à integridade física simples, por omissão (artigos 143.º; n.º 1 e 10.º, do Código Penal) ou num crime de ofensas à integridade física simples na forma de cumplicidade por omissão (ditos artigos, bem como 27.º do mesmo diploma).

1.2.6. Não se provaram contudo quaisquer factos omissivos e tal situação implicaria uma alteração substancial dos factos, sendo então que os autos apenas poderiam continuar com autorização da arguida, visto o artigo 359.º, n.º 3, do Código de Processo Penal [CPP].

1.2.7. Toda esta situação leva a que haja uma insuficiência da matéria de facto dada como provada, nos termos do artigo 410.º, n.º 2, alínea a) do CPP, bem como uma contradição insanável na fundamentação e a decisão, nos termos do mesmo artigo 410.º, n.º 2, sua alínea b), e, ainda, erro notório na apreciação da prova, agora nos termos da subsequente alínea c) do normativo em causa.

1.2.8. O Tribunal a quo não teve em conta o facto de o assistente também ser arguido num outro processo por abuso sexual da filha da arguida.

1.2.9. Atentas as regras de livre apreciação de prova, previstas no artigo 127.º do CPP, deveria dar-se como não provada a matéria da pronúncia.

1.2.10. A sentença proferida violou os artigos 143.º, n.º 1; 10.º; 26.º; 27.º e 28.º, todos do CP; os artigos 359.º, n.ºs 1 e 3; 379.º, n.º 1, alínea c); 410.º, n.º 2, alíneas a), b) e c), e 127.º, estes todos do CPP.

1.2.11. O tribunal deveria ter fundamentado melhor a sua decisão, cumprindo integralmente o disposto nos artigos 374.º e 379.º, os dois do último diploma citado.

Terminou pedindo o eximir de qualquer responsabilização, ou, concedendo, seja decretada a anulação do julgamento realizado a fim de que se dê então cumprimento ao estatuído no mencionado artigo 359.º, n.º 3.

1.3. Notificados os sujeitos processuais visados, nenhum deles apresentou resposta.

Admitido o recurso, foram os autos remetidos a esta instância.

1.4. Aqui, o Ex.mo Procurador-geral Adjunto emitiu parecer conducente ao seu não provimento.

Dado acatamento ao consignado pelo artigo 417.º, n.º 2, do CPP, seguiu-se réplica da recorrente.

No exame preliminar a que alude o n.º 6 daquele inciso legal, consignou-se nada obstar ao conhecimento de meritis.

Como assim, determinou-se a recolha dos vistos devidos e submissão dos autos à presente conferência.

Urge então ponderar e decidir.


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II – Fundamentação de facto.

No que concerne, exarou-se na sentença recorrida:

“1. Factos provados:

1.1. Da discussão da causa, e relativamente à matéria de facto constante do despacho de pronúncia, que remete para o despacho de acusação pública de fls. 156 e ss. (relativamente à arguida F...) …resultam provados os seguintes factos:

1) A arguida F...é irmã de J... e encontra-se desentendida com este.

2) No dia 5 de Fevereiro de 2004, pelas 21:30 horas, a arguida e M..., seu ex companheiro, dirigiram-se ao prédio onde morava o assistente, sito na Rua A…, na Marinha Grande.

3) Nesse local, a arguida tocou à campainha e, pelo intercomunicador, pediu ao assistente que viesse à rua, enquanto o M...se mantinha escondido dentro de um veículo automóvel.

4) O assistente saiu de casa e dirigiu-se à arguida que se encontrava junto do seu veículo.

5) Logo que o assistente se aproximou e enquanto este falava com a arguida, o M…, utilizando um ferro, desferiu-lhe pancadas na cabeça.

6) Em consequência de tais pancadas, o assistente sofreu várias feridas no couro cabeludo.

7) Por tais lesões, recebeu tratamento no Hospital de Santo André, em Leiria.

8) A arguida actuou do modo descrito em execução de plano previamente elaborado com o M....

9) Agiu com intenção de molestar fisicamente o assistente, o que conseguiu.

10) A arguida actuou de forma livre, deliberada e conscientemente, bem sabendo ser a sua conduta proibida e punida pela lei penal.

(…)

13) A arguida F...reside na Suíça desde pelo menos 2002.

(…)

18) Dos autos não consta a existência de antecedentes criminais pela arguida F… .

1.2. Da matéria constante do pedido de indemnização civil deduzido, e para além do já referido, provou-se que:

19) Em virtude da conduta da arguida F…, o assistente sofreu dores e incómodos.


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2. Nada mais se provou em contradição ou para além do supra referido. Assim,

2.1. Da matéria de facto constante do despacho de pronúncia não se provou que:

(…)

5) Que o M... se encontrava escondido no interior do veículo que era conduzido pela Fátima.

6) Que o motivo da actuação da F...fosse o facto de estar desentendida com o assistente por este lhe ter solicitado o pagamento de uma dívida.

7) Que o M...tivesse desferido exactamente 4 pancadas na cabeça do assistente.

2.2. Da matéria de facto constante do pedido de indemnização civil deduzido não se provou que:

(…)

A matéria à qual se não deu qualquer resposta afigura-se desprovida de conteúdo fáctico, logo conclusiva.


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3. Convicção do Tribunal:

No que tange aos factos referidos de 1 a 7, o Tribunal fundou a sua convicção nas declarações do assistente, que os descreveu de forma credível e precisa, logrando convencer da sua veracidade.

Atendeu-se, ainda, nesta parte: ao depoimento da S..., mulher do assistente, que se encontrava em casa nessa altura e que, tendo saído à rua na ocasião, viu o M...desferir a última pancada na cabeça daquele, apercebendo-se que depois quer ele, quer a F…, entraram nos veículos que traziam e foram embora; e ao depoimento de R..., funcionária de um estabelecimento comercial situado na zona, e que naquela ocasião viu passar o assistente na rua com uma toalha na cabeça que estava ensanguentada.

Quanto à existência de acordo prévio com o M…, ele decorre da forma como a F...actuou, a qual revela que mais que um conhecimento recíproco da intervenção do referido M…, havia um verdadeiro planeamento, com distribuição de funções, a ela lhe competindo chamar o assistente para o atingir da forma previamente traçada.

Ao actuar dessa forma, a F...não podia deixar de ter a vontade dirigida para tal fim, também não podendo deixar de conhecer o significado criminal da sua conduta.

Decorre ainda da normalidade das coisas e das regras da experiência comum que esse tipo de agressão é apto a causar dores e incómodos.

A factualidade que se deu como não provada no que concerne à matéria constante da acusação pública, prende-se com a ausência ou insuficiência de prova relativa à mesma (v.g., n.º de pancadas desferidas, local onde estava o M...e motivo do desentendimento da F...com o assistente).

(…).”


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III – Fundamentação de Direito.

3.1. É pacífica a doutrina e jurisprudência[1] no sentido em que o âmbito do recurso se define através das conclusões que o recorrente extrai da respectiva motivação, sem prejuízo, todavia, das questões de conhecimento oficioso[2].

No caso presente, não se vislumbrando fundamento que acarrete qualquer intervenção oficiosa, resulta constituir questão decidenda ponderarmos se deve alterar-se o acervo fáctico acolhido nos moldes indicados pela recorrente de forma a depois se eximir da responsabilidade penal cominada.

3.2. A impugnação da matéria de facto pode lograr-se por duas formas: através da alegação dos vícios decisórios elencados no citado artigo 410.º, n.º 2; ou, por intermédio da invocação de elementos da documentação da prova produzida em julgamento.

Na primeira situação, a argumentação dos vícios só pode advir tomando-se o texto da decisão recorrida, circunscrevendo-se a apreciação da matéria de facto ao que dele consta, por si só considerado ou em conjugação das regras da experiência comum, sem possibilidade de apelo a outros elementos estranhos ao texto, mesmo que constem do processo.

Os vícios da decisão têm de emergir ou resultar do próprio texto, têm de ser intrínsecos à própria decisão como peça autónoma.

Já no segundo caso, a apreciação não se restringe ao texto da decisão recorrida, mas à análise do que se contém e pode extrair da prova (documentada) produzida em audiência, mas sempre a partir de balizas fornecidas pelo recorrente, no estrito cumprimento do ónus imposto pelos n.ºs 3 e 4 do artigo 412.º do CPP. 

De acordo com este artigo 412.º, a motivação do recurso deve ser um enunciado das questões suscitadas e sobre as quais incida a disputa do recorrente, que deve especificar os fundamentos dessa mesma discordância.

Se estiver em causa a matéria de facto, deve a motivação conter os concretos pontos de facto que o recorrente considera incorrectamente julgados, com especificação das provas que imponham outra decisão, sendo que tais especificações, quando tiver havido gravação da prova, devem ser feitas por referência ao consignado em acta, indicando as passagens em que se funda a impugnação.

Este ónus de especificação está ainda presente nas conclusões que terminam a motivação e que consistem num resumo dos fundamentos por que se pede o provimento do recurso, tendo como finalidade uma apreensão rápida e fácil das questões postas ao tribunal superior.

Outra consideração importa fazer, desde já:

Tem sido salientado a uma voz pelos Tribunais Superiores que o recurso em matéria de facto é de fulcral importância para a salvaguarda dos direitos constitucionais de defesa e, para tanto, deve a Relação proceder a efectivo controlo da matéria de facto provada na 1.ª instância, por confronto desta com a documentação em acta da prova produzida oralmente na audiência. Porém, essa dimensão do recurso não constitui um novo julgamento do objecto do processo, como se a decisão da 1.ª instância não existisse, mas sim, e apenas, remédio jurídico que se destina a despistar e corrigir erros in judicando ou in procedendo, que são expressamente indicados pelo recorrente[3].

Assim, para atingir a completa delimitação do objecto do recurso e obstar à sua utilização apenas para sobrepor uma nova apreciação àquela formulada em 1.ª instância, veio o legislador processual penal da revisão operada pela Lei n.º 48/2007, acima citada, a par da eliminação da exigência da transcrição dos depoimentos[4], impor ao recorrente em matéria de facto que na motivação proceda a uma tríplice especificação: concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados; concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida; e ainda, quando o solicitar, concretas provas a renovar. Relativamente às duas últimas especificações sobre o recorrente recai uma outra exigência: deve o recorrente ter como referência o consignado na acta quanto ao registo áudio ou vídeo das prova prestadas em audiência mas também indicar concretamente as passagens em que se funda a impugnação pois são essas que devem ser ouvidas ou visualizadas pelo tribunal, sem prejuízo de outras relevantes (n.ºs 4 e 5 do artigo 412.º do CPP). Esta exigência justifica materialmente a extensão do prazo de recurso de 20 para 30 dias[5].

Atentando-se em tais requisitos, e vendo-se a motivação e conclusões ofertadas pela recorrente, o que daí emerge é a não condensação das razões do seu dissídio com a peça impugnada nos moldes exigíveis, assim cumprindo adequadamente com o dever de colaboração processual que se reclama dos sujeitos processuais.

Tudo porque não especifica na motivação, concretamente, os pontos de facto que controverte e provas que os elidiriam; por outro lado, porque omite de todo nas conclusões tais itens.

O Tribunal Constitucional já foi chamado a pronunciar-se sobre as consequências quando esse incumprimento se detecta, v.g., na motivação, bem como nos demais em que ocorre o seu cumprimento defeituoso nas conclusões.

Assim, decidiu, por exemplo, no Acórdão n.º 259/02, publicado no Diário da República [DR], II.ª Série, de 13 de Dezembro de 2002, que se o recorrente não acata com o ónus de motivação indicado, fica incumprida a sua obrigação, e é como se ela não existisse. Donde não se justificar nessa hipótese um qualquer convite à sua formulação (pois que redundaria na concessão de uma nova oportunidade de recurso[6]) e, antes, impor-se a rejeição do recurso.

Por outro lado, ponderou num seu aresto de 31 de Outubro de 2003, publicado no DR, II.ª Série, de 17 de Dezembro de 2003, a situação na qual o que se deparava era a simples menção na motivação dos aludidos ónus, mas o seu não transporte adequado para as conclusões (não concretização nos moldes exigíveis). Aqui já antes se imporia um prévio convite ao recorrente para acatamento adequado do ónus devido, sob pena, agora sim, de violação das garantias de defesa do processo criminal plasmadas no artigo 32.º, n.º 1, da CRP[7].

3.3. Mau grado o que vimos de referir, sem rejeição do recurso ou, concedendo, um prévio convite à recorrente para que corrigisse as falhas descortinadas, tendemos a decidir de imediato.

Isto também porque no afã em questionar a factualidade tida por provada, concretamente os elementos típicos conducentes à condenação decretada, o que faz a recorrente é uma amálgama de ambas as formas de impugnação indicadas sem, a final, e em bom rigor, se ater a uma (ou ambas) delas.

Ou seja, depara-se-nos em rectas contas uma deficiente estruturação na alegação apresentada, centrada tão-somente na valoração da prova e que dispensa, definitivamente, um qualquer eventual convite para correcção ou suprimento das deficiências mencionadas.

Muito concretamente: à versão acolhida pelo Tribunal sindicado, contrapõe a mesma a sua própria versão, refutando a apreciação que além se fez dos meios de prova produzidos.

Vejamos, contudo:

A ratio do citado artigo 412.º, n.º s 3 e 4 funda-se na possibilidade que se pretende conferir ao Tribunal superior de verificar se a prova (legalmente admitida) foi apreciada de acordo com os critérios legais.

Ou, como se escreveu no Acórdão do STJ, de 16 de Junho de 2005, in processo n.º 05P1577 e já referimos: “O duplo grau de jurisdição em matéria de facto não visa à repetição do julgamento na 2.ª instância, mas dirige-se tão somente ao exame dos erros de procedimento ou de julgamento que lhe tenham sido referidos em recurso e às provas que impõem decisão diversa e não indiscriminadamente todas as provas produzidas em audiência.”

Norma nuclear à valoração da prova no decurso da audiência de julgamento a constante do artigo 127.º do CPP[8].

Este normativo não tinha qualquer correspondência no texto do Código Processo Penal de 1929, muito embora o princípio da livre apreciação da prova já fosse uma decorrência do artigo 655.º do Código de Processo Civil, que seria aplicável a título subsidiário.

Tal princípio, também apelidado de prova moral ou da intima convicção, foi ganhando dimensão a partir da Revolução Francesa de 1789, com particular incidência a partir da segunda metade do séc. XIX, sendo actualmente uma das balizas mestras do sistema processual na generalidade dos países de Estado de Direito, por contraposição ao sistema da prova legal.

Enquanto neste sistema o valor da prova está exclusivamente predeterminado na lei, no sistema da livre apreciação da prova e como o seu próprio nome indica, o juiz tem total liberdade, de acordo com a sua intima convicção, de proceder à valoração dos meios de prova obtidos.

Assim, regra geral fixada é a de que, na apreciação da prova e partindo das regras de experiência, o tribunal é livre de formar a sua convicção. Normalmente o que sucede é que face à globalidade da prova produzida, o tribunal se apoie num certo conjunto de provas, em detrimento de outras, nada obstando a que esse convencimento parta de um registo mínimo, mas credível, de prova, em detrimento de vastas referências probatórias, que, contudo, não têm qualquer suporte de credibilidade.

Naturalmente que essa apreciação de prova está sujeita ao dever de fundamentação, enquanto decorrência, em primeiro lugar, do disposto no artigo 205.º, n.º 1, da CRP[9].

Tal dever de fundamentação, no âmbito do processo penal e na perspectiva do arguido, surge, igualmente, como uma das suas garantias constitucionais de defesa, expressas no artigo 32.º, n.º 1, da mesma CRP.

Existem, no entanto, algumas restrições legais ao regime da livre apreciação da prova, como sucede com o valor probatório dos documentos autênticos e autenticados (artigo 169.º), o efeito do caso julgado nos pedidos de indemnização civil (artigo 84.º), a prova pericial (artigo 163.º) e a confissão livre, integral e sem reservas (artigo 344.º).

Surgem ainda outras condicionantes estruturais à livre apreciação da prova, sendo exemplo o princípio da legalidade da prova (artigos 32.º, n.º 8, da CRP; 125.º e 126.º, ambos do CPP) e outra o princípio in dúbio pro reo, enquanto emanação da garantia constitucional da presunção da inocência (artigo 32.º, n.º 2, da CRP).

Por tudo isto, este princípio da livre apreciação das provas não tem carácter arbitrário, nem se circunscreve a meras impressões criadas no espírito do julgador, estando antes vinculado às regras da experiência e da lógica comum, bem como às provas que não estão subtraídos a esse juízo, sendo imprescindível que este seja motivado, estando ainda sujeito aos princípios estruturantes do processo penal, exemplificativamente ditos princípios da legalidade das provas e do in dúbio pro reo.

Precisando o caso sub judice.

3.4. No que concerne à invocação feita pela recorrente a todos (!) os vícios plasmados no artigo 410.º, n.º 2, é fora de dúvida que nada aponta no sentido sufragado.

Sem elencarmos exaustivamente a estruturação desses vícios, sempre diremos que a matéria da facto acolhida se mostra suficiente para a decisão de direito que foi seguida (coisa distinta da insuficiência da prova para a decisão de facto tomada, o que em rigor ela vislumbra); que o texto da decisão recorrida se não mostra eivado, sobre a mesma questão, de posições antagónicas e inconciliáveis, e, por fim, que do mesmo texto não resultam como provados factos que, perante as normais regras da experiência e da lógica corrente, não se poderiam ter verificado.

3.5. A arguida insurge-se contra a consideração das circunstâncias determinantes à sua consideração como co-autora do crime de ofensa à integridade física. No seu entender, nenhuma da prova produzida permite concluir que, mediante prévio plano arquitectado com o M..., ambos se dirigiram ao local onde reside o assistente e aí o agrediram fisicamente como relatado.

Reafirmando linha que já veio de desenvolver-se, é constante a orientação dos nossos Tribunais Superiores segundo a qual a convicção do julgador da 1.ª instância só pode ser modificada, pelo tribunal de recurso, quando a mesma violar os seus momentos estritamente vinculados (obtida através de provas ilegais ou proibidas, ou contra a força probatória plena de certos meios de prova) ou então quando afronte, de forma manifesta, as regras da experiência comum. Como se pode ler por exemplo, no Acórdão da Relação do Porto, proferido em 17 de Setembro de 2003, no âmbito do recurso n.º 312082, disponível no site www.dgsi.pt, “ (…) o recurso da matéria de facto não se destina a postergar o princípio da livre apreciação da prova, que tem consagração expressa no art.º 127.º do CPP. A decisão do Tribunal há-de ser sempre uma “convicção pessoal – até porque nela desempenham um papel de relevo não só a actividade puramente cognitiva mas também elementos racionalmente não explicáveis (v.g. a credibilidade que se concede a um certo meio de prova) e mesmo puramente emocionais” – Prof. Figueiredo Dias, in Direito Processual Penal, vol. I, ed. 1974, pág. 204. Por outro lado, a livre apreciação da prova é indissociável da oralidade com que decorre o julgamento em primeira instância. Como ensinava o Prof. Alberto do Reis “a oralidade, entendida como imediação de relações (contacto directo) entre o juiz que há-de julgar e os elementos de que tem de extrair a sua convicção (pessoas, coisas, lugares), é condição indispensável para a actuação do princípio da livre convicção do juiz, em oposição ao sistema de prova legal.” - Cód. Proc. Civil Anotado, vol. IV, págs. 566 e ss. (…)” O art.º 127.º do CPP indica-nos um limite à discricionariedade do julgador: as regras da experiência comum e da lógica do homem médio suposto pela ordem jurídica (…)”.

Sempre que a convicção seja uma convicção possível e explicável pelas regras da experiência comum, deve acolher-se a opção do julgador, até porque o mesmo beneficiou da oralidade e imediação da recolha da prova.

No caso em pareço, a M.ma julgadora baseou a sua convicção, quanto às lesões sofridas pelo ofendido e à sua imputação a uma agressão na qual a arguida foi co-autora, nas declarações prestadas pelo próprio assistente, bem como nos depoimentos prestados pelas testemunhas S...e R… .

Tudo prova legalmente permitida (artigo 125.º, do CPP).

Para tanto, destacou, na sua fundamentação, que o primeiro “descreveu de forma credível e precisa” o sucedido; que a segunda (mulher do lesado) “viu o M...desferir a última pancada na cabeça daquele” e, por fim, a última, “viu passar o assistente na rua com uma toalha na cabeça que estava ensanguentada”.

Ouvindo-se, na íntegra, tais declarações e depoimentos, mostra-se a coberto de qualquer censura a conclusão do Tribunal a quo.

Com efeito, as declarações do assistente permitem extrair um móbil para a conduta da arguida recorrente: as suspeitas (?) de que ele “tinha feito mal” – entenda-se, abusado sexualmente – de uma sobrinha menor (filha da recorrente e do dito M…). Depois todo o encadear sucessivo dos factos logra consubstanciar a dita “co-autoria”: a chegada ao local da arguida e do M...em dois carros distintos; o contacto da arguida através do intercomunicador, dizendo (e sendo certo que a conversa até decorreu com sua cunhada S…) que tinha uma encomenda do pai para entregar ao assistente; a circunstância de a arguida se ter dirigido ao carro em que se fizera transportar (do pai de ambos) logo que o assistente chegou à rua (tudo visando emprestar seriedade à existência da encomenda e a que a arguida estava desacompanhada); a imediata agressão do assistente pelo M…, por trás, isto é, sem que ele tivesse tido oportunidade de se aperceber da sua presença também no local; assistente que caído por terra, logo que se levantou viu ser-lhe vibrada uma segunda pancada na cabeça com um ferro; a fuga quer do lesado, quer da arguida e ex-companheiro estes nos carros que ali tinham disponíveis.

Acrescem os depoimentos das testemunhas aludidas. A S...referindo que após o seu contacto com a cunhada, desceu do prédio (um 1.º andar) e quando chegou à rua, estupefacta, presenciou que seu marido já ferido foi alvo de agressão pelo M…, estando a arguida F...por perto, sem que algo tivesse oposto, após o que abalou e o M…, em carros distintos. A R...(então a trabalhar numa frutaria existente no prédio onde reside o assistente e que se aprestava para fechar) a vê-lo com uma toalha ensanguentada na cabeça e instando-o sobre o sucedido a receber a resposta de que “foi a minha irmã.”

Da articulação destas provas, com recurso ás normais regras da experiência, é pois legítima a inferência da M.ma julgadora segundo a qual tudo se desenrolou de acordo com plano previamente urdido entre a arguida e o M...no intuito de molestarem fisicamente, como fizeram, o assistente.

Obtempera a recorrente que ninguém a viu chegar conjuntamente com o M...ao local; que se não comprovou o prévio acordo no sentido de o assistente ser agredido e que apenas se limitou a presenciar a agressão cometida pelo M...na pessoa de seu irmão.

Sucede que, como vimos, não foi esse o motivo que levou o tribunal a dar como provada a agressão. O que levou o tribunal a dar como provada a agressão, foi o facto de ela ter efectivamente ocorrido (a sua prova resulta ao menos do depoimento totalmente desinteressado da testemunha R…); de o ofendido imputar tal agressão nas circunstâncias descritas e destas próprias (a arguida e o M...são os pais da criança alegadamente alvo das investidas sexuais abusivas do aqui lesado).

Em suma, a convicção adquirida na 1.ª instância é, não só possível, como é sobretudo a única que dá uma explicação coerente para os factos ocorridos naquelas circunstâncias.

Convicção ademais devidamente fundamentada e que põe a decisão recorrida também a coberto de qualquer falta ao abrigo do regime consignado nos artigos 374.º e 379.º, invocados pela recorrente.

Por último, de referirmos que opera a sentença sindicada adequado enquadramento jurídico da factualidade provada, mormente da verificação dos pressupostos indispensáveis ao emergir da “co-autoria” da recorrente, nada se nos afigurando acrescentar ao aí mencionada e mostrando-se a argumentação expendida em recurso totalmente irrelevante ao efeito.


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IV – Decisão.

São termos em que pelos fundamentos expostos se nega provimento ao recurso interposto.

Custas pela recorrente, fixando-se a taxa de justiça devida em 5 UC´s.

Notifique.


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Coimbra, 13 de Maio de 2009



[1] Germano Marques da Silva, in Código de Processo Penal, II, 2.ª edição, Editorial Verbo, e Ac. do STJ, de 24 de Março de 1999, in Colectânea de Jurisprudência (STJ), ano VII, tomo I, pág. 247.
[2] Cfr., por exemplo, artigos 119.º, n.º 1; 123.º, n.º 2; 410.º, n.º s, alíneas a), b) e c), todos do CPP, e acórdão de fixação de jurisprudência de 19 de Outubro de 1995, publicado sob o n.º 7/95, in Diário da República, I.ª Série-A, de 28 de Dezembro de 1995.
[3] Ac. do STJ, de 17 de Maio de 2007, in processo n.º 071397, relatado pelo Ex.mo Conselheiro Santos carvalho, acessível em www.dgsi.pt. Cfr., ainda, de entre a jurisprudência mais recente do mesmo STJ, acessível no mesmo sito, os Acs. de 23 de Maio; de 14 de Março e de 15 de Março, sempre de 2007, relatados respectivamente pelos Ex.mos Conselheiros Henriques Gaspar (processo n.º 07P1498); Santos Cabral (processo n.º 07P21) e Pereira Madeira (processo n.º 07P610).
[4] O que foi justificado na proposta de lei n.º 109X da seguinte forma: «No âmbito da motivação, para pôr cobro a uma das principais causas de morosidade na tramitação do recurso, elimina-se a exigência da transcrição da audiência de julgamento. O recorrente pode referir as concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida indicando as passagens das gravações; não é obrigado a proceder á respectiva transcrição (artigo 412.º). O tribunal ad quem procede à audição ou visualização das passagens indicadas e de outras que, porventura, considere relevantes».
[5] Sem elaborar sobre a necessidade para o exercício da defesa de tal prazo, não pode deixar de se confrontar o mesmo com o prazo concedido pelo legislador para a prolação de sentença nos casos de especial complexidade – 10 dias, nos termos do artigo 373.º, do CPP – e para a elaboração de projecto de acórdão ou de elaboração da decisão – 15 dias, nos temos dos artigos 417.º, n.º 9 e 425.º, n.º 3, ambos do CPP.
[6] Em linha com tal entendimento, a redacção do actual artigo 417.º, n.º 4 do CPP, em cujos termos, “O aperfeiçoamento previsto no número anterior não permite modificar o âmbito do recurso que tiver sido fixado na motivação.”
[7] O que mereceu consagração legal ao estatuir-se agora no dito artigo 417.º, mas seu n.º 3, que “Se a motivação de recurso não contiver conclusões ou destas não for possível deduzir total ou parcialmente as indicações previstas nos n.ºs 2 a 5 do artigo 412.º, o relator convida o recorrente a apresentar, completar ou esclarecer as conclusões formuladas, no prazo de 10 dias, sob pena de o recurso ser rejeitado ou não ser conhecido na parte afectada.”
[8] “Salvo quando a lei dispuser diferentemente, a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente.”
[9] “As decisões dos tribunais que não sejam de mero expediente são fundamentadas na forma prevista na lei.”