Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
133/22.2T8LSA.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: CRISTINA NEVES
Descritores: ACIDENTE DE VIAÇÃO
RELAÇÃO DE COMISSÃO
CULPA
INDEMNIZAÇÃO
PRIVAÇÃO DO USO
Data do Acordão: 06/04/2024
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: JUÍZO DE COMPETÊNCIA GENÉRICA DA LOUSÃ DO TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE COIMBRA
Texto Integral: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA EM PARTE
Legislação Nacional: ARTIGOS 500.º, 503.º, N.º 3, 566.º, 570.º, N.º 1, DO CÓDIGO CIVIL, 2.º, 24.º, N.º 1, 48.º, N.ºS 1 E 4, E 50.º, N.º 1, AL.ª A), DO CÓDIGO DA ESTRADA
Sumário: I – A relação de comissão implica uma relação de dependência entre o comitente e o comissário, agindo este mediante ordens ou instruções daquele, na realização dos actos materiais de que fora incumbido, no momento em que ocorreu o acidente (cfr. artº 500 do C.C.).
II – Só neste caso, actua a presunção de culpa contida no artº 503, nº 3, do C.C., respondendo, se não ilidida, o condutor por culpa e, solidariamente com este, o comitente nos termos do artº 500, nºs 1 e 2, do mesmo diploma legal.

III – Resultando da matéria de facto que ambos os veículos eram conduzidos por “conta e ao serviço” da firma proprietária de cada veículo, deve considerar-se que estes factos integram a relação de comissão, prevista no artº 500 do C.P.C. e assim, presumida a culpa de ambos os condutores na colisão destes veículos.

IV – Demonstrando-se que a colisão se verificou quando o condutor de um dos veículos, circulando numa recta com mais de 90 mts de visibilidade e numa via com 4,40 mts de largura, embateu num tractor que se encontrava parado, ocupando, perpendicularmente à via, 90 cms da faixa de rodagem, tem-se por verificada a culpa efectiva do condutor deste veículo na produção do acidente, decorrente da violação do dever de cuidado e de diligência contido nos artsº 2 e 24, nº1 do Código da Estrada.

V – Verifica-se uma situação de concorrência de culpas entre esta violação e a conduta do condutor do tractor ao invadir, com a pá a este acoplada, a via rodoviária, de forma perpendicular ao limite direito da via e ao não sinalizar, quer por via da colocação do triângulo quer acionando o pirilampo deste tractor, a manobra e a imobilização do veículo de forma parcial na faixa de rodagem (em contravenção do disposto nos artºs 2, 48, nºs 1 e 4 e 50, nº1 a) do C. da Estrada).

VI – Face a esta factualidade justifica-se a repartição de responsabilidades, por culpa efectiva na produção do acidente, em 40% para o condutor do tractor e em 60% para o condutor do veículo, por se considerar que a desatenção e violação dos deveres de cuidado e diligência deste último, contribuiu em maior medida para o evento e para os danos gravosos dele resultantes (art. 570, nº1, do CC).

VII – A indemnização dos danos causados, de acordo com o princípio geral contido no artº 566 do C.C., deve reconstituir a situação que existiria se não se tivesse verificado o evento danoso, ou seja, a medida da indemnização deve corresponder à medida do dano sofrido.

VIII – Visando este princípio a reparação do dano sofrido, à R. seguradora cabia o ónus de alegar e provar não só a excessiva onerosidade da reparação, mas também que o pagamento do valor venal do veículo era suficiente para colocar o lesado na situação em que se encontrava antes do acidente, ou seja, que com essa quantia o lesado poderia adquirir um veículo com as mesmas características do veículo sinistrado.

IX – Não sendo cumprido este ónus de alegação e prova, cabe ao lesado o direito a obter o valor que despendeu com aquisição de veículo de idênticas características ao veículo acidentado e em perda total.

X – A privação de uso de veículo merece a tutela do direito e é, nesta medida, indemnizável, uma vez que o simples uso do bem constitui uma vantagem susceptível de avaliação pecuniária e a sua privação, um dano.

XI – Este dano apenas cessa com a atribuição de indemnização à lesada em caso de perda total, ou com a substituição da viatura por outra de idênticas características e deve ser fixada atendendo a critérios de equidade.


(Sumário elaborado pela Relatora)
Decisão Texto Integral: ***

Proc. Nº133/22.2T8LSA-C1 - Apelação

Tribunal Recorrido: Tribunal Judicial da Comarca de Coimbra-Juízo de Competência Genérica da Lousã – J...

Recorrente: Associação ....

Recorrida: Companhia de Seguros A..., S.A.

Juiz Desembargador Relator: Cristina Neves

Juízes Desembargadores Adjuntos: Teresa Albuquerque

                                          Sílvia Pires


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Acordam os Juízes na 3ª Secção do Tribunal da Relação de Coimbra:

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RELATÓRIO

Associação ..., intentou acção declarativa de condenação, sob a forma de processo comum, contra Companhia de Seguros A..., S.A., pedindo a condenação da R. a pagar-lhe a quantia de € 21.621,36, a título de reparação de todos os danos patrimoniais que resultaram de acidente de viação ocorrido por culpa do segurado da R., acrescida de juros legais, desde a citação até efectivo pagamento.

Em suporte da sua pretensão, alega a A. ter ocorrido um embate, em que foram intervenientes o seu veículo ligeiro de mercadorias e o trator agrícola propriedade de “O..., Lda.”, conduzido por funcionário ao serviço desta entidade, tendo o condutor do seu veículo, o qual circulava a não mais de 50 km/h e atento à condução, sido surpreendido pelo tractor agrícola, que estava equipado com uma pá carregadora, acoplada, na sua parte da frente, que não dispunha de qualquer avisador luminoso especial em funcionamento e que se encontrava a executar, com recurso a uma corda, uma operação de reboque de um outro veículo de mercadorias que havia ficado retido e imobilizado num terreno adjacente à rua, tendo o tractor invadido, inesperadamente, a sua faixa de rodagem, quando se ia a passar naquele local.

Alega, também, que, como consequência directa e necessária da colisão, resultaram danos na parte lateral direita do seu veículo, no para-choques, faróis e portas da frente e traseira, cuja reparação é impossível, por a viatura ter mais de vinte e cinco anos de existência e encontrar-se já fora de produção, não havendo, no mercado, peças disponíveis, novas ou usadas, que possam ser utilizadas para o efeito, o que determina a sua perda total.

Mais aduz que, à data do acidente, a viatura da autora estava avaliada, no máximo, em € 3.000,00, que, apesar de ter outras viaturas, a A., por força do acidente de viação, foi obrigada a adquirir um outro veículo ligeiro de mercadorias, afim de exercer as mesmas funções do veículo sinistrado, tendo despendido a quantia de € 19.281,36.

Por último, alega ainda que suportou os prejuízos resultantes da forçada imobilização e consequente indisponibilidade da sua viatura, desde a data do acidente (02/12/2020) até à data da aquisição da nova viatura (12/07/2021), num mínimo de € 15,00 diários, correspondente ao recebimento, que traria à sua normal actividade, perfazendo a importância total de € 2.340,00 (€156 dias x € 15,00).

Declara, ainda, prescindir do valor dos salvados, no montante de € 105,00.


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Citada, a R. contestou impugnando a versão do acidente, alegando que o tractor se encontrava parado, com a pá carregadora acoplada a ocupar 90 cm da rua/via, que o seu condutor se encontrava fora do tractor, e que o condutor do veículo pertença da autora circulava por conta e ao serviço da autora, a velocidade superior a 50 kms/h e conduzia de forma desatenta, não se tendo apercebido que a pá carregadora se encontrava a ocupar parcialmente a via, apesar de se tratar de uma recta com boa visibilidade.

Quanto aos danos, alega que o veículo da autora tinha um valor de € 3.000,00 e que, em peritagem, apurou que o custo da reparação do veículo ascendia a € 3.114,00 e o salvado valia € 105,00, concluindo pela perda total do mesmo e por um prejuízo no valor de € 2.895,00, em função do que considera não haver fundamento para o pedido relativo à aquisição de um novo veículo no valor de € 19.281,36 nem para o pedido formulado a título de alegada privação de uso.

Por último alega que o referido acidente não se encontra incluído nas coberturas da apólice por “o sinistro descrito consistindo no facto de o tractor agrícola AF se encontrar a executar uma operação de reboque de um veículo de mercadorias com a matrícula ..-..-UO, imobilizado num terreno rural adjacente.”


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Procedeu-se elaboração de despacho saneador com fixação do objecto do litígio e dos temas de prova.

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Após, realizada audiência de julgamento, foi proferida sentença que julgou a acção totalmente improcedente e absolveu a R. dos pedidos formulados.

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Não conformado com esta decisão, interpôs a A. recurso da mesma, formulando, no final das suas alegações, as seguintes conclusões, que se reproduzem:

(…).


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A R. seguradora contra-alegou, concluindo da seguinte forma:

(…).


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FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO


O tribunal recorrido proferiu a seguinte decisão quanto à matéria de facto:

1. No dia 02.12.2020, pelas 08h e 50m, ocorreu um acidente de viação, na rua..., na vila e concelho ....

2. Nesse acidente, foram intervenientes o veículo ligeiro de mercadorias, marca ..., modelo ..., com a matrícula ..-..-FL, propriedade da autora e conduzido por AA, e o tractor agrícola, marca ..., modelo ... ..., com a matrícula ..-AF-.., propriedade de “O..., Lda.”.

3. AA seguia, na referida rua..., em direcção às ruas ... e ..., na mesma vila da ....

4. A estrada tem cerca de 4,40 metros de largura, é plana e de piso asfaltado, encontrando-se em bom estado de conservação, e desenvolve-se em recta, com visibilidade a mais de 90 metros, do local onde nela passou a circular o veículo da autora até ao local de embate.

5. O tractor agrícola, com a matrícula ..-AF-.., estava equipado com uma pá carregadora, acoplada, na sua parte da frente e encontrava-se parado, com a pá carregadora acoplada a ocupar 90 cm da rua/via, a contar da berma do lado direito da via, atento o sentido de marcha do veículo da autora.

6. Momentos antes do acidente, BB, por conta e ao serviço de “O..., Lda.”, tinha utilizado o tractor para desatolar, com recurso a uma corda, um outro veículo de mercadorias, com a matrícula ..-..-UO, que havia ficado atolado num terreno adjacente à rua, do lado direito, atento o sentido de marcha da viatura da autora.

7. No momento do acidente, BB, o qual havia parado o tractor nas circunstâncias supra descritas, encontrava-se fora do mesmo, a retirar a referida corda.

8. O tractor agrícola não tinha accionado qualquer avisador luminoso especial.

9. AA conduzia o veículo da autora por conta e ao serviço desta.

10. O condutor do veículo da autora conduzia de forma desatenta, não se tendo apercebido que a pá carregadora se encontrava a ocupar parcialmente a via, nela tendo embatido.

11. Como consequência directa e necessária da colisão, resultaram danos no veículo da autora, no lado oposto ao do condutor, na esquina frontal e na parte lateral, na óptica e pisca frontais, no para-choques frontal, na porta da frente e na porta traseira.

12. A reparação do veículo da autora não é possível, por a viatura ter mais de vinte e cinco anos de existência e encontrar-se já fora de produção, não havendo, no mercado, ópticas e piscas disponíveis, novos ou usados, que possam ser utilizados para o efeito.

13. À data do acidente, a viatura da autora tinha 112.011 Kms e estava avaliada, no máximo, em € 3.000,00.

14. A ré “Companhia de Seguros A..., S.A.” avaliou o custo da reparação do veículo da autora no valor de € 3.114,00 e o salvado no valor de € 105,00.

15. A autora declarou prescindir do valor dos salvados, no montante de € 105,00.

16. A autora tem outras viaturas, entre as quais, à data do acidente, três carrinhas de mercadorias, uma delas a acidentada.

17. A 22.07.2021, a autora adquiriu outro veículo ligeiro de mercadorias (..., com 145.196 Kms, com a matrícula ..-..-LF), afim de exercer as mesmas funções do veículo sinistrado, tendo despendido a quantia de € 19.281,36, com a sua aquisição.

18. A viatura sinistrada da autora era utilizada, diariamente, para o transporte de equipamento de jardinagem e de pessoal, na área dos concelhos ..., ..., ..., ... e ..., onde a autora tem clientela e percorrendo, em média, 500/600 kms mensais.

19. À data do acidente, a responsabilidade civil emergente da circulação automóvel do tractor agrícola com a matrícula ..-AF-.. encontrava-se transferida para a ré “Companhia de Seguros A..., S.A.”, através de contrato de seguro titulado pela apólice n.º ...20.


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Para além do que resulta logicamente excluído pelos factos dados como provados, nenhum outro facto se provou com relevância para a decisão da causa, não se provando designadamente a que concreta velocidade circulava o condutor AA.


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Corridos que se mostram os vistos aos Srs. Juízes Desembargadores Adjuntos, cumpre decidir.

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QUESTÕES A DECIDIR


Nos termos do disposto nos artigos 635º, nº4 e 639º, nº1, do Código de Processo Civil, as conclusões delimitam a esfera de atuação do tribunal ad quem, exercendo uma função semelhante à do pedido na petição inicial.[1] Esta limitação objetiva da atuação do Tribunal da Relação não ocorre em sede da qualificação jurídica dos factos ou relativamente a questões de conhecimento oficioso, desde que o processo contenha os elementos suficientes a tal conhecimento (cf. artigo 5º, nº3, do Código de Processo Civil). Também não pode este Tribunal conhecer de questões novas que não tenham sido anteriormente apreciadas porquanto, por natureza, os recursos destinam-se apenas a reapreciar decisões proferidas.[2]

Nestes termos, as questões a decidir que delimitam o objecto deste recurso, consistem em apurar:
a) se verificam os requisitos para a alteração da matéria de facto e se esta deve ser alterada no sentido propugnado pelo recorrente;
b) se dos factos respeitantes à dinâmica do acidente resulta a culpa exclusiva ou concorrente do condutor do veículo seguro na R.;
c) em caso positivo, fixar o montante da indemnização pelos danos patrimoniais sofridos.


*

DA REAPRECIAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO


(…).

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FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO


Insurge-se o recorrente contra a decisão sob recurso que imputou a culpa exclusiva do acidente ao condutor da carrinha de sua propriedade, impetrando a condenação da R., por a culpa do sinistro se dever a culpa do segurado na R.


Da existência de culpa – presumida, ou efectiva, exclusiva ou concorrente - do condutor do veículo de matrícula ..-AF-...

           

Considerou a decisão recorrida que “resulta da factualidade apurada que o condutor do veículo da autora conduzia de forma desatenta, não se tendo apercebido da presença de um tractor agrícola, equipado com uma pá carregadora, acoplada, na sua parte da frente, parado e com a pá carregadora a ocupar 90 cm da rua/via por onde seguia, a contar da berma do lado direito da via, atento o seu sentido de marcha, em pleno dia e em estrada plana e de piso asfaltado, em bom estado de conservação, e em estrada que se desenvolve em recta, com visibilidade a mais de 90 metros, estando, assim, presentes todas as condições para que o mesmo pudesse atempadamente visualizar que se lhe deparava a pá carregadora a ocupar parcialmente a via e para que evitasse nela embater, o que apenas não sucedeu por negligência da sua parte, ao invés abalroando o que se lhe deparava pela frente, tendo, inclusivamente, espaço por onde passar e sendo que, se assim entendesse não actuar, podia e devia ter parado, não constituindo a presença do tractor com a dita pá carregadora, nas concretas circunstâncias descritas, tanto mais dada a fugacidade da ocupação da via que se intui, via essa ladeada de terrenos agrícolas, um inadmissível, imponderável e incontornável obstáculo. O próprio art.º 48.º, n.º 1, do Código da Estrada, prevê a imobilização de veículos pelo tempo estritamente necessário para a entrada ou saída de passageiros ou para breves operações de carga ou descarga, desde que o condutor esteja pronto a retomar a marcha e o faça sempre que estiver a impedir ou a dificultar a passagem de outros veículos.

Destarte, forçoso se torna concluir não ter o condutor do veículo da autora adequado a sua velocidade de forma a poder parar o veículo no espaço livre e visível à sua frente, causando o acidente.

Violou, pois, o disposto no art.º 24.º, n.º 1, do Código da Estrada, (…).

Aliás, o espaço livre e visível que releva para o conceito de excesso de velocidade nem sequer é o espaço objectivamente disponível, mas o espaço concretamente expectável, previsível, com que era suposto contar, que o condutor devia prever. Os condutores não estão autorizados a presumir que não se lhes depararão, em circunstância nenhuma, obstáculos à circulação, nem mesmo quando circulam em auto-estradas, estando obrigados a circular com precaução e cuidado, precavidos contra situações que podem suceder.

Resulta, assim, que o acidente se deveu a culpa exclusiva do condutor do veículo da autora, o que importa na improcedência da acção.”

Os factos que resultaram assentes na matéria de facto provada sob os pontos 5 a 8 não suportam, no entanto, este entendimento.

Há que considerar, num primeiro momento, que resultou provado nos pontos 6 e 9 que ambos os condutores, no momento do acidente, se encontravam ao serviço e por conta das sociedade e associação proprietárias dos veículos em causa, sendo, assim, equacionável a culpa presumida de ambos os condutores, que decorre do disposto no artº 503, nº3, 1ª parte, aplicável ao caso em que o veículo seja conduzido por comissário do seu proprietário.

A respeito da interpretação do nº1 do artº 503 do C.C., no sentido de apurar se a base da imputação da responsabilidade ao dono do veículo, conduzido por outrem, era integrada apenas pela detenção efectiva ou se dependia da existência de uma relação de comissão, veio o Acórdão Uniformizador de Jurisprudência (AUJ) de 30 de Abril de 1996, publicado no Diário da República nº 144/96 SÉRIE II, de 1996-06-24, fixar jurisprudência no sentido de que “O dono do veículo só é responsável, solidariamente, pelos danos causados pelo respectivo condutor quando se alegue e prove factos que tipifiquem uma relação de comissão, nos termos do art. 500º, nº 1, do CC, entre o dono do veículo e o condutor do mesmo”, ónus de alegação e prova a cargo do lesado (artº 342, nº1, do C.C.).

A questão da imputação da responsabilidade ao dono ou detentor do poder de facto sobre o veículo, no caso de o acidente se dever a culpa do condutor, surgiu na sequência do Assento nº1/83, de 14 de Abril de 1983, publicado no Diário da Repúlica nº 146/83 SÉRIE I, 1º SUPLEMENTO, de 1983-06-28, que fixou jurisprudência no sentido de “A primeira parte do n.º 3 do artigo 503.º do Código Civil estabelece uma presunção de culpa do condutor do veículo por conta de outrem pelos danos que causar, aplicável nas relações entre ele como lesante e o titular ou titulares do direito a indemnização.

Assenta, conforme refere MENEZES LEITÃO[3] no “fundamento de que há na condução por conta doutrem tanto um perigo sério de afrouxamento na vigilância do veículo, uma vez que ele é habitualmente conduzido por quem não é o seu proprietário, como um perigo sério de fadiga do comissário que tenderá a conduzi-lo horas seguidas. Para além disso, sendo os condutores por conta doutrem normalmente condutores profissionais, a eles se deve exigir uma perícia especial no exercício da condução, podendo com facilidade elidir a presunção de culpa.

Ora, a relação de comissão implica uma relação de dependência entre o comitente e o comissário, agindo este mediante ordens ou instruções daquele na realização dos actos materiais de que fora incumbido, no momento em que ocorreu o acidente (cfr. artº 500 do C.C.).[4]

Ora, as expressões “por conta e ao serviço” daquelas entidades indica a existência desta relação de comissão, pois que estar ao serviço de outrem e conduzir ao serviço de outrem indica uma relação de subordinação entre quem conduz e o proprietário deste veículo, ou seja, a execução dos actos materiais de que fora incumbido quando ocorreu o acidente e não apenas que o fazia no interesse do proprietário (responsabilidade meramente objectiva, cfr. decorre do nº1 e 3 do artº 503 do C.P.C.) mas não ao serviço deste.

Só neste caso, ou seja, em caso de acidente com viatura conduzida por um condutor por conta de outrem, (comissário), responde o condutor por culpa quando não ilida a presunção do artº. 503, nº 3, do Código Civil e, solidariamente com este, o comitente nos termos do artº 500, nºs 1 e 2, do mesmo diploma legal.

Já se for ilidida a presunção de culpa do comissário, responde apenas o comitente dentro dos limites do risco (artº 503, nº1 e 3, do Código Civil), excepto provando a culpa exclusiva do lesado (cfr. artº 505 do C.C.) sem prejuízo do disposto no artº 507 e 570 do C.C., em caso de concorrência de culpas.

Ora, constitui entendimento jurisprudencial e doutrinal que a violação de normas estradais constitui uma presunção prima facie de culpa na produção do sinistro que só deve ser afastada, quando a norma violada não se destine a proteger o interesse em concreto ofendido.

Assim sendo, “a prova da inobservância de leis ou regulamentos de natureza rodoviária faz presumir a culpa na produção dos danos decorrentes de tal inobservância, dispensando a concreta comprovação da falta de diligência”[5], pelo que ao lesante caberá provar que não teve culpa e que, pese embora a violação de normas de direito rodoviário, estas não foram causa adequada do acidente, que se teria produzido, ainda que cumpridos os deveres impostos por estas normas (artº 487 do C.C.).

No caso em apreço, é manifesta a violação de normas estradais também pelo condutor do tractor, ao invadir com a pá a este acoplada a via rodoviária, de forma perpendicular ao limite direito da via e ao não sinalizar, quer por via da colocação do triângulo, quer acionando o pirilampo deste tractor a manobra e a imobilização do veículo de forma parcial na faixa de rodagem (artºs 21 e 23, nº4 e 48, nºs 1 e 4 do C. da Estrada).

Ora, ao contrário do que considera o tribunal a quo podendo ser permitida a paragem momentânea de veículos na via pública - quer para largada de passageiros/recolha de passageiros, quer para operações de carga ou descarga de mercadorias e apenas para estas - estas manobras não prescindem nunca do cumprimento de determinados requisitos previstos nos artsº 3, nº2, 5, nº2 e 11, nº2 e 48 do C. da Estrada:

- que a paragem ocorra fora da faixa de rodagem ou sendo impossível, que o seja próximo do limite direito e paralelo a este limite;

- que não coloque em risco o demais trânsito rodoviário;

-que seja devidamente sinalizada;

-que a paragem ocorra pelo tempo estritamente necessário ao fim visado com a manobra.

   No demais, não constituem estas paragens, mas antes estacionamento, que conforme definido no artº 48, nº2 do C. da Estrada, consiste naimobilização de um veículo, com ou sem ocupantes, que não constitua paragem e que não seja motivada por circunstâncias próprias da circulação.”

Mais dispõe o nº 4 deste preceito que “Dentro das localidades, a paragem e o estacionamento devem fazer-se nos locais especialmente destinados a esse efeito e pela forma indicada ou na faixa de rodagem, o mais próximo possível do respetivo limite direito, paralelamente a este e no sentido da marcha.

Acresce que resulta ainda do disposto no artº 50, nº1 a), do C. da Estrada que “1 - É proibido o estacionamento:

a) Impedindo o trânsito de veículos ou obrigando à utilização da parte da faixa de rodagem destinada ao sentido contrário, conforme o trânsito se faça num ou em dois sentidos;”

Destes preceitos e do teor dos factos provados com os nºs 5 e 6 resulta que o condutor do tractor violou as regras da Estrada que lhe impunham que não estacionasse o tractor de forma perpendicular à via e a ocupar parte da faixa de rodagem por onde circulava o veículo pertença da A., obrigando afinal este veículo a invadir parte da faixa de rodagem contrária e podendo sempre causar um acidente, caso nessa faixa circulasse outro veículo, precisamente aquilo que com esta proibição se visa prevenir.

Aliás, ainda que se pudesse considerar que este tractor parou na faixa de rodagem (no sentido em que esta paragem é definida pelo C. da Estrada), ainda assim tal manobra seria ilegal e em contravenção das regras estradais, assim citadas.

Ora, estas regras impõem-se a todos e não são de cumprimento facultativo. São obrigatórias e destinam-se precisamente a evitar a ocorrência de acidentes, pela existência de obstáculos na via que impedem o regular trânsito de outros veículos e que comportam um elevado risco de causar um acidente.

Temos assim que, apesar de o condutor da carrinha pertença da R. conduzir desatento e assim, também em violação dos seus deveres de diligência e cuidado e de deter o seu veículo no espaço livre e visível à sua frente e adoptar as manobras necessárias a evitar o acidente e, nessa medida, com culpa efectiva, o condutor do tractor violou igualmente os comandos acima citados e manifestou um total desrespeito das regras e do dever que se lhe impunha de “abster-se de atos que impeçam ou embaracem o trânsito ou comprometam a segurança, a visibilidade ou a comodidade dos utilizadores das vias (cfr. artº 3, nº2 do C. da Estrada), de “abster-se da prática de quaisquer atos que sejam suscetíveis de prejudicar o exercício da condução com segurança.” (cfr. artº 11, nº2) e de abster-se de estacionar na via pública em violação do disposto no artº 48, nº2 e 50, nº1 a) do C. da Estrada.

Este estacionar indevido e ilegal não é alheio à produção do acidente. Na realidade se não existisse qualquer obstáculo na via, o acidente não se teria dado. Ora, este obstáculo não deveria existir, não tendo sido alegado qualquer facto que nos conduzisse à conclusão de que o condutor do tractor não poderia ter actuado de outra maneira.

Na verdade, ocorrendo a violação de normas estradais por ambos os condutores, caberia a estes provar que não tiveram culpa (nos termos previstos no artº 350, nº2, do C.C.) e que, pese embora a violação de normas de direito rodoviário, estas não foram causa adequada do acidente, que se teria produzido, ainda que cumpridos os deveres impostos por estas normas.

Não existindo nem tendo sido alegada qualquer causa de exclusão de culpa concorrencial de ambos os condutores, resta-nos fixar a medida em que cada um contribuiu para a produção do acidente e dos danos que dele resultaram.

Com efeito, dispõe o artº 570 do C.C., que quando um facto culposo do lesado tiver contribuído para a produção ou agravamento dos danos, ao tribunal caberá apreciar, com base na gravidade da culpa de ambas as partes e nas consequências resultantes, se a indemnização deve ser totalmente concedida, reduzida ou mesmo excluída.

Assim, para aferir a medida de responsabilidades de ambos os condutores, há que considerar que se provou que o condutor do veículo propriedade da A. conduzia desatento ao trânsito, tanto que foi embater num obstáculo existente na via apesar de se tratar de uma recta com 90 mts e com boa visibilidade, o que sempre imporia que tivesse visto o tractor e o obstáculo na via e o dever de executar as manobras necessárias a parar o veículo no espaço livre e visível à sua frente ou a desviar-se do obstáculo.

Violou este condutor (não se provando qualquer excesso de velocidade) os seus deveres de diligência, cuidado e de atenção aos demais utentes da via e o dever de evitar acidentes que sejam evitáveis por um condutor diligente e cuidadoso, tendo em atenção que este obstáculo se encontrava imobilizado na estrada, que esta via tinha visibilidade de mais de 90 mts e que o condutor do tractor tivera tempo para sair deste tractor, o que sempre indicia uma separação temporal entre o imobilizar do tractor e o embate, apesar de não concretizada, conforme resulta do ponto 6 e 7. Período temporal que, não sendo alegado que circulasse um veículo no sentido contrário, sempre possibilitaria ao condutor da carrinha deter a sua marcha no espaço livre e visível à sua frente ou, no limite mudar de faixa, evitando o embate.

Já o condutor do tractor violou as regras estradais que proibiam o estacionamento deste tractor na via pública, ocupando parte da via, de forma perpendicular e sem qualquer preocupação de sinalização, tendo sido este comportamento imprevidente e com total desrespeito pelos utentes da via, também causa adequada deste acidente, que não teria ocorrido, apesar da desatenção do condutor da carrinha, caso o obstáculo não existisse.

Entende-se assim, repartir as culpas, na proporção de 60% para o veículo da A. e 40% para o veículo seguro na R., por se considerar que a desatenção do condutor da carrinha propriedade da A. e a violação dos seus deveres de cuidado e diligência, que impunham que detivesse o seu veículo no espaço livre e visível de que dispunha ou, no limite, executasse manobra com vista a evitar o obstáculo, contribuiu em maior medida para o evento e para os danos gravosos dele resultantes (art. 570, nº1, do CC).

Da fixação dos danos patrimoniais

Vem a A. peticionar o valor que despendeu com a aquisição de nova viatura, considerando a impossibilidade de reparação da carrinha acidentada e a sua perda total que é aceite pela R., bem como os danos causados pela privação do seu uso, desde a data do acidente até ao momento da substituição.

A este respeito dispõe o artº 41 do D.L. 291/2007, sob a epígrafe da “Perda Total” o seguinte:

1 - Entende-se que um veículo interveniente num acidente se considera em situação de perda total, na qual a obrigação de indemnização é cumprida em dinheiro e não através da reparação do veículo, quando se verifique uma das seguintes hipóteses:
a) Tenha ocorrido o seu desaparecimento ou a sua destruição total;
b) Se constate que a reparação é materialmente impossível ou tecnicamente não aconselhável, por terem sido gravemente afectadas as suas condições de segurança;
c)  Se constate que o valor estimado para a reparação dos danos sofridos, adicionado do valor do salvado, ultrapassa 100 % ou 120 % do valor venal do veículo consoante se trate respectivamente de um veículo com menos ou mais de dois anos.
2 — O valor venal do veículo antes do sinistro corresponde ao seu valor de substituição no momento anterior ao acidente.
3 — O valor da indemnização por perda total corresponde ao valor venal do veículo antes do sinistro calculado nos termos do número anterior, deduzido do valor do respectivo salvado caso este permaneça na posse do seu proprietário, de forma a reconstituir a situação que existiria se não se tivesse verificado o evento que obriga à indemnização.
4 — Ao propor o pagamento de uma indemnização com base no conceito de perda total, a empresa de seguros está obrigada a prestar, cumulativamente, as seguintes informações ao lesado:

a) A identificação da entidade que efectuou a quantificação do valor estimado da reparação e a apreciação da sua exequibilidade;
a) O valor venal do veículo no momento anterior ao acidente;
b) A estimativa do valor do respectivo salvado e a identificação de quem se compromete a adquiri-lo com base nessa avaliação.

5 — Nos casos de perda total do veículo a matrícula é cancelada nos termos do artigo 119.º do Código da Estrada.

Este preceito, é aplicável à regulação extra-judicial de sinistros, conforme decorre do capítulo em que se insere, mas já não à fase judicial, podendo ser considerado como critério orientador (no sentido de proposta razoável), mas nunca no sentido da sua obrigatoriedade, sobrepondo-se aos princípios da reconstituição natural, constantes dos artºs 562 e 566 do C.C.

Com efeito, o D.L. 291/2007 de 21/08 transpôs parcialmente para a ordem jurídica interna a Directiva n.º 2005/14/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 11 de Maio, que altera as Directivas n.os 72/166/CEE, 84/5/CEE, 88/357/CEE e 90/232/CEE, do Conselho, e a Directiva 2000/26/CE, relativas ao seguro de responsabilidade civil resultante da circulação de veículos automóveis, revogando o D.L. 83/2006 de 3 de maio que, por sua vez, transpusera parcialmente para a ordem jurídica nacional a Directiva n.º 2005/14/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 11 de Maio.

Este diploma legal, mantendo no essencial o conceito de proposta razoável já constante do D.L. 83/2006, alargou o seu âmbito de aplicação “à generalidade dos acidentes de viação ocorridos em Portugal - a extensão, agora, do âmbito do regime de regularização de sinistros previsto nesse diploma aos sinistros com danos corporais”, visando, tal como o diploma que veio substituir, diminuir a litigiosidade entre seguradoras e sinistrados, mediante introdução/alargamento de mecanismos de regularização extra-judicial de sinistros (objectivo já tentado e não totalmente conseguido com a introdução da declaração amigável de acidente de viação e de regularização expedita de sinistros).

Na vigência deste diploma legal, acima citado, o critério de definição de perda total aplica-se no âmbito da regularização extra-judicial de litígios decorrentes de acidente de viação, aplicável entre as seguradoras e os lesados, através do procedimento de apresentação da “proposta razoável”, prevista nos artºs 38 e 39 deste mesmo diploma, mas já não na fase judicial[6], não se tratando de norma de natureza especial que derrogue a norma geral prevista nos artºs 562 e segs. do C.C. mas apenas de procedimentos a observar pelas seguradoras nesta fase extra-judicial, que pode ou não ser aceite pelo lesado.

Assim, nos termos do disposto no artº 562 do C.C., quem estiver obrigado a reparar um dano deve reconstituir a situação que existiria, se não se tivesse verificado o evento que obriga à reparação, devendo essa indemnização ser fixada em dinheiro sempre que a reconstituição natural não for possível (artº 566 do C.P.C.).

A atribuição de uma indemnização pressupõe, assim, a demonstração da verificação de danos na esfera jurídica do autor, bem como a existência de um nexo de causalidade que os ligue ao acidente, como decorre do disposto nos arts. 562º e 563º do Cód. Civil.

De acordo com o primeiro dos artigos mencionados, que consagrou a chamada teoria da diferença, o princípio geral é o de que a indemnização deve reconstituir a situação que existiria se não se tivesse verificado o evento danoso, ou seja, a medida da indemnização corresponde à medida do dano sofrido.

Nos termos do artigo 566º nº1 do mesmo código, a reconstituição natural só não terá lugar e será substituída por uma reparação monetária, quando a mesma não for possível, não repare integralmente os danos, ou se afigure excessivamente onerosa para o devedor.

Alega o recorrido que o valor terá de equivaler ao valor do veículo à data do embate. Ora, visando este princípio a reparação do dano sofrido, à R. cabia o ónus de alegar e provar não só a excessiva onerosidade da reparação, mas também que o pagamento do valor venal do veículo era suficiente para colocar o lesado na situação em que se encontrava antes do acidente, ou seja, que com essa quantia o lesado poderia adquirir um veículo com as mesmas características do veículo sinistrado.

Com efeito, o artº 566 do C.C. só afasta o princípio da reconstituição natural quando esta seja excessivamente onerosa para o lesante e não apenas onerosa.

Na definição do que constitui a excessiva onerosidade, afastando-se o critério previsto no artº 41 do D.L. 291/2007 e tendo em conta o princípio da reparação integral dos danos, não há que atender apenas ao valor venal ou de mercado do veículo.

Conforme refere Vieira Gomes[7], “[…] atender [nestes casos] estritamente ao valor de mercado do bem (no sentido do seu valor de venda) seria converter a responsabilidade civil numa forma de expropriação privada pelo preço de mercado […]. Aliás, sendo muito relativa a fungibilidade de um carro usado, mesmo sem atendermos aos importantes factores idiossincráticos que se expressam na relação de alguém com a “sua” viatura, sempre haverá que situar a questão indemnizatória no exacto plano que lhe cabe: o de afastar o desvalor correspondente ao dano, entendido este como a “supressão ou diminuição de uma situação favorável, reconhecida ou protegida pelo Direito”. Ora, neste quadro, indemnizar – e indemnizar será sempre suprimir um dano – significa proporcionar ao lesado (restaurar na esfera dele) a utilidade perdida por via desse mesmo dano, sendo que este se materializa aqui na impossibilidade de utilizar a viatura, quando esta é usada como meio de transporte (não, por exemplo, como objecto de colecção). É assim que indemnizar não se trata aqui, propriamente, de fixar – rectius, não coincidirá sempre com… – o valor do bem em si mesmo, correspondendo a realidades distintas (e um carro é quase um exemplo paradigmático disto) o valor do bem e a concreta utilidade por ele propiciada, através dele alcançada, sendo esta utilidade, e não tanto o valor do bem, que expressa o verdadeiro dano e, consequentemente, o real “objecto” indemnizatório: “a situação que existiria se não se tivesse verificado o evento que obriga à reparação”, como diz o artigo 562º do CC.

Não basta alegar e provar o valor venal do veículo, sendo certo que a A. usava este veículo na sua actividade profissional e dele ficou desapossada por causa deste acidente.

Teremos pois que atender como critério definidor ao facto de a A. utilizar este veículo no exercício da sua actividade e de o aludido veículo apesar da sua antiguidade satisfazer perfeitamente esta função e a utilidade que lhe era dada.

De acordo com o princípio da reconstituição natural, importa colocar a lesada na situação anterior ao acidente, ou seja, alegando que a reparação da viatura é-lhe, a ela lesante, excessivamente onerosa e que a A. poderia adquirir outra viatura com valor equivalente ao valor venal da viatura acidentada.[8]

Nesta medida, tem a A. direito ao valor de substituição da viatura acidentada, por outra com idênticas características, no valor despendido de € 19.281,36 e de acordo com a medida da sua responsabilidade na produção do acidente.

Cumpre-nos assim, decidir da última questão

Se a A. tem direito ao valor de privação do uso do veículo acidentado.

A resposta é positiva. A privação do uso do veículo, resultante de acidente de viação, traduz-se num dano patrimonial que nos termos gerais do artigo 562º do Código Civil, deve ser reparado pelo lesante.

Sendo a privação da coisa, um dano em si, merece a tutela do direito, independentemente de a A. ter eventualmente outros veículos, ou ter tido ou não necessidade de proceder ao aluguer de uma viatura. Por outro lado, este dano apenas cessa com a atribuição de indemnização à lesada em caso de perda total, ou com a reparação da viatura de que está privada, caso não ocorra a perda total.

No caso em apreço, a indemnização vem peticionada desde a data do acidente e até à substituição desta viatura por outra, a expensas da A. é certo, mas considerando-se ainda assim, que cessou nesta data o dano consistente na impossibilidade de utilização desta viatura.

Questão diversa consiste no valor de privação da viatura.

Este valor terá de ser obtido com base no recurso à equidade, tendo em conta que não se demostrou qual o valor de idêntico veículo se a A. tivesse de alugar um de substituição e tendo em conta as características do veículo em causa, com mais de 25 anos e com uma quilometragem elevada, 112.011 Kms.

Sendo certo que no mercado, em princípio, não existem disponíveis veículos com estas características, mas sendo certo que a viatura sinistrada da autora era utilizada, diariamente, para o transporte de equipamento de jardinagem e de pessoal, na área dos concelhos ..., ..., ..., ... e ..., onde a autora tem clientela e percorrendo, em média, 500/600 kms mensais e que o aluguer de veículos de mercadorias, de natureza similar (mas em estado novo ou semi-novo) orça em média em mais de € 60 diários (por consulta aos sites da especialidade), o valor peticionado afigua-se de acordo com os ditames da equidade, sendo devida uma indemnização pela privação do uso deste 02/12/20 a 21/07/2021, inclusive.

Ocorre que a A. apenas peticiona 156 dias e não os dias que decorreram entre estes dois momentos e nessa medida, não podendo este tribunal condenar ultra petitum, é este o montante que se fixa pela privação de uso.

Todos estes valores acrescem juros desde a data da citação (artº 805 nº3 do C.C.)

Pelos valores fixados a título de indemnização, responde a R. seguradora, na proporção da responsabilidade do seu segurado que se fixou em 40%. 


***

DECISÃO

Pelo exposto, acordam os Juízes na 3ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra em julgar parcialmente procedente a apelação e, nessa medida:
I- Condenam a R. a pagar à A., tendo em conta a medida da responsabilidade do seu segurado, a quantia de €8.648,54, acrescido de juros de mora vincendos a contar da citação, até integral pagamento, calculados à taxa prevista para os juros civis.
II-No remanescente, absolvem a R. do pedido. 
*
Custas da acção e do recurso pelo apelante e pela apelada, na proporção do respectivo decaimento (artº 527, nº1, do C.P.C.)

                                                                       Coimbra 04/06/24


[1] Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, Almedina, 2013, pp. 84-85.
[2] Abrantes Geraldes, Op. Cit., p. 87.
Conforme se refere no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 7.7.2016, Gonçalves Rocha, 156/12, «Efetivamente, e como é entendimento pacífico e consolidado na doutrina e na Jurisprudência, não é lícito invocar nos recursos questões que não tenham sido objeto de apreciação da decisão recorrida, pois os recursos são meros meios de impugnação das decisões judiciais pelos quais se visa a sua reapreciação e consequente alteração e/ou revogação». No mesmo sentido, cf. Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 4.10.2007, Simas Santos, 07P2433, de 9.4.2015, Silva Miguel, 353/13.
[3] LEITÃO, Luís Manuel Telles de Menezes, Direito das Obrigações, vol. I, 7.ª ed., Almedina, Coimbra, 2008, pág. 382.
[4] Neste sentido Ac. do TRL de 17/02/2005, relator Pereira Rodrigues, proc. nº 827/2005-6, disponível in www.dgsi.pt.
[5] Ac. do STJ de 20/11/2003, proferido no proc. nº  03A3450; no mesmo sentido vide Ac, do STJ de 23/02/2016, proferido no proc. nº 74/12.1SRLSB.L1.S1,  disponíveis in www.dgsi.pt

[6] Neste sentido, Acordãos da relação de Lisboa, de 04/07/2013, proferidos no proc. nº 3643/11.3TBSLX.L1-6, relatora Fátima Galante; de 29/04/2014, proc. nº 70/14.4 YRLSB-6, relatora Teresa Pardal e da ora relatora de 18/01/2018, proferido no proc. nº 2163/16.4T8OERL1-6; da R. Coimbra de 08/04/2014, proc. nº 1091/12.7TJCBR.C1, relator Fonte Ramos; da Relação de Guimarães de 27/10/2016, proc. nº 224/14.3T8FAF.G1, relatora Lina de Castro Baptista, todos disponíveis in www.dgsi.pt.

[7] GOMES, Júlio Manuel Vieira, Cadernos de Direito Privado, nº 3, Julho/Setembro, 2003, pág. 52/55.

[8] Neste sentido vidé ainda Ac. do STJ de 04.12.2007-processo 06B4219, www.dgsi.pt e os acórdãos do STJ de 08.7.1999, 10.02.2004-processo 03A468, 12.01.2006-processo 05B4176 e de 05.7.2007-processo 07B1849 [refere-se neste aresto: “um veículo já com muito uso pode ter um valor comercial pouco significativo, mas, ainda assim, pode satisfazer as necessidades do dono, enquanto a quantia, muitas vezes irrisória, equivalente ao seu valor de mercado, pode não conduzir à satisfação dessas mesmas necessidades, por não lhe permitir a aquisição de uma viatura da mesma marca, com as mesmas características e com o mesmo uso”], publicados, o primeiro, na CJ-STJ, VII, 3, 17 e, os restantes in www.dgsi.pt, bem como o acórdão da RL de 20.4.2010, in CJ, XXXV, 2, 115.