Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | JTRC | ||
Relator: | MARIA JOSÉ GUERRA | ||
Descritores: | DECISÃO INSTRUTÓRIA CONTRADIÇÃO INSANÁVEL DA FUNDAMENTAÇÃO ERRO NOTÓRIO NA APRECIAÇÃO DA PROVA CRIME DE VIOLAÇÃO DE DOMICÍLIO CONCEITO DE DOMICÍLIO FALTA DE CONSCIÊNCIA DA ILICITUDE | ||
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Data do Acordão: | 07/12/2023 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Tribunal Recurso: | TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE VISEU – JUÍZO CENTRAL DE INSTRUÇÃO CRIMINAL DE VISEU- JUIZ 1 | ||
Texto Integral: | N | ||
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Meio Processual: | RECURSO DECIDIDO EM CONFERÊNCIA | ||
Decisão: | CONCEDIDO PROVIMENTO AO RECURSO | ||
Legislação Nacional: | ARTIGOS 16.º, 17.º E 190.º DO CÓDIGO PENAL/C.P. ARTIGO 410.º, N.º 2, ALÍNEAS B) E C), DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL/C.P.P. | ||
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Sumário: | I – Embora possam, em certos casos, estender o seu regime aos simples despachos, os vícios referidos no artigo 410.º, n.º 2, do C.P.P. são claramente vícios da sentença final e, sobretudo, são vícios da matéria de facto.
II – Sendo vícios relativos à sentença e reportando-se à matéria de facto provada, tais vícios não podem ser assacados à decisão proferida em sede de instrução, pois esta reporta-se a matéria de facto indiciada. III – Além disso, podendo a verificação de qualquer daqueles vícios ter como consequência o “reenvio do processo para novo julgamento”, nos termos dos artigos 426.º e 426.º-A, do C.P.P., tal pressupõe que eles derivaram de um julgamento anterior. IV – O bem jurídico protegido pelo crime de violação de domicílio é a privacidade/intimidade, visando a salvaguarda de uma área de reserva pessoal delimitada, que é a habitação. V – O objecto da acção do crime de violação de domicílio é a habitação, entendida como espaço fisicamente fechado e efectivamente reservado ao alojamento de uma ou várias pessoas, podendo integrar a noção de habitação um quarto de hotel, um quarto arrendado, uma tenda de campismo, uma caravana, uma roulotte ou mesmo um barco ou um automóvel nos quais se alojem pessoas. VI – Deve incluir-se no conceito de domicílio qualquer construção utilizada, permanente ou transitoriamente, para moradia individual ou familiar, integrando o conceito todas as divisões pertinentes a uma casa de habitação, como, por exemplo o hall, corredores, casas de banho, casas de máquinas e outras, assim como os espaços fechados a ela associados e nela fisicamente integrados, por exemplo garagens, ginásios, saunas e anexos, mas já não os pátios, os jardins ou similares desde que não fechados e, portanto, não integrados na construção em si que serve de habitação. VII – O elemento subjectivo do crime de violação de domicílio traduz-se no conhecimento e vontade de praticar o facto, com intenção de perturbar a vida privada, a paz e o sossego do ofendido e com consciência da censurabilidade da sua conduta. VIII – A mera consideração que o arguido pode ter agido por indicação do seu advogado e que, por isso, podia estar convicto que a sua actuação era lícita, não permite, sem mais, inferir que agiu sem previsão ou representação das circunstâncias do facto, ou seja, sem conhecimento dos elementos constitutivos do tipo objectivo, quer descritivos, quer normativos, e sem vontade dessa realização depois de ter previsto ou representado tais elementos constitutivos do tipo objectivo. IX – O erro sobre a proibição, também conhecido por erro sobre a ilicitude ou sobre a punibilidade, apenas se deve e pode referenciar aos crimes cuja punibilidade não se pode presumir conhecida de todos os cidadãos, crimes artificiais de criação meramente estadual, meramente proibidos ou mala prohibita. X – Relativamente aos crimes cuja punibilidade se pode presumir conhecida e se exige que seja conhecida de todos os cidadãos normalmente socializados, crimes naturais, crimes em si ou mala in se, seja os previstos no C.P., seja em legislação avulsa, mas sedimentados pelo decurso do tempo, é inaplicável o artigo 16.º do C.P., sendo que o eventual erro sobre a ilicitude só pode ser subsumível ao artigo 17.º, em que o afastamento da culpa só ocorre quando a falta de consciência da ilicitude do facto decorre de erro não censurável. | ||
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Decisão Texto Integral: | …
Acordam, em conferência, no Tribunal da Relação de Coimbra:
I- Relatório 1. Encerrado o inquérito, em 22.06.2022, o Ministério Público proferiu despacho de arquivamento, nos termos do artigo 277.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, entendendo que não existem indícios suficientes da prática pelo denunciado AA de qualquer ilícito penal. * * 3. … foi proferida decisão instrutória de não pronúncia. * 4. Inconformada com tal decisão, dela veio interpôr recurso a assistente, pugnando nas conclusões do respectivo requerimento de interposição do recurso, da seguinte forma, que se transcreve:
Da contradição insanável da fundamentação da decisão, bem como erro notório da apreciação da prova … IV. Ora, está em causa o crime de violação de domicílio previsto e punido pelo artigo 190.º n.º1 do CP: “Quem, sem consentimento, se introduzir na habitação de outra pessoa ou nela permanecer depois de intimado a retirar-se é punido com pena de prisão até um ano ou com pena de multa até 240 dias”. … VII. Aliás, o próprio tribunal a quo indica que resulta suficientemente indiciado que o arguido mudou a fechadura do imóvel e impediu a assistente de aceder ao mesmo: “Analisando toda esta prova resulta suficientemente indiciado que entre a assistente e o sogro do arguido terá sido realizado um contrato de arrendamento, não reduzido a escrito e que à data dos factos existiam rendas em atraso, o que levou a que o arguido tivesse mudado a fechadura do imóvel e impedido que a assistente pudesse aceder ao mesmo.”; Para tal o arguido, o seu advogado, e um técnico, deslocaram-se ao local onde mudaram a fechadura”. VIII. Pelo que, é completamente antagónico, com os mesmos factos, que o tribunal a quo, de seguida, dê como insuficientemente indiciado que não tinha o arguido intenção de se introduzir na residência na assistente. (vide ponto 1 da decisão instrutória “Não se encontra suficientemente indiciado.”) …
Da Errónea Aplicação do Direito aos Factos XIII. A decisão instrutória, também merece a nossa desaprovação, segundo uma nova ordem de razões: errónea aplicação do direito aos factos vertidos in casu. XIV. Mormente o seguinte segmento: “Na verdade, tal como referido no crime de violação de domicílio o elemento subjectivo é constituído pela vontade livre e consciente de praticar o ato com a intenção de perturbar a vida privada, a paz e o sossego da pessoa ofendida. Acresce ainda ser necessária a consciência da ilicitude. Analisando a prova junta aos autos, nomeadamente documental, resulta claro que o arguido terá atuado sempre por indicação do seu advogado, sendo este que envia as mensagens e as cartas para a assistente. Logo, é de presumir que o arguido estivesse convicto que a sua atuação era lícita. (...) Tendo em conta a prova junta aos autos nunca poderíamos concluir pela verificação do elemento subjetivo, inclusive que o arguido agiu com dolo e com consciência da ilicitude. (...) ….” XV. Em jeito de síntese a decisão instrutória refere que não se encontram preenchidos os elementos subjetivos do crime de violação do domicílio, bem como o arguido não agiu com dolo e consciência da sua ilicitude. XVI. Veio o arguido, justificar o seu comportamento de entrada forçada, e troca de fechadura, no domicílio da assistente, com a alegada falta de pagamento de rendas por parte desta última. XVII. Deste modo, e sob o falso pretexto, de legitimar a sua conduta, o arguido, consultou um Advogado, e afirma ter atuado sob indicação deste. XVIII.Ora, decorre da experiência comum, e de qualquer homem médio, que os ordenamentos jurídicos, máxime, a lei, não permitem a entrada forçada nas habitações de outrem, e muito menos, que se modifique o meio de acesso ao mesmo – fechadura – sem o seu consentimento. XIX. E o arguido, ao contrário do que pretende fazer crer, estava bem esclarecido disso. XX. Tanto que, o arguido, ao consultar, antes de atuar, o seu Ilustre Mandatário, demonstra que, detinha consciência que aquele comportamento seria censurável aos olhos da lei. …” * 5. Apenas o MºPº junto da primeira instância respondeu ao recurso, … * 6. Neste Tribunal da Relação, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto, emitiu parecer no sentido da improcedência do recurso, … * 7. Foi cumprido o disposto no Art. 417º, n.º2 do CP, tendo a assistente respondido ao parecer, reiterando o por si alegado em sede de recurso, … * 8. Colhidos os vistos legais, os autos foram apresentados à conferência. * II- Fundamentação A) Delimitação do Objeto do Recurso … No caso vertente, atentas as conclusões apresentada pela recorrente, as questões a decidir são as seguintes: - se a decisão recorrida padece dos vícios decisórios da contradição insanável da fundamentação e do erro notório na apreciação da prova, previstos nas alíneas b) e c) do nº2 do art. 410º do CPP; e - se existem indícios da prática pelo arguido do crime de violação de domicílio, p. e p. pelo art. 190º, nº1 do C. Penal. * B) Da decisão recorrida Vejamos, então, o teor da decisão recorrida, que, na parte relevante para apreciação do recurso, se transcreve: * Dos tipos legais em causa: Do crime de violação de domicílio ou perturbação da vida privada, p. e p. pelo artigo 190.º n.º 2, do Código Penal. De acordo com o disposto no citado artigo: …
Do crime de furto: De acordo com o art.º 203º do CP: … Dos indícios: Iniciaram-se os presentes autos com a queixa da ora assistente, onde a mesma refere que no dia 3 ou 4 de fevereiro de 2022, mudaram-lhe a fechadura da porta de entrada da habitação onde reside, suspeitando que tal tenha sido feito pelo ora arguido, genro do senhorio. Refere ainda que, em face de tal se encontra privada dos seus bens. São juntos documentos, mais concretamente troca de mensagens entre arguido e assistente. Assim, junta uma mensagem enviada pelo advogado do arguido, onde o mesmo refere que o cliente tomou a posse do imóvel, pelo facto de não ter dado qualquer resposta à sua interpelação. Outros documentos foram juntos aos autos, nomeadamente a carta junta a fs. 61, enviada pelo advogado do ora arguido à assistente, onde o mesmo solicita a entrega das chaves do imóvel no prazo de 30 dias, sob pena de troca de fechaduras. Como fundamento é alegado a falta de interesse na compra do imóvel. A fls. 67 consta uma outra carta em que é solicitado à assistente que no prazo de 10 dias agende dia e hora para a retirada dos bens, sob pena de colocação dos mesmos no lixo. A fls. 63 consta uma outra mensagem do ora mandatário do arguido, enviada à assistente onde refere que desde dezembro que a contacta, para desocupar o imóvel, pagar o montante em dívida e retirar os bens e que, em face da falta de resposta, a única alternativa foi a posse do imóvel, através da mudança de fechadura. Nessa mensagem é, ainda, solicitado à assistente a remoção dos bens. A essa mensagem responde a assistente que apresentou queixa na policia e que não abdica nem dos bens nem do arrendamento. Quando inquirida como testemunha a ora assistente manteve os factos da denuncia, esclarecendo ainda que nunca mais teve acesso à habitação e as suas coisas. Foram inquiridas testemunhas que confirmaram que a assistente tinha arrendado o espaço em causa ao sogro do arguido, que a determinada altura foi mudada a fechadura da fração em causa e que, em face de tal, a assistente ficou privada da residência. Resultou ainda dos depoimentos, o que foi confirmado pela assistente quando prestou declarações em sede de instrução, que à data dos factos existiam rendas em atraso. Quando inquirido como testemunha o ora arguido referiu que a residência em causa nos autos é propriedade do seu sogro. Referiu ainda que a mesma foi arrendada à assistente que, a certa altura, manifestou interesse em adquiri-la. Contudo, a assistente deixou de pagar as rendas e de atender os telefonemas e nunca mais manifestou interesse na aquisição do imóvel. Perante tal, deslocou-se com o advogado e um técnico ao local para trocar a fechadura e que nessa altura se apercebeu que o gás tinha sido cortado. Também referiu que ao entrar na habitação verificou que ainda existiam pertences da assistente dentro da mesma, tendo sido enviada uma mensagem à mesma para que retirasse os retirasse. Em sede de instrução foram tomadas declarações à assistente e inquiridas testemunhas que nada mais trouxeram aos autos do que aquilo que resultava de inquérito. Analisando toda esta prova resulta suficientemente indiciado que entre a assistente e o sogro do arguido terá sido realizado um contrato de arrendamento, não reduzido a escrito e que à data dos factos existiam rendas em atraso, o que levou a que o arguido tivesse mudado a fechadura do imóvel e impedido que a assistente pudesse aceder ao mesmo. Ora, e sem entrar aqui na questão cível, dúvidas parecem não existir que a providência adequada a adotar seria a ação de despejo. Assim, será sempre de questionar a licitude da conduta adotada, nomeadamente em termos cíveis. Contudo quer o crime de violação de domicílio quer o crime de furto só existem quando os elementos subjetivos do tipo se encontram verificados. Ora, e com todo o respeito, na situação concreta, quer no crime de furto, quer no crime de violação de domicílio tais elementos não se encontram indiciados. … Acresce ainda ser necessária a consciência da ilicitude. Analisando a prova junta aos autos, nomeadamente documental, resulta claro que o arguido terá atuado sempre por indicação do seu advogado, sendo este que envia as mensagens e as cartas para a assistente. Logo, é de presumir que o arguido estivesse convicto que a sua atuação era lícita. … Na verdade, não existem indícios suficientes para sujeitarmos o arguido a julgamento por estes factos. Assim, e por referência ao RAI: Encontra-se suficientemente indiciado: - Entre a assistente e o sogro do arguido, em data não apurada, foi celebrado um contrato de arrendamento referente ao imóvel sito na Rua ...; em ...; - No dia 9.2.2022, a assistente ao deslocar-se ao mencionado imóvel, verificou que a fechadura tinha sido mudada, ficando impedida de entrar no mesmo; - Para tal o arguido, o seu advogado, e um técnico, deslocaram-se ao local onde mudaram a fechadura; - À data existiam rendas em atraso; - A assistente possuída bens, não concretamente apurados, dentro do imóvel
Não se encontra suficientemente indiciado: -Que o arguido tenha atado com a intenção de se introduzir na residência da assistente; - Que tenha feito seus os objetos da assistente que se encontravam no interior do imóvel; - Que tenha atuado com a intenção de se apropriar dos bens da assistente; - Que tenha atuado de forma livre, voluntária e consciente; - Que soubesse que a sua conduta era proibida e punida pela lei penal. Pelo exposto.
III- decide-se: Não pronunciar o arguido pela prática dos factos mencionados no RAI e pelos crimes de furto, p.p.p artigo 203 e 204 do CP e violação de domicílio, p..p artigo 190;” * * D) Da apreciação do recurso Para apreciação das questões suscitadas pela recorrente no presente recurso, impõe-se que teçamos, ainda que breves, as seguintes considerações: Decorre do artigo 286º nº 1 do Código de Processo Penal que a instrução visa a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito, em ordem a submeter ou não a causa a julgamento. Constitui assim, no Código de Processo Penal, uma actividade de averiguação processual complementar daquela que foi levada a cabo durante o inquérito, destinando-se, tendencialmente, a uma investigação mais aprofundada dos factos constitutivos de um crime e sua imputação a determinada pessoa. O artigo 308º, n.º1 do Código de Processo Penal estipula que “Se, até ao encerramento da instrução, tiverem sido recolhidos indícios suficientes de se terem verificado os pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena ou medida de segurança, o juiz, por despacho, pronuncia o arguido pelos factos respectivos; caso contrário profere despacho de não pronúncia.” Por seu turno, o art. 283° n° 2 do Código de Processo Penal preceitua que "Consideram-se suficientes os indícios sempre que deles resultar uma possibilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada, por força deles, em julgamento, uma pena ou uma medida de segurança". A ponderação da “possibilidade razoável” de condenação em julgamento envolve um juízo retrospectivo de valoração dos meios de prova recolhidos no processo que fundamentam a acusação ou o arquivamento; e um juízo de prognose prospectivo sobre os meios de prova que poderão vir a ser produzidas ou examinadas na audiência de julgamento, sabendo-se que a produção de prova em julgamento obedece a princípios diferentes da fase de investigação e instrução, com destaque para a “institucionalização” do contraditório e os princípios da imediação e da concentração nessa fase do julgamento. O referido juízo retrospectivo sobre as provas recolhidas não se compadece com dúvidas insanáveis, razoáveis e objectivas face ao princípio in dubio pro reo, vigente em termos de apreciação da matéria de facto. Na verdade, nas palavras de Figueiredo Dias, in Direito Processual Penal, I vol, pag 213, “Um non liquet na questão da prova (…) tem que ser sempre valorado a favor do arguido”, sendo que “com este sentido e conteúdo que se afirma o princípio in dubio pro reo”. … Com efeito, como defende Castanheira Neves, in Processo Criminal, Sumários, p. 39, “na apreciação da suficiência dos indícios está contida a mesma exigência de verdade requerida pelo julgamento final - só que a instrução (…) não mobiliza os mesmos elementos probatórios e de esclarecimento, e portanto de convicção, que estarão ao dispor do juiz na fase de julgamento, e por isso, mas só por isso, o que seria insuficiente para a sentença pode ser bastante ou suficiente para a acusação”, e, o mesmo é dizer, para a decisão de pronúncia. Tal juízo retrospectivo incide sobre os meios de prova recolhidos no processo e que fundamentam a acusação e o despacho de pronúncia. Meios de prova que “não serão, salvo casos excepcionais, reforçados até à audiência de julgamento. A tendência natural será, pelo contrário, no sentido do enfraquecimento dessas provas já que (além da erosão do tempo) irão ser submetidas ao crivo do contraditório e atacadas através do efectivo exercício do direito de defesa, até aí substancialmente afectado” – cf. Jorge Noronha e Silveira, O conceito de indícios suficientes no processo penal português”, in JORNADAS DE DIREITO PROCESSUAL PENAL E DIREITOS FUNDAMENTAIS, coordenação de Maria Fernanda Palma. Almedina, 2004 p. 168. Enfatizando-se que o referido juízo retrospectivo não se compadece com dúvidas insanáveis, razoáveis e objectivas, antes exige da parte quer do Ministério Público, quer do Juiz de Instrução, uma convicção segura e acabada sobre a culpabilidade do arguido, ou seja, um juízo ou convicção equivalente ao de julgamento, na sua estrutura fenomenológica, na objectividade de indagação fáctica e apreciação do material probatório, na conformação normativa pelas mesmas proibições de valoração da prova, na racionalidade lógica e metodológica em que assenta a sua livre apreciação dos elementos de prova coligidos, na parametrização (em prognose, na acusação, e actual, no julgamento) própria de condenação e no grau de convicção (que não se compadece, em ambos os casos, com a ideia de verosimilhança ou de admissão da margem “razoável” de dúvida) – cfr. Neste sentido, Carlos Adérito Teixeira, «Indícios suficientes»: parâmetro de racionalidade e «instância» de legitimação concreta do poder-dever de acusar”, in REVISTA DO CEJ, nº1, p. 161; no mesmo sentido veja-se Paulo Dá Mesquita, in Direcção do Inquérito Penal e Garantia Judiciária, Coimbra Editora, 2003, p. 92 nota 127; e Jorge Noronha e Silveira, “O conceito de indícios suficientes no processo penal português”, in JORNADAS DE DIREITO PROCESSUAL PENAL E DIREITOS FUNDAMENTAIS, coordenação de Maria Fernanda Palma, Almedina, 2004p. 168 e 169. O entendimento jurisprudencial emanado do STJ a propósito da interpretação do conceito do in dubio pro reo no âmbito da instrução resume-se ao seguinte: “o juiz só deve pronunciar o arguido quando, pelos elementos de prova recolhidos nos autos, forma a sua convicção no sentido de que é provável que o arguido tenha cometido o crime. Os indícios são os suficientes quando haja uma alta probabilidade de futura condenação do arguido, ou, pelo menos, uma probabilidade mais forte de condenação do que de absolvição - vide, por todos, o Acórdão de 28/06/2006, in www.dgsi.pt. Emergindo, pois, de tal entendimento que a não formação de uma convicção segura acerca da culpabilidade do arguido, em virtude da prova recolhida suscitar dúvidas insanáveis, razoáveis e objectivas, deve conduzir a uma decisão de não pronúncia, mediante a mobilização do principio in dubio pro reo. A tal propósito, pronunciou-se o Tribunal Constitucional, no Acórdão do nº 439/2002, disponível e www.tribunalconstitucional.pt, nele se entendendo que “a interpretação normativa dos artigos citados que exclui o princípio in dubio pro reo da valoração da prova que subjaz à decisão de pronúncia reduz desproporcionada e injustificadamente as garantias de defesa, nomeadamente a presunção de inocência do arguido, prevista no artigo 32º, nº 2 da Constituição”. A exigência de tal grau de certeza na análise das provas recolhidas subjacente à decisão sobre a existência ou não de indícios suficientes despoleta a questão de saber em que medida tal exigência se compatibiliza com o facto da lei utilizar como critério de decisão a “possibilidade razoável” de condenação. A “possibilidade razoável” que o nº2 do artigo 283º do Código de Processo Penal reporta-se ao tal juízo de prognose, que, porque de uma previsão se trata, assenta necessariamente numa avaliação probabilística. Não se reportando apenas à convicção que a autoridade competente tem de efectuar em relação aos elementos probatórios recolhidos mas ainda à possibilidade de confirmação dessa convicção, em audiência de julgamento, na medida em que a audiência de julgamento obedece a uma racionalidade específica, com os princípios da concentração da prova, da imediação e do exercício pleno do contraditório. E, importa ainda ter presente, que a simples sujeição de alguém a julgamento, mesmo que a decisão final culmine numa absolvição, não é um acto neutro, quer do ponto de vista das suas consequências morais, quer jurídicas. Submeter alguém a julgamento para além de constituir sempre um “normal” incómodo, por vezes pode-se traduzir num vexame - neste sentido, Ac do STJ de 28.06.2006, in www.dgsi.pt. Cabe, pois, ao Ministério Público (enquanto detentor do exercício da acção penal) e ao juiz de instrução (quando há lugar a esta fase), avaliar sobre se os indícios são, ou não, suficientes. Sobre o que deve entender-se por indícios suficientes, seguiremos de perto a síntese elaborada no acórdão deste Tribunal da Relação de Coimbra, de 10-09-2008, disponível em www.dgsi.pt, cujo entendimento perfilhamos, sumariado do seguinte modo: “I.- Indícios suficientes são os elementos que, relacionados e conjugados, persuadem da culpabilidade do agente, fazendo nascer a convicção de que virá a ser condenado; são vestígios, suspeitas, presunções, sinais, indicações, suficientes e bastantes para convencer de que há crime e de que alguém determinado é o responsável, de forma que, logicamente relacionados e conjugados formem um todo persuasivo da culpabilidade; enfim, os indícios suficientes consistem nos elementos de facto reunidos no inquérito (e na instrução), os quais, livremente analisados e apreciados, criam a convicção de que, mantendo-se em julgamento, terão sérias probabilidades de conduzir a uma condenação do arguido pelo crime que lhe é imputado II. – A suficiência dos indícios está contida a mesma exigência de verdade requerida para o julgamento final, mas apreciada em face dos elementos probatórios e de convicção constantes do inquérito (e da instrução) que, pela sua natureza, poderão eventualmente permitir um juízo de convicção que não venha a ser confirmado em julgamento; mas se logo a este nível do juízo no plano dos factos se não puder antever a probabilidade de futura condenação, os indícios não são suficientes, não havendo prova bastante para a acusação (ou para a pronúncia). II. - O juízo sobre a suficiência dos indícios, feito com base na avaliação dos factos, na interpretação das suas intrínsecas correlações e na ponderação sobre a consistência das provas, contém sempre, contudo, necessariamente, uma margem (inescapável) de discricionariedade. IV. - Não se exigindo o juízo de certeza que a condenação impõe - a certeza processual para além de toda a dúvida razoável -, é mister, no entanto, que os factos revelados no inquérito ou na instrução apontem, se mantidos e contraditoriamente comprovados em audiência, para uma probabilidade sustentada de condenação.” * Partindo, pois, do que vem de dizer-se, passemos, então, à apreciação das questões que a recorrente suscita no recurso por si interposto. Pretende a mesma que o despacho recorrido (de não pronúncia) padece dos vícios da contradição insanável da fundamentação e do erro notório na apreciação da prova, previstos nas alíneas b) e c) do nº2 do art. 410º do CPP. A questão tal como vem suscitada pela recorrente surge a propósito dos factos que no despacho recorrido se consideram indiciados e não indiciados, da seguinte forma que sintetiza nas conclusões do recurso: … Tal segmento recursivo remete-nos, desde logo, para a questão de saber se os vícios decisórios assacados à decisão recorrida poderão ser fundamento de recurso da decisão instrutória de não pronúncia como, no caso, se trata. Tratando-se a decisão recorrida de um despacho de não pronúncia, proferido na fase de instrução, afigura-se-nos que os vícios decisórios que lhe vêm assacados em sede recursiva não têm cabimento, tendo em conta a fase em que a mesma se insere. Isto porque. Os vícios do art.º 410.º, n.º 2 do Código de Processo Penal são vícios relativos à sentença pois que se reportam à matéria de facto provada, e não à decisão proferida em sede de instrução, que a não supõe mas apenas matéria de facto indiciada. Embora possam em certos casos estender o seu regime aos simples despachos, os vícios do artigo 410.º citado, são claramente vícios da sentença final, mas, sobretudo, são vícios da matéria de facto. Por outro lado, os vícios do art.º 410.º, n.º 2 do CPP têm de resultar do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência. Ora, como nota o Prof. Germano Marques da Silva, in Curso de Processo Penal, volume III, 3.ª edição, página 334, “Esta é uma limitação muito importante. Desde logo fica vedada a consulta a outros elementos do processo nem é possível a consideração de quaisquer elementos que lhe sejam externos. E que o recurso tem por objecto a decisão recorrida e não a questão sobre que incidiu a decisão recorrida.” Também o Cons. Maia Gonçalves, in Código de Processo Penal, Anotado, 17.ª edição, página 948, evidencia que os vícios, como fundamento do recurso, apenas podem resultar da decisão recorrida e por isso excluem a possibilidade de consulta de outros elementos constantes do processo. Ao contrário disso, a apreciação do recurso da decisão instrutória impõe a análise de todos os elementos indiciários constantes do processo, tanto os vindos do inquérito como os produzidos já na instrução, para se concluir sobre a sua suficiência ou não com vista à prolação do despacho de pronúncia ou não pronúncia. O que aqui se impõe é que o juiz se pronuncie sobre a existência de indícios suficientes em ordem a submeter o arguido a julgamento; ao invés, na sentença ele tem que fazer a demonstração inequívoca que o arguido cometeu os factos que lhe eram imputados na acusação ou na pronúncia. Assim também o entendia o Prof. Cavaleiro Ferreira, in Curso de Processo Penal, volume II, Lisboa 1981, pág.280 e segs. quando escreveu: “Demonstrar a realidade dos factos é alcançar um juízo de certeza sobre esses factos. Há, no entanto, duas espécies de juízos: juízo lógico e juízo histórico. O juízo lógico respeita à exactidão dum raciocínio, duma operação mental; conduz necessariamente a uma certeza absoluta. O juízo histórico respeita à verificação dum facto, e por isso mesmo pode não conduzir a um resultado seguro; não acarreta uma certeza absoluta, mas relativa, não uma certeza objectiva, mas uma opinião de certeza. Acresce que esta mesma certeza relativa ou opinião de certeza pode falhar; o juízo histórico pode ter por simples resultado a dúvida. Ora em sede de instrução, o juiz apenas tem de se pronunciar sobre a existência ou não de indícios, emitir uma opinião, a qual pode estar errada, por não ser uma certeza. Por tal razão, só pode ser atacada com fundamento na inexistência dos mesmos indícios. Diferentemente porque na sentença se impõe um juízo de certeza, com base em juízos lógicos, existe o art.º 410.º do CPP, no caso de o juízo lógico formulado se encontrar viciado.” Como já adiantado os vícios decisórios previstos no nº2 do art. 410º do CPP, como são os invocados pela recorrente, têm de resultar do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugado com as regras da experiência, o que exclui o recurso a quaisquer elementos externos à decisão, ainda que constantes do processo, para a sua detecção, sendo certo que a apreciação do recurso da decisão instrutória impõe a análise de todos os elementos indiciários constantes do processo, tanto os presentes no inquérito como os produzidos já na fase de instrução, para se concluir sobre a sua suficiência ou não com vista à prolação do despacho de pronúncia ou não pronúncia, respectivamente, pelo que a crítica à decisão sobre a existência ou inexistência dos indícios não é admissível pela invocação dos vícios invocados pela recorrente, tal como no nosso ordenamento jurídico estes se encontram configurados– neste sentido Vinício Ribeiro, in Código de Processo Penal - Notas e Comentários, Quid Juris Sociedade Editora, 3ª Edição, pág. 974. E, que este é o entendimento consentâneo com a lei, extrai-se também de a verificação de qualquer dos vícios enunciados no artigo 410º ter como consequência (quando não for possível decidir da causa) o “reenvio do processo para novo julgamento”, nos termos dos artigos 426º e 426º-A, do Código de Processo Penal, o que pressupõe que os vícios tenham derivado de um julgamento anterior e não de diligências realizadas em fase de instrução que culmina numa decisão instrutória que reveste a forma de um despacho. No sentido que vimos adiantando se pronunciaram o Tribunal da Relação de Lisboa, Proc. 335/16.7T9SNT.L1-5, por acórdão de 31 de Outubro de 2017, e o Tribunal da Relação do Porto, Proc. 918/10.2TAPVZ.P1, por acórdão de 15-02-2012, disponíveis in www.dgsi.pt. De tudo o quem de dizer-se, entendemos, pois, que as questões relacionadas com a incorrecta apreciação dos indícios e com a contradição entre os factos indiciados e não indiciados, deverá ser analisada não ao abrigo do regime dos vícios decisórios previstos no nº2 do art. 410º do CPP, mas antes, no âmbito da questão efetivamente relevante no caso em vertente que consiste em saber se dos elementos probatórios carreados para os autos resultam indícios da prática de factos cuja integração ou qualificação jurídico-penal se possa fazer à luz do crime de violação de domicílio que no RAI vem imputado ao arguido. Termos em que, improcede neste segmento recursivo o recurso interposto pela assistente. * Vejamos, agora, se, ao contrário do decidido na decisão recorrida existem indícios da prática pelo arguido do crime de violação de domicílio, p. e p. pelo art. 190º, nº1 do C. Penal, como propende a assistente e ora recorrente, embora ao pugnar nesse sentido em sede recursiva o faça esteada em que na decisão recorrida se faz uma“errónea aplicação do direito aos factos “. Vejamos, em primeira linha, a análise dos indícios do crime imputado nos autos ao arguido que nela foi objecto de ponderação. Nessa análise foram levados em conta os elementos probatórios carreados para os autos, sobre os quais incidiu a seguinte apreciação: - a queixa da ora assistente, onde a mesma refere que no dia 3 ou 4 de fevereiro de 2022, mudaram-lhe a fechadura da porta de entrada da habitação onde reside, suspeitando que tal tenha sido feito pelo ora arguido, genro do senhorio e que, em face de tal, se encontra privada dos seus bens. - os documentos juntos aos autos: - a troca de mensagens entre arguido e a assistente, sobre os quais, se aduz que se mostra junta uma mensagem enviada pelo advogado do arguido, onde o mesmo refere que o cliente tomou a posse do imóvel, pelo facto de não ter dado qualquer resposta à sua interpelação; - a carta junta a fs. 61, enviada pelo advogado do ora arguido à assistente, da qual se retirou que mesmo solicita a entrega das chaves do imóvel no prazo de 30 dias, sob pena de troca de fechaduras, sendoalegado como fundamento a falta de interesse na compra do imóvel. - uma outra carta, junta a fls. 67, da qual se extrai que nela é solicitado à assistente que no prazo de 10 dias agende dia e hora para a retirada dos bens, sob pena de colocação dos mesmos no lixo. - uma outra mensagem do ora mandatário do arguido, enviada à assistente, junta a fls. 63, na qual se refere que desde dezembro que a contacta, para desocupar o imóvel, pagar o montante em dívida e retirar os bens e que, em face da falta de resposta, a única alternativa foi a posse do imóvel, através da mudança de fechadura, mensagem essa na qual é, ainda, solicitado à assistente a remoção dos bens. - a resposta da assistente a tal mensagem, onde a mesma diz que apresentou queixa na policia e que não abdica nem dos bens nem do arrendamento. - as declarações tomadas em sede de instrução à assistente, das quais se extraiu que a mesma manteve os factos por ela relatados na denúncia, esclarecendo ainda que nunca mais teve acesso à habitação e às suas coisas. - os depoimentos prestados pelas testemunhas inquiridas em sede de instrução, dos quais se retirou, como contributo probatório, que as mesmas confirmaram que a assistente tinha arrendado o espaço em causa ao sogro do arguido, que a determinada altura foi mudada a fechadura da fração em causa e que, em face de tal, a assistente ficou privada da residência, e, ainda que, à data dos factos existiam rendas em atraso, o que também foi confirmado pela assistente quando prestou declarações em sede de instrução. - o depoimento prestado na qualidade de testemunha pelo arguido em sede de inquérito, do qual foi extraído que o mesmo referiu que a residência em causa nos autos é propriedade do seu sogro, que a mesma foi arrendada à assistente, tendo esta , a certa altura, manifestado interesse em adquiri-la, contudo, a assistente deixou de pagar as rendas e de atender os telefonemas e nunca mais manifestou interesse na aquisição do imóvel, pelo que, perante tal, deslocou-se com o advogado e um técnico ao local para trocar a fechadura, tendo-se nessa altura apercebido que o gás tinha sido cortado e, ainda que, ao entrar na habitação verificou que ainda existiam pertences da assistente dentro da mesma, tendo sido enviada uma mensagem à mesma para que os retirasse. E, perante o conteúdo probatório que extraiu dos referidos meios de prova, a análise que sobre eles incidiu por parte da Mma. Juiz de Instrução foi a seguinte: “ Analisando toda esta prova resulta suficientemente indiciado que entre a assistente e o sogro do arguido terá sido realizado um contrato de arrendamento, não reduzido a escrito e que à data dos factos existiam rendas em atraso, o que levou a que o arguido tivesse mudado a fechadura do imóvel e impedido que a assistente pudesse aceder ao mesmo. Ora, e sem entrar aqui na questão cível, dúvidas parecem não existir que a providência adequada a adotar seria a ação de despejo. Assim, será sempre de questionar a licitude da conduta adotada, nomeadamente em termos cíveis. Contudo quer o crime de violação de domicílio quer o crime de furto só existem quando os elementos subjetivos do tipo se encontram verificados. Ora, e com todo o respeito, na situação concreta, quer no crime de furto, quer no crime de violação de domicílio tais elementos não se encontram indiciados. Na verdade, tal como referido no crime de violação de domicílio o elemento subjectivo é constituído pela vontade livre e consciente de praticar o ato com a intenção de perturbar a vida privada, a paz e o sossego da pessoa ofendida. E no crime de furto é necessária a intenção de apropriação. Acresce ainda ser necessária a consciência da ilicitude. Analisando a prova junta aos autos, nomeadamente documental, resulta claro que o arguido terá atuado sempre por indicação do seu advogado, sendo este que envia as mensagens e as cartas para a assistente. Logo, é de presumir que o arguido estivesse convicto que a sua atuação era lícita. Acresce que nem sequer podemos concluir que o arguido se apropriou dos bens da assistente, tendo esta sido contactada para os levantar, que, optou por não o fazer, com o argumento que já tinha apresentado queixa (cfr. doc de fls. 63 e seguintes). Tendo em conta a prova junta aos autos nunca poderíamos concluir pela verificação do elemento subjetivo, inclusive que o arguido agiu com dolo e com consciência da ilicitude. De facto, atento o exposto, nunca se poderia chegar à conclusão que o arguido atuou dolosamente, não esquecendo, mais uma vez, que os crimes em causa exigem a verificação de determinados elementos de cariz subjetivo. Estamos perante uma questão cível que, como tal, deve ser equacionada e resolvida nos meios processuais próprios e não através do processo penal. Se estivéssemos em sede de julgamento o arguido, com a prova produzida em sede de inquérito e de instrução teria de ser absolvido, por falta de prova dos elementos do tipo, nomeadamente subjetivo.”
E, com base em tais indícios e na análise que deles foi feita, considerou-se na decisão recorrida encontrar-se suficientemente indiciado que: “- Entre a assistente e o sogro do arguido, em data não apurada, foi celebrado um contrato de arrendamento referente ao imóvel sito na Rua ...; em ...; - No dia 9.2.2022, a assistente ao deslocar-se ao mencionado imóvel, verificou que a fechadura tinha sido mudada, ficando impedida de entrar no mesmo; - Para tal o arguido, o seu advogado, e um técnico, deslocaram-se ao local onde mudaram a fechadura; - À data existiam rendas em atraso; - A assistente possuía bens, não concretamente apurados, dentro do imóvel”.
E, considerou-se não se encontrar suficientemente indiciado: “- Que o arguido tenha atuado com a intenção de se introduzir na residência da assistente; - Que tenha feito seus os objetos da assistente que se encontravam no interior do imóvel; - Que tenha atuado com a intenção de se apropriar dos bens da assistente; - Que tenha atuado de forma livre, voluntária e consciente; - Que soubesse que a sua conduta era proibida e punida pela lei penal.”
Como bem resulta do que se mostra consignado no despacho recorrido, a decisão de não pronunciar o arguido pela prática do crime de violação de domicílio, p. e p. pelo art. 190º do C. Penal [ sendo que apenas a não pronúncia por este vem posta em causa no presente recurso ] assenta em que os indícios recolhidos não permitem considerar o preenchimento do respectivo elemento subjectivo, traduzido no conhecimento e vontade de praticar o facto, com intenção de perturbar a vida privada, a paz e o sossego do ofendido, e com consciência da censurabilidade da sua conduta. Nada se diz, porém, na decisão recorrida, de forma expressa, sobre o preenchimento ou não do elemento objectivo do referido tipo legal, já que os fundamentos aduzidos para a não pronúncia pela prática do imputado crime referem-se apenas à não indiciação de factualidade integrante do tipo subjectivo do mesmo. Daí que, e antes de mais, se imponha a esse propósito dizer o seguinte: O bem jurídico protegido pela referida norma incriminadora é a privacidade/intimidade, visando a salvaguarda de uma área de reserva pessoal delimitada: a habitação. Na lição do Prof.º Costa Andrade, o bem jurídico protegido é a privacidade/intimidade. Que só é protegida face a agressões qualificadas pela exigência de violação de uma esfera pessoal espacialmente limitada e fisicamente assegurada: a habitação. Analisando-se o bem jurídico numa dupla dimensão: - Uma dimensão formal (a ultrapassagem de um espaço fisicamente assegurado e hoc sensu a violação da posição de domínio que confere ao portador concreto o direito de admitir e excluir); - Uma dimensão material, correspondente aos valores ou interesses pertinentes à privacidade/intimidade [Neste sentido, vide Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo I, págs. 701-702.] Para Nelson Hungria, citado por Simas Santos e Leal Henriques, in Código Penal Anotado, 2.º Volume, págs. 530, o que se protege com esta incriminação ” não é o domicílio civil, isto é, o lugar de residência com ânimo definitivo, o centro de ocupações habituais ou o ponto central de negócios…, mas a casa de moradia, o home, o chez soi, a habitação particular, o local reservado à vida íntima do individuo ou à sua actividade privada, seja ou não coincidente com o domicílio civil. É o mesmo domicílio cuja inviolabilidade a nossa constituição assegura… O direito penal, aqui, é sancionador do direito constitucional e não do direito privado. Tutelando a casa de habitação, está a lei penal defendendo um dos redutos da liberdade individual. O Tribunal Constitucional tem arredado integrar no conceito de domicílio, para efeitos do disposto no art.º 34.º, n.º 1, da C.R.P., o conceito técnico de domicílio, como este vem definido no Código Civil, v.g., art.º 80.º, por ser demasiado restrito, tendo em vista o sentido e a função da tutela constitucional. Daí que nesse conceito se venha abarcar qualquer local de habitação, seja ela principal, secundária, ocasional, em edifício ou em instalações móveis. E dimensionando e moldando o domicílio a partir da observância do respeito pela dignidade da pessoa humana, na sua vertente de reserva da intimidade da vida familiar – como tal conjugado com o disposto no n.º 1 do artigo 26.º da CRP – assim acautelando um núcleo íntimo onde ninguém deverá penetrar sem consentimento do próprio titular do direito. Entendendo-se que o bem protegido com a inviolabilidade do domicílio e o étimo de valor que lhe vai associado têm a ver com a subtracção aos olhares e ao acesso dos outros da esfera espacial onde se desenrola a vivência doméstica e familiar da pessoa, onde ela, no recato de um espaço vedado a estranhos, pode exprimir livremente o seu mais autêntico modo de ser e de agir.[ ver, acórdão do Tribunal Constitucional, n.º 593/2008, de 10.12.2008, no Processo n.º 397/08, 2.ª Secção e Acórdão do mesmo Tribunal n.º 67/97]. Daí que a protecção legal recaia sobre a liberdade individual no âmbito habitacional e não sobre a posse ou a propriedade do habitáculo em si - neste sentido, vide Simas Santos e Leal Henriques, in ob. cit., págs. 531. Face ao conceito alargado de domicílio aí se deve incluir qualquer construção utilizada, permanente ou transitoriamente, para moradia individual ou familiar, e também os espaços fechados integrados fisicamente na morada, como sejam as garagens e os anexos, mas já não os pátios, os jardins ou similares desde que não fechados e portanto não integrados na construção em si que serve de habitação. O crime em apreço nestes autos prende-se com a primeira parte do n.º 1, do art.º 190.º, do CP, introdução na habitação de outra pessoa sem consentimento. Assim, o objecto da acção é a habitação, entendida como espaço fisicamente fechado e efectivamente reservado ao alojamento de uma ou várias pessoas, não se esgotando na casa, podendo integrar a noção de habitação um quarto de hotel, um quarto arrendado, uma tenda de campismo, uma caravana, uma roulotte ou mesmos um barco ou um automóvel nos quais se alojem pessoas. A acção típica compreende duas modalidades de conduta: i) a entrada sem consentimento – pressupondo a entrada física ou corporal do agente na habitação, embora não necessariamente a entrada total, sem o consentimento (e não apenas, mais restritamente, contra a vontade) daquele a quem assiste o domínio e a disposição daquele espaço; ii) a permanência depois de ser intimado a retirar-se – pressupondo uma introdução e permanência em princípio lícitas, que se tornam ilícitas a partir da intimação a retirar-se, que tendo que resultar concludente, não tem de ser necessariamente expressa ou sequer provir do portador concreto do bem jurídico. Devem aqui tratar-se como habitação todas as divisões pertinentes a uma casa de habitação, como o sejam, por ex., o hall, corredores, casas de banho, casas de máquinas e outras, assim como os espaços fechados a ela associados e nela fisicamente integrados, como o sejam, por ex., garagens, ginásios, saunas. A concordância do portador do bem jurídico afasta a responsabilidade do agente a título de violação de domicílio, em qual das duas modalidades supra referidas. Pois bem. Posto que na decisão recorrida nada se adiante quanto ao facto de poder resultar dos elementos carreados para os autos nas fases do inquérito e da instrução em termos indiciários que a fracção correspondente ao .... do prédio sito na Rua ..., entrada B, em ..., tinha sido dada de arrendamento à assistente, para habitação desta, pelo sogro do arguido, seu respectivo proprietário, dos elementos probatórios recolhidos, quer na fase de inquérito, quer na fase de instrução, não poderá deixar de considerar-se fortemente indiciado que esse foi o destino dado à fracção objecto desse arrendamento e, também, que, à data dos factos, a assistente tinha aí instalada a sua residência e possuía no seu interior bens que lhe pertenciam. Apesar de tal factualidade ter sido alegada pela ora recorrente no RAI – designadamente nos pontos 2º , 4º. e 43º - ela não resulta, com esta abrangência, da factualidade indiciada decidida no despacho que vem posto em crise, porquanto, do elenco factual indiciado que dele consta não resulta qual o fim a que se destinava o imóvel objecto do contrato de arrendamento ali mencionado, nem que no mesmo a assistente tinha instalada a sua residência, sendo certo que tal factualidade, a par da demais ali descrita, igualmente, deflui, sem margem para dúvidas, dos elementos probatórios carreados para os autos. … Havendo, pois, a considerar que, de todos esses elementos probatórios carreados para os autos e com relevância para o preenchimento do elemento objectivo do crime de violação de domicílio imputado nos autos ao arguido, resulta indiciada a seguinte factualidade que, para melhor compreensão e sistematização se elenca da seguinte forma: - Em data não concretamente apurada foi celebrado entre a assistente e o sogro do arguido um contrato de arrendamento para fins habitacionais, referente à fracção correspondente ao ... do prédio sito na Rua ..., entrada B, em ..., na sequência do qual a assistente ali passou a residir; - Em dia não concretamente apurado do mês de fevereiro de 2022, mas anterior ao dia 9, o arguido, acompanhado do seu advogado e de um técnico, deslocou-se à referida fracção e procedeu à mudança da fechadura da porta, impedindo dessa forma a assistente de nela entrar e de ter acesso aos bens que lhe pertenciam e que existiam no interior da mesma; - Á data dos referidos factos existiam rendas em atraso. Esclarecida que fica, nesta parte, a factualidade que deverá ser considerada como indiciariamente apurada, em termos que, como se viu, não resulta inteiramente coincidente com o que a esse respeito se decidiu no despacho recorrido, afigura-se-nos dever considerar-se que se mostra preenchido o elemento objectivo do tipo legal previsto e punido pelo art. 190º do C. Penal. Avancemos, então, com a apreciação da questão relacionada com o preenchimento ou não do respectivo elemento subjectivo perante os indícios recolhidos durante as fases do inquérito e da instrução, que, como já adiantado, o tribunal recorrido teve por não verificado. Antes, porém, importa tecer algumas considerações sobre o elemento subjectivo do crime de violação de domicílio imputado nos autos ao arguido. Como já o dissemos, e também se diz na decisão recorrida, o elemento subjectivo do referido tipo legal traduz-se no conhecimento e vontade de praticar o facto, com intenção de perturbar a vida privada, a paz e o sossego do ofendido, e com consciência da censurabilidade da sua conduta. Como é sabido, o dolo, legalmente definido no art. 14º do C. Penal, consiste no conhecimento – elemento intelectual – e vontade – elemento volitivo – do agente em realizar o facto, com consciência da sua censurabilidade – consciência da ilicitude. O elemento intelectual implica a previsão ou representação pelo agente das circunstâncias do facto, portanto, o conhecimento dos elementos constitutivos do tipo objectivo, sejam descritivos sejam normativos. O elemento volitivo consiste na vontade do agente de realização do facto depois de ter previsto ou representado os elementos constitutivos do tipo objectivo – assim revelando a sua personalidade contrária ao direito, para uns, ou uma atitude contrária ou indiferente perante a proibição legal revelada no facto [elemento emocional do dolo], para outros. Sendo tudo isso que, tradicionalmente, se engloba nos elementos subjectivos do crime, através da fórmula em que se imputa ao agente o ter actuado de forma livre (isto é, podendo ele agir de modo diverso, em conformidade com o direito ou dever-ser jurídico), voluntária ou deliberadamente (querendo a realização do facto), conscientemente (isto é, tendo representado na sua consciência todas as circunstâncias do facto) e sabendo que a sua conduta é proibida e punida por lei (consciência da proibição como sinónimo de consciência da ilicitude). Sendo o dolo, ao nível criminal, no seu aspecto volitivo, a intenção, a vontade, a resolução determinada de cometer o crime, e, o seu elemento intelectual, a inteligência do mal do crime, o conhecimento do carácter ilícito do acto – art. 14º do C. Penal -, alcançando-se a intenção criminosa – como estádio subjectivo, do domínio do foro íntimo das pessoas, não apreensível sensorialmente – a partir de factos materiais demonstrados ou deles se inferindo, logicamente, como seu natural, necessário, prolongamento, não pode ser apreendido ou percepcionado directamente por terceiros pelo que a sua demonstração, tem que ser feita por inferência, através da conjugação nesta fase da instrução dos indícios recolhidos dos factos objectivos, em particular, dos que integram o tipo objectivo do crime, pelo que relativamente à indiciação dos factos subjectivos esta é alcançável por recurso a presunções naturais e às regras da experiência comum. Como ensina Figueiredo Dias, in Direito Penal, Parte Geral, Tomo I, Questões Fundamentais, A Doutrina Geral do Crime, 2004, Coimbra Editora, pág. 488 e ss., a culpa jurídico penal revela-se através do tipo de culpa doloso e do tipo de culpa negligente, verificando-se o primeiro quando, perante um ilícito típico doloso, se comprova que o seu cometimento deve imputar-se a uma atitude íntima do agente contrária ou indiferente ao Direito e às suas normas. Esta atitude íntima, de sobreposição dos interesses do agente do facto ao desvalor do ilícito pressupõe que este, para além de representar e querer a realização do tipo objectivo (dolo do tipo) actue também com consciência do ilícito isto é, representando que o facto era proibido pelo Direito, em suma, actuando com consciência da ilicitude Assim, a consciência da ilicitude é momento constitutivo do dolo (não do tipo de ilícito mas do tipo de culpa), o seu momento emocional, sendo, portanto, uma exigência da actuação dolosa do agente na realização do tipo. Ao considerar não estar indiciado o elemento subjectivo do crime de violação de domicílio imputado nos autos ao arguido, … o tribunal recorrido, justificou tal entendimento com a análise da prova junta aos autos, nomeadamente documental, com base na qual alcançou a convicção de que “o arguido terá atuado sempre por indicação do seu advogado, sendo este que envia as mensagens e as cartas para a assistente “, por entender ser legítimo “presumir que o arguido estivesse convicto que a sua atuação era licita”, e, por isso, concluiu pela não verificação do elemento subjectivo do crime imputado ao arguido, por não se verificar que o mesmo tenha agido com dolo e com consciência da ilicitude, decidindo-se pela não indiciação deste. Mas, com o devido respeito, a mera consideração de que o arguido possa ter agido por indicação do seu advogado e de que, por isso, pudesse estar convicto que a sua actuação era lícita, na actual fase do processo e perante os elementos probatórios para ele carreados, não permite, desde logo, inferir que o mesmo agiu sem previsão ou representação das circunstâncias do facto, ou seja, sem conhecimento dos elementos constitutivos do tipo objectivo, quer descritivos, quer normativos, e sem vontade dessa realização depois de ter previsto ou representado tais elementos constitutivos do tipo objectivo, antes pelo contrário. Aliás, basta atentar no depoimento prestado em sede de inquérito, na qualidade de testemunha, pelo ora arguido, cotejando-o com as declarações e depoimentos da Assistentes e das demais testemunhas inquiridas em sede de inquérito e de instrução, supra mencionados, para inferir que o arguido previu, ou pelo menos representou como possível e conformou-se com a possibilidade, que a Assistente residisse na referida fracção autónoma, propriedade do seu sogro, que por este tinha sido dada de arrendamento aquela, querendo nela introduzir-se para proceder à mudança da fechadura, sabendo que o fazia contra a vontade da mesma, como esta alegou no RAI. E esta conduta que vem imputada ao arguido e que resulta indiciada, por este assumida livre e voluntariamente, não pode deixar de consubstanciar uma actuação dolosa por parte do mesmo na realização do tipo previsto no art. 190º do C. Penal, nada tendo que ver com a consciência da ilicitude ou a falta dela por parte do mesmo aquando essa actuação. Devendo, por isso, ao contrário do decidido no despacho recorrido, ter-se como indiciado o dolo do arguido, cuja pertinente factualidade vem descrita no RAI, e que, por isso, deverá integrar a factualidade indiciada da seguinte forma que, para melhor sistematização, se elenca: - O arguido, ao introduzir-se na habitação da Assistente e ao proceder à mudança da fechadura da porta, tinha pleno conhecimento que atuava contra a vontade desta, e, não obstante, não se absteve de atuar da forma descrita, pelo que, atuou de forma livre e consciente. Vejamos, agora, e, por último, a ponderação feita na decisão recorrida a respeito da não verificação da consciência da ilicitude nela fundamentada igualmente com a argumentação de que “ o arguido terá atuado sempre por indicação do seu advogado, sendo este que envia as mensagens e as cartas para a assistente “, e de, por isso, ser de presumir que “o arguido estivesse convicto que a sua atuação era licita”. Tal juízo de ponderação feito na decisão recorrida, com base no qual nela se afasta a indiciação da consciência da ilicitude por parte do arguido por este ter agido por indicação, a conselho, instruído pelo seu advogado, e, por isso, poder estar convicto de que a sua actuação era lícita, resume-se, apenas, a esta argumentação, e, da mesma forma, se apresenta o entendimento sufragado pelo MºPº junto da primeira instância na resposta ao presente recurso. Já no parecer emitido nos autos pelo Exmo. Procurador do Ministério Público junto deste Tribunal da Relação, este defende que se verifica a falta de consiciência da ilicitude, com base no erro sobre a ilicitude, previsto no art. 17º do C. Penal, por se encontrar “suficientemente indicado que o arguido, o seu advogado e um técnico deslocaram-se ao local, onde mudaram a fechadura, resultando claro nos autos que aquele seguiu sempre as instruções do seu mandatário, em quem confiou….agindo o arguido seguindo a instruções do seu advogado, não tinha a obrigação de suspeitar se aquele ato era realmente ilícito ou lícito e, em sua consequência, informar-se e verificar se assim era ou não “, erro esse em relação ao qual nele se entende que deverá considerar-se não censurável, estando, por essa via, afastada a culpa do arguido em relação à conduta que lhe vem imputada no RAI como integradora do crime de violação de domicílio. Adiantando já, não cremos que o juízo de indiciação atinente à não verificação da consciência da ilicitude do arguido relativa à conduta que lhe vem imputada no RAI possa sedimentar-se em eventuais indicações ou instruções a este dadas por advogado e por ele seguidas, sob pena de, a coberto destas, poder deixar de exigir-se o conhecimento das proibições legais resultantes do ordenamento jurídico-penal vigente na nossa sociedade, que é exigível e que deve nortear o comportamento de todos aqueles que nela se inserem. Para além disso, no caso em vertente, a prova de índole documental que consta dos autos, designadamente, as cartas e as mensagens enviadas pelo advogado, Dr. CC, à Assistente BB, em que o tribunal recorrido se ancora para afastar a consciência da ilicitude do arguido em relação à conduta que lhe vem imputada no RAI nem sequer permite, face à escassez de investigação levada a cabo nas fases de inquérito e de instrução, afirmar, mesmo que indiciariamente, que a actuação do arguido atinente à troca da fechadura da fracção habitacional arrendada à assistente, sem conhecimento e contra a vontade desta, tenha ocorrido mediante instruções ou indicações dadas para o efeito ao arguido pelo mencionado advogado. Explicando. Da carta registada enviada pelo mencionado advogado – “ na qualidade de mandatário do Sr. DD “ à Assistente junta aos autos, datada de 13 de Dezembro de 2021 ( junta a fls. 59-61 ) que veio a ser devolvida, por não reclamada, em 24 de Dezembro de 2021, colhe-se que, após as considerações nela feitas sobre o desenrolar das negociações havidas para a celebração do contrato promessa de compra e venda referente à fracção em causa nos autos que tinha sido dada de arrendamento à Assistente e à perda de interesse desta na compra do imóvel e também ao facto de nele a mesma já não residir e de não ter procedido à entrega das chaves, nela se solicita à Assistente que “ no prazo máximo de 30 dias “ proceda “ à desocupação e entrega do mesmo e à regularização dos valores relacionados com as contas de água e luz, sob pena de o meu cliente se ver na necessidade de trocar as respectivas fechaduras “ . Tratando-se de correspondência enviada por advogado do dono do imóvel à pessoa com quem tinha sido celebrado o contrato de arrendamento do mesmo, o que parece ter-se pretendido com a mesma foi transmitir, através do referido advogado, a posição que o senhorio assumia em relação à situação do locado nela descrita e a perspectiva por este delineada para a hipótese de a assistente não desocupar o imóvel dentro do referido prazo. Da mesma forma que o que pode extrair-se das mensagens enviadas à assistente pelo mencionado Sr. Advogado é que, através das mesmas, em nome do seu cliente ( DD ), quis o mesmo comunicar à assistente, através da primeira delas ( enviada em 8.02.2022 - junta a fls. 62), que o dono do imóvel tomou posse do mesmo, mediante a mudança da fechadura, e que na hipótese de haver bens pertença da Assistente no interior desse imóvel que esta pretendesse retirar, encetasse contactados com o advogado para agendar data para o efeito, e, através da segunda e da terceira (enviadas em 18.04.2022, juntas a fls. 63 e 65 ), informar a Assistente que foi tomada posse do imóvel pelo dono deste, através da mudança da fechadura, pelas razões nelas aludidas, e que o seu cliente continuava a aguardar o seu contacto para a remoção dos bens nele existentes, sob pena de considerar que perdeu interesse nos mesmos, posição esta que, da mesma forma, em nome do seu mencionado cliente ( DD ) o mesmo Sr. Advogado fez constar da carta enviada pelo mesmo à assistente junta ao autos, datada de 21 de Março de 2022 ( junta a fls. 66-67 ), na qual faz menção de uma daquelas mensagens por si enviadas à assistente em 18.04.2022. Esta troca de correspondência havida entre o mencionado Sr. Advogado, Dr. CC, e a Assistente, BB, não permite inferir a conclusão que a Mma. juiz a quo dela extraiu, pela simples razão de que dessa correspondência havida entre o mencionado Sr. Advogado e a Assistente não pode, sem mais, retirar-se que a actuação imputada nos autos ao arguido tivesse resultado de instruções ou conselhos que para o efeito lhe tivesse(m) sido dada(o)(s) por aquele advogado e de informações por este igualmente dadas ao arguido sobre a ilicitude da mesma, pois que, não só tal não é assumido pelo mencionado Sr. Advogado nessa correspondência por ele subscrita, como também porque o ora arguido, no depoimento que estou em sede de inquérito, constante de fls. 57-58, não menciona ter seguido quaisquer instruções ou indicações do mencionado advogado para ter actuado como actuou, nem também que junto do mesmo se tenha esclarecido sobre a proibição ou não proibição legal dessa sua actuação, mas apenas que, prévia e posteriormente à sua actuação, existiu a referida troca de correspondência entre o mencionado Sr. Advogado e a Assistente. Não podendo, também, retirar-se da circunstância do arguido se ter deslocado na companhia do mencionado Sr. Advogado quando se efectivou a mudança da fechadura da fracção locada [ como disso o arguido dá conta naquele seu depoimento ], a inferência de que a actuação que vem imputada nos autos ao arguido possa ter resultado de instruções ou indicações esclarecidas sobre o caracter ilícito da mesma dadas por aquele Sr. Advogado, visto que este bem poderia apenas ter-se disponibilizado para acompanhar o arguido nessa deslocação, como parece ter de admitir-se, sem que daí resulte que tivesse o mesmo instruído ou dado indicações ao arguido de que a este era lícito proceder à troca da fechadura do locado nas circunstância do caso concreto. Sem escamotear, porém, que nas circunstâncias que se indiciam nos autos a conduta assumida pelo mencionado Sr. Advogado que vem de ser analisada – contextualizada na relação havida entre advogado e cliente, pautada pelas informações que por este possam ter sido dadas aquele, que, em concreto, se desconhecem e, por isso, em relação à mesma por aqui nos ficamos – possa ter conferido respaldo a que o arguido entendesse que podia proceder à mudança da fechadura da porta da fracção dada de arrendamento à Assistente onde esta residia, ainda assim, não poderá conceber-se a falta de consciência da ilicitude por parte do arguido relativamente à sua conduta indiciada nos autos por força do erro não censurável, previsto no art. 17º, nº2 do C. Penal, tal como propende o Exmo. Sr. Procurador junto deste Tribunal. Com efeito, como ensina José António Veloso, in Erro em Direito Penal, 1999, págs. 24, o art.º 17.º, refere-se aos crimes cuja punibilidade se pode presumir conhecida, e não é desculpável que não seja conhecida, de todos os cidadãos normalmente socializados. Estes crimes são os chamados “crimes naturais”, “crimes em si” ou mala in se. Todos os crimes previstos no Código Penal são mala in se. Na Lição do Professor Figueiredo Dias, in Direito Penal, Parte Geral, Tomo I, pág.585, a falta de consciência do ilícito será não censurável sempre que (mas só quando) o engano ou erro da consciência ética, que se exprime no facto, não se fundamenta em uma atitude interna desvaliosa face aos valores jurídico-penais, pela qual o agente deva responder. Também a personalidade que erra sobre o sentido de uma valoração jurídica se mantém substancialmente “responsável”, parecendo por isso dever arcar com a culpa pelo ilícito-típico cometido. Por sua vez, o Professor Taipa de Carvalho, in Direito Penal Parte Geral, II, Teoria Geral do Crime, 2006, Universidade Católica, Porto, p. 328 a 331, entende que o erro sobre a ilicitude será censurável, ou não, consoante ele próprio seja, revelador e concretizador de uma personalidade (de uma atitude ética pessoal jurídica) indiferente perante o dever-ser jurídico-penal, isto é, perante o bem jurídico lesado ou posto em perigo pela conduta do agente. Sendo revelador dessa atitude ético-pessoal de indiferença, o agente responderá por crime doloso; não o sendo (caso de condutas cuja licitude ainda não está interiorizada pela consciência ético-social – o que pode acontecer com maior frequência no chamado direito penal secundário), afirmar-se-á a exclusão da culpa e, portanto, não haverá responsabilidade penal. No caso em vertente, tem-se por indiciado que o arguido dirigiu-se à fracção habitacional onde a assistente tinha sedeada a sua residência, para ali proceder à troca da fechadura da porta que dá acesso à mesma, sem o consentimento e contra a vontade da assistente, impedindo esta de ali entrar. Perante tal factualidade que se indicia, o arguido tinha a obrigação de suspeitar se aquela sua actuação seria realmente lícita ou ilícita e, em consequência, deveria informar-se se assim era ou não, o que bem podia ter feito junto do Sr. Advogado que o acompanhava aquando da mesma que tinha a obrigação de saber e de o esclarecer a esse respeito, desconhecendo-se, nesta fase do processo e perante o contributo probatório que se retira das diligências levadas a cabo até ao momento, se tal aconteceu ou não. Por outro lado, ainda que o arguido desconhecesse a ilicitude da sua actuação, por ignorância ou por incorrecta informação, porque a ignorância da lei a ninguém aproveita, o erro não pode deixar de ser, à partida, censurável. A este propósito ensina Figueiredo Dias, in Direito Penal, parte geral, I, 585/587, que “o critério que nos permitirá dizer quando e onde pode falar-se de uma falta de consciência do ilícito não censurável há-de decorrer, na sua expressão mais geral, do que se entender sobre o conteúdo material do conceito de culpa jurídico-penal e do sentido da falta de consciência do ilícito àquela luz. O erro excluirá o dolo sempre que determine uma falta do conhecimento necessário a uma correcta orientação da consciência-ética do agente para o desvalor do ilícito. Caso em que estaremos perante uma deficiência da consciência-psicológica, imputável a uma falta de informação ou de esclarecimento e que por isso, quando censurável, conforma o tipo específico de censura da negligência”. Para a esmagadora maioria das situações tipificadas criminalmente – desde logo, para os tipos previstos no C. Penal - será relativamente simples determinar a existência de uma atitude pessoal juridicamente desvaliosa que impede a consciência ética de decidir correctamente a questão do desvalor jurídico do facto – situações em que se terá forçosamente de concluir pela censurabilidade da falta de consciência do ilícito. A circunstância, porém, de não ser em muitos casos possível - sobretudo nas, cada vez mais frequentes, neo-criminalizações, avulsas e muitas vezes, ainda, em face da irrelevância ou ténue relevância axiológica da conduta nestes campos ou quando o bem jurídico protegido pela norma não tenha ainda sido nitidamente aceite pela comunidade e pela consciência de valores - determinar positivamente a existência de uma qualidade pessoal censurável na origem da falta de consciência do ilícito não significa que, por isso, deva logo concluir-se pela negação da culpa. Acerca do não conhecimento dos elementos e circunstâncias do tipo legal e conhecimento do seu sentido e significado, que se traduziria na falta de consciência da ilicitude, por não ter noção do desvalor jurídico do facto, por falta de consciência da proibição, há que referir que o erro sobre a proibição, também conhecido por erro sobre a ilicitude ou sobre a punibilidade, que exclui o dolo, nos termos da 2ª parte do n.º 1 do artigo 16º C Penal, apenas se deve e pode referenciar aos crimes cuja punibilidade não se pode presumir conhecida de todos os cidadãos, nem se tem de exigir que o seja, isto é, aos crimes artificiais, crimes de criação meramente estadual, crimes meramente proibidos ou mala prohibita. Relativamente aos crimes cuja punibilidade se pode presumir conhecida e se tem de exigir que seja conhecida, de todos os cidadãos normalmente socializados, crimes naturais, crimes em si ou mala in se, seja os previstos, desde logo, no C. Penal, ou mesmo em legislação avulsa, mas sedimentados pelo decurso do tempo, é inaplicável aquele normativo, sendo que o eventual erro sobre a ilicitude só pode ser subsumível ao artigo 17º do C. Penal, caso em que o afastamento da culpa só ocorre quando a falta de consciência da ilicitude do facto decorre de erro não censurável. Assim, quando o agente desconhece a proibição legal devido a uma falta de informação ou de esclarecimento deverá ser punido a título de negligência se, podendo e devendo fazê-lo, se desleixou na recolha da informação. Se, pelo contrário, a ignorância resulta de uma atitude de contrariedade ou de indiferença perante o dever-ser, então há uma deficiência da própria consciência-ética do agente, que lhe não permite apreender correctamente os valores jurídico-penais e, por isso, deve o agente ser punido a título de dolo. A censurabilidade só é de afastar se e quando se trate de proibições de condutas cuja ilicitude material ainda não esteja devidamente sedimentada na consciência ético-social, quando a concreta questão “se revele discutível e controvertida”. O que não se pode, contudo, ter como aplicável no caso em apreço, pois que não se evidencia estarmos perante uma conduta axiologicamente neutra. Com efeito, o comum dos cidadãos em Portugal há muito que não ignora que é proibido introduzir-se na residência de outrem, contra a vontade e sem o consentimento de quem lá habita, ainda que se seja titular do espaço onde se situe essa habitação ou que se tenha motivos legais de natureza civil que não legitimem a ocupação da mesma por parte de quem lá vive. Trata-se de facto típico cuja punibilidade se pode e deve, desde logo presumir, conhecida de todos – que veio a ser sedimentada ao longo dos tempos, sem hesitações ou tergiversações – logo, também do arguido. Afinal estamos no séc. XXI, na cidade ..., sendo o arguido administrador/gerente de uma empresa de electricidade, devendo, por isso, ter-se o arguido como presumivelmente esclarecido sobre a ilicitude e a punibilidade da sua actuação. Mesmo admitindo que se indicie, como indicia, que o arguido actuou em representação do seu sogro ( DD ), proprietário da fracção que constituía a residência da Assistente, e que, aquando dos factos existiam rendas por pagar, não se vislumbra que danos ou prejuízos poderiam daí advir para o dito proprietário até que fosse proferida decisão na competente acção judicial a propor para lograr obter a cobrança das mesmas e o despejo do locado, que pudessem justificar a violação do direito à privacidade/intimidade da assistente nessa sua área de reserva pessoal, da habitação e da residência, que se indicia ter o arguido perpetrado. Daí que, se deva ter por afastada também a possibilidade de equacionar existir fundamento para se poder ter por excluída a ilicitude da indiciada conduta do arguido, por actuação no exercício do direito de ação directa, previsto no art. 336º do Código Civil. O recurso à força (acção directa), previsto no art. 336º do Código Civil, integra-se no conceito amplo de exercício de um direito, enquanto causa de exclusão de ilicitude que o Código Penal expressamente contempla no seu art. 31º, n.º 2, al. b). De acordo com o disposto naquele primeiro normativo, a acção direta pressupõe a verificação cumulativa dos seguintes requisitos: a) - A existência de um direito próprio; b) - A impossibilidade de recorrer em tempo útil aos meios coercivos normais (judiciais ou policiais); c) - A não existência de outro meio de impedir a perda do direito; d) - Que o agente não exceda o que for necessário para evitar o prejuízo; e) - Que a acção direta não importe o sacrifício de interesses superiores aos que o agente visa realizar ou assegurar. Para que o recurso à acção directa seja lícito, é necessária a verificação de todos estes requisitos, de modo que, mesmo que o agente suponha erroneamente a existência dos mesmos e essa suposição seja desculpável, a acção direta é ilegítima. Isto porque a pessoa contra quem a acção direta é exercida não pode estar sujeita a que tal suceda fora das condições legais, ainda que por erro desculpável do agente. Não esquecendo, ainda, que vivemos num Estado de direito, competindo aos tribunais assegurar a defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos e dirimir os conflitos de interesses públicos e privados (arts. 2º e 202º, n.º 2, da Constituição). Pelo que, não pode deixar de concluir-se, tal como descrito no RAI, que ao actuar da forma descrita bem sabia o arguido que a sua conduta era proibida e punida por lei. * Dispõe o nº 1, do artigo 308º do Código de Processo Penal o seguinte: “1 - Se, até ao encerramento da instrução, tiverem sido recolhidos indícios suficientes de se terem verificado os pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, o juiz, por despacho, pronuncia o arguido pelos factos respectivos; caso contrário, profere despacho de não pronúncia”. Da apreciação/análise que vem de fazer-se, é de concluir que, relativamente aos factos alegados pela Assistente no RAI, deverão ter-se como suficientemente indiciados os seguintes, que se elencam: - Em data não concretamente apurada foi celebrado entre a assistente e o sogro do arguido um contrato de arrendamento para fins habitacionais, referente à fracção correspondente ao ... do prédio sito na Rua ..., entrada B, em ..., na sequência do qual a assistente ali passou a residir; - Em dia não concretamente apurado do mês de fevereiro de 2022, mas anterior ao dia 9, o arguido, acompanhado do seu advogado e de um técnico, deslocou-se à referida fracção e procedeu à mudança da fechadura da porta, impedindo dessa forma a assistente de nela entrar e de ter acesso aos bens que lhe pertenciam e que existiam no interior da mesma; - Á data dos referidos factos existiam rendas em atraso. - O arguido, ao introduzir-se na habitação da assistente e ao proceder à mudança da fechadura da porta, tinha pleno conhecimento que atuava contra a vontade desta, e, não obstante, não se absteve de atuar da forma descrita, pelo que, atuou de forma livre e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei. Ponderando que tal factualidade suficientemente indiciada integra a prática pelo arguido de um crime de violação de domicílio, previsto e punido pelo art. 190º, nº1 e 3 do C. Penal, deve, nestes termos, ser o arguido pronunciado, cumprido que seja, previamente, o disposto no art. 303º, nº1 do CPP, por referência ao estatuído no nº5 do mesmo preceito legal, tendo em conta a diferente qualificação jurídica da mesma ponderada no RAI. * * III- Decisão Em face do exposto, acordam os juízes desta Relação em: 1. Conceder provimento ao recurso interposto pela Assistente BB, e, consequentemente, revogar o despacho recorrido, o qual deverá ser substituído por outro que pronuncie o arguido AA nos termos supra decididos. 2. Recurso sem tributação. * * Coimbra, 12 de julho de 2023
( Texto elaborado pela relatora e revisto por todos os signatários – art. 94º, nº2 do CPP )
( Maria José Guerra – relatora) ( Vasques Osório - 1º adjunto ) (Helena Bolieiro – 2ª adjunta)
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