Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
354/22.8GAPNI.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: FÁTIMA SANCHES
Descritores: ATOS POLICIAIS DE FISCALIZAÇÃO DE TRÂNSITO/TESTES DE PESQUISA DE ÁLCOOL NO SANGUE
NÃO OBRIGATÓRIA A PRESENÇA DE DEFENSOR
INEXIGÍVEL A NOMEAÇÃO DE INTÉRPRETE
CARTA DE CONDUÇÃO EMITIDA POR PAÍS ESTRANGEIRO NÃO ADERENTE ÀS CONVENÇÕES INTERNACIONAIS SOBRE TRÂNSITO RODOVIÁRIO
Data do Acordão: 02/05/2025
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE LEIRIA - JUÍZO DE COMPETÊNCIA GENÉRICA DE PENICHE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 2º, 3º E 5º DA LEI Nº 18/2007, DE 17 DE MAIO, ARTIGO 61º ALÍNEA F), 64º ALÍNEA D), ARTIGO 125º, Nº 8 DO CÓDIGO DA ESTRADA, ARTIGO 119º, ALÍNEA C), 120º, ALÍNEA C), 122º, Nº 1 E 123º TODOS DO C.P.P., 13º E 20º, Nº 4, 32º, Nº 2, DA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA PORTUGUESA, ARTIGO 17º, Nº 1, ARTIGOS 40º, Nº 2, 71º, 291º E 292º, Nº1, TODOS DO CÓDIGO PENAL, ARTIGO 1º DO CÓDIGO CIVIL.
Sumário: 1 - Consta do auto de notícia que “Do sopro efetuado no aparelho quantitativo foi extraído o talão com o número 2163 que se junta como meio de prova. De salientar onde se lê a hora no talão de prova 23h49, deve se ler 22h49”.

2 - Não ocorre a invalidade do teste de pesquisa de álcool no sangue, atendendo a que a referida correção se mostra justificada porque no ano de 2022, a hora de inverno entrou em vigor no dia em que o teste foi realizado (30-10), às 2 horas da madrugada - em que os relógios foram atrasados uma hora - e a hora que consta do talão não fora ainda atualizada.

3 - Os testes de pesquisa de álcool no sangue não constituem “ato processual” para efeitos do disposto no artigo 64º, nº 1, alínea d) do Código de Processo Penal, antes se tratando de atos policiais de fiscalização de trânsito, tal como são configurados no artigo 152º do Código da Estrada.

4 - Assim, embora o Recorrente seja estrangeiro e não domine a língua portuguesa, tratando-se de ato policial de fiscalização de trânsito, não lhe é aplicável o disposto no artigo 64º, nº1, alínea d), do Código de Processo Penal, onde se refere expressamente a obrigatoriedade de defensor em qualquer ato processual em que o arguido for desconhecedor da língua portuguesa.

5 - Não sendo obrigatória a presença de defensor no momento e nas circunstâncias em que foi efetuado o teste de pesquisa de álcool no sangue, - e não estando ainda o recorrente constituído como arguido, já que antes do resultado do teste existe apenas a suspeita da prática do crime - - inexiste a nulidade insanável prevista no artigo 119º alínea c) do Código de Processo Penal.

6 - Acresce ainda que tal acto não se inscreve no catálogo de meios de prova em que o recorrente intervém e em que contribui com declarações ou manifestação de vontade para a sua incriminação, pelo que apesar da sua vulnerabilidade em função do desconhecimento da língua portuguesa, atentas as razões que presidem à necessidade de nomeação de intérprete - impedir que contribuam para a sua incriminação e não exerçam plenamente os seus direitos de defesa em face das autoridades por não dominaram a língua em que os atos processuais se processam - a realização de teste de alcoolemia numa vulgar ação de fiscalização de trânsito, não exige a dita nomeação de intérprete.

7 - Não sendo a nomeação de intérprete, no caso dos autos, obrigatória, não se verifica a nulidade relativa a que alude o artigo 120º, nº 2, alínea c) do Código de Processo Penal.

8 - Não tendo a Guiné Conakri subscrito a Convenção de Genebra sobre Trânsito Rodoviário de 1949 (Convention on Road Traffic, de 19-09-1949), nem a posterior Convenção de Viena sobre Circulação Rodoviária (Convention on Road Traffic, Vienna, 8 November 1968), nem existindo acordo bilateral entre esse país e Portugal, um seu nacional terá que requerer junto do IMT a substituição da sua carta de condução emitida por país estrangeiro não aderente às Convenções Internacionais sobre Trânsito Rodoviário por um título válido em Portugal e sujeitar-se a exame, como se dispõe no Regulamento da Habilitação Legal para Conduzir (Dec-Lei n.º 138/2012, de 05 de Julho).

9 - Os detentores de carta de condução emitida por tal país não estão habilitados a conduzir em Portugal munidos de tal título, até porque nunca poderia a Guiné Conakri emitir um título “permis international de conduire” que fosse válido noutros países, sem sequer ter subscrito a referida Convenção de Genebra sobre Trânsito Rodoviário de 1949 (Convention on Road Traffic, de 19-09-1949), nem a posterior Convenção de Viena sobre Circulação Rodoviária (Convention on Road Traffic, Vienna, 8 November 1968).

Decisão Texto Integral: *

            Processo nº354/22.8GAPNI.C1

            Tribunal Judicial da Comarca de Leiria

            Juízo de Competência Genérica de Peniche

            I. RELATÓRIO

            1. No processo comum singular com o NUIPC354/22.8GAPNI que corre termos no Juízo de Competência Genérica de Peniche, realizado o julgamento, foi proferida sentença [referência107660293], em 25-06-2024, com o seguinte dispositivo (transcrição):

            «Pelo exposto, o Tribunal decide:

(i) Condenar o arguido AA pela prática de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, previsto e punível pelos artigos 292.º, n.º 1 do Código Penal, na pena de 80 (oitenta) dias de multa, à taxa diária de 5€ (cinco euros).

(ii) Condenar o arguido AA pela prática de um crime de condução sem habilitação legal, previsto e punível pelos artigos 3.º, n.º 1 e 2 do DL 2/98, na pena de 100 (cem) dias de multa, à taxa diária de 5€ (cinco euros).

(iii) Em cúmulo jurídico, condenar o arguido AA na pena única de 120 (cento e vinte) dias de multa, à taxa diária de 5€ (cinco euros);

(iv) Condenar o arguido AA na pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor, prevista no artigo 69.º, n.º 1 a) do Código Penal, pelo período de 5 (cinco) meses.

(v) Condenar o arguido AA nas custas processuais, fixando-se a taxa de justiça em 2 (duas) UC.»

           

            2. Não se conformando com essa condenação, o arguido AA recorreu da sentença, extraindo da motivação as conclusões e petitório que a seguir se transcrevem:

            «1- O presente recurso tem como objecto, o pedido de revogação da sentença proferida nos autos, impugnando-se a condenação nos ilícitos penais de crime de condução sem habilitação legal e crime de condução de veículo em estado de embriaguez, a aplicação de um pena única de 120 de multa, em cúmulo jurídico, e a sanção acessória aplicada, por as considerar ilegais e excessivas.

2 - Impugna-se o teor da matéria de facto, dada como provada nos pontos 1 a 4 e a sua motivação. Os factos dados como provados são contrariados pela prova documental de fls. 6, 12,14,16, 21, 45, 48,59.

3 - O Recorrente devia ter sido absolvido da prática do crime de condução sob o estado de embriaguez.

4 - Existe contradição entre o teor do auto de notícia de fls. 6, o expediente (fls. 12,14,16) e a prova testemunhal produzida em audiência de julgamento.

5 - Consta do auto de notícia e da sentença de fls (…) que o Recorrente no dia 30-10-2022, pelas 22h.20m, conduzia o veículo ..-..-DM, sob o efeito do álcool, tal conduta foi presenciada pelos senhores militares autuantes e submetido a teste qualitativo e quantitativo, apresentou uma TAS 2,44gr/l (fls. 8 dos autos).

6 - A prova documental constante dos autos contraria esta matéria dada como provada. O expediente junto aos autos a fls 12,14,16 (constituição de arguido; TIR), foi elaborado em momento anterior à hora constante do talão de fls 8 (23: 49).

7 - Apenas é válido como prova da TAS, o teste efectuado no analisador quantitativo, servindo o primeiro teste (efectuado em analisador qualitativo), apenas para efectuar uma despistagem da presença, ou não, de álcool no sangue. (vd. Ac. 413/16.6GEALR.F1 do Tribunal da Relação de Évora, de 21-02-2017, Relator Gilberto Cunha).

8 - A realização do teste quantitativo apenas ocorreu pelas 23.49 (fls. 8 dos autos)

9 - Quando foi dada ordem de detenção ao Recorrente ainda se desconhecia o resultado do teste quantitativo.

10 - Entre a realização do teste qualitativo e do teste quantitativo decorreu mais de 30 minutos, em clara violação do artigo 2º da Lei Nº 18/2007, de 17 de Maio.

11- Não consta do auto de notícia, qualquer razão justificativa para a violação do prazo legal para a realização do teste quantitativo.

12 - Decorreu  também mais de uma hora (1hora e 29m), sobre a realização do teste qualitativo e a possibilidade de o Recorrente poder exercer o direito a pedir contraprova. Os direitos de defesa do Recorrente ficaram irremediavelmente comprometidos ( vd. artigos 3º e 5º da Lei nº Nº 18/2007, de 17 de Maio, no artigo 61 do C.P.P.)

13 - Os militares referiram no depoimento em sede de audiência de julgamento que conversaram com o arguido em inglês. O Recorrente é natural da Guiné Conakri e fala francês. Por isso, na esquadra a constituição de arguido e o TIR foram elaborados nesse idioma.

14 - Não foram observados os direitos de defesa do Recorrente previstos nos artigo 61 nº 1, alínea f), 64º nº 1 alínea d), 119, alínea c) e 120 nº 2 , ambos do C.P.P., que dispõem que obrigatoriamente tinha de ser nomeado um defensor e intérprete ao Recorrente, por ser desconhecedor da língua portuguesa, antes de ser sujeito a actos processuais (recolha de prova).

15 - O Recorrente foi sujeito a diligências de prova (realização de testes qualitativos e quantitativos para apuramento de TAS), antes de ocorrer tais nomeações (Vd. auto de notícia e fls.6 e 37)

16 - Tais nomeações apenas ocorreram em 31-10-2022.

17 - A nulidade supra invocada (ausência de defensor) é insanável, nos termos do disposto nos artigos 61 alínea f), 64 alínea d), 119º alínea c), 120, alínea c), 122 nº 1 do C.P.P.

18 - A nulidade invocada, torna inválido o teste quantitativo de fls. 8, a que acrescem as demais irregularidades e nulidades supríveis supra aduzidas, referidas pela defesa em sede de audiência de julgamento e alegações orais. (artigo

19 - A invalidade da TAS (fls. 8), dada como provada no ponto 1 da matéria de Facto Provada constante da Sentença, faz com que o elemento objectivo do ilícito, do tipo de crime previsto no artigo 292 do C. Penal, pelo qual o Recorrente foi condenado, não se encontre preenchido.

20 - A falta de preenchimento deste elemento impunha a absolvição do Recorrente pelo aludido crime.

21 - O Recorrente devia ter sido absolvida da prática do crime de condução sem habilitação legal.

22 - No entender do Tribunal o Recorrente não possuía carta de condução válida que o habilitasse a conduzir em Portugal.

23 - Consta do auto de e notícia (fls. 6 e seg.), que aquando da ação de fiscalização, o Recorrente apresentou a carta de condução, Nº ...64, emitida em 14-05-2010, categoria B, emitida pelo IMTT, desde 06.05.2010. (fls. 6)

24 - Encontra-se junta aos autos uma carta de condução que foi exibida aos OPC (Fls. 21) emitida pelo país Guiné Conakri, país de origem do Recorrente.

25 - No decorrer do julgamento, o Recorrente juntou Permis Internationale de Conduire de fls 48 e a fls (…) um Certificat D’Authenticité.

26 - O “Tribunal a quo” não considerou válidos os aludidos documentos, estribando de forma errónea, a sua posição na informação do I.M.T.T. de fls. 45 e no ofício do IMTT com Ref 9633219.

27 - Não assiste razão ao “Tribunal a quo”, no que concerne aos argumentos expendidos para não aceitar como válidos os documentos de fls. 21 e 48. apresentados pelo Recorrente.

28 - Para fazer valer em juízo as suas dúvidas, acerca da autenticidade dos documentos, “o Tribunal a quo” deveria ter obtido uma análise forense do documento que as comprovasse.

29 - A informação do I.M.T.T. de fls 45, reporta-se à carta junta pelo arguido a fls. 21, (…) que a ser titular de carta de condução emitida pela Guiné Conacri e pelo facto de esta não ter aderido a nenhuma das convenções internacionais de trânsito, o título não lhe permite conduzir legalmente em Portugal.(…). No que concerne à autenticidade da “Permis International de Conduire”, o I.M.T.T:, a fls. 59 sugeriu que fosse contactada a Embaixada da Guiné em França.

30 - Em face dos elementos de fls. 21, 48, 45 e 59, o “Tribunal a quo” deveria ter proferido a sua decisão, lançando mão do princípio constitucional, “in dubio pro reo”, previsto no artigo 32º, nº 2 da CRP.

31- O princípio “in dubio pro reo” é exclusivamente probatório e deve aplicar-se quando o Tribunal tem dúvidas razoáveis sobre a verdade de determinados factos.

32 - Este princípio estabelece que na decisão a proferir sobre factos incertos, a dúvida deve favorecer o arguido.

33 - O “Tribunal a quo” violou o princípio “in dubio pro reo”, ao não exprimir de forma clara, a certeza acerca da não autenticidade ou validade das cartas de condução apresentadas a fls. 21 e 48.

34 - O “Tribunal a quo” não deu como provado que a carta de fls. 21 fosse inválida, logo não podia concluir que não tinha carta de condução. Nem com o provado que o Recorrente residia em Portugal há um período superior aquele que o obrigava à troca de carta de condução.

35 - O Recorrente circulou em França com a carta de fls. 21 e a permis de conduire de fls. 48, tendo sido fiscalizado por aquelas autoridades, sem qualquer problema.

36 - Fê-lo, em Portugal convicto de que não infringia nenhuma norma legal, por Portugal pertencer ao espaço Shengen.

37 - O Recorreu pautou a sua conduta, pela boa fé, considerando que se encontrava habilitado a conduzir ( sem consciência da ilicitude).

38 - O “Tribunal a quo”, deveria ter valorado a falta de consciência do Recorrente de que os títulos de condução que possuía não o habilitavam a conduzir em Portugal, aplicando o instituto previsto no artigo 17 º do Código Penal.

39 - O “Tribunal a quo” poderia quando muito imputar ao Recorrente a prática da contraordenação, prevista e punida pelo nº 8 do artigo 125 do Código da Estrada.

40 - Ao decidir de forma diversa, o “Tribunal a quo”, violou o disposto 32º, nº 2 da CRP., nº 17 nº 1 do Código Penal, nº 8 do artigo 125 do Código da Estrada.

41- A pena a aplicar ao arguido deve ser proporcional à sua culpa, sem olvidar os critérios consignados no artigo 71º do Código Penal.

42 - Militam, a favor do Recorrente, as seguintes atenuantes:

- Não tem antecedentes criminais;

- Trabalha na agricultura, tendo rendimentos variáveis, dada a sazonalidade daquela actividade

- Tem mulher e filhos em África

- Está inserido socialmente e não existem razões de prevenção especial relevantes.

43 - A pena concreta aplicada ao Recorrente, em cúmulo jurídico, de 120 dias de multa, à taxa de € 5,00, viola o disposto no artigo 71º do Código Penal.

44 - As finalidades de prevenção geral e especial, evitar a reincidência na violação do bem jurídico segurança rodoviária, bastar-se-iam com a aplicação de uma pena de multa, de graduação inferior.

45 - É, ilegal, viola o princípio da proporcionalidade, devendo ser revogada.

46 - O presente recurso incide, também, sobre o pedido de reapreciação da pena acessória de inibição de conduzir veículos automóveis aplicada pelo “Tribunal a quo”

47 - Segundo o disposto no artigo 69º, nº 1, alínea a) do Código Penal, quem for punido por crime previsto nos artigos 291º e 292º do Código Penal, pode ser condenado na proibição de conduzir veículos com motor, por um período entre três meses e três anos.

48 - A pena acessória aplicada não tem de ser proporcional à pena principal (multa), uma vez que os objectivos da política criminal são distintos. O fim da pena acessória dirige-se, especificamente, à recuperação estradal do condutor transviado.

49 - Não tem de existir uma correspondência matemática e proporcional entre penas, considerando as respectivas molduras abstractas. Tendo em conta os limites, mínimo e máximo, assinalados no tipo legal, afigura-se justo e equilibrado condenar o arguido num período de inibição de conduzir inferior ao fixado.

50 - A sanção acessória aplicada, não deve ser balizada, partindo dos períodos de inibição aplicados em sede contraordenacional, mas sim da análise do caso concreto.

51 - Decorre da jurisprudência, que na aplicação da pena principal e acessória, subjaz que “Tribunal a quo” faz um juízo de censura global do crime praticado (vd. Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra 207/08.2GCAB.C1 JTRC).

52 - Reportando-nos ao caso concreto, a sanção acessória é desproporcional, porque o grau de culpa é diminuto e as exigências de prevenção especial de socialização do Recorrente não são significativas, pelo que a sanção acessória aplicada é excessiva.

53 - A douta decisão objecto de recurso é ilegal, por violar o disposto nos artigos 2º , 3º e 5º da Lei Nº 18/2007, de 17 de Maio, artigo 61 alínea f), 64 alínea d), artigo 125 nº 8 do Código da Estrada, artigo 119º alínea c), 120 alínea c), 122 nº 1 e 123 todos do C.P.P., 13º e 20º, nº 4, 32º nº 2 da Constituição da República Portuguesa, artigo 17 º nº 1 ,artigos 40º, nº 2, 71º, 291 e 292º, nº1, todos do Código Penal, artigo 1º do Código Civil e pelo que deve ser revogada e substituída por outra mais justa e equitativa.

Nestes termos e nos melhores de direito aplicáveis, deve a douta sentença proferida ser revogada e substituída por outra mais justa e equitativa.»

            3. O Exmo. Procurador da República na primeira instância respondeu ao recurso, pugnando pela sua improcedência, posição que sintetiza nas seguintes conclusões (transcrição):

            «1. O arguido foi constituído, enquanto tal (em português e francês), pelas 22h35m do dia 30-10-2022, e prestou TIR (em português e francês) pelas 22h40m do mesmo dia. Mais consta que o arguido foi detido pelas 22h30m.

2. Consta claramente do auto de notícia e por referência ao talão comprovativo do teste quantitativo “De salientar onde se lê a hora no talão de prova 23h49, deve se ler 22h49”, pelo que se entende que justificou o OPC a divergência horária invocada pelo recorrente. Também a referência às 22h49 consta expressa na notificação para exercício do direito de pedir contraprova.

3. Resulta claramente do auto de notícia que a ordem de detenção foi dada pela prática do crime de Condução de Veículo a Motor Sem Habilitação Legal e que somente depois foram realizados os testes de despistagem da presença de álcool no sangue, pelo que não colhe o argumento de que a hora de constituição como arguido e de detenção foi realizada antes da realização do teste quantitativo.

4. No que respeita ao argumento de que decorreu o período de temporal de 1hora e 29m entre o teste qualitativo e quantitativo, e que tal contaminou o direito do recorrente pedir contraprova, consta claramente do auto de notícia e por referência ao talão comprovativo do teste quantitativo “De salientar onde se lê a hora no talão de prova 23h49, deve se ler 22h49”, pelo que resulta claro que o mesmo falece e não colhe, porquanto não foi esse o tempo real que decorreu.

5. Ainda que tivesse decorrido o período de temporal de 1hora e 29m entre o teste qualitativo e quantitativo tal somente seria benéfico para o arguido, porquanto, como é amplamente consabido, o álcool no sangue atinge o seu pico de absorção entre os 30 minutos a 1 hora, pelo que se tivesse decorrido 1hora e 29m a TAS detetada pelo arguido seria menor do que se fosse feito o teste quantitativo em momento anterior. Também esta Relação já teve oportunidade de doutamente se pronunciar, através do acórdão datado de 04-11-2009, processo30/07.1GTVIS.C1, disponível em www.dgsi.pt.

6. Os testes de despistagem de TAS não configuram um ato processual, mas antes “um mero ato policial de fiscalização de trânsito, imposto pelo art.152.º, nº1, al. a) do C. Estrada” – por todos, acórdão da Relação de Évora, datado de 23-04-2024, processo 1485/23.2GBABF.E1, disponível em www.dgsi.pt.

7. Não configurando a pesquisa de álcool no ar expirado realizada aos condutores um ato processual, mas antes um mero ato policial de fiscalização de trânsito, imposto pelo art.152.º, nº1, al. a) do C. Estrada, a lei não impõe a nomeação de Defensor nesse momento, logo não tem fundamento a invocada nulidade.

8. A jurisprudência é unânime no sentido de que não é obrigatória a nomeação de intérprete para a realização de teste de alcoolemia a pessoa que desconheça a língua portuguesa – vejam-se, por todos, os acórdãos da Relação de Évora, datado 08-11-2021, processo 1071/19.1GBBCL.G1, bem como o datado de 08-05-2018, processo 99/17.0GEPTM.E1, todos disponíveis em www.dgsi.pt.

9. Sempre se dirá que, mesmo que se verificasse a aludida nulidade por falta de nomeação de intérprete (o que não se concede), a mesma configura uma nulidade dependente de arguição, nos termos do art. 120.º, n.º 1, 2, al. c), 3, do CPP, sendo que todos os prazos para arguição da mesma se mostram ultrapassados, não tendo o recorrente invocado a mesma em momento ulterior, pelo que sanada se mostra a eventual nulidade.

10. A Guiné Conakri não subscreveu a Convenção de Genebra sobre Trânsito Rodoviário de 1949 (Convention on Road Traffic, de 19-09-1949), nem a posterior Convenção de Viena sobre Circulação Rodoviária (Convention on Road Traffic, Vienna, 8 November 1968), nem existe acordo bilateral entre esse país e Portugal, pelo que um seu nacional terá que requerer junto do IMT a substituição da sua carta de condução emitida por país estrangeiro não aderente às Convenções Internacionais sobre Trânsito Rodoviário por um título válido em Portugal e sujeitar-se a exame, como se dispõe no Regulamento da Habilitação Legal para Conduzir (Dec-Lei n.º 138/2012, de 05 de Julho).

11. Os detentores de carta de condução emitida por tal país não estão habilitados a conduzir em Portugal munidos de tal título.

12. Quanto ao alegado título “permis international de conduire”, acompanha-se em tudo os fundamentos invocados pelo Tribunal a quo, aditando que nunca poderia a Guiné Conakri emitir um título “permis international de conduire” que fosse válido noutros países sem sequer ter subscrito Convenção de Genebra sobre Trânsito Rodoviário de 1949 (Convention on Road Traffic, de 19-09-1949), nem a posterior Convenção de Viena sobre Circulação Rodoviária (Convention on Road Traffic, Vienna, 8 November 1968).

13. Bem fundamento o Tribunal a quo, “Note-se ainda, relativamente ao facto subjectivo do tipo de crime de condução sem habilitação legal, que ainda que a “permis international de conduire” seja um documento autêntico (facto que não se logrou provar, conforme supra mencionado), certo é que, de acordo com o disposto no artigo 8.º n.º 3 do DL n.º 138/2012, de 05 de Julho “O período máximo de validade de uma licença internacional de condução é de um ano contado da data em que é emitida (…)” – o que não é o caso da “permis” apresentada (cf. fls. 48 a 50).

Poderia ainda argumentar-se que o arguido, desconhecedor de leis, não conheceria tal prazo, o que excluiria o dolo. Também esse argumento não procede porque do documento apresentado consta expressamente que “Portugal” no sector “exclusões” (ou seja, o titular está privado do direito de conduzir em Portugal” - cf. fls. 49). Nessa medida e constando tal exclusão directamente do documento, não se pode afirmar que o arguido não sabia que tal licença não era válida em Portugal. E, também por este facto, considerou o tribunal que seria inútil aquilatar, nestes autos, da autenticidade da “licença” apresentada.”

14. As concretas penas aplicadas ao recorrente – pena principal de multa e pena acessória de proibição de conduzir veículos a motor – mostram-se, dentro das respetivas molduras abstratas, justas e criteriosas, dando expressão acertada às exigências de prevenção, especial e geral, que no caso se faziam sentir.

Pelo exposto, deve o presente recurso ser julgado improcedente e, em consequência, manter-se a sentença proferida nos exatos termos em que o foi.»

            4. Neste tribunal da Relação, a Exma. Senhora Procuradora-geral Adjunta emitiu parecer no sentido de que o recurso não merece provimento, aderindo aos fundamentos da resposta acima mencionada.

           

            5. Não foi apresentada resposta a esse parecer.

6. Efetuado exame preliminar e colhidos os vistos, o processo foi presente à conferência, por o recurso dever ser aí julgado, de harmonia com o preceituado no artigo 419º, n.º 3, alínea c) do Código de Processo Penal.

           

           

            II. FUNDAMENTAÇÃO

            1. Delimitação do objeto do recurso.

            Segundo jurisprudência pacífica, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso - como seja a deteção de vícios decisórios ao nível da matéria de facto resultantes da simples leitura do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, referidos no artigo 410º, n.º 2, do Código de Processo Penal,[1] e a verificação de nulidades que não devam considerar-se sanadas, nos termos dos artigos 379º, n.º 2, e 410º, n.º 3, do mesmo código - é pelas conclusões que o Recorrente extrai da motivação, onde sintetiza os fundamentos de discordância com o decidido e resume as razões do pedido (artigo 412º, n.º 1, do referido diploma), que se delimita o objeto do recurso e se fixam os limites do conhecimento do mesmo pelo tribunal superior.

            As questões a decidir, são pois:

            a) Impugnação da matéria de facto descrita nos pontos 1. a 4., que deveria ter sido dada como não provada [conclusões 1. a 29. e 34. a 40.]

            b) Violação do princípio in dúbio pro reo [conclusões 30. a 33.]

            c) Medida das penas principal e acessória [conclusões 41. a 52.]

            2. Da decisão recorrida.

            A sentença recorrida é do seguinte teor (transcrição):

«I. FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO:

1. Factos provados

Da audiência de discussão e julgamento resultaram provados os seguintes factos com relevância para a boa decisão da causa:

1. No dia 30 de outubro de 2022, cerca das 22 horas e 20 minutos, na Rua ..., na ..., o arguido conduziu o veículo ligeiro de passageiros com matrícula ..-..-DM sem que para tal estivesse habilitado com carta de condução ou qualquer outro documento que legalmente o habilitasse a conduzir aquele veículo na via pública, e apresentando uma taxa de álcool no sangue de 2,442 gramas por litro (descontada a margem de erro máxima admissível).

2. O arguido conhecia as características do veículo e do local onde se encontrava e sabia que conduzia em via pública sem possuir o respectivo título de habilitação legal para o efeito.

3. Sabia ainda que conduzia o veículo com uma TAS superior a 1,2 gramas por litro de sangue. Não obstante quis conduzir o veículo automóvel, conformando-se com tal circunstância, o que efectivamente fez.

4. O arguido agiu consciente e voluntariamente, bem sabendo ser a sua conduta proibida por lei e tinha a liberdade necessária para se determinar de acordo com essa avaliação.

Mais se provou:

5. O arguido não tem antecedentes criminais.

6. O arguido trabalha na agricultura, não tendo actualmente quaisquer rendimentos, dada a sazonalidade daquela actividade.

7. O arguido reside sozinho em casa arrendada, pela qual paga 200,00€ mensalmente.

8. O arguido tem mulher e filhos, que residem em África.

2. Factos não provados

Da audiência de discussão e julgamento não resultaram quaisquer outros factos com relevo para a boa decisão da causa.

3. Motivação da decisão de facto:

A factualidade dada como provada e não provada resultou da conjugação da prova produzida, analisada e ponderada criticamente, à luz das regras da experiência comum (artigo 127.º do CPP).

Quanto aos factos provados, o Tribunal atendeu às declarações escorreitas, objectivas e suficientemente circunstanciadas das duas testemunhas ouvidas em sede de audiência de julgamento, BB e CC, militares da GNR que prestaram depoimentos tidos por isento e sérios.

Os mencionados militares explicaram todo o contexto da abordagem ao arguido, a circunstância de o mesmo ter apresentado uma carta de condução emitida pela Guiné Conacri, que não consideraram válida, por não fazer parte da convenção, tendo relatado expressamente que o arguido foi directamente questionado sobre se tinha mais alguma licença de condução, tendo o mesmo, no momento da prática dos factos, adiantado que não. Além disso, o militar BB (com quem o arguido comunicou na abordagem) relatou que o arguido tinha toda a sua documentação numa mala de viagem na mala traseira do veículo automóvel, algo que lhe suscitou curiosidade, face à sua natureza incomum, e por isso se recordava claramente do acontecido.

Quanto à inexistência de habilitação legal para conduzir atendeu ainda o Tribunal à informação do IMTT de fls. 45, bem como ao oficio do IMTT com ref. 9633219.

A este propósito, cumpre referir que o arguido, em sede de julgamento, apresentou um documento intitulado de “permis international de conduire”. Acontece que, tal documento não logrou convencer o tribunal que o arguido seria portador de uma licença internacional para conduzir, válida e eficaz à data dos factos. De facto, além do documento apresentado apresentar uma autenticidade muito duvidosa (o carimbo constante da fotografia não se encontra por cima da fotografia do aqui arguido, percebendo-se que o carimbo foi aposto em momento prévio à colocação da fotografia e sendo certo também que as folhas que intermedeiam o documento apresentado de pagina 1 a 16 são meras fotocópias), foi esclarecido pelo IMTT que o arguido não consta da base de dados como sendo portador de licença internacional para conduzir - informação do IMTT com ref. 9633219.

Além disso, não sendo a Guiné um país subscritor, não se alcança a possibilidade de a mesma emitir uma “licença internacional para conduzir”.

Refira-se, ainda, que tal “licença” apenas surgiu em fase de julgamento, sendo certo que, conforme aventado pela testemunha BB, no momento da prática dos factos e concretamente questionado sobre a existência de outra carta de condução que não a da Guiné, o arguido respondeu negativamente (e sendo certo ainda que a sua documentação estava numa mala de viagem na mala traseira do veículo, pelo que, dizem-nos as regras da experiência comum, que se o arguido fosse efectivamente portador de tal documento (válido) o teria consigo nesse momento (como tinha todos os outros documentos) e teria respondido afirmativamente ao militar que o fiscalizou.

Quanto à taxa de álcool, o Tribunal atendeu ainda ao talão de fls. 8.

Os factos de índole subjectiva extraem-se da análise, à luz das regras da experiência comum, da factualidade objectiva, pois não se descortina qualquer outro motivo razoável para a actuação do arguido que não fosse a ali referida.

Note-se ainda, relativamente ao facto subjectivo do tipo de crime de condução sem habilitação legal, que ainda que a “permis international de conduire” seja um documento autêntico (facto que não se logrou provar, conforme supra mencionado), certo é que, de acordo com o disposto no artigo 8.º n.º 3 do DL n.º 138/2012, de 05 de Julho “O período máximo de validade de uma licença internacional de condução é de um ano contado da data em que é emitida (…)” – o que não é o caso da “permis” apresentada (cf. fls. 48 a 50).

Poderia ainda argumentar-se que o arguido, desconhecedor de leis, não conheceria tal prazo, o que excluiria o dolo. Também esse argumento não procede porque do documento apresentado consta expressamente que “Portugal” no sector “exclusões” (ou seja, o titular está privado do direito de conduzir em Portugal” - cf. fls. 49). Nessa medida e constando tal exclusão directamente do documento, não se pode afirmar que o arguido não sabia que tal licença não era válida em Portugal. E, também por este facto, considerou o tribunal que seria inútil aquilatar, nestes autos, da autenticidade da “licença” apresentada.

Relativamente à ausência de antecedentes criminais, atendeu-se ao Certificado de Registo Criminal, com a ref. citius 107475156.

Os factos respeitantes às condições económicas e sociais decorreram das declarações do arguido, não contrariadas por qualquer meio de prova produzido.

II. FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO:

Enquadramento jurídico-penal

Fixada a factualidade com relevância para a boa decisão da causa, cumpre proceder ao seu enquadramento jurídico-penal, sendo certo que para que um agente possa ser jurídico-penalmente responsabilizado, é necessário que pratique um facto típico, ilícito, culposo e punível.

Nos presentes autos, cumpre-nos apreciar se a arguida preencheu os elementos objectivos e subjectivos do crime de condução de veículo em estado de embriaguez, previsto e punível pelos artigos 292.º, n.º 1, e 69.º do Código Penal e do crime de condução sem habilitação legal, dispõe o artigo 3.º, do DL n.º 2/98, de 03 de Janeiro.

Quanto ao crime de condução de veículo em estado de embriaguez, estatui o artigo 292.º, n.º 1 que “quem, pelo menos por negligência, conduzir veículo, com ou sem motor, em via pública ou equiparada, com uma taxa de álcool no sangue igual ou superior a 1,2 g/l, é punido com pena de prisão até um ano ou com pena de multa até 120 dias, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal”.

O bem jurídico protegido pela presente incriminação é a segurança rodoviária, pese embora, indiretamente, se protejam outros bens jurídicos de caráter individual, como a vida, a integridade física e o património.

O tipo objetivo consiste na condução de veículo, com ou sem motor, em via pública ou equiparada, com uma taxa de álcool no sangue igual ou superior a 1,2 g/l.

Por outro lado, é necessário que a atividade de condução tenha sido levada a cabo numa via pública ou equiparada, ou seja, numa estrada, autoestrada e respetivas vias de acesso, praças, cruzamentos e entroncamentos, parques e zonas de estacionamento, passagens de nível, vias reservadas, corredores de circulação e vias especiais. Isto porque “(…) na medida em que o bem jurídico protegido por esta disposição é a segurança do tráfego, a condução de veículo só se torna relevante face a esse mesmo bem jurídico ao ter lugar numa via pública destinada à circulação de veículos com ou sem motor” (PAULA RIBEIRO DE FARIA, in Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo II, p. 1095).

Ademais, é necessário que o agente apresente uma taxa de alcoolemia igual ou superior a 1,2 g/l.

Quanto ao tipo subjetivo de ilícito, o crime pode ser cometido por qualquer forma de dolo (direto, necessário ou eventual – art. 14º do Código Penal) ou de negligência (consciente ou inconsciente – art. 15º do Código Penal).

Trata-se de um crime de perigo abstrato, ou seja, o perigo não faz parte do tipo, presumindo o legislador que a conduta é, em si mesma, perigosa.

No caso em apreço, e atentos os factos provados, é evidente que se encontram preenchidos todos os elementos objetivos e subjetivos do tipo legal de crime de condução de veículo em estado de embriaguez, p. p. pelo artigo 292.º do Código Penal.

Por sua vez, quanto ao crime de condução sem habilitação legal, dispõe o artigo 3.º, do DL n.º 2/98, de 03 de Janeiro consagra que:

“1 - Quem conduzir veículo a motor na via pública ou equiparada sem para tal estar habilitado nos termos do Código da Estrada é punido com prisão até 1 ano ou com pena de multa até 120 dias.

2 - Se o agente conduzir, nos termos do número anterior, motociclo ou automóvel a pena é de prisão até 2 anos ou multa até 240 dias.”

Também neste sentido, refere o n.º 1 do artigo 121.º do Código da Estrada dispõe que “Só pode conduzir um veículo a motor na via pública quem estiver legalmente habilitado para o efeito.”

São, então, elementos típicos do crime de condução sem habilitação legal: (i) a acção de condução objectivamente adequada a colocar em perigo a segurança da circulação rodoviária, traduzida na “colocação em circulação”; (ii) de veículo a motor; (iii) sem se ser titular de carta ou licença de condução; (iv) a condução seja em via pública ou equiparada; (v) o dolo.

Por seu lado, quanto ao bem jurídico tutelado pela incriminação, referiu-se no acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 05-04-2017, relatado Orlando Gonçalves por e disponível em www.dgsi.pt que: “O bem jurídico protegido no crime de condução sem habilitação legal é a segurança de circulação rodoviária e indiretamente a tutela de bens jurídicos que se prendem com essa segurança, como a vida, a integridade física de outrem e os bens patrimoniais.”

No presente caso, atendendo aos factos provados, o arguido vai condenado pela prática de um crime de condução de automóvel sem habilitação legal.

Assente que está a prática pelo arguido de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, p. p. pelo artigo 292.º do Código Penal em concurso efectivo com um crime de condução de automóvel sem habilitação legal, p. p. pelo artigo 3.º, n.º 2 do DL n.º 2/98, cumpre então determinar a natureza e a medida da sanção a aplicar, sendo que o processo de determinação da pena em concreto compreende três fases distintas.

Num primeiro momento, há que apurar a moldura penal abstractamente aplicável ao crime em questão e aferir da existência de circunstâncias modificativas, agravantes ou atenuantes, susceptíveis de actuar sobre a mesma.

Num segundo momento, há que proceder à escolha da pena a aplicar, na eventualidade de a lei permitir ao julgador a escolha, em consonância com o disposto no artigo 70.º do Código Penal.

Num terceiro momento, há que determinar a pena concreta dentro dessa moldura, atendendo ao vertido no artigo 71.º, do Código Penal.

Da moldura penal abstractamente aplicável:

Ao crime de condução em estado de embriaguez corresponde a pena abstracta de prisão até 1 ano ou multa até 120 dias. Assim, em abstracto, as molduras concretamente aplicáveis são:

- Pena de prisão cujo limite mínimo é de 1 mês e o limite máximo de 1 ano (cf. artigos 41.º, n.º 1 e 292.º n.º 1 do Código Penal);

- Pena de multa cujo limite mínimo é de 10 dias e o limite máximo de 120 dias (cf. artigos 47.º, n.º 1 e 292.º n.º 1 do Código Penal).

Ao crime de condução sem habilitação legal corresponde a pena abstracta de prisão até 2 anos ou multa até 240 dias. Assim, em abstracto, as molduras concretamente aplicáveis são:

- Pena de prisão cujo limite mínimo é de 1 mês e o limite máximo de 2 anos (cf. artigos 41.º, n.º 1 e 292.º n.º 1 do Código Penal);

- Pena de multa cujo limite mínimo é de 10 dias e o limite máximo de 240 dias (cf. artigos 47.º, n.º 1 e 292.º n.º 1 do Código Penal).

Da escolha da pena:

Considerando que ao crime em apreço é aplicável pena de prisão e de multa, urge, antes de mais, proceder à escolha da pena a aplicar ao arguido.

Ora, o artigo 70.º, do Código Penal consagra que “Se ao crime forem aplicáveis, em alternativa, pena privativa e pena não privativa da liberdade, o tribunal dá preferência à segunda sempre que esta realizar de forma adequada e suficiente as finalidades de punição”.

Importa, pois, saber quais são as finalidades da punição, o que nos é dito pelo artigo 40.º do Código Penal: a aplicação das penas e medidas de segurança visa a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade. Nesta escolha, o Tribunal deve, então, atender unicamente às considerações de prevenção geral e de prevenção especial.

O referido preceito retrata uma das ideias fundamentais subjacente ao sistema punitivo do nosso Código Penal: a reacção contra as penas detentivas, que, pela sua própria natureza, mostram-se muitas vezes lesivas do sentido ressocializador que deve presidir à execução das reacções penais. Deste modo, o legislador dá prevalência à pena não privativa da liberdade, sempre que esta seja susceptível de realizar a recuperação social do delinquente e particulares exigências de prevenção não imponham a aplicação de uma pena privativa da liberdade.

No presente caso, em termos de prevenção geral, as exigências são medianas, atendendo a que a condução em estado de embriaguez é um dos factores mais significativos para o aumento da sinistralidade rodoviária, assim como a condução sem habilitação legal, bem como o aumento de situações de dano como as dos autos. Todavia, são crimes que não causam um profundo e grave alarme social nem têm ressonância ética significativa.

Por seu lado, as exigências de prevenção especial são ténues, considerando que o arguido não tem antecedentes criminais.

Assim, o Tribunal opta pela aplicação da pena de multa, em ambos os crimes.

Determinação da medida da pena:

Encontradas as molduras penais abstractas e escolhido o tipo de pena a aplicar, impõe-se a determinação da medida concreta das penas.

Na determinação da medida concreta da pena de prisão deve o tribunal atender à culpa do agente e às exigências de prevenção (cf. artigo 71.º, n.º 1, do Código Penal).

O limite mínimo da pena é dado pelas necessidades de prevenção geral positiva, ou seja, a estabilização das expectativas comunitárias na validade e vigência da norma violada.

O limite máximo é estabelecido pela culpa do agente. Com efeito, o direito penal português é guiado pelo irrenunciável princípio da dignidade da pessoa humana, sendo o princípio de que “em caso algum a pena poderá ultrapassar a medida da culpa” (cf. artigo 40.º, n.º 2 do CP) corolário daquele.

In casu, as exigências de prevenção geral são medianas, atendendo ao supra referido mas sopesando-se aqui o carácter frequente do cometimento destes delitos e as consequências associadas aos mesmos, designadamente ao nível da sinistralidade rodoviária. É, pois, necessário desincentivar de forma eficaz estas condutas e restabelecer a confiança da comunidade na validade e vigência da norma violada.

Já a culpa do arguido afigura-se como elevada pois agiu fora de qualquer constrangimento, razão pela qual se impunha uma actuação conforme o direito, tanto mais que conjugou na sua conduta duas práticas altamente censuráveis.

Dentro da moldura assim encontrada, o Tribunal há-de respeitar o princípio da proibição da dupla valoração, e há-de considerar os factores enunciados no n.º 2 do citado preceito legal, designadamente, o grau de ilicitude do facto, a intensidade do dolo ou da negligência, os motivos determinantes do agir do arguido, as suas condições pessoais e situação económica, entre outros.

Vejamos, então, o presente caso.

A ilicitude dos factos encontra-se num grau elevado, tendo em consideração desde logo a elevada taxa de álcool (2,442 gramas).

A intensidade do dolo é elevada, pois o arguido agiu com dolo directo.

Além disso, deve atender-se à circunstância de, no Certificado de Registo Criminal, não se encontra registada qualquer condenação, anterior ou posterior à prática dos factos em apreciação nos presentes autos, por decisão transitada em julgado.

Dentro dos limites consentidos pela prevenção geral positiva, devem actuar pontos de vista de prevenção especial de socialização, sendo eles que vão determinar, em último termo, a medida da pena. Pretende-se, desta forma, evitar a quebra da inserção social do agente e servir a sua reintegração na comunidade.

No caso concreto, as exigências de prevenção especial são ténues, pois como já se referiu, o arguido não tem antecedentes criminais, pese embora não se encontrar inserido social e laboralmente e se encontrar afastado da sua família.

Pelo exposto, considerando os critérios apontados pelo artigo 71.º, do Código Penal, considera-se justo e adequado, aplicar ao arguido:

- quanto ao crime de condução em estado de embriaguez: a pena de 80 (oitenta) dias de multa.

- quanto ao crime de condução sem habilitação legal: a pena de 100 (cem) dias de multa.

Cumpre proceder à fixação do quantitativo diário da multa aplicada, a firmar numa quantia entre 5 (cinco) euros e 500 (quinhentos) euros, tendo por base os critérios previstos no artigo 47.º, n.º 2, do Código Penal, que são a situação económica e financeira do arguido e os seus encargos pessoais.

Tendo em conta as condições económicas do arguido, afigura-se ao Tribunal como justo e adequado fixar a razão diária de 5€ (cinco euros).

Do cúmulo:

O 77º, n.º 1, do Código Penal consagra que “Quando alguém tiver praticado vários crimes antes de transitar em julgado a condenação por qualquer deles é condenado numa única pena. Na medida da pena são considerados, em conjunto, os factos e a personalidade do agente.”

Como deflui do artigo 77.º, n.º 2 do CP, a pena parcelar mais elevada das penas em concurso constitui o limite mínimo da moldura do concurso e o limite máximo desta moldura resulta da soma de todas as penas parcelares em concurso.

Na determinação concreta da pena serão considerados, em conjunto, os factos e a personalidade do agente. No entanto, esta reapreciação não implica uma dupla valoração dos factos que já tenham sido ponderados para a determinação concreta das penas parcelares. Como refere ANTÓNIO RODRIGUES DA COSTA, citando FIGUEIREDO DIAS “(…) Na avaliação desta personalidade unitária do agente, releva, sobretudo «a questão de saber se o conjunto dos factos é reconduzível a uma tendência (ou eventualmente mesmo a uma “carreira”) criminosa, ou tão-só a uma pluriocasionalidade que não radica na personalidade: só no primeiro caso, já não no segundo, será cabido atribuir à pluralidade de crimes um efeito agravante dentro da moldura penal conjunta. De grande relevo será também a análise do efeito previsível da pena sobre o comportamento futuro do agente (exigências de prevenção especial de socialização).” In “O Cúmulo Jurídico na Doutrina e na Jurisprudência do STJ”, pág. 5.

Assim sendo, os factos devem ser analisados, não numa visão meramente atomística, mas na sua globalidade, ou seja, atendendo-se ao conjunto. É aqui que “a justiça do caso se procura” (acórdão do STJ de 24-09-2014, relatado por MAIA COSTA, disponível em www.dgsi.pt).

Ora, no presente caso, a moldura vai de 100 dias (limite mínimo) a 180 dias (limite máximo).

Analisando globalmente os factos, constata-se que as condutas delituosas têm entre si uma forte conexão espácio-temporal e motivacional. Do conjunto dos factos não é possível concluir por uma tendência criminosa do arguido, parecendo que se tratou um episódio infeliz ocorrido na sua vida. Por isso, o Tribunal acredita que a pena aplicada terá um efeito positivo no comportamento futuro do arguido.

Em face do exposto, decide-se fixar ao arguido a pena única de 120 (cento e vinte) dias de multa.

Da pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor:

O artigo 69º, nº 1, alínea a) do Código Penal estabelece que “é condenado na proibição de conduzir veículos com motor por um período fixado entre três meses e três anos quem for punido: (…) a) Por crimes de homicídio ou de ofensa à integridade física cometidos no exercício da condução de veículo motorizado com violação das regras de trânsito rodoviário e por crimes previstos nos arts. 291º e 292º”.

Conforme supra exposto, a arguida cometeu um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, p. e p. pelo artigo 292º, nº 1 do Código Penal.

Assim, e uma vez que cometeu o crime previsto no artigo 292º, nº 1 do Código Penal, é aplicável ao caso a pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor, prevista no artigo 69º, nº 1 do Código Penal.

No que diz respeito à medida concreta da pena acessória a aplicar, o juízo de ponderação rege-se pelos critérios já supra referidos que presidem à fixação da medida concreta da pena principal aplicada.

Desta forma, tendo em consideração os mesmos factos já supra mencionados, o Tribunal julga adequada a fixação da pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor pelo período de 5 (cinco) meses.»

            3. Apreciação do recurso.

            3.1. – Da impugnação da matéria de facto descrita nos pontos 1. a 4., que deveria ter sido dada como não provada.

Compulsadas as conclusões 1. a 29. e 34. a 40., verificamos que o Recorrente, assenta a sua discordância face à decisão da matéria de facto nos seguintes fundamentos:

1. - A decisão recorrida relativamente aos pontos 1. a 4., no que tange à condução sob o efeito do álcool, funda-se no teor do documento de fls.8 (talão relativo ao resultado do teste de alcoolemia), dando como provado que o arguido conduzia sendo portador de uma TAS de 2,44gr/l. Porém, tal documento mostra-se ferido de invalidade, pelo que, não podia o Tribunal levá-lo em consideração nos termos por que o fez.

E tal documento é prova inválida porque:

a) O teste quantitativo a que se reporta o documento em causa, de acordo com o teor do mesmo, realizou-se às 23h49m.

Resulta dos documentos e expediente de fls.6, 12, 14 e 16 que, entre a realização do teste qualitativo e a realização do teste quantitativo decorreram mais de 30 minutos, violando-se, assim, o disposto no artigo 2º da Lei nº18/2007 de 17 de maio. Por outro lado, decorreu mais de uma hora (1h29m) entre a realização do teste qualitativo e a possibilidade de o Recorrente exercer o direito de pedir contraprova, em violação do disposto nos artigos 3º e 5º da lei nº 18/2007 de 17 de maio.

Tudo redundando na invalidade do mesmo teste, já que, não consta do auto de notícia qualquer razão justificativa para a violação daqueles prazos legais para realização do teste quantitativo.

b) – O teste em causa consubstancia uma diligência de prova que foi levada a efeito em circunstâncias que a tornam inválida. Concretamente, não foi realizada na presença de Defensor, o qual só foi nomeado ao Arguido posteriormente e, sendo o Arguido estrangeiro e desconhecendo a língua portuguesa, na ausência de intérprete que também só foi nomeado em momento posterior.

Neste conspecto, foram violados os preceitos constantes dos artigos 61º nº1 alínea f) e 64º nº1 alínea d) do Código de Processo Penal, sendo que, tal constitui nulidade insanável nos termos do disposto no artigo 119º alínea c) e nulidade dependente de arguição, nos termos do disposto no artigo 120º alínea c), tudo redundando na invalidade do ato de recolha de prova em causa, nos termos do disposto no artigo 122º nº1 do mesmo código.

2.No que tange à condução sem habilitação legal, resulta dos documentos e expediente de fls. 6, 21, 45, 48 e 59 que o Arguido naquelas circunstâncias descritas no ponto 1., era portador de documento válido que o habilitava a conduzir o veículo que conduzia e nas circunstâncias por que o fez, pelo que, o Tribunal errou ao dar como provado que assim não era, fazendo uma leitura errada dos documentos em causa.

De todo o modo em face dos documentos em causa, o Tribunal deveria ter considerado que o arguido atuou sem consciência da ilicitude da sua conduta (artigo 17º do Código Penal), errando, quando considerou que atuou nos termos descritos em 2. e 4. dos factos provados.

            Vejamos.

Como é consabido, a matéria de facto pode ser sindicada junto dos Tribunais da Relação por duas vias: a primeira, no âmbito, mais restrito, dos vícios previstos no artigo 410º, nº 2, do Código de Processo Penal, no que se convencionou denominar de “revista alargada”; e a segunda através da “impugnação ampla” da matéria de facto, a que alude o artigo 412º, nºs. 3, 4 e 6, do mesmo diploma legal.

No primeiro caso, estamos perante a arguição dos vícios decisórios previstos nas diversas alíneas do nº 2 do citado Artigo 410º, cuja indagação, como resulta do preceito, tem que resultar da decisão recorrida, por si mesma ou conjugada com as regras da experiência comum, não sendo por isso admissível o recurso a elementos estranhos àquela, exógenos, para a fundamentar, como a invocação de elementos probatórios existentes nos autos, gravados ou documentados, ainda que produzidos no próprio julgamento.

Distintamente, na segunda situação, a apreciação não se restringe ao texto da decisão, alargando-se à análise do que se contém e pode extrair da prova (documentada e/ou gravada) produzida em audiência, mas sempre balizada pelos limites fornecidos pelo recorrente no estrito cumprimento do ónus de especificação imposto pelos nºs. 3 e 4 do citado artigo 412º.

No caso vertente, compulsado o recurso interposto pelo arguido, verifica-se que este não invoca a ocorrência na sentença recorrida de qualquer dos vícios consagrados nas alíneas do nº 2 do artigo 410º do CPP, nem se extrai do texto da decisão, oficiosamente, a existência dos mesmos, nomeadamente de qualquer erro notório na apreciação da prova.

            Aquilatemos agora se o recurso do arguido encerra uma válida impugnação da decisão sobre a matéria de facto, nos termos e para efeitos do disposto no artigo 412º, nºs 3, 4 e 6, do Código de Processo Penal.

Preceitua o artigo 412º do Código de Processo Penal, na parte que ora releva:

1 – A motivação enuncia especificamente os fundamentos do recurso e termina pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do pedido.

[…]

3 – Quando impugne a decisão proferida sobre a matéria de facto, o recorrente deve especificar:

a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;

b) As concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida;

c) As provas que devem ser renovadas.

4 – Quando as provas tenham sido gravadas, as especificações previstas nas alíneas b) e c) do número anterior fazem-se por referência ao consignado na ata, nos termos do disposto no nº3 do artigo 364º, devendo o recorrente indicar concretamente as passagens em que se funda a impugnação.          

[…]

6 – No caso previsto no nº4, o tribunal procede à audição ou visualização das passagens indicadas e de outras que considere relevantes para a descoberta da verdade e a boa decisão da causa.”

Ressuma do disposto no nº 1 do artigo 412º que o recorrente, na motivação, de forma clara e concisa, mas completa, deve expor as razões do seu inconformismo, isto é, os fundamentos de facto e de direito por que entende que o tribunal decidiu de forma incorreta. O cumprimento deste mandamento legal é essencial ao conhecimento do recurso por parte do tribunal ad quem.

Nas palavras do Exmo. Juiz Conselheiro Sérgio Gonçalves Poças[2] «…se a motivação…é um todo, é, no entanto, verdade que nela se distinguem formal e substancialmente as conclusões.»; «…as conclusões devem dizer em argumentos secos, as razões definitivas da discordância expostas na motivação, no seu arrazoado. Cometerá, assim, grave erro o recorrente que depois de expor os fundamentos no corpo motivador, depois se esquece deles nas conclusões; mas erro igualmente grave ocorre quando o recorrente apresenta fundamentação nas conclusões que não tratou de modo nenhum na motivação.»

E explicita: «Como se disse, as conclusões (deduzidas por artigos, nas palavras da lei) não trazem nada de novo; os fundamentos têm de estar no corpo motivador e são aqueles e só aqueles que são resumidos nas conclusões. E porque assim é, está pacificamente aceite na doutrina e jurisprudência que sem prejuízo do conhecimento oficioso que em determinados casos se impõe ao Tribunal, são as conclusões que delimitam o objeto e âmbito do recurso. E não podia ser de outra maneira. De facto, se o objeto do recurso constitui o assunto colocado à apreciação do Tribunal; se das conclusões obrigatoriamente devem constar, se bem que resumidos, os fundamentos de facto e de direito do recurso, necessariamente teriam de ser as conclusões que delimitam o objeto e o âmbito do recurso.»

Resulta do disposto nos nºs 3 e 4 do artigo 412º que quando o recorrente impugne a decisão proferida sobre a matéria de facto, é-lhe imposto um especial dever de especificação, o que bem se compreende tendo em vista a natureza e objeto do recurso previsto na lei. Um recurso, que, consabidamente, «não constitui uma impugnação sem fronteiras da matéria de facto na 2ª instância, mas que se traduz apenas numa “intervenção cirúrgica” do Tribunal da Relação. Intervenção esta, no sentido de indagar se houve erro de julgamento, corrigindo-o, se for caso disso, nos concretos pontos de facto, devidamente identificados pelo recorrente.» [ibidem, p. 31].          

Como tem entendido, sem discrepância, o Supremo Tribunal de Justiça[3], o recurso em matéria de facto («quando o recorrente impugne a decisão proferida sobre a matéria de facto») não pressupõe uma reapreciação pelo tribunal de recurso do complexo dos elementos de prova produzidos e que serviram de fundamento à decisão recorrida, mas apenas uma reapreciação sobre a razoabilidade da convicção formada pelo tribunal a quo relativamente à decisão sobre os «pontos de facto» que o recorrente considere incorretamente julgados, na base da avaliação das provas que, na indicação do recorrente, imponham «decisão diversa» da recorrida (provas, em suporte técnico ou transcritas quando as provas tiverem sido gravadas) - artigo 412.º, n.º 3, al. b), do CPP -, ou da renovação das provas nos pontos em que entenda que esta deve ocorrer.

Por outro lado, nessa tarefa de reapreciação da prova pelo tribunal de recurso intrometem-se necessariamente fatores como a ausência de imediação e da oralidade – sendo que, como é sobejamente sabido, a imediação e a oralidade constituem princípios estruturantes do direito processual penal português.

Em conformidade, a ausência de imediação e oralidade - dado que o “contacto” com as provas se circunscreve ao que consta das gravações - determina que o tribunal de 2ª instância, no recurso da matéria de facto, só possa alterar o decidido pela 1ª instância se as provas indicadas pelo recorrente impuserem decisão diversa da proferida e não apenas se a permitirem [al. b) do n.º3 do citado artigo 412.º][4] .

Concluindo: o artigo 412º, nº3, al. b) do CPP, ao exigir que o recorrente que impugne a decisão proferida sobre matéria de facto especifique as concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida, implica que o tribunal de recurso só pode (e deve) alterar aquela decisão se da análise que faz das provas documentadas indicadas pelo recorrente, em concatenação com as regras da experiência comum e da lógica, concluir que o juízo probatório levado a cabo pelo tribunal a quo é, à luz daqueles elementos, insustentável, indefensável (porque decidiu claramente sem prova ou em indiscutível contradição com as preditas regras), revelando-se por isso “obrigatório” decidir de forma distinta.

Diferentemente, «se o tribunal de recurso se convencer que os concretos elementos de prova indicados pelo recorrente permitem ou consentem uma decisão diferente, mas que não a «tornam necessária» ou racionalmente «obrigatória», então deve manter a decisão da primeira instância tal como está» [5]

No caso vertente, o arguido/recorrente cumpriu o dever de especificação legalmente imposto, indicando os concretos pontos da matéria de facto que considera erroneamente julgados.

Por outro lado, cumpriu o ónus de especificação das concretas provas que impõem decisão contrária, na parte em que remete para o concreto conteúdo de documentos juntos aos autos (questionando a validade dos mesmos), dos quais se pode e deve na sua perspetiva, inferir, indubitavelmente, que obrigavam a decisão fática diversa.

Porém, na parte em que faz apelo à prova testemunhal (conclusões 4. e 13.), incumpriu totalmente o ónus de identificação das concretas passagens dos respetivos depoimentos (contextualizando-os por referência ao tempo consignado na ata) dos quais se pudesse inferir, indubitavelmente, que obrigavam a decisão fática diversa.

A apontada omissão no que tange à prova testemunhal é absoluta e intransponível, pelo que se desatenderá qualquer referência à prova testemunhal, quedando-se a questão do erro de julgamento circunscrita à avaliação da validade e força probatória dos documentos a que o Recorrente faz apelo.

            Vejamos, então, se tem razão o Recorrente no que concerne à impugnação da matéria de facto com base na prova documental por si indicada.

            Quanto à invocada invalidade do teste de pesquisa de álcool no sangue cujo talão se encontra junto a fls.8.

            Partindo do pressuposto de que o teste em causa foi realizado às 23h49m, conforme consta do talão em causa, conclui o Recorrente que tal teste se encontra ferido de invalidade na medida em que, por um lado, entre a realização do teste qualitativo e a realização do teste quantitativo decorreram mais de 30 minutos, violando-se, assim, o disposto no artigo 2º da Lei nº18/2007 de 17 de maio e, por outro lado, decorreu mais de uma hora (1h29m) entre a realização do teste qualitativo e a possibilidade de o Recorrente exercer o direito de pedir contraprova, em violação do disposto nos artigos 3º e 5º da lei nº18/2007 de 17 de maio.

            Ora, independentemente da questão de saber se, efetivamente, o decurso daqueles períodos de tempo acarreta a invalidade do teste quantitativo a que se reporta o talão em causa, a verdade é que o pressuposto de que parte o Recorrente não se verifica.

            Embora efetivamente conste do talão de fls.8 como data e hora de realização do teste o dia 30-10-2022, às 23h49m, conforme bem assinala o Ministério Público na sua douta resposta ao recurso, consta do auto de notícia, entre o mais, o seguinte: “Do sopro efetuado no aparelho quantitativo foi extraído o talão com o número 2163 que se junta como meio de prova. De salientar onde se lê a hora no talão de prova 23h49, deve se ler 22h49”.

            Portanto, ao contrário do afirmado na conclusão 11. [Não consta do auto de notícia qualquer razão justificativa para a violação do prazo legal para realização do teste quantitativo], a leitura do auto de notícia permite afirmar que a autoridade policial fez constar que a hora real em que foi feito o teste não é a que consta do talão, mas sim uma hora antes. Isto é, o teste foi realizado às 22h49 e não às 23h49.

            E tal correção percebe-se se se atentar que no ano de 2022, a hora de inverno entrou em vigor precisamente no dia em que o teste foi feito (30-10) às 2 horas da madrugada em que os relógios foram atrasados uma hora, isto é, para a 1 hora. Por isso, nesse dia à noite, estava em vigor a hora de inverno, isto é, uma hora menos.

            Assim, percebe-se a correção constante do auto de notícia, pois que, a hora que consta do talão não se encontraria, ainda, atualizada para a hora de inverno, atualização que, como vimos, ocorreu nesse mesmo dia pelas 2 horas da manhã.

            Conclui-se, pois, que o teste foi efetuado não às 23h49 minutos, mas sim, uma hora antes, 22h49 minutos.

            Assim sendo, como é, ficam prejudicadas as alegações de invalidade do teste de pesquisa de álcool no sangue a que se reporta o documento de fls.8, não cabendo, pois, apreciar se, ocorreriam a alegadas violações do disposto nos artigos 2º, 3º e 5º da Lei nº18/2007 de 17 de maio.

            Improcede, pois a alegação de invalidade do teste em causa por esta via.

            Ainda quanto ao mesmo teste de pesquisa de álcool no sangue, em que assentou a prova dos factos descritos em 1. dos factos provados, no que tange à taxa de álcool no sangue de que o Arguido era portador, invoca o Recorrente a sua invalidade por duas vias:

- por um lado, ocorreu nulidade absoluta por violação do disposto no artigo 61º nº1 alínea f) e 64º nº1 alínea d), conforme previsto no artigo 119º alínea c), todos do Código de Processo Penal, uma vez que, como resulta do teor do expediente constante de fls.12, 14 e 16, ao Arguido só foi nomeado defensor posteriormente, tendo o teste em causa sido realizado sem que o arguido estivesse assistido por Defensor;

- por outro lado, ocorreu nulidade relativa, dependente de arguição, nos termos do disposto no artigo 120º alínea c) do Código de Processo Penal, uma vez que, resulta dos mesmos documentos que, ao Arguido só foi nomeado intérprete, sendo ele estrangeiro e não conhecendo a língua portuguesa, em momento posterior.

Vejamos.

Resulta efetivamente, do auto de notícia de fls. 6 conjugado com o teor dos documentos de fls. 12, 14 e 16 e do expediente com as referências eletrónicas 101816366 e 101817593 que ao Arguido apenas foi nomeado defensor e intérprete no dia 31-10-2022, portanto, sem dúvida, em momento posterior à realização do teste. Donde se conclui que no momento em que este foi efetuado, o Arguido se encontrava desacompanhado, quer de Defensor, quer de intérprete.

Porém, e mais uma vez, o Recorrente parte de um pressuposto errado que inquina toda a sua argumentação.

O Recorrente considera que a realização do teste de pesquisa de álcool no sangue constitui um “ato processual”, pelo que lhe seria aplicável o disposto nos artigos 64º nº1 alínea d) do código de Processo Penal onde se estabelece que “é obrigatória a assistência de defensor, (…) Em qualquer ato processual (…) sempre que o arguido for (…) desconhecedor da língua portuguesa (…)”, bem como, o disposto no artigo 120º, nº 2, alínea c) do mesmo código, onde se estabelece que Constituem nulidades dependentes de arguição, além das que forem cominadas noutras disposições legais: (…) c) a falta de nomeação de intérprete nos casos em que a lei a considerar obrigatória”, considerando tal nomeação obrigatória, com base no disposto no artigo 92º, nº 2, do mesmo código onde consta que “2 - Quando houver de intervir no processo pessoa que não conhecer ou não dominar a língua portuguesa, é nomeado, sem encargo para ela, intérprete idóneo, ainda que a entidade que preside ao acto ou qualquer dos participantes processuais conheçam a língua por aquela utilizada.”

            Pois bem.

            Conforme também assinala o Ministério Público na sua douta resposta ao recurso, os testes de pesquisa de álcool no sangue não constituem “ato processual” para efeitos do disposto no artigo 64º nº1 alínea d) do Código de Processo Penal, mas sim, atos policiais de fiscalização de trânsito.

             Com efeito, assim são configurados no artigo 152º do Código da Estrada.

            Assim, tratando-se de ato policial de fiscalização de trânsito, não lhe é aplicável o disposto no artigo 64º nº1 alínea d) do Código de Processo Penal, onde se refere expressamente a obrigatoriedade de defensor em qualquer ato processual em que o arguido for desconhecedor da língua portuguesa.[6]

            A este propósito, afirma Tiago Caiado Milheiro:[7]

«A alínea d) do nº1 justifica-se pelo especial dever de um Estado do direito Democrático acautelar os direitos dos cidadãos mais vulneráveis, por limitações físicas, mentais, de perceção, de compreensão, de manifestação da vontade. (…) Em termos objetivos, a assistência de Advogado impõe-se em todo e qualquer ato processual (excetuada a constituição de arguido) em que o arguido intervenha (requisito da pessoalidade) e que têm conexão direta com um potencial agravamento da sua posição processual ou material incriminatório. Tem especial pertinência nos meios de prova em que intervenha. Para além das declarações perante autoridade judiciária [já abrangido pela al. b) do nº1], abarca igualmente os interrogatórios na polícia, mesmo que não esteja deteido ou preso, bem como, quando é submetido a um reconhecimento, acareação ou reconstituição. Tratam-se de atos processuais em que o arguido especialmente vulnerável contribuiu, ativamente ou passivamente, para a produção de prova. Exclui-se a prova pericial, em cujo ato o arguido não tem que adotar comportamentos incriminatórios, e que se rege pelas normas relativas àquele meio de prova

E acrescenta ainda:

«Ressalte-se novamente, que mesmo em relação a pessoa especialmente vulnerável, a obrigatoriedade de assistência nas diligências de prova pressupõe que se trate de arguido, não bastando ser suspeito [assim para as diligências de reconhecimento, ac. RL 18.02.2014 (Jorge Gonçalves)]. Naturalmente, como já assinalámos, crucial será analisar se deveria ter sido constituído arguido, abrangendo a obrigatoriedade de assistência os casos em que a lei impunha a constituição como arguido (…)

Ora, o Recorrente, de acordo com o que consta dos autos, é estrangeiro e não domina a língua portuguesa, pelo que, pode considerar-se que estava em situação de especial vulnerabilidade dada a sua dificuldade de compreensão. Porém, o ato que está em causa (realização de teste de pesquisa de álcool no sangue por ar expirado) não sendo um ato processual, como referido supra, também não se inscreve no catálogo de meios de prova em que intervém e em que contribui com declarações ou manifestação de vontade para a sua incriminação.

            Este mesmo entendimento, que sufragamos, manifesta o Tribunal da Relação de Évora no seu acórdão datado de 07-04-2015[8] onde se afirma:

            «I - O nº 3 do artigo 152º do Código da Estrada não é inconstitucional, não violando o disposto no nº 5 do artigo 32º da Constituição da República Portuguesa, pois não obriga o arguido a produzir prova contra si próprio.

II - A realização dos testes para deteção de álcool no sangue do condutor não constitui, em si mesma, uma declaração ou incriminação, já que não se obriga o detetado a emitir uma declaração que exteriorize um conteúdo, admitindo a sua culpa, mas apenas a tolerar que sobre ele recaia uma especial modalidade de perícia.

III - O direito à não auto-incriminação refere-se ao respeito pela vontade do arguido em não prestar declarações, não abrangendo o uso, em processo penal, de elementos que se tenham obtido do arguido por meio de poderes coercivos, mas que existam independentemente da vontade do sujeito, como é o caso, por exemplo, da recolha de material biológico no ar expirado e no sangue para efeitos de análise do grau de alcoolemia

Por outro lado, resulta dos autos que, no momento em que foi realizado o teste, o arguido não tinha, ainda, sido constituído como tal, o que se compreende, pois, o teste é, como se disse, um ato de fiscalização de trânsito que precede a conclusão, no que ao crime de condução sob o efeito do álcool concerne, de que existe suspeita da prática do crime.

Trata-se de um teste de resultado desconhecido antes da sua realização, pelo que, para além de ter precedido a constituição como arguido, naquele momento, esta constituição de arguido também não era obrigatória, nem tinha razão de ser – Cfr. artigo 58º do Código de Processo Penal.

Em conclusão, no momento e nas circunstâncias em que foi efetuado o teste de pesquisa de álcool no sangue documentado a fls.8, não era obrigatória a presença de defensor, pelo que, inexiste a nulidade insanável prevista no artigo 119º alínea c) do Código de Processo Penal, improcedendo o recurso nesta parte.

Também por razões similares, não ocorre a nulidade relativa invocada pelo recorrente e a que alude o artigo 120º, nº 2, alínea c) do Código de Processo Penal.

            Estabelece o artigo 92º, nº 2 do código de Processo Penal que:

            “2 - Quando houver de intervir no processo pessoa que não conhecer ou não dominar a língua portuguesa, é nomeado, sem encargo para ela, intérprete idóneo, ainda que a entidade que preside ao acto ou qualquer dos participantes processuais conheçam a língua por aquela utilizada.”

            Por seu turno, estabelece o artigo 120º, nº 2, alínea c) do mesmo código que:

            “Constituem nulidades dependentes de arguição, além das que forem cominadas noutras disposições legais: (…) c) a falta de nomeação de intérprete nos casos em que a lei a considerar obrigatória”.

            E, é para nós manifesto que, a nomeação de intérprete naquela ocasião, não se reputa obrigatória, na medida em que não se tratou de qualquer “intervenção no processo” nos termos previstos no preceito transcrito. Tanto assim é que no mesmo artigo 92º se refere “a entidade que preside ao ato”, remetendo claramente para o campo dos “atos processuais” que, como vimos, não é o caso dos testes de pesquisa de álcool no sangue através de alcoolímetro, realizados nas circunstâncias em que foi realizado no caso sub judice (previamente à constituição de arguido, não sendo esta, nesse momento, obrigatória).

Remete-se neste particular para o teor dos acórdãos a que se refere o Ministério Público na sua douta resposta ao recurso[9], surgindo pertinentes as considerações tecidas por Tiago Caiado Milheiro[10], especialmente quando afirma:

            «Além do não conhecimento ou pouco domínio da língua portuguesa como condição para que seja obrigatória a nomeação de intérprete, outros requisitos (para que exista essa obrigatoriedade) emergem da norma. Assim, resulta da alusão a ato (processual) e processo, que se encontra excluído do seu âmbito (de aplicabilidade), pelo menos em regra, as medidas cautelares de polícia. Também aparenta ser este o sentido da Dir. (EU) 2010/64, referindo no seu art. 2º/1 que o direito à interpretação deve ser assegurado a uma pessoa “durante a tramitação penal perante as autoridades de investigação e as autoridades judiciais”, surgindo o dever de disponibilizar intérprete a “partir do momento em que a esta seja comunicado pelas autoridades competentes de um Estado-membro, por notificação oficial ou por qualquer outro meio, que é suspeita ou acusada da prática de uma infração penal” [art.1º/2 Dir. EU) 2010/64]. (…) a propósito de diligências pré-processuais v. ac. RE, 8.5.2018 (Gilberto Cunha) que não considerou obrigatória a nomeação de intérprete para a realização de teste de alcoolemia a pessoa que desconheça a língua portuguesa, por se tratar de ato de fiscalização policial num momento em que o visado ainda não estava indiciado por qualquer crime, ou o ac. RE, 18.10.2018 (Maria Fernanda Palma), onde se afirmou a desnecessidade de presença de intérprete numa diligência policial prévia à existência de inquérito de busca a um automóvel (…).

Alude o nº2 que a obrigatoriedade de assistência por intérprete existe quando “houver de intervir no processo pessoa que não conhecer ou não dominar a língua portuguesa”, independentemente da sua qualidade e fase processual. A obrigatoriedade de interpretação reporta-se a todas as intervenções no processo em que se tem que estar presente e existam conversações orais/verbalizações ou necessidade de dar conhecimento ou autorização [v.g. depoimentos, diligências de prova com comunicações orais – reconhecimentos, reconstituições, acareações, prestação de consentimento em relação a uma busca domiciliária cf. ac. RP, 29.3.2017 (Renato Barroso) e ac. RG, 23.10.2017 (Laura Maurício), ou todos os atos em que existam autorizações, v.g. recolha de ADN, impressões digitais, etc] – e já não aqueles que têm uma existência autónoma como sejam as apreensões ou revistas (…), ou atos em que não seja necessário qualquer verbalização do visado, porque foram ordenados pela autoridade competente, em que não se impõe a presença de intérprete, nomeadamente quando é dispensável a presença do visado, como é o caso de buscas ordenadas por juiz [ac.RE, 18-10-2018 (Carlos Berguete Coelho); muito embora em relação ao despacho e auto de busca exista um direito à tradução, que é questão distinta do direito à interpretação]. Também aparenta ser esta a leitura a extrair do art.2/1 Dir. (EU) 2010/64, que menciona a necessidade de assegurar a interpretação “durante a tramitação penal perante as autoridades de investigação e as autoridades judiciais, inclusive durante os interrogatórios policiais, as audiências em tribunal e as audiências intercalares que se revelem necessárias”. A alusão a “perante” e os exemplos que são dados – interrogatórios e audiências – reportam-se a diligências em que o visado tem que intervir e interagir através de comunicações e verbalizações orais

Resulta claro que atentas as razões que presidem à necessidade de nomeação de intérprete - intimamente conexionadas com a proteção de pessoas que se encontram em situação de vulnerabilidade no sentido de impedir que as mesmas contribuam para a sua incriminação e não exerçam plenamente os seus direitos de defesa em face das autoridades por não dominaram a língua em que os atos processuais se processam - a realização de teste de alcoolemia numa vulgar ação de fiscalização de trânsito, não exige essa nomeação.

Assim, não sendo a nomeação de intérprete, no caso dos autos, obrigatória, não se verifica a nulidade relativa a que alude o artigo 120º, nº 2, alínea c) do Código de Processo Penal.

Ademais e, não obstante o mencionado, sempre a nulidade em causa se encontraria sanada.

 Nos termos do disposto no artigo 120º do Código de Processo Penal, a nulidade em causa está sujeita a arguição pelo interessado, neste caso, no prazo de dez dias (aplicando-se a regra geral de arguição das nulidades sanáveis, ou seja, a arguição no prazo de 10 dias – cfr. o art. 105°, n° 1, do CPP), a contar daquele em que o interessado foi notificado para qualquer termo posterior do processo ou teve intervenção em ato nele praticado[11].

Considerando que o Recorrente foi notificado do despacho de acusação (onde o teste de alcoolemia é indicado como prova) em 13-11-2023, a arguição da nulidade decorrente da falta de intérprete em apreço, deveria ter ocorrido no prazo geral de 10 dias a partir daquela data.

Contudo, a sua arguição só ocorreu agora, em sede de recurso, pelo que se conclui pela intempestividade da referida arguição e, a existir a nulidade em causa, a mesma encontrar-se-ia sanada.

Improcede, pois, o recurso no que concerne à impugnação da decisão sobre a matéria de facto visando o conteúdo do ponto 1., no que tange à condução com a taxa de álcool no sangue de 2,442 gramas por litro, mantendo-se inalterada a matéria de facto em causa, assente que se mostra a decisão recorrida em documento válido.

Impugna, igualmente, o Recorrente a decisão sobre a matéria de facto provada visando o conteúdo dos pontos 1. (no que concerne à condução sem título válido), 2. e 4. (estes relativos ao elemento subjetivo constitutivo do ilícito de condução sem habilitação legal).

Sustenta o recorrente que resulta dos documentos e expediente de fls. 6, 21, 45, 48 e 59 que o Arguido naquelas circunstâncias descritas no ponto 1., era portador de documento válido que o habilitava a conduzir o veículo que conduzia nas circunstâncias de tempo e lugar ali mencionadas.

Importa relembrar o teor da sentença recorrida no que toca à fundamentação da decisão ora posta em crise.

«Quanto à inexistência de habilitação legal para conduzir atendeu ainda o Tribunal à informação do IMTT de fls. 45, bem como ao oficio do IMTT com ref. 9633219.

A este propósito, cumpre referir que o arguido, em sede de julgamento, apresentou um documento intitulado de “permis international de conduire”. Acontece que, tal documento não logrou convencer o tribunal que o arguido seria portador de uma licença internacional para conduzir, válida e eficaz à data dos factos. De facto, além do documento apresentado apresentar uma autenticidade muito duvidosa (o carimbo constante da fotografia não se encontra por cima da fotografia do aqui arguido, percebendo-se que o carimbo foi aposto em momento prévio à colocação da fotografia e sendo certo também que as folhas que intermedeiam o documento apresentado de pagina 1 a 16 são meras fotocópias), foi esclarecido pelo IMTT que o arguido não consta da base de dados como sendo portador de licença internacional para conduzir - informação do IMTT com ref. 9633219.

Além disso, não sendo a Guiné um país subscritor, não se alcança a possibilidade de a mesma emitir uma “licença internacional para conduzir”.

Refira-se, ainda, que tal “licença” apenas surgiu em fase de julgamento, sendo certo que, conforme aventado pela testemunha BB, no momento da prática dos factos e concretamente questionado sobre a existência de outra carta de condução que não a da Guiné, o arguido respondeu negativamente (e sendo certo ainda que a sua documentação estava numa mala de viagem na mala traseira do veículo, pelo que, dizem-nos as regras da experiência comum, que se o arguido fosse efectivamente portador de tal documento (válido) o teria consigo nesse momento (como tinha todos os outros documentos) e teria respondido afirmativamente ao militar que o fiscalizou. »

(…)

Os factos de índole subjectiva extraem-se da análise, à luz das regras da experiência comum, da factualidade objectiva, pois não se descortina qualquer outro motivo razoável para a actuação do arguido que não fosse a ali referida.

Note-se ainda, relativamente ao facto subjectivo do tipo de crime de condução sem habilitação legal, que ainda que a “permis international de conduire” seja um documento autêntico (facto que não se logrou provar, conforme supra mencionado), certo é que, de acordo com o disposto no artigo 8.º n.º 3 do DL n.º 138/2012, de 05 de Julho “O período máximo de validade de uma licença internacional de condução é de um ano contado da data em que é emitida (…)” – o que não é o caso da “permis” apresentada (cf. fls. 48 a 50).

Poderia ainda argumentar-se que o arguido, desconhecedor de leis, não conheceria tal prazo, o que excluiria o dolo. Também esse argumento não procede porque do documento apresentado consta expressamente que “Portugal” no sector “exclusões” (ou seja, o titular está privado do direito de conduzir em Portugal” - cf. fls. 49). Nessa medida e constando tal exclusão directamente do documento, não se pode afirmar que o arguido não sabia que tal licença não era válida em Portugal. E, também por este facto, considerou o tribunal que seria inútil aquilatar, nestes autos, da autenticidade da “licença” apresentada.»

Em face da clara e assertiva fundamentação transcrita, o Recorrente aduz o seguinte:

- Os documentos apresentados, quer aos OPC no momento da fiscalização (fls.21, carta emitida pelas autoridades da Guiné Conakri), quer em audiência de julgamento (fls.48 Permis Internacionale de Conduire) foram erradamente desconsiderados, pois que, se o tribunal duvidava da sua autenticidade, deveria ter determinado a realização de perícia aos mesmos para confirmar essa convicção.

- Como o Tribunal decidiu em situação de dúvida sobre a fidedignidade dos documentos, deveria ter decidido considerar não provados os factos em causa, com base no princípio in dúbio pro reo.

Ora, como veremos infra, não é de aplicar ao caso dos autos aquele princípio, atento o teor da fundamentação transcrita onde não transparece qualquer dúvida no sentido de não considerar os documentos verdadeiros. Uma coisa é dizer que um documento é falso, outra bem diferente é dizer, como diz o Tribunal a quo, que um documento, em face das características que evidencia (e que o Tribunal explicita) não permite confiar na sua fidedignidade, sendo a sua eventual falsificação grosseira uma evidencia, embora não uma certeza, a qual exigirá uma confirmação pericial.

O grau de certeza é de tal ordem que, como resulta dos autos, foi ordenada a extração e entrega ao Ministério Público de certidão para eventual instauração de inquérito por crime de falsificação de documento.

Não colhem, pois, as razões de dissídio do Recorrente, sendo que se subscrevem integralmente as doutas considerações constantes da resposta já aludida supra que se transcrevem:

«Invoca o recorrente “Consta do auto de notícia, que aquando da ação de fiscalização, o Recorrente apresentou uma carta de condução, Nº ...64, emitida em ../../2010, categoria B, emitida pelo IMTT, desde 06.05.2010. (fls. 6).

Encontra-se junta aos autos uma carta de condução que foi exibida aos OPC (Fls. 21), emitida pelo país de origem do Recorrente, Guiné Conakri.”Como resulta claro dos autos, constata-se que em momento algum o arguido exibiu uma qualquer carta de condução emitida pelo IMTT, sendo que a carta com o n.º ...64 corresponde à carta que o recorrente exibiu emitida pelo seu país de origem.

Quanto à validade do título de condução emitido pela Guiné Conakri para condução em Portugal, dir-se-á que não tendo a Guiné Conakri subscrito a Convenção de Genebra sobre Trânsito Rodoviário de 1949 (Convention on Road Traffic, de 19-09-1949), nem a posterior Convenção de Viena sobre Circulação Rodoviária (Convention on Road Traffic, Vienna, 8 November 1968), nem existindo acordo bilateral entre esse país e Portugal, um seu nacional terá que requerer junto do IMT a substituição da sua carta de condução emitida por país estrangeiro não aderente às Convenções Internacionais sobre Trânsito Rodoviário por um título válido em Portugal e sujeitar-se a exame, como se dispõe no Regulamento da Habilitação Legal para Conduzir (Dec-Lei n.º 138/2012, de 05 de Julho).

Pelo que a possibilidade de vir a dispor de título de condução reconhecido em Portugal depende da realização e aprovação nas provas de exame de condução, por cada categoria de que o condutor seja titular, uma prova prática do exame de condução.

Desta forma, os detentores de carta de condução emitida por tal país não estão habilitados a conduzir em Portugal munidos de tal título.

Aliás, a este propósito foi o Tribunal a quo bastante claro ao assim concluir de acordo com a informação do IMTT de fls. 45, bem como do ofício do IMTT com ref. 9633219. Quanto à validade do título “permis international de conduire”, também bem fundamentou o Tribunal a quo o facto de não atender ao mesmo, mormente: “(…)”.

 Ora, acompanha-se em tudo os fundamentos invocados pelo Tribunal a quo, aditando que nunca poderia a Guiné Conakri emitir um título “permis international de conduire” que fosse válido noutros países sem sequer ter subscrito Convenção de Genebra sobre Trânsito Rodoviário de 1949 (Convention on Road Traffic, de 19-09-1949), nem a posterior Convenção de Viena sobre Circulação Rodoviária (Convention on Road Traffic, Vienna, 8 November 1968).

Quanto ao facto de o Tribunal a quo não ter dado “como provado que a carta de fls. 21 fosse inválida. Nem que o Recorrente residia em Portugal há um período superior aquele que o obrigava à troca

de carta de condução”, entendemos que não tinha de o fazer, uma vez que tal facto não estava imputado em sede de libelo acusatório, sendo este que define o objeto do processo.

Também não colhe o argumento de que “O Recorrente circulou em França com a carta da Guiné (fls. 21) e permis de conduire junta aos autos (fls. 48).

E fê-lo, em Portugal convicto de que não infringia nenhuma norma legal, por Portugal pertencer ao espaço Shengen.

O Recorreu pautou a sua conduta, pela boa fé, considerando que se encontrava habilitado a conduzir (sem consciência da ilicitude).

O “Tribunal a quo”, deveria ter valorado a falta de consciência do Recorrente de que os títulos de condução que possuía não o habilitavam a conduzir em Portugal, aplicando o instituto previsto no artigo 17 º do Código Penal.

O “Tribunal a quo” podia em face da prova documental constante dos autos, quando muito imputar ao Recorrente a prática da contra ordenação, prevista e punida pelo nº 8 do artigo 125 do Código da Estrada.”

Com efeito, bem fundamentou o Tribunal a quo, “Note-se ainda, relativamente ao facto subjectivo do tipo de crime de condução sem habilitação legal, que ainda que a “permis international de conduire” seja um documento autêntico (facto que não se logrou provar, conforme supra mencionado), certo é que, de acordo com o disposto no artigo 8.º n.º 3 do DL n.º 138/2012, de 05 de Julho “O período máximo de validade de uma licença internacional de condução é de um ano contado da data em que é emitida (…)” – o que não é o caso da “permis” apresentada (cf. fls. 48 a 50).

Poderia ainda argumentar-se que o arguido, desconhecedor de leis, não conheceria tal prazo, o que excluiria o dolo. Também esse argumento não procede porque do documento apresentado consta expressamente que “Portugal” no sector “exclusões” (ou seja, o titular está privado do direito de conduzir em Portugal” - cf. fls. 49). Nessa medida e constando tal exclusão directamente do documento, não se pode afirmar que o arguido não sabia que tal licença não era válida em Portugal. E, também por este facto, considerou o tribunal que seria inútil aquilatar, nestes autos, da autenticidade da “licença” apresentada.”

Note-se que não é pelo simples facto de ter conduzido em França que tal significa que o arguido esteja autorizado a conduzir em Portugal, até porque pode simplesmente o mesmo nem sequer lá ter sido fiscalizado no período em que se encontrou nesse país.»

Atento tudo o exposto, improcede em toda a linha o recurso no que tange à impugnação da decisão sobre a matéria de facto, a qual se confirma, considerando-se como assente a matéria de facto dada como provada na sentença recorrida.

            3.2. - Da violação do princípio in dubio pro reo.

 Lidas as conclusões 30. a 33., verifica-se que o Recorrente entende ter sido violado este princípio uma vez que, o Tribunal a quo deveria, em face dos documentos de fls.21, 48, 45 e 59, e uma vez que não exprimiu de forma clara a certeza acerca da não autenticidade ou validade dos títulos de condução constantes de fls.21 e 48., ter lançado mão do princípio em causa, decidindo no sentido da sua validade.

Vejamos.

A Constituição da República Portuguesa, no seu artigo 32º, nº1, estabelece que: “O processo criminal assegura todas as garantias de defesa”. Nestas garantias inclui-se e emerge de modo assaz relevante o princípio da presunção de inocência, consagrado no artigo 32º, nº2 do Texto Fundamental, nos seguintes moldes: “Todo o arguido se presume inocente até ao trânsito em julgado da sentença de condenação”.

Pelo que acima deixamos dito, facilmente se constata que a decisão da matéria de facto operada pelo Tribunal recorrido não encerra qualquer violação da presunção de inocência do arguido. Antes é suportada em prova produzida nos autos, suficiente e idónea para o efeito, que foi valorada pelo Tribunal em conformidade com os ditames legais.

Por seu turno, o princípio in dubio pro reo é complementar do princípio constitucional da presunção da inocência, vertido no artigo 32º, nº2, da Constituição da República Portuguesa, e o seu campo de aplicação encontra-se após a conclusão da tarefa judicial da valoração da prova produzida e quando o resultado desta não é conclusivo; neste caso, por via desta regra atinente à decisão, a dúvida insanável, inultrapassável sobre os factos deve favorecer o arguido. 

O princípio in dubio pro reo encerra uma imposição dirigida ao juiz no sentido de este se pronunciar de forma favorável ao arguido quando não tiver certeza sobre os factos decisivos para a solução da causa pelo que a sua violação exige que o juiz tenha ficado na dúvida sobre factos relevantes e, nesse estado de dúvida, tenha decidido contra o arguido.

À semelhança do que sucede com os vícios consagrados no n.º 2 do artigo 410.º, em sede de recurso a violação do princípio in dubio pro reo apenas ocorre quando tal vício resulte da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, pois o recurso não constitui um novo julgamento, antes sendo um remédio jurídico que se destina a despistar erros in judicando ou in procedendo - cf. Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 12.04.2008, processo 08P3456, do Tribunal da Relação de Coimbra de 14.01.2015, processo 72/11.2GDSTR.C1, de 03.06.2015, processo 12/14.7GBSTR.C1, e de 12.09.2018, processo 28/16.9PTCTB.C1, e do Tribunal da Relação de Lisboa de 18.07.2013, processo 1/05.2JFLSB.L1-3, todos disponíveis em www.dgsi.pt.

No caso vertente, não resulta do texto da decisão recorrida, designadamente da motivação da decisão de facto (onde o Tribunal a quo explicita de forma clara, escorreita e lógica por que razão considerou que os documentos exibido às autoridades policiais aquando a fiscalização e junto em fase de julgamento, não habilitavam o arguido a conduzir em território nacional), que o Tribunal tenha sido assolado por uma dúvida razoável, muito menos insanável, que forçasse o julgador a recorrer ao princípio in dubio pro reo para dar por não provada a factualidade de cujo julgamento o recorrente discorda.

Pelo contrário, o Tribunal recorrido não se posicionou numa situação de dúvida quanto ao sentido da prova produzida sobre os factos em questão, sendo que o respetivo entendimento lavrado na decisão recorrida quanto à autenticidade e validade dos documentos em causa, é defensável.

Atente-se que, conforme resulta das respetivas atas, em sede de audiência de leitura da sentença, considerando a convicção do tribunal de que o documento apresentado pelo arguido não é verdadeiro, tratando-se antes de documento falso, o Ministério Público requereu, e foi-lhe deferido, a extração de certidão para eventual instauração de procedimento criminal por falsificação de documento, tendo o Mmº. Juiz ordenado que, transitada a sentença (o que ainda não ocorreu) lhe fosse aberta conclusão nos autos a fim de ser ponderada a apreensão do documento em causa.

O Tribunal não expressou nenhuma dúvida sobre a autenticidade do documento, antes expressou a convicção (que terá em sede própria que ser confirmada por eventual perícia) de que o mesmo apresenta características que permitem, fundadamente, duvidar da sua fidedignidade.

Conclui-se, assim, que inexistiu violação dos princípios da presunção de inocência e in dubio pro reo, improcedendo o recurso, também nesta parte.

            3.3. – Da medida das penas.

            3.3.1. Da medida da pena principal.

            Compulsadas as conclusões do recurso, verifica-se que o Recorrente não põe em causa, quer a escolha da pena de multa, quer a taxa diária fixada à mesma (o mínimo legal), pelo que, tais questões se consideram assentes, não sendo objeto do presente recurso, limitando-se o mesmo à medida da pena no que toca aos dias de multa fixados.

            A alteração das penas fixadas pelo Tribunal a quo só é legítima se as mesmas se mostrarem exageradas ou desproporcionadas.

            A este propósito, afirma Figueiredo Dias, in “Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime”, 1993, Editorial Notícias, páginas 196 e 197, citado no acórdão deste Tribunal da Relação, datado de 25-09-2017 relatado pelo Exmº Juiz Desembargador, Jorge Bispo[12] - Não há dúvidas de que é suscetível de revista a correção do procedimento ou das operações de determinação da medida da pena, o desconhecimento pelo tribunal ou a errónea aplicação dos princípios gerais de determinação, a falta de indicação de fatores relevantes para aquela determinação, ou, pelo contrário, a indicação de fatores que devem considerar-se irrelevantes ou inadmissíveis. Estando a questão do limite da culpa plenamente sujeita a revista, assim como a forma de atuação dos fins das penas no quadro da prevenção, já não o está a determinação, dentro daqueles parâmetros, do quantum exato da pena, exceto quando tiverem sido violadas regras de experiência ou se a quantificação se revelar de todo desproporcionada.

            Nos termos do artigo 40º do Código Penal, “a aplicação de penas e de medidas de segurança visa a proteção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade” (n.º1). Em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa (n.º2).

            Conforme se refere no acórdão do STJ de 08-02-2007, em que é relator o Exmº Sr. Conselheiro Simas Santos[13] - “A defesa da ordem jurídico-penal, tal como é interiorizada pela consciência colectiva (prevenção geral positiva ou de integração), é a finalidade primeira, que se prossegue, no quadro da moldura penal abstracta, entre o mínimo, em concreto, imprescindível à estabilização das expectativas comunitárias na validade da norma violada (a pena deve neutralizar o efeito negativo do crime na comunidade e fortalecer o seu sentimento de justiça e de confiança na validade das normas violadas, além de constituir um elemento dissuasor – a medida da pena tem de corresponder às expectativas da comunidade) e o máximo que a culpa do agente consente; entre esses limites, satisfazem-se, quando possível, as necessidades da prevenção especial positiva ou de socialização (é a medida necessária à reintegração do indivíduo na sociedade, causando-lhe só o mal necessário. Dirige-se ao próprio condenado para o afastar da delinquência e integrá-lo nos princípios dominantes na comunidade).”

            Assim, prevenção – geral e especial – e culpa são os fatores a ter em conta na aplicação da pena e determinação da sua medida, refletindo a primeira a necessidade comunitária da punição do caso concreto e, consequentemente, a realização in casu das finalidades da pena, e constituindo a segunda, dirigida ao agente do crime, o limite inultrapassável da pena.

            As circunstâncias e os critérios do artigo 71º do Código Penal têm a função de fornecer ao juiz módulos de vinculação na escolha da medida da pena; tais elementos e critérios devem contribuir tanto para codeterminar a medida adequada à finalidade de prevenção geral (a natureza e o grau de ilicitude do facto impõe maior ou menor conteúdo de prevenção geral, conforme tenham provocado maior ou menor sentimento comunitário de afetação dos valores), como para definir o nível e a premência das exigências de prevenção especial (circunstâncias pessoais do agente, a idade, a confissão, o arrependimento), ao mesmo tempo que também transmitem indicações externas e objetivas para apreciar e avaliar a culpa do agente.

            Ora, no caso em apreço, consideramos que a medida da pena fixada (pena única de 120 dias de multa) não viola as regras de experiência nem a sua quantificação se revela manifestamente desproporcionada, tendo em conta os critérios apontados supra e as molduras abstratas, quer das penas parcelares, quer da pena única.

            Com efeito, no que concerne ao crime de condução em estado de embriaguez, a moldura abstrata da pena de multa tem o limite mínimo de 10 dias e o limite máximo de 120 dias (cf. artigos 47.º, n.º 1 e 292.º n.º 1 do Código Penal).

            No que toca ao crime de condução sem habilitação legal, a moldura abstrata da pena de multa tem o limite mínimo de 10 dias e o limite máximo de 240 dias (cf. artigos 47.º, n.º 1 e artigo 3.º, n.º 2 do DL n.º 2/98).

            O Tribunal a quo fixou a primeira pena parcelar em 80 (oitenta) dias de multa e a segunda em 100 (cem) dias de multa.

            Nos termos previstos no artigo 77º nº1 do Código Penal, a moldura abstrata do cúmulo a considerar tem um mínimo de 100 (cem) dias e um máximo de 180 (cento e oitenta) dias, tendo o Tribunal fixado a pena única em 120 (cento e vinte) dias.

            Para além de considerarmos tais penas adequadas e fixadas com respeito pelos comandos legais relativos à dosimetria das penas, conforme se alcança da sentença recorrida neste segmento, os argumentos adiantados pelo Recorrente no sentido de fixar as penas a um nível inferior (que o Recorrente não concretiza) não merecem acolhimento.

            Vejamos.

            O Recorrente limita-se a invocar que as penas devem ser proporcionais à culpa e a evidenciar as circunstâncias atenuantes que se verificam no caso.

            Ora, compulsada a sentença transcrita supra, nesta parte, verificamos que o Tribunal teve em conta todas estas circunstâncias, valorando-as adequadamente, nomeadamente no que concerne à escolha da pena não privativa da liberdade, não se mostrando violado o disposto no artigo 71º do Código Penal.

            As penas fixadas, foram-no ao nível dos 2/3 da moldura útil aplicável, no que concerne ao crime de condução em estado de embriaguez e abaixo do nível médio da mesma moldura no que tange ao crime de condução sem habilitação legal, o que surge perfeitamente justificado na sentença.

Quanto à pena única, considerando a moldura abstrata apontada, também a sua determinação foi feita em obediência aos critérios legais, mostrando-se equilibrada e adequada às circunstâncias do caso.

            Assim, improcede o recurso, não ocorrendo qualquer violação do disposto nos artigos 40º e 71º do Código Penal.

            3.3.2. - Da medida da pena acessória de proibição de conduzir.

A prática do crime de condução em estado de embriaguez, pelo qual o Recorrente foi condenado, para além da pena principal (prisão ou multa), é ainda sancionada com proibição de conduzir veículos com motor por um período entre 3 meses e 3 anos, conforme dispõe o artigo 69º, n.º 1, alínea a), do Código Penal.

Esta sanção inibitória tem natureza de pena acessória, como resulta claramente do texto do citado artigo, da sua inserção sistemática e do elemento histórico[14], traduzindo-se numa censura adicional pelo crime praticado.

Correspondendo a uma manifesta necessidade de política criminal, que se prende com a elevada sinistralidade rodoviária, a aplicação da pena acessória em questão visa dissuadir os condutores de ingerirem bebidas alcoólicas em quantidades que diminuem os reflexos e afetam a capacidade de reação e a destreza, indispensáveis ao exercício da condução em condições de segurança.

A propósito das suas finalidades, refere Figueiredo Dias[15] que, “se (…) pressuposto material de aplicação desta pena deve ser que o exercício da condução se tenha revelado, no caso, especialmente censurável, então essa circunstância vai elevar o limite da culpa do (ou pelo) facto. Por isso à proibição de conduzir deve também assinalar-se (e pedir-se) um efeito de prevenção geral de intimidação, que não terá em si nada de ilegítimo porque só pode funcionar dentro do limite da culpa (…). Por fim, mas não por último, deve esperar-se desta pena acessória que contribua, em medida significativa, para a emenda cívica do condutor imprudente ou leviano”.

A pena em apreço tem, assim, uma função preventiva adjuvante da pena principal, sendo a sua finalidade a intimidação da generalidade e dirigindo-se ainda à perigosidade do agente.

Embora distintas nos seus pressupostos, quer a pena principal quer a acessória assentam num juízo de censura global pelo crime praticado.

Daí que, não estabelecendo o Código Penal um regime específico para a determinação da pena acessória, se entenda que, tal como sucede com a pena principal, se imponha o recurso aos critérios estabelecidos no artigo 71º do Código Penal.

Aliás, pressupondo as penas acessórias a condenação do arguido numa pena principal (prisão ou multa), são verdadeiras penas criminais e por isso, estão também ligadas à culpa do agente e são justificadas pelas exigências de prevenção[16].

Sendo aplicáveis às penas acessórias os critérios legais de determinação das penas principais, em princípio, deve ser observada uma certa proporcionalidade entre a medida concreta da pena principal e a medida concreta da pena acessória, sem todavia esquecer que a finalidade a atingir com esta última é mais restrita, pois visa, essencialmente, prevenir a perigosidade do agente. Mas a conveniência na observação desta relação de proporcionalidade não significa que a medida concreta da pena acessória tenha que ser fixada, quase que por cálculo aritmético, na exata proporção da medida concreta da pena principal[17].

Como se decidiu no Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 667/94[18], “a ampla margem de discricionariedade facultada ao juiz na graduação da sanção de inibição de conduzir, permite-lhe perfeitamente fixá-la, em concreto, segundo as circunstâncias do caso, desde logo as conexionadas com o grau de culpa do agente, nada na Lei Fundamental exigindo que as penas acessórias tenham que ter, no que respeita à sua duração, correspondência com as penas principais”.

No caso presente, resulta inequivocamente comprovado nos factos o particular conteúdo do ilícito que justifica materialmente a aplicação ao arguido da pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados, face à necessidade comunitária de prevenir a sua perigosidade enquanto condutor de veículos com motor.

             Volvendo ao caso dos autos.

Considera o Recorrente que, também a medida da pena acessória se revela desproporcional e excessiva, face ao grau de culpa diminuto e às exigências de prevenção especial que não são significativas – Conclusão 52.

            A pena acessória nos autos aplicada, foi fixada em 5 (cinco) meses, remetendo o Tribunal a quo para as considerações tecidas acerca da medida da pena principal.

            Não indica o Recorrente qual a medida desta pena que considera proporcional e adequada às circunstâncias do caso, contudo afigura-se-nos que não existe motivo para a sua alteração.

Na verdade, considerou, e bem, o Tribunal a quo que as exigências de prevenção geral são medianas; que a culpa é elevada (“pois agiu fora de qualquer constrangimento, razão pela qual se impunha uma actuação conforme o direito, tanto mais que conjugou na sua conduta duas práticas altamente censuráveis”); que a ilicitude dos factos é elevada tendo em consideração a elevada taxa de álcool (2,442 gramas); que as exigências de prevenção especial não são relevantes, atenta a ausência de antecedentes criminais e a inserção social e laboral do condenado.

Refira-se que, nos delitos de tráfego automóvel, à pena acessória de proibição de conduzir é, muitas vezes, associado um efeito mais penalizante do que à pena principal de multa (que os infratores pagam sem grandes inconformismos) ou de prisão suspensa na sua execução (que é vista até como menos onerosa que aquela). Daí que a pena acessória seja encarada como um importante instrumento para restabelecer a confiança da comunidade na validade da norma infringida, pelo que a medida ótima de tutela do bem jurídico e das expectativas comunitárias aponta para uma elevação dos limites da moldura da prevenção geral.

Acresce que, embora no crime de condução de veículo sob o efeito do álcool o desvalor da ação seja de pouca monta (por isso se integra no vasto universo da pequena criminalidade), não pode ser desvalorizado o grau de perigo associado à conduta típica, atento o interesse tutelado (a segurança da circulação rodoviária), colocando frequentemente em causa valores de particular relevo, como a vida, a integridade física e o património. É justamente essa perigosidade que se visa prevenir com a aplicação da pena acessória de proibição de conduzir.

Face a todo o descrito circunstancialismo, afigura-se-nos que a medida da pena acessória de proibição de conduzir fixada pela primeira instância em 5 (cinco) meses, ou seja, ligeiramente acima [dois meses] do limite mínimo da moldura (3 meses) e cuja amplitude é bastante grande, pois o limite máximo é de 36 meses, se apresenta como necessária para se atingir o nível mínimo de verdadeira advertência penal, de modo a que a eficácia preventiva de tal pena não fique comprometida.

Apesar de, como já referimos, não ser de estabelecer uma relação de correspondência direta entre a medida da pena principal e a medida da pena acessória, no caso concreto esta última foi fixada numa medida consideravelmente inferior àquela.

Assim sendo, não se reconhece na decisão recorrida a invocada violação dos critérios de determinação da pena acessória.

            Pelo exposto, também nesta parte improcede o recurso.

Em suma, impõe-se negar provimento ao recurso e, consequentemente, confirmar a douta sentença recorrida, não se mostrando violadas quaisquer normas, nomeadamente, as indicadas pelo Recorrente [artigos 2º , 3º e 5º da Lei Nº 18/2007, de 17 de Maio, artigo 61 alínea f), 64 alínea d), artigo 125 nº 8 do Código da Estrada, artigo 119º alínea c), 120 alínea c), 122 nº 1 e 123 todos do C.P.P., 13º e 20º, nº 4, 32º nº 2 da Constituição da República Portuguesa, artigo 17 º nº 1 ,artigos 40º, nº 2, 71º, 291 e 292º, nº1, todos do Código Penal, artigo 1º do Código Civil].

            III. DISPOSITIVO

            Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam os Juízes da 4ª Secção do Tribunal da Relação de Coimbra em negar provimento ao recurso interposto pelo arguido AA e, consequentemente, confirmar a sentença recorrida.

            Por ter decaído totalmente no recurso que interpôs, o arguido suportará as custas do respetivo recurso, fixando-se em 3 (três) UC a taxa de justiça – arts. 513º nºs 1e 3 do Código de Processo Penal e 8º nº 9 do Regulamento das Custas Processuais, conjugado este com a Tabela III anexa a tal Regulamento).

            (Texto elaborado pela relatora e revisto pelos seus signatários - artigo 94º, n.º 2, do CPP)

Coimbra, 05-02-2025      

Os Juízes Desembargadores

Fátima Sanches (relatora)

Isabel cristina Gaio Ferreira de Castro (1ª Adjunta)

Helena Lamas (2ª Adjunta)

(Data certificada pelo sistema informático e assinaturas eletrónicas qualificadas certificadas)


[1] Neste sentido, vd. o acórdão de uniformização de jurisprudência n.º 7/95, proferido pelo Plenário das Secções Criminais do STJ em 19 de outubro de 1995, publicado no Diário da República, I Série - A, n.º 298, de 28 de dezembro de 1995, que fixou jurisprudência no sentido de que “É oficioso, pelo tribunal de recurso, o conhecimento dos vícios indicados no artigo 410º, nº 2, do Código de Processo Penal, mesmo que o recurso se encontre limitado à matéria de direito”.
[2] In “Processo Penal quando o recurso incide sobre a decisão da matéria de facto”, Revista Julgar, nº 10, 2010, páginas 23 e 24.
[3]   Cfr., por todos, os acórdãos do STJ de 31/05/2007, proferido no Processo nº 07P1412 [relatado pelo Exmo. Conselheiro Simas Santos], e de 23/05/2007, proferido no Processo nº 07P1498 [relatado pelo Exmo. Conselheiro Henrique Gaspar], ambos disponíveis in www.dgsi.pt.
[4] Neste sentido, a título exemplificativo, vejam-se os Acórdãos do Tribunal da Relação de Guimarães de 23/03/2015, processo 159/11.5PAPTL.G1; do Tribunal da Relação de Lisboa de 29/03/2011, processo 288/09.1GBMTJ.L1-5, de 18/07/2013, processo 1/05.2JFLSB.L1-3, de 21/05/2015, processo 3793/09.6TDLSB.L1-9, e de 08/10/2015, processo 220/15.3PBAMD.L1-9; e do Tribunal da Relação de Évora de 19.05.2015, processo 441/10.5TABJA.E2, todos disponíveis em www.dgsi.pt.
[5] cf. acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 23/03/2015, processo 159/11.5PAPTL.G1, acessível em www.dgsi.pt.
[6] Neste sentido, para além do acórdão do Tribunal da Relação de Évora citado na aludida resposta ao recurso [datado de 23-04-2024, processo nº1485/23.2GBABF.E1, relatora: Fátima Bernardes], vejam-se os acórdãos, desse mesmo Tribunal, datado de 08-05-2018 [processo nº 99/17.0GEPTM.E1, relator: Gilberto Cunha] e do Tribunal da Relação de Guimarães de 08-11-2021 [processo nº1071/19.1GBBCL.G1, relatora: Ana Teixeira], todos disponíveis para consulta em www.dgsi.pt
[7] In Comentário judiciário do código de processo Penal”, Almedina, dezembro de 2019, Tomo I páginas 705 e seguintes
[8] Prolatado no âmbito do processo nº178/11.8GELLE.E1, relator. Martinho Cardoso, disponível para consulta em www.dgsi.pt
[9] Acórdãos da Relação de Évora, datado 08-11-2021, processo 1071/19.1GBBCL.G1, bem como o datado de 08-05-2018, processo 99/17.0GEPTM.E1, todos disponíveis em www.dgsi.pt.
[10] Obra citada, páginas 1009 e seguintes.
[11] - Vide Germano Marques da Silva, in “Curso de Processo Penal”, Vol. II, 3ª Ed., pg. 85.
[12] Acórdão disponível em www.dgsi.pt
[13] Disponível para consulta em www.dgsi.pt
[14] Vide, Atas da Comissão de Revisão do Código Penal, n.ºs 5, 8, 10 e 41.
[15] In “Direito Penal Português - As consequências jurídicas do crime”, 1993, Aequitas, Editorial Notícias, pág. 165.
[16] Vide, Maria João Antunes, in “Consequências Jurídicas do Crime”, 2ª Edição, 2015, Coimbra Editora, pág. 38.
[17] Neste sentido, vide acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 19-12-2017, processo n.º 186/14.7GCLSA.C2, Relator: Vasques Osório, disponível para consulta em  www.dgsi.pt.
[18] In BMJ, 446º - suplemento, pág. 102