Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
50/23.9T8SEI.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MOREIRA DO CARMO
Descritores: CONTRATO DE SEGURO
PROCEDIMENTO PRÉ JUDICIAL DE REGULARIZAÇÃO DO SINISTRO
PROPOSTA RAZOÁVEL DE INDEMNIZAÇÃO
CÁLCULO JUDICIAL DA INDEMNIZAÇÃO
PERDA TOTAL DE VEÍCULO
SALVADO
Data do Acordão: 11/12/2024
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: JUÍZO DE COMPETÊNCIA GENÉRICA DE SEIA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 31 E SEG.S; 38.º E SEG.S E 41.º, DO DL N.º 291/207, DE 21/8
ARTIGOS 562.º E 566.º, DO CÓDIGO CIVIL
Sumário: i) O Capítulo III do SORCA (DL 291/2007, de 21/08), incluindo o seu art. 41º, é relativo à fase do procedimento pré judicial de regularização do sinistro automóvel, que se consubstancia na apresentação, ao lesado, de Proposta Razoável de indemnização pela empresa de seguros, proposta essa que pode ser rejeitada pelo lesado e, por conseguinte, no caso de litígio, referente a perda total do veículo, nada impede que o tribunal venha a decidir indemnização por valores diferentes dos propostos pela seguradora, mediante a aplicação das regras gerais sobre cálculo da indemnização previstas na lei civil, mormente nos arts. 562º e 566º do CC;

ii) Estando o veículo em situação de perda total, a seguradora tem de ser condenada a pagar o valor total comercial do veículo sinistrado, e não apenas a diferença entre este e o valor do salvado, quando no caso concreto o lesado não revelou querer ficar com o salvado na sua esfera jurídica, inexistindo no ordenamento jurídico preceito a impor que o salvado fique na posse do lesado;

iii) Nesta situação o salvado será entregue à seguradora com entrega do documento único automóvel ou do título de registo de propriedade e do livrete do veículo a troco do pagamento da indemnização.

Decisão Texto Integral:

 I – Relatório

 

1. AA, residente em ..., intentou acção declarativa contra A... PLC - SUCURSAL EM PORTUGAL, com sede em ..., peticionando a condenação da ré a pagar-lhe a quantia de 35.739 € a título de danos patrimoniais e 4.000 € a título de danos não patrimoniais, acrescida de juros vincendos desde a citação.

Alega, em síntese, a ocorrência de acidente de viação, causado pelo veículo ligeiro de mercadorias, de marca Nissan, com a matrícula ..-..-EJ, conduzido por BB.  Além do mais, em consequência deste acidente, o seu veículo ficou danificado em toda a sua parte frontal. Que pese embora a Ré tenha assumido extrajudicialmente a responsabilidade pela ocorrência do sinistro, recusa-se a pagar-lhe o valor correspondente à perda total do seu veículo avaliado pela Mercedes no valor de 34.990 €.

A ré contestou, sustentando, além do mais, ter assumido, por força da excessiva onerosidade da reparação do veículo, a responsabilidade pelo pagamento de uma indemnização à autora no valor de 29.500 €, equivalente ao valor venal do veículo antes do acidente, deduzido o valor do salvado, avaliado em 16.000 €, proposta que a mesma não aceitou. 

*

A final foi proferida decisão que julgou parcialmente procedente a acção e condenou a R. a pagar à A. o valor de 32.950 €, sendo 29.950 € por danos patrimoniais e 3.000 € por danos não patrimoniais, absolvendo a R. do demais peticionado.

*

2. A R. recorreu formulando as seguintes conclusões:

I. A Recorrente não se conforma com a decisão do Tribunal a quo na parte em que condenou a Ré no pagamento de uma indemnização assente na perda total do veículo, mais especificamente no montante de 29.500,00 € correspondente ao valor comercial do veículo à data da ocorrência do sinistro, sem dedução do respetivo salvado no valor de 16.000,00 €.

II. A Recorrente discorda da interpretação que foi dada pelo Tribunal quanto à factualidade provada, considerando constarem dos autos elementos factuais e prova documental que impunham decisão diversa, não podendo assim concordar com o enquadramento jurídico que veio a ser adoptado na decisão recorrida.

III. Atenta a factualidade dada como provada, está demonstrado que o veiculo com a matrícula ..-XE-.. é propriedade da Autora, que o seu valor comercial à data de 21 de junho de 2022 era de 29.500,00 €, e que o valor de reparação dos danos ascendia a 22.432,09 € e que do salvado é de 16.000,00 €.

IV. Mostra-se igualmente assente que o veículo da Autora se encontra em perda total.

V. Em face da perda total, veio o Tribunal decidir que a obrigação de indemnização seria cumprida em dinheiro, estribando a determinação do quantum indemnizatório nas regras e princípios gerais da responsabilidade civil previstos nos artigos 562º e 566º do C.C.

VI. Mais concluindo na sentença recorrida que verificando-se a excessiva onerosidade da reconstituição natural, a Autora tem direito, não a essa reconstituição natural mediante o pagamento do valor da reparação do seu veículo – até porque Autora e Ré vieram assentir na perda total do veículo, o que tem implícito, necessariamente, em qualquer critério, a respetiva inutilização funcional e redução à espécie em causa (salvado) -, mas a uma indemnização em dinheiro correspondente ao valor do veículo antes do sinistro, ao qual não deve ser deduzido o valor do respetivo salvado, pese embora o mesmo continue na propriedade da Autora.

VII. Apesar de tal, o Tribunal a quo não reserva, na decisão recorrida, qualquer palavra para a forma como a seguradora deve promover a venda do salvado, tendo em conta que não é proprietária do veículo.

VIII. Mostra-se documentalmente provado (factos provados nº 31 e nº 32 e documentos não impugnados pela Autora), que a Autora foi informada pela Ré sobre o valor dos salvados e sobre a entidade que apresentou a melhor proposta para a sua aquisição.

IX. Em 7/11/2022, através da sua mandatária, a Autora apresentou à Ré uma proposta para regularização do sinistro pelo valor de 40.000,00 €, com dedução do valor dos salvados. (Veja-se o facto provado nº 25 e o documento 11 junto pela Autora com a petição inicial), o que revela a sua intenção de manter o salvado na sua posse.

X. A Ré cumpriu a sua obrigação, que era informar a Autora da possibilidade de venda dos salvados, com a indicação precisa do possível comprador e dos seus contactos, desconhecendo se o mesmo foi ou não vendido.

XI. A proposta apresentada pela Ré à Autora ter-lhe-ia permitido adquirir um veículo equivalente ao veículo sinistrado.

XII. A Ré não era, nem é, proprietária dos salvados, cabendo sempre à Autora providenciar pela sua venda, enquanto proprietária do veículo danificado.

XIII. Salvo o devido respeito, o Tribunal a quo não tem fundamento legal para decidir, conforme se retira da sentença recorrida, que a entrega do salvado ao sinistrado não pode constituir, de modo algum, uma forma de indemnizar ou ressarcir, pela simples razão de que, sem realizar a verba em falta, o lesado não tem ao seu alcance a importância necessária ao regresso à situação em que se encontrava antes do evento danoso, sendo que é à seguradora que cabe dar destino ao salvado, promovendo ou não a sua venda, em ordem a habilitar o beneficiário do seguro com a integralidade do inerente valor»

XIV. No âmbito do contrato de seguro obrigatório e do respetivo regime jurídico, não existe norma legal que imponha à Seguradora a aquisição do salvado.

XV. Dispõe o artigo no artigo 43º nº4 do Decreto-lei nº291/2007 de 21/08 que: (… reprodução do texto legal)

XVI. Esta norma tem um pressuposto essencial, o de que a empresa seguradora adquire o salvado, e, nessa medida, faz depender o pagamento da indemnização por parte da Seguradora, à entrega do documento único automóvel que ateste a propriedade do mesmo.

XVII. Volvendo ao caso, a verdade é que a Recorrente não adquiriu o salvado.

XVIII. Sendo a matéria de facto completamente omissa quanto a qualquer acordo ou proposta no sentido de a Ré ficar com os salvados, eles são propriedade da Autora, ora Recorrida, pelo que o seu valor deve ser descontado no valor da indemnização pela perda da viatura, correspondente ao seu valor comercial à data do acidente, ou seja, 29.500,00 €.

XIX. Neste sentido, o de que não havendo qualquer acordo no sentido da seguradora ficar com os salvados, estes são propriedade do segurado, de tal modo que o seu valor deve necessariamente ser descontado no montante da indemnização que lhe será atribuída existe jurisprudência bastante (Acórdão da Relação do Porto de 09/11/2018 Processo nº 3004/17.0T8OAZ.P1, Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 2/09/2012 Processo nº 1129/09.5TBBCL-G1 e Acórdão da Relação do Porto de 08/02/2024, Processo nº 5888/21.9T8MTS.P1, todos disponíveis em www.dgsi.pt )

XX. A sentença em crise estriba as suas conclusões em jurisprudência que assenta em factualidade distinta, citando ainda o Acórdão do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 28/01/2021, Processo nº 6250/18.6T8GMR.G1.S1, o qual, no entender da Recorrente, não permite retirar tais conclusões.

XXI. Naquele aresto o que se diz é que a seguradora tem de ser condenada a pagar o valor comercial do veículo sinistrado, calculado à data do acidente, e não apenas a diferença entre este e o valor do salvado, acaso se distinga, no caso concreto, que o lesado assumiu, inequivocamente, abrir mão da propriedade do salvado a favor da seguradora, ao cabo e ao resto, quando assuma, sem reservas, que não pretende ficar com o salvado na sua esfera jurídica,

XXII. A Autora não alegou nem provou que não pretendia ficar com os salvados ou que a Ré se propôs adquiri-los.

XXIII. Importa atender o que a este propósito se refere no citado Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 2/08/2024, Processo nº 5888/21.9T8MTS.P1 (… reprodução de texto).

XXIV. O Tribunal a quo decidiu, sem mais, e na perspetiva da Recorrente, de forma errada, que a Autora tem direito a quantia indemnizatória correspondente ao valor comercial do veículo à data da ocorrência do sinistro, sem dedução do respetivo salvado no valor de 16.000,00, pese embora reconheça que o mesmo se mantém na sua propriedade.

XXV. Fazendo operar o ressarcimento do dano correspondente à perda total do veículo pelo valor necessário à aquisição de outro veículo acrescido do valor económico que o veículo danificado tem, ou seja, 45.500,00 € (29.500,00 € + 16.000,00 €).

XXVI. O que coloca a Autora numa situação mais favorável, pois passa a dispor de um montante que excede largamente o que seria necessário à reposição da situação que existia antes do evento danoso.

XXVII. Configurando um enriquecimento ilegítimo por parte da Autora. (Neste sentido veja-se o Acórdão

do Supremo Tribunal de Justiça de 28/05/2024 Processo nº 3587/19.0AZ.P1.S1, disponível em www.dgsi.pt):

XXVIII. Atendendo à factualidade assente, a sentença recorrida fez uma interpretação incorreta dos critérios previstos nos artigos 41º e 43º do Decreto-lei nº291/2007 de 21 de Agosto, violando o disposto nos artigos 483º nº1 562º e 566º nº1 2 2 do C.C.

XXIX. Deve, assim, a decisão sob censura ser revogada e substituída por outra que determine a dedução do salvado, quantificado no montante de 16.000,00 €, ao valor da indemnização a pagar à Autora a título de danos patrimoniais.

Nestes termos, nos mais de direito aplicáveis e nos que doutamente vierem a ser supridos por V. Exas., deve ser concedido provimento ao presente recurso nos termos alegados supra, com as legais consequências.

JUSTIÇA!

3. A A. contra-alegou, concluindo que:

1. A recorrida conforma-se com a decisão do tribunal a quo ao considerar no pagamento de uma indemnização assente na perda total do veículo em 29.500,00€, correspondente ao valor comercial do veículo à data do acidente.

2. A interpretação dada pelo tribunal a quo teve como base a factualidade dada como provada, resultante dos depoimentos das testemunhas, que mereceram total credibilidade, dos documentos juntos pela autora, que impunha a decisão proferida.

3. Atenta a factualidade dada como provada e ao decurso do tempo, resulta como lógico, que não poderia ser outra a decisão senão a fixação do valor da indemnização em dinheiro e não este mais os salvados.

4. Decorre das normas da experiência comum que os salvados devem pertencer à ré, por ter sido esta, conforme resulta provado, que protelou a decisão dos presentes autos e por outro, porquanto a autora requereu atribuição de uma indemnização em dinheiro.

5. A autora te direito à reconstituição natural, que consiste em ter dinheiro para comprar um veículo em substituição do veículo que detinha antes do acidente.

6. Aceita a autora entregar à ré os salvados acompanhado do titulo de registo de propriedade, aliás, sendo já essa a sua intenção, antes da interposição do recurso, com o pagamento da indemnização.

7. Pretende a recorrente não ficar com os salvados porque sabe, não ser esse o seu valor, razão por que, pretende imputar a autora, esse montante.

8. Com a confirmação da sentença recorrida e a entrega dos salvados à recorrente, V. Exas, farão a acostumada JUSTIÇA.

 

II - Factos Provados

 

1. No dia 21 de junho de 2022, pelas 18h20, ao quilómetro 35,100 na Estrada Nacional ...31, junto às bombas de gasolina da ..., na freguesia ..., concelho ..., ocorreu um acidente de viação.

2. Foram intervenientes no referido acidente os seguintes veículos automóveis:

2.1. Veículo automóvel ligeiro de passageiros de marca Mercedes, modelo ... d, com a matrícula ..-XE-.., propriedade da Autora e conduzido por esta.

2.2. Veículo automóvel ligeiro de passageiros, de marca Audi, modelo ...8..., com a matrícula ..-VA-.., propriedade de CC e conduzido por este.

2.3. Veículo automóvel ligeiro de mercadorias, de marca Nissan, modelo ..., com a matrícula ..-..-EJ, conduzido por BB.

3. O veículo com a matrícula ..-XE-.. circulava na referida Estrada Nacional ...31, a cerca de 50 quilómetro/hora, dentro da faixa de rodagem à direita da via, no sentido ... – ....

4. Na mesma estrada, no sentido ... – ..., circulava o veículo com a matrícula ..-..-EJ na retaguarda do veículo com a matrícula ..-VA-...

5. Ao pretender aceder às bombas de gasolina da ... - que, atento o seu sentido de marcha, se situavam à sua esquerda -, o condutor do veículo com a matrícula ..-VA-.. sinalizou a sua intenção (através da utilização do sinal luminoso esquerdo, vulgarmente conhecido por pisca), parando no eixo da faixa de rodagem antes de efetuar a manobra, uma vez que, nesse preciso momento e local, circulava, na faixa de rodagem oposta, o veículo da Autora.

6. Enquanto o condutor do veículo com a matrícula ..-VA-.. aguardava, parado, junto ao eixo da faixa de rodagem, que o veículo conduzido pela Autora passasse, o condutor do veículo com a matrícula ..-..-EJ, não se apercebendo atempadamente da presença do primeiro, embateu na traseira deste.

7. Com a força do embate provocado pelo condutor do veículo com a matrícula ..-..-EJ, o veículo com a matrícula ..-VA-.. foi projetado para a faixa de rodagem contrária, indo, por sua vez, embater com a parte frontal dianteira na parte frontal dianteira esquerda do veículo com a matrícula ..-XE-.., conduzido pela Autora.

8. Imediatamente após o segundo embate, o veículo com a matrícula ..-VA-.. ficou com as rodas dianteiras totalmente dentro da faixa de rodagem contrária ao seu sentido de trânsito, perpendicularmente ao eixo da via, enquanto o veículo da Autora ficou dentro desta faixa de rodagem, com as suas rodas dianteira e traseira esquerdas a cerca de 3 metros do eixo da via.

9. O local onde ocorreu o acidente trata-se de uma linha reta, com mais de 500 metros de comprimento, precedida de uma curva, com boa visibilidade.

10. A faixa de rodagem tem aproximadamente 7 metros de largura.

11. O limite de velocidade no local do sinistro é de 50 quilómetros/hora.

12. O piso estava em bom estado.

13. No momento do sinistro, o condutor do veículo com a matrícula ..-..-EJ circulava desatento ao trânsito rodoviário que o rodeava e a uma velocidade superior a 50 quilómetros/hora.

14. Na data de 21 de junho de 2022, a responsabilidade civil perante terceiros, decorrente de danos na circulação do veículo automóvel ligeiro de mercadorias, de marca Nissan, modelo ..., com a matrícula ..-..-EJ, encontrava-se transferida para a A... PLC – Sucursal em Portugal, aqui Ré, por força do contrato de seguro titulado pela apólice n.º ...88 celebrado entre esta e DD.

15. Em consequência direta, necessária e adequada do embate referido em 7., o veículo da Autora ficou danificado em toda a sua parte frontal, nomeadamente o para-choques, o motor e os eixos.

16. Em consequência direta, necessária e adequada do embate referido em 7., a Autora sofreu cervicalgia e dor no ombro esquerdo e um hematoma junto ao peito esquerdo.

17. Em consequência direta, necessária e adequada do embate referido em 7., a Autora sofreu dores cervicais, designadamente quando rodava o pescoço em

qualquer direção, que a levaram a recorrer a sessões de fisioterapia, tendo realizado cerca de 30 sessões, ao preço de €15,00 cada.

18. Em consequência direta, necessária e adequada do embate referido em 7., a Autora padece, atualmente, de manifestações compatíveis com um quadro depressivo, sentindo-se triste e inútil.

19. Em consequência direta, necessária e adequada do embate referido em 7., a Autora deixou de dormir, passando as noites sobressaltada.

20. A Autora encontra-se em processo de remição de um cancro da mama, detetado e operado há cerca de três anos.

21. Por força do acidente e do hematoma que sofreu no peito esquerdo, a Autora vivenciou momentos de pânico ao pensar que pudesse vir a regredir na situação oncológica pela qual tinha passado.

22. A Autora nasceu a ../../1980.

23. Até à ocorrência do sinistro, a Autora era uma pessoa ativa, saudável, alegre, equilibrada, feliz, dinâmica e sociável.

24. À data do sinistro, a Autora trabalhava como assistente social no Lar ....

25. Por carta registada datada de 07.11.2022, dirigida à sede da Ré, a Autora, através da sua Mandatária, reclamou, junto daquela, o valor proposto a título de indemnização, informando a Ré que, em consequência do sinistro, sofreu lesões cervicais e dores acentuadas, conduzido a que tivesse de recorrer a terapêutica analgésica e tratamentos de fisioterapia.

26. Em data não concretamente apurada após o acidente, a Autora acionou a cobertura de danos próprios do veículo com a matrícula ..-XE-.. junto da Companhia de Seguros B..., S.A., para a qual se encontrava transferida a responsabilidade civil emergente de acidentes de viação referente àquela viatura.

27. Através do acionamento da cobertura de danos próprios do veículo com a matrícula ..-XE-.. junto da Companhia de Seguros B..., S.A., foi atribuído à Autora uma viatura de substituição.

28. Em 29 de julho de 2022, foi realizada uma peritagem ao veículo com a matrícula ..-XE-.. por parte da Companhia de Seguros B..., S.A., na qual se concluiu que o valor estimado para a reparação dos danos da viatura ascendia a €22.435,00.

29. Em 25 de agosto de 2022, a Ré recebeu uma comunicação da Companhia de Seguros B..., S.A., na qual lhe foi comunicado, em nome da Autora, o seguinte: «a nossa Cliente não pretende regularizar o sinistro ao abrigo dos danos próprios.».

30. Na sequência da referida comunicação, a Ré deu início ao processo de regularização do sinistro, com marcação da respetiva peritagem, a qual teve lugar no dia 1 de setembro de 2022.

31. No dia 8 de setembro de 2022, a Ré informou a Autora que o veículo com a matrícula ..-XE-.. foi, por si, enquadrado numa situação de «perda total», atenta a excessiva onerosidade da reparação por referência ao valor comercial da viatura, tendo, nessa mesma data, assumido a responsabilidade pelo pagamento de indemnização correspondente no valor de €29.500,00, ao qual seria deduzido o valor do salvado, avaliado em €16.000,00.

32. Na mesma missiva, a Ré informou a Autora que a empresa C... Lda. se comprometia a adquirir o veículo pelo valor do salvado durante 30 dias contados a partir da data da avaliação.

33. A Autora não aceitou a referida proposta.

34. Os serviços clínicos da Ré não acompanharam a Autora.

35. O valor comercial do veículo da Autora à data de 21 de junho de 2022 era de €29.500,00.

36. O valor da reparação dos danos da viatura da Autora ascendia a €22.432,09 e o valor da referida viatura, com os danos resultantes do despiste (salvado), é de €16.000,00.

 

III - Do Direito

 

1. Uma vez que o âmbito objectivo dos recursos é delimitado pelas conclusões apresentadas pelos recorrentes (arts. 635º, nº 4, e 639º, do NCPC), apreciaremos, apenas, as questões que ali foram enunciadas.

Nesta conformidade, a única questão a resolver é a seguinte.

- Dedução do valor do salvado ao valor de indemnização arbitrado por perda total do veículo.

2. Na sentença recorrida escreveu-se que:

Volvendo ao caso sub judice, tendo em consideração a factualidade dada como provada, resulta evidente que a Autora logrou demonstrar, como lhe incumbia, atentas as regras de repartição do ónus da prova, não apenas a eclosão do sinistro, mas também que o condutor do veículo com a matrícula ..-..-EJ, para além de ter praticado um facto voluntário, ilícito e culposo, provocou danos na sua esfera jurídica, danos esses que, de acordo com a designada teoria da causalidade adequada, são uma consequência direta e necessária daquela conduta e, por conseguinte, indemnizáveis.

Por sua vez, a Ré não logrou demonstrar qualquer facto excludente da sua responsabilidade (artigo 342.º, n.º 2, do Código Civil).

Assim, aqui chegados, pelo pagamento dos montantes indemnizatórios devidos à Autora é exclusivamente responsável a Ré, porquanto para esta se encontrava transferida, pelo proprietário do veículo lesante com a matrícula ..-..-EJ, através de contrato de seguro titulado pela apólice n.º ...88, válido à data do sinistro, a responsabilidade civil emergente de acidentes de viação por danos causados por aquela viatura.

C) Dos danos patrimoniais:

No que respeita aos danos patrimoniais, a Autora peticiona os seguintes valores:

a) o pagamento de €34.990,00, por conta da perda total do seu veículo.

(…)

Por fim, no que respeita ao pagamento do valor de €34.990,00 peticionado pela Autora, está em causa a questão controvertida da indemnização pelo valor venal da viatura sinistrada, assente no conceito de «perda total» do veículo, como alternativa à indemnização pelo valor do custo da reparação.

Quanto a esta, importa tecer algumas considerações.

Como referimos supra, a indemnização a fixar, por aplicação da «teoria da diferença», consagrada no artigo 562.º, do Código Civil, e porque assente na culpa do lesante, terá de reconduzir à Autora à situação patrimonial em que esta estaria se os danos não tivessem ocorrido e tem como medida a diferença entre a situação do lesado na data mais recente que puder ser atendida pelo Tribunal e a que teria na data do acidente, caso não existissem danos – cf., neste sentido, o douto Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 14.07.2016, processo n.º 829/12.7TBABF.E1.S1

Não obstante a preferência do legislador ir no sentido do ressarcimento do lesado ser realizado através de reconstituição natural, o certo é que, reconhecendo-se a dificuldade de, em muitos casos, trilhar essa via, o artigo 566.º, n.º 1, do Código Civil, consagra o princípio da indemnização em dinheiro sempre que a reconstituição natural não seja possível, não repare integralmente os danos ou seja excessivamente onerosa para o devedor.

Emerge da factualidade provada que o contrato de seguro celebrado entre a Ré e o proprietário do veículo lesante contemplava a cobertura por danos materiais, por acidente, até €1.300.000,00 (o qual se encontra dentro do capital mínimo obrigatoriamente seguro para efeitos do disposto no artigo 12.º, n.ºs 3 e 4, do Decreto-Lei n.º 291/2007, de 21 de agosto e do artigo 9.º, n.º 1, alínea b), da Diretiva (UE) 2021/2118, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 24 de novembro de 2021).

Mais se deu como provado que a reparação do veículo da Autora ascendia ao valor de €22.432,09.

Ora, nos termos do disposto no artigo 41.º, n.º 1, alínea c), do citado Decreto-Lei n.º 291/2007, de 21 de agosto, entende-se que um veículo interveniente num acidente se considera em situação de perda total, na qual a obrigação de indemnização é cumprida em dinheiro e não através da reparação do veículo, quando se verifique uma das seguintes hipóteses: c) se constate que o valor estimado para a reparação dos danos sofridos, adicionado do valor do salvado, ultrapassa 100 % ou 120 % do valor venal do veículo consoante se trate respetivamente de um veículo com menos ou mais de dois anos.

À luz da jurisprudência dos nossos tribunais superiores, entendemos que este regime não substitui as regras gerais em matéria de indemnização - i.e., não se sobrepõe aos citados artigos 562.º e 566.º, do Código Civil -, reconduzindo-se, numa interpretação que combina elementos sistemáticos e teleológicos, à obrigação de apresentação da chamada «proposta razoável», prevista no artigo 38.º, do citado Decreto-Lei.

Com efeito, este mecanismo é utilizado numa fase de resolução extrajudicial do litígio e visa, cremos que de forma evidente, fornecer critérios mínimos orientadores com vista a evitar o recurso à via judicial.

Deste modo, o mencionado artigo 41.º, do Decreto-Lei n.º 291/2009, de 21 de agosto, não resolveu, de modo algum, a problemática atinente à indemnização do dano atribuível pelo veículo sinistrado. Subsiste, pois, a questão de saber se a indemnização devida se realiza por via do estabelecido no artigo 562.º, do Código Civil, i.e., pela simples atribuição do valor venal da viatura ou, pressuposta a indemnização em dinheiro, pela entrega do custo da reparação dos estragos causados.

Neste enquadramento, importa notar que o valor venal do veículo – que o legislador de 2007 faz corresponder ao valor de substituição -, não terá um limite, mas será, antes, a base de cálculo da indemnização, sem que fique prejudicado, por esta via, o princípio da reposição natural.

Ora, tendo em consideração que o valor da reparação dos danos sofridos no veículo da Autora é de €22.432,09, o valor do salvado (i.e., o valor do veículo com os danos sofridos) é de €16.000,00 e que o valor venal do veículo à data do acidente era de €29.500,00, o valor estimado para a reparação dos danos, adicionado ao valor do salvado, ultrapassa 120% o valor venal do veículo, razão pela qual se está perante uma situação de perda total.

A obrigação de indemnização é, assim, cumprida através de dinheiro.

Ao abrigo do disposto no artigo 41.º, n.º 3, do Decreto-Lei n.º 291/2007, de 21 de agosto, o valor da indemnização por perda total corresponde ao valor venal do veículo antes do sinistro calculado nos termos do número anterior, deduzido do valor do respetivo salvado caso este permaneça na posse do seu proprietário, de forma a reconstituir a situação que existiria se não se tivesse verificado o evento que obriga à indemnização, sendo o valor venal do veículo à data do sinistro de €29.500,00 e o valor do salvado de €16.000,00.

Em suma, não tendo havido acordo entre a Autora e a Ré seguradora quanto ao valor indemnizatório a satisfazer ao lesado, a determinação da espécie e do quantum indemnizatório passa a ser regulado pelas regras e princípios gerais da responsabilidade civil e da obrigação de indemnização, entre as quais se encontram, de um lado, o princípio da reparação natural e, de outro, o princípio da reparação integral do dano, resultando afastada a aplicação dos critérios previstos no Decreto-Lei n.º 291/2007, de 21 de agosto, quer no que concerne à indemnização por «perda total» (artigo 41.º), quer quanto aos valores indemnizatórios por veículo de substituição (artigo 42.º).

Com efeito, tendo em conta o valor comercial do veículo da Autora antes do acidente (€29.500,00) e o valor da reparação orçamentada para o mesmo veículo - €22.432,09 -, importa curar de saber a qual destes valores importa atender na fixação da indemnização a atribuir à Autora.

É sabido que o artigo 562.º, do Código Civil impõe, como regra, que se proceda à restauração natural, reconduzindo o lesado à situação anterior à lesão, sofrendo este princípio as três exceções supra enunciadas.

A reconstituição natural será excessivamente onerosa para o devedor «quando houver manifesta desproporção entre o interesse do lesado, que importa recompor, e o custo que a reparação natural envolve para o responsável», conforme sublinham Pires de Lima e Antunes Varela – ob. cit., p. 582.

Acerca desta exceção ao princípio da reparação natural, refere Vaz Serra que «parece haver entendimento de que a excessiva onerosidade deve ser entendida no sentido de que não pode ser feita oficiosamente, e que se dá quando, nas condições concretas, importaria despesa demasiada para qualquer outro devedor» – cf. Vaz Serra, «Obrigação de Indemnização», BMJ n.º 84, p. 143, nota 283.

Em sentido idêntico, Pires de Lima e Antunes Varela afirmam que «nestes casos de excessiva onerosidade será naturalmente a requerimento do devedor que a obrigação de restauração natural se converterá em obrigação pecuniária» – cf. ob. cit., p. 582.

Daqui extrai-se que, se por um lado, a desproporção entre o interesse do lesado – ao qual importa reconduzir à situação anterior à lesão - e o custo que a reparação natural envolve para responsável deve ser aferida a partir de elementos objetivos que permitam concluir que a mesma é idêntica para qualquer devedor, por outro lado, o devedor terá de requerer a conversão da obrigação da restauração natural em obrigação pecuniária através da alegação e prova de elementos que objetivem tal desproporção - neste sentido, cf. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 11.05.2000, BMJ, 497º, p. 350.

Por outro lado, a reparação só é excessivamente onerosa, para efeitos do artigo 566.º, n.º 1, do Código Civil, se ficar provado que o seu valor (adicionado ao valor do salvado) é superior (em princípio em mais de 120%), ao valor de substituição por um veículo com idênticas características.

Porém, importa notar que o valor de substituição não é o valor venal, entendido como valor comercial, de mercado ou de venda do veículo, mas o valor da compra – neste sentido, cf. Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 15.12.2016, processo n.º 67/15.7T8TVD.L1-.2.

Na esteira do douto Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, de 11.07.2017, processo n.º 2093/14.4TBBRG.G1, «para se afirmar a excessiva onerosidade não basta demonstrar que o valor da reparação é superior ao valor venal do veículo, pois que se um dos polos da determinação da excessiva onerosidade é o preço da reparação, o outro não é o valor venal do veículo, mas o seu valor patrimonial, o valor que o veículo representa dentro do património do lesado», sendo que «o veículo, pela sua antiguidade, pode ter um valor comercial reduzido ou diminuto, mas mesmo assim ser apto a satisfazer as necessidades do seu proprietário que, de forma nenhuma poderá satisfazer com uma quantia correspondente a esse valor comercial, o que significa que, sem ele, poderá ver-se privado das comodidades que um veículo, ainda que “velho”, proporcionava o que não pode deixar de ser considerado na reconstituição natural como forma de reparação do lesado».

Em termos probatórios, seguindo de perto o douto Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 28.05.2020, processo n.º 289/19.1T8MCN.P1 «se à Autora cabe a prova de que o seu automóvel pode ser reparado e o custo da reparação (artigo 342.º, n.º 1, do Código Civil), à Ré seguradora compete demonstrar que esse valor seria excessivamente oneroso em função do valor venal do veículo (artigo 342.º, n.º 2, do Código Civil). Caberá então à Autora - por se encontrar na melhor condição de fazer esta alegação e demonstração e ser ela do seu interesse – provar que o seu veículo tem no seu património um valor superior ao do seu valor de mercado. Não fazendo ela esta prova, impera o valor venal do bem».

No caso em apreço, resultou provado, por um lado, que o custo da reparação do veículo da Autora é de €22.432,09, e, por outro lado, que o valor venal do veículo antes do acidente era de €29.500,00.

Ora, não tendo a Autora logrado provar, como era seu ónus, que o seu veículo tinha, no seu património, um valor superior ao valor de mercado nem tampouco que, com o valor venal atribuído ao veículo pela Ré seguradora, não conseguiria adquirir, no mercado, um veículo com características semelhantes, impera, na esteira da jurisprudência que temos vindo a acompanhar, o valor venal do veículo.

Em suma, a Autora não logrou provar que o seu veículo tinha um valor patrimonial (ou de substituição) superior àquele valor venal.

Por conseguinte, verifica-se uma margem diminuta entre o valor da reparação e o valor de substituição do veículo sinistrado, diferença esta que permite concluir pela excessiva onerosidade da restauração natural, dado que o pagamento daquele custo da reparação pela Ré constituiria um sacrifício manifestamente desproporcional, como, aliás, já tínhamos concluído por recurso ao critério previsto no artigo 41.º, n.º 1, alínea c), do Decreto-Lei n.º 291/2007, de 21 de agosto.

Neste sentido, verificando-se a excessiva onerosidade da reconstituição natural, a Autora tem direito, não a essa reconstituição natural mediante o pagamento do valor da reparação do seu veículo – até porque Autora e Ré vieram assentir na perda total do veículo, o que tem implícito, necessariamente, em qualquer critério, a respetiva inutilização funcional e redução à espécie em causa (salvado) -, mas a uma indemnização em dinheiro correspondente ao valor do veículo antes do sinistro, ao qual não deve ser deduzido o valor do respetivo salvado, pese embora o mesmo continue na propriedade da Autora – neste sentido, vejam-se os doutos Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, de 28.09.2021, processo n.º 6250/18.6T8GMR.G1.S1 e Tribunal da Relação de Coimbra, de 06.11.2007, processo n.º 356/07.4YCBR e de 16.09.2009, processo n.º 378/07.5TBLSA.C1 -, assim se obtendo a reconstituição da situação que existiria se não se tivesse verificado o evento que obriga à indemnização (artigo 562.º, do Código Civil).

No que a este último aspeto diz respeito – i.e., à dedução (ou não) do valor do salvado -, não ignoramos que existe jurisprudência em sentido distinto, como v.g., o douto Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 10.09.2019, proc. n.º 5/18.5T8TCS.C1.

No entanto, seguimos de perto a doutrina supra identificada, assente no que se escreveu, de forma incisiva, no Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 11.10.2018, processo n.º 7247/17.9T8LSB.L1-6: «em caso de rejeição da Proposta Razoável, nas situações de perda total do veículo, não se deve deduzir ao valor indemnizatório do dano real o valor do salvado, porque a quantia assim obtida, após essa dedução, desvirtuaria o fim da indemnização apurada: valor necessário a repor as utilidades proporcionadas pelo veículo, correspondente ao efetivo custo de substituição.».

Com efeito, entendemos, na esteira da jurisprudência supra citada, que a entrega do salvado ao sinistrado não pode constituir, de modo algum, uma forma de indemnizar ou ressarcir, pela simples razão de que, sem realizar a verba em falta, o lesado não tem ao seu alcance a importância necessária ao regresso à situação em que se encontrava antes do evento danoso, sendo que é «(…) à seguradora que cabe dar destino ao salvado, promovendo ou não a sua venda, em ordem a habilitar o beneficiário do seguro com a integralidade do inerente valor.».

Concluindo: a Autora tem direito a uma quantia indemnizatória de €29.500,00, correspondente ao valor comercial do seu veículo, à data da ocorrência do sinistro, sem dedução do respetivo salvado (no valor de €16.000,00).”.

A recorrente discorda pelos motivos apresentados nas suas conclusões de recurso (as I. a XXIX.). Entendemos, porém, que não lhe assiste razão. Vejamos então.

Como se assinala na fundamentação jurídica da decisão recorrida, a jurisprudência dos tribunais superiores está consolidada no sentido do o regime do DL 291/2009, de 21.8 (SORCA), na parte respeitante ao Capítulo III, atinente á regularização de sinistros, arts. 31º e segs., não se substituir às regras gerais em matéria de indemnização - não se sobrepõe aos arts. 562º e 566º, do Código Civil -, reconduzindo-se à situação da apresentação da chamada “proposta razoável”, prevista no art. 38º e segs. do citado DL.  

Na verdade, este mecanismo é utilizado numa fase de resolução extrajudicial do litígio e visa fornecer critérios mínimos orientadores com vista a evitar o recurso à via judicial.

Deste modo, o art. 41º, do mesmo DL, referente à perda total, não resolve a problemática atinente à indemnização do dano atribuível pelo veículo sinistrado, em perda total, quando não existe acordo entre a seguradora e o lesado, subsistindo, pois, a necessidade de solucionar a questão da devida reparação natural/indemnização por via do estabelecido nos indicados arts. do CC (vide o Ac. do STJ de 28.5.2024, Proc.3587/19.0T8OAZ, em www.dgsi.pt).

Prosseguindo, constatamos, que ambas as partes estão de acordo em que no caso concreto se verifica uma situação de perda total do veículo, com reparação excessivamente onerosa para o devedor, pelo que ocorrerá indemnização em dinheiro correspondente ao valor do veículo antes do sinistro (art. 566º, nº 1, do CC).

O cerne do litígio entre as partes reporta-se a saber se a tal indemnização deve ou não ser deduzido o valor do respetivo salvado, pese embora o mesmo continue propriedade da A. Note-se que na decisão recorrida foi conferido à A. o direito a uma quantia indemnizatória de 29.500 €, correspondente ao valor comercial do seu veículo, à data da ocorrência do sinistro (facto 35.), sem dedução do respetivo salvado, no valor de 16.000 € (facto 36.).

Sobre a enunciada questão a jurisprudência está dividida.

No sentido negativo, podem ver-se os Acds. citados na sentença recorrida, do STJ, de 28.9.2021, Proc.6250/18.6T8GMR, e da Relação de Lisboa, de 11.10.2018, Proc.7247/17.9T8LSB, em www.dgsi.pt, pois a quantia indemnizatória obtida corresponderá ao efetivo custo de substituição do veículo danificado, assim se obtendo a reconstituição da situação que existiria se não se tivesse verificado o evento que obriga à indemnização (art. 562º, do CC).

Na mesma decisão citam-se, ainda, os da Relação de Coimbra, de 6.11.2007, Proc.356/07.4YCBR e de 16.9.2009, Proc.378/07.5TBLSA, o primeiro imprestável porque referente a uma situação de seguro facultativo, que tem regras próprias fixadas no DL 72/2008, de 16.4 (RJCS), e o segundo não se conseguiu encontrar nas bases de dados. 

Em sentido contrário podemos encontrar os Acds. da Relação do Porto, de 8.2.2024, Proc.5888/21.9T8TMS, invocado pela recorrente, e da Rel. Coimbra, de 10.9.2019, Proc.5/18.5T8TCS, referido na decisão recorrida, em www.dgsi.pt.

A recorrente ainda invoca os Acds. da Rel. Porto, de 11.9.2018, Proc.3004/17.0T8OAZ, no mesmo sítio, imprestável, mais uma vez, por se reportar a situação de seguro facultativo, e o acima referido Ac. do STJ de 28.5.2024, mas que retrata um caso com contornos concretos diversos do de 28.9.2021, como resulta da leitura der ambos.

Bem vistas as coisas, a diferença jurisprudencial radica bastante na circunstância de saber se o lesado não declara que prescinde da propriedade dos salvados, sendo o valor destes descontado ao valor da indemnização ou, antes, prescinde dos salvados que, assim, devem passar para a seguradora.

Temos por boa a argumentação jurídica do apontado Ac. do STJ de 28.9.2021, a que aderimos.

Nele se diz que:

“Questiona, porém, o Recorrente/Autor/AA se a essa quantia dos €42.500,00 deve ser deduzido o valor de €18.5000,00, como determinado pelo Tribunal a quo, enquanto valor do salvado, sustentando que a reconhecer-se esta solução jurídica, estar-se-ia a desvirtuar, por completo o escopo da indemnização que mais não é do que colocar o lesado na situação que estaria sem a ocorrência do facto danoso (acidente).

Cremos que com inteira razão, sublinhamos.

Na verdade, por um lado, afirma-se, sem reserva, que o art.º 41º do Regime do Sistema de Seguro obrigatório de Responsabilidade Civil Automóvel (Decreto-Lei n.º 291/2007 de 21 de Agosto, com sucessivas atualizações, sendo a última através do Decreto-Lei n.º 153/2008 de 6 de agosto) destina-se às empresas de seguros, obrigando-as a apresentar “Proposta Razoável” de indemnização ao lesado no caso de perda total, porém, o lesado, não é obrigado a aceitar essa proposta, podendo rejeitá-la, obviamente.

Donde, a aplicação do mecanismo de cálculo da “Proposta Razoável” de indemnização por perda total, previsto no art.º 41º n.º 3 Regime do Sistema de Seguro Obrigatório de Responsabilidade Civil Automóvel (3 - O valor da indemnização por perda total corresponde ao valor venal do veículo antes do sinistro calculado nos termos do número anterior, deduzido do valor do respectivo salvado caso este permaneça na posse do seu proprietário, de forma a reconstituir a situação que existiria se não se tivesse verificado o evento que obriga à indemnização), ao referir a dedução do valor do salvado, pressupõe que o lesado tenha aceitado a valor do salvado, proposto pela seguradora, e, em todo o caso, salvaguarda que o salvado permaneça na posse do seu proprietário.

Por outro lado, o art.º 43º n.º 4 do mesmo diploma, Regime do Sistema do Seguro Obrigatório de Responsabilidade Civil Automóvel, ao preceituar que “Verificando-se uma situação de perda total, em que a empresa de seguros adquira o salvado, o pagamento da indemnização fica dependente da entrega àquela do documento único automóvel ou do título de registo de propriedade e do livrete do veículo” permite realizar uma construção jurídica que passe pela não dedução do valor dos salvados, acaso se distinga, no caso concreto, que o lesado assuma inequivocamente abrir mão da propriedade dos salvados a favor da seguradora, ao cabo e ao resto, quando assuma, sem reservas, que não pretende ficar com os salvados na sua esfera jurídica.

Ora, conforme decorre da pretensão jurídica deduzida, e uma vez cotejada a petição inicial apresentada, decorre que o Autor/AA, proprietário dos salvados, assumiu uma conduta inequívoca no sentido de abandonar o salvado a favor da entidade que indemniza, aqui Ré/D..., SA., conforme decorre do que se respiga, a propósito, da petição inicial apresentada: “36.º … 43.º …48.º … 49.º … 50.º …100.º …”

Inexiste no ordenamento jurídico preceito a impor que o salvado fique na posse do lesado, aliás, como já avançamos, prevê-se mesmo a possibilidade de a seguradora adquirir o salvado, ficando, nesse caso, o pagamento da indemnização dependente da entrega, àquela, do documento único automóvel, ou do título de registo de propriedade e do livrete do veículo (art.º 43º n.º 4 Regime do Sistema do Seguro Obrigatório de Responsabilidade Civil Automóvel).

E não se diga, como decorre do aresto recorrido que: “na verdade, dono dos salvados permanece o autor e que, além de não ser obrigada a ficar com eles nem a comercializá-los, a lei parece rejeitar a hipótese, como decorria do artigo 439º parágrafo 2, do Código Comercial, e sugere actualmente o artº 129º, do RJCS – Decreto-Lei nº 72/2008, de 16 de Abril - segundo o qual “O objecto salvo do sinistro só pode ser abandonado a favor do segurador se o contrato assim o estabelecer”, uma vez que, enfaticamente o dizemos, o contrato de seguro em causa não é um contrato de seguro facultativo, subsumível á tipologia dos contratos de seguro enunciada no Regime Jurídico do Contrato de Seguro, integrando o denominado seguro de danos - artºs. 123º e seguintes do Regime Jurídico do Contrato de Seguro - (como já adiantamos, está em causa a responsabilidade civil extracontratual do segurado [e, por via do contrato de seguro, da Ré, seguradora, D..., SA.] perante o Autor/AA, decorrente da celebração de um contrato de seguro obrigatório) donde, reiteramos, não faz sentido, salvo o devido respeito por opinião contrária, chamar à colação, para justificar a dedução do valor do salvado ao valor global condizente ao valor venal do veiculo sinistrado, um preceito do Regime Jurídico do Contrato de seguro, inaplicável ao seguro obrigatório como é o caso dos autos.

Ademais, sendo que a indemnização pecuniária tem como medida a diferença entre a situação patrimonial do lesado na data mais recente que puder ser atendida pelo Tribunal e a que teria nessa data se não existisse danos, será difícil conjugar este comando normativo - Código Civil art.º 566º n.º 2 - atendendo a que o valor do salvado foi apurado em 21 de dezembro de 2017, ou seja, com cerca de 4 (quatro) anos de dilação, necessária e significativamente desatualizado, tendo em atenção o bem em causa (veículo automóvel).

Por outro lado, entendendo o instituto do enriquecimento ilícito decorrente da lei substantiva civil -  art.º 473º n.º 1 do Código Civil - no sentido de vantagem de carácter patrimonial, como obtenção injusta dessa vantagem que foi recebida, reportando-se a obtenção de enriquecimento à conta de outrem à averiguação de qual foi o património que efetuou a despesa, impor-se-á reconhecer que a ausência de causa justificativa refere-se às situações de inexistência de causa jurídica, e, por conseguinte inexistência de obrigação, sendo que no caso sub iudice, não se verifica enriquecimento sem causa, nem os respetivos requisitos, porquanto distinguimos no caso em apreço, causa jurídica para a entrega daquele valor indemnizatório de €42.500,00, respeitante ao valor venal do veículo sinistrado, sendo que, em todo o caso, o salvado deve ser entregue à seguradora, como decorre do art.º 43º n.º 4 Regime do Sistema do Seguro Obrigatório de Responsabilidade Civil Automóvel ao estatuir que o pagamento da indemnização fica dependente da entrega à seguradora, responsável, do documento único automóvel ou do título de registo de propriedade e do livrete do veículo.

Assim, no caso em concreto, opera-se a indemnização por equivalente pecuniário do valor comercial do bem antes do facto lesivo (com vista a permitir a aquisição de outro com as mesmas características), sendo o veículo substituído no património do Autor/AA pelo respetivo valor, daí que o salvado deve passar para o responsável, aqui Ré/D..., SA. não havendo lugar à dedução do valor do salvado no valor da indemnização devida, nem transferência para o lesado, do risco da respetiva venda, sem prejuízo, sublinhamos, de que o pagamento da indemnização fica dependente da entrega à Ré/D..., SA., do documento único automóvel ou do título de registo de propriedade e do livrete do veículo.”.

E doutrinalmente também esta posição é a defendida.

Paulo Mota Pinto (em Interesse Contratual Negativo e Interesse Contratual Positivo, Vol. I, págs. 729/730) afirma que “sendo que, se a indemnização dever corresponder ao valor total do bem, os restos devem ser entregues ao lesante, não por aplicação directa da “compensação de vantagens” resultantes do evento lesivo, mas porque a não ser assim, o lesado ficaria enriquecido em consequência (não do evento lesivo, mas) da prestação indemnizatória.

Mais acrescentando, na nota 2074, que o que está em causa é antes o cálculo da indemnização em dinheiro: saber se … o lesado tem de contentar-se com o ressarcimento da diminuição do valor provocada pelo evento lesivo, ou pode exigir a indemnização de todo o valor da coisa, naturalmente entregando os destroços ou restos ao responsável pela indemnização. A lei não dá solução expressa a este problema (…).V., porém, inevitavelmente, o tratamento em A. Vaz Serra “Obrigação de Indemnização…”, cit., pp. 176 e s., distinguindo três soluções possíveis - … indemnização só pela diminuição do valor, indemnização do valor total da coisa com dedução do valor dela depois da perda parcial e indemnização do valor total com obrigação de entrega da coisa deteriorada ao responsável -, e propondo como regra a última (art. 14º, nº 2, do articulado: (…).

De todo o modo, cremos resultar dos princípios gerais (designadamente do art. 562º) que, ainda que indemnizado pela diminuição do valor, o lesado não pode ser obrigado a ficar com uma coisa (quantitativa ou qualitativamente) destruída em parte (um veículo com riscos…), e com o correspondente ónus de a transformar em dinheiro se quiser, e puder, adquirir outra equivalente. Assim, em princípio tem de poder optar entre a aceitação de uma indemnização correspondente à diminuição de valor e a exigência da indemnização do valor total, devolvendo a coisa.”      

No mesmo sentido segue Maria de Lurdes Pereira (em Direito da Responsabilidade Civil, A Obrigação de Indemnizar, FDUL, 2021, págs. 522/524) ao defender que “Como, porém, os restos ou destroços da coisa parcialmente destruída ou danificada ainda conservam algum valor de troca, perguntar-se-á em que termos poderão esses restos ou destroços (o «salvado» no caso de veículos) influenciar o regime da obrigação de indemnizar.

Uma saída possível seria considerar que o lesado só tem nesse caso o direito à diferença de valor entre o preço de aquisição da coisa de substituição e o valor de venda dos restos ou destroços. No entanto, essa solução não parece aceitável, por «forçá-lo» a despender tempo e recursos na venda do bem remanescente, caso queira efectivamente adquirir um bem em substituição do afectado. Trata-se de um encargo que não teria se não fosse o facto gerador de responsabilidade e que, por força do princípio da reparação total, não deve onerá-lo. (…)

Por estas razões, deve entender-se que, em tais circunstâncias, o lesado tem direito ao integral valor de substituição, mas tem, em contrapartida, a obrigação de restituir os restos ou destroços da coisa parcialmente destruída ou danificada nos casos em que eles tenham valor comercial. O problema posto pelos destroços ou restos da coisa destruída ou danificada que o lesado conserve não pertence, pois, ao domínio da compensação ou dedução de vantagens decorrentes do facto gerador de responsabilidade, mas antes ao da restituição das vantagens decorrentes da própria obrigação de indemnizar.

A indemnização da totalidade do custo de aquisição de uma coisa de substituição (usada ou nova) gera um enriquecimento na esfera do lesado que não é justificado pela atribuição contida no direito à indemnização que repousa numa despesa do lesante. O primeiro deve restituir o enriquecimento. No entanto, porque pode querer conservar os restou ou destroços, o titular do direito à indemnização deve poder optar por uma indemnização calculada segundo a diferença entre o preço de aquisição de uma coisa de substituição e o valor de venda da coisa remanescente.”.

A solução desta autora só difere da de P. Mota Pinto, como ela expressa, na nota 994, na medida em que o direito à indemnização do valor total vale automaticamente, i.e., independentemente de qualquer opção e antes de qualquer opção pelo lesado, sem prejuízo de o lesado querer conservar os restos, preferindo a indemnização pela diferença de valores.

Armados com estes ensinamentos, que subscrevemos, resta conferir o caso concreto.

Não consta da factualidade provada que entre a A. e a R. tenha existido qualquer acordo para aquisição do salvado pela R.

Urge, então, verificar se a A. nada tinha de alegar para automaticamente ter direito à indemnização do valor total e ser obrigada a devolver o salvado, ou teria de alegar que não tinha intenção de ficar com o salvado, sem prejuízo de optar por ficar com ele.

Ora, a A. não alegou em lugar algum da sua p.i., que era sua pretensão ficar com os salvados. Pelo contrário, deduziu o pedido de indemnização do pagamento do valor comercial do veículo outros, como se vê dos arts. da sua p.i. “57.º O veículo da autora foi avaliado pela mercedes, no valor de 34.990,00€.; 59.º A autora tem procurado veículos da mesma marca, modelo, ano, quilometragem e estado de conservação, sendo que, os preços de mercado oscilam entre os 33.000,00€ e os 35.000,00€.; 60.º A autora pretende que a ré lhe pague o valor proposto pela marca, 34.990,00€.”.

É, por isso, inequívoco que a A. revelou que não queria ficar com o salvado. O mesmo decorre do facto provado 33. e das suas conclusões 5. a 7. das contra-alegações de recurso.

Assim sendo, face à explanação jurídica que levámos a cabo impõe-se concluir que, tal como o tribunal a quo fundamentou, a A. tem direito a uma indemnização em dinheiro correspondente ao valor do veículo antes do sinistro, como arbitrado na sentença apelada, ao qual não deve ser deduzido o valor do respetivo salvado, pois o salvado é pertença da apelante, à qual a recorrida deve entregar o documento único do mesmo.

Não procede, por conseguinte, a apelação da R.

(…)

 

IV - Decisão

Pelo exposto, julga-se o recurso improcedente, assim se confirmando a decisão recorrida.

*

Custas pela recorrente.  

*

                                                                Coimbra. 12.11.2024

                                                                 Moreira do Carmo

                                                                 Fernando Monteiro

                                                                 Carlos Moreira