Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
923/11.1TBCTB-C.C2
Nº Convencional: JTRC
Relator: MARIA JOÃO AREIAS
Descritores: INSOLVÊNCIA
RECLAMAÇÃO DE CRÉDITOS
GRADUAÇÃO DE CRÉDITOS
CRÉDITOS LABORAIS
PRIVILÉGIO IMOBILIÁRIO ESPECIAL
ALEGAÇÃO
Data do Acordão: 05/16/2017
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE CASTELO BRANCO - FUNDÃO - JUÍZO COMÉRCIO
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA EM PARTE
Legislação Nacional: ARTS.59 CRP, 17, 129 CIRE, 333 CT, 6 E 411 CPC
Sumário: 1. Dentro dos poderes atribuídos ao administrador de insolvência cabe, não só o reconhecimento de créditos não reclamados, mas ainda, o reconhecimento de garantias não invocadas ou insuficientemente alegadas.

2. Se, dos elementos a que tem acesso, resultar que os créditos reclamados pelos trabalhadores se enquadram na sua totalidade na factispecie da al. b) do nº1 do art. 333º CT, deverá o AI reconhecer-lhes o privilégio imobiliário aí previsto, independentemente de alguns dos trabalhadores reclamantes não terem invocado tal privilégio.

3. O privilégio imobiliário especial conferido pela al. b), do artigo 333º CT incide sobre os imóveis que integrem de forma estável a organização empresarial da insolvente a que pertencem os trabalhadores, independentemente do local onde, em concreto, se encontrem a exercer as suas funções.

Decisão Texto Integral:






                                                                                               

Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:

I – RELATÓRIO

Por apenso ao processo onde foi declarada a insolvência de G (…) Lda., aberto concurso de credores foi pelo Administrador de Insolvência apresentada a lista de credores reconhecidos e não reconhecidos.

Realizada tentativa de conciliação foi proferida sentença de verificação e graduação de créditos.

Tendo sido interposto recurso da mesma por parte do credor reclamante Banco (…), S.A., foi, por este tribunal, proferido acórdão que, julgando a apelação parcialmente procedente, anulou a decisão recorrida, com vista à ampliação da matéria de facto no que respeita aos créditos de IMI reclamados pelo Ministério Público, bem como relativamente aos créditos reclamados pelos restantes trabalhadores (encontra-se aceite a graduação dos créditos das trabalhadoras C (…) e N (…), a fim de determinar se gozam de algum privilégio sobre cada um dos imóveis apreendidos.

Após produção de prova documental e testemunhal, foi proferida nova sentença de verificação e graduação de créditos, a qual, homologando a lista de credores reconhecidos de fls. 45 a 47, determinou que se procedesse ao pagamento dos créditos, através do produto da massa insolvente, levando-se em consideração que as dívidas da massa saem precípuas, na devida proporção, do produto da venda de cada um dos bens apreendidos (artigo 172º nº 1 e 2) e do remanescente, dando-se pagamento pela seguinte forma, quanto aos bens imóveis apreendidos:

1) Quanto à verba nº 1 do apenso de apreensão de bens (bem imóvel descrito na Conservatória sob o nº 26/19841121-C):

1º Créditos privilegiados das trabalhadoras ((…)), em rateio, na proporção dos respetivos montantes, encontrando-se o Fundo de Garantia Salarial sub-rogado nas suas posições na estrita medida do pagamento parcial realizado a cada uma, mantendo-se as mesmas como credoras na parte do crédito não satisfeita pelo Fundo, pelo que no rateio final, devem ser incluídos e contemplados, paritária e proporcionalmente, tanto o crédito do Fundo de Garantia Salarial, enquanto credor sub-rogado, como a parte remanescente dos créditos dos trabalhadores, não pagos pelo FGS, de acordo com o disposto no art. 175º do C.I.R.E.;

2º Crédito privilegiado da Fazenda Nacional, na parte relevada como crédito privilegiado por dívida de IMI, no valor de € 71,45;

3º Crédito garantido por hipoteca do credor Banco (…)S.A. no valor de € 58.672,50;

4º Crédito do Instituto da Segurança Social, I.P. na parte relevada como crédito privilegiado, no valor de € 31.186,35;

5º Crédito da Fazenda Nacional, na parte relevada como crédito privilegiado relativamente a I.R.S., no valor de € 1.093,42;

6º Do remanescente dar-se-á pagamento aos créditos comuns, em rateio, na proporção dos respetivos montantes.

2) Quanto à verba nº 2 do apenso de apreensão de bens (bem imóvel descrito na Conservatória sob o nº 26/19841121-B):

1º Créditos privilegiados das trabalhadoras ((…)), em rateio, na proporção dos respetivos montantes, encontrando-se o Fundo de Garantia Salarial sub-rogado nas suas posições na estrita medida do pagamento parcial realizado a cada uma, mantendo-se as mesmas como credoras na parte do crédito não satisfeita pelo Fundo, pelo que no rateio final, devem ser incluídos e contemplados, paritária e proporcionalmente, tanto o crédito do Fundo de Garantia Salarial, enquanto credor sub-rogado, como a parte remanescente dos créditos dos trabalhadores, não pagos pelo FGS, de acordo com o disposto no art. 175º do C.I.R.E.;

2º Crédito privilegiado da Fazenda Nacional, na parte relevada como crédito privilegiado por dívida de IMI, no valor de € 71,45;

3º Crédito garantido por hipoteca do credor Banco (…), S.A. no valor de € 58.672,50;

4º Crédito do Instituto da Segurança Social, I.P. na parte relevada como crédito privilegiado, no valor de € 31.186,35;

5º Crédito da Fazenda Nacional, na parte relevada como crédito privilegiado relativamente a I.R.S., no valor de € 1.093,42;

6º Do remanescente dar-se-á pagamento aos créditos comuns, em rateio, na proporção dos respetivos montantes.

(…)


*
Não se conformando com a mesma, o credor (…) S.A., dela interpôs recurso de (…)

*

Também o credor M (…) dela veio interpor recurso de apelação, concluindo a sua motivação com as seguintes conclusões:

(…)


*

Não foram apresentadas contra-alegações.
Cumpridos que foram os vistos legais ao abrigo do disposto no artigo 657º, nº2, in fine, do CPC, cumpre decidir do objeto do recurso.
II – DELIMITAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO
Tendo em consideração que o objeto do recurso é delimitado pelas conclusões das alegações de recurso, sem prejuízo da apreciação de eventuais questões de conhecimento oficioso – cfr., artigos 635º, e 639º, do Código de Processo Civil –, as questões a decidir são as seguintes:
A. Apelação do credor B (…) S.A.:
a. Nulidade da sentença por condenação em quantidade ou objeto diverso do pedido (art. 615º, nº1, al. e).
b. Se as trabalhadoras P (...) e A (...) gozam de privilégio imobiliário especial relativamente aos imóveis hipotecados.
B. Apelação do credor M (…):
a. Nulidade da sentença por contradição entre a fundamentação e a decisão.
b. Se ao seu crédito deveria ter sido também concedido privilégio imobiliário especial sobre os imóveis hipotecados.
III – APRECIAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO

A. Matéria de facto

São os seguintes os factos dados como provados na sentença recorrida e que aqui não foram objeto de qualquer impugnação:

1. Encontram-se apreendidos a favor da massa insolvente dois imóveis descritos na Conservatória do Registo Predial sob os nºs 26/19841121-C e 26/19841121-B, destinados a estabelecimento comercial e sitos na Rua (...) , Fundão.

2. Nos imóveis identificados em 1. funcionava uma única loja de venda de calçado ao público que, juntamente com outras lojas sitas em Castelo Branco e na Covilhã, faziam parte da cadeia de estabelecimentos comerciais da insolvente.

3. Para além das lojas referidas em 2., a insolvente detinha o seu armazém central, sede e escritórios num edifício sito em Alcains.

4. Todas as lojas e armazém central trabalhavam em rede, com comunicação direta e circulação de mercadorias.

5. Na loja do Fundão, localizada nos imóveis identificados em 1., trabalhava em regime de permanência C (…) e N (…)

6. Para substituição pontual de funcionárias deslocaram-se à loja do Fundão os trabalhadores (…)

7. M (…) exercia as suas funções numa das lojas de Castelo Branco.

8. T (…) era administrativa da sociedade e trabalhava nos escritórios da empresa.

9. P (…) trabalhava na loja da Covilhã.

10. A trabalhadora A (…) apenas desempenhou as suas funções numa das lojas de Castelo Branco.

11. A (…) trabalhava em regime de permanência nos escritórios da insolvente e apenas em situações muito pontuais se deslocava às lojas.

12. A (…) fazia parte do quadro formal de trabalhadores da sociedade insolvente, descontado para a Segurança Social, mas não exercia funções na empresa.

Teremos ainda em consideração o seguinte facto, com interesse para a decisão em apreço:

13. Na lista definitiva que elaborou ao abrigo do disposto no artigo 129º do CIRE, o Administrador de Insolvência veio a reconhecer todos os créditos laborais como “privilegiados”, lista esta que, nesta parte não foi objeto de qualquer impugnação.


*

B. O Direito

1. Nulidades da sentença nos termos das alíneas e) e c) do artigo 615º do CPC.

Insurge-se o Apelante credor B (…), S.A. quanto à graduação efetuada pela sentença recorrida relativamente aos dois únicos imóveis aprendidos para a massa e sobre os quais gozará de hipoteca, na parte em que reconhece privilégio imobiliário especial sobre os imóveis hipotecados às trabalhadoras P (…) e A (…)invocando a nulidade da sentença por condenar em objeto diverso do pedido, porquanto, tendo aquelas trabalhadoras invocado privilégio e não materializando o mesmo, o tribunal a quo ao reconhecer-lhes um privilégio imobiliário especial substituiu-se às partes, considerando pretensões que elas não suscitaram e alterando o objeto do litígio.

Por sua vez, o Apelante M (…) invoca a nulidade da sentença por oposição entre os fundamentos e a decisão, alegando que a sentença recorrida deu como provado que todos os trabalhadores faziam parte desta organização estável e que o juiz deve averiguar se os trabalhadores exerciam funções nos imóveis apreendidos e considerar na sentença de graduação de créditos esse facto e, afinal, acabou por não graduar os créditos de alguns dos trabalhadores, incluindo o recorrente.

Vejamos, antes de mais, se o reconhecimento às credoras P (...) e A (...) de um privilégio imobiliário especial integra (ou não) uma condenação ultra petitum, e se o não reconhecimento de igual privilégio ao credor M (…) integra uma nulidade decorrente de contradição entre os fundamentos de facto e a decisão.

A trabalhadora P (…), em requerimento dirigido ao Administrador de Insolvência (AI) veio reclamar um crédito no valor global de 16.024,80 € (respeitante a salários, proporcionais do subsídio de férias e de natal e indenização pela cessação do contrato de trabalho), requerendo que o crédito da requerente seja “verificado, reconhecido e graduado na posição que legalmente lhe competir, com os privilégios que resultam do facto de serem créditos resultantes da prestação de trabalho e da cessação do respetivo contrato de trabalho”.

Por sua vez, a trabalhadora A (…) veio reclamar o seu crédito no valor global de 10.983,57 € (relativo a vencimentos, subsídio de férias e indemnização pela cessação de trabalho), pedindo o seu reconhecimento, alegando gozarem tais créditos de privilégio mobiliário geral e privilégio imobiliário geral.

O trabalhador M (…) reclamou um crédito no valor global de 19.229,62 €, respeitante a salários em atrasos, férias e subsídios de férias, e indemnização pela cessação do trabalho, invocando a existência de privilégio mobiliário geral sobre todos os móveis da insolvente.

A sentença recorrida – dando como provado que a trabalhadora P (…) trabalhava na loja da Covilhã e que a trabalhadora A (…) apenas desempenhou as suas funções numa das lojas de Castelo Branco, e que nos imóveis apreendidos funcionava uma única loja de calçado ao público e que, juntamente com outras lojas sitas em Castelo Branco e na Covilhã, faziam parte da cadeia de estabelecimentos comerciais da insolvente –, veio a reconhecer gozarem as trabalhadoras P (…) e A (…) privilégio imobiliário especial sobre os imóveis apreendidos, negando o reconhecimento de tal privilégio ao trabalhador M (…) por o mesmo não o ter invocado de forma expressa.

Segundo o Apelante Banco (…)r, tendo estas trabalhadoras pedido que lhes fossem reconhecidos créditos e alegando que os mesmos gozavam de privilégio, sem qualquer concretização factual, o tribunal não poderia substituir-se às partes, indagando oficiosamente em que local cada uma delas exercia a sua atividade e se os imóveis apreendidos para a massa correspondiam à sede da insolvente ou se, de algum modo, integravam de forma estável a organização empresarial da insolvente.

Já quanto ao Apelante M (…) insurge-se contra a circunstância de não lhe ter sido reconhecido igual privilégio, com fundamento em contradição entre a matéria de facto e a decisão proferida em sede de direito, sendo que, a lista que serviu de base à sentença previa como privilegiados “todos” os créditos pertencentes aos trabalhadores, sem outras especificações.

Desde logo, é fácil de constatar não se verificar nenhuma das invocadas nulidades – nunca haveria qualquer condenação para além do pedido, uma vez que ambas as trabalhadoras (P (…) e A (…)) peticionam a qualificação do respetivo crédito como privilegiado[1]; assim como inexiste qualquer contradição entre os factos e a decisão: o juiz a quo não reconheceu a existência do privilégio imobiliário ao Apelante Manuel por não ter sido expressamente invocado por este e não por ter considerado não preenchidos os respetivos pressupostos – encontrando-se em causa, tão só, discordâncias quanto aos fundamentos da decisão.

Julgando-se improcedentes as nulidades invocadas por cada um dos apelantes, passamos à apreciação do mérito da decisão recorrida.

2. Atendibilidade de privilégios e factos não expressamente invocados pelos credores/trabalhadores.

No caso em apreço, o credor M (…) limitou-se a invocar, relativamente aos seus créditos laborais, a existência de um “privilégio creditório mobiliário geral”, levantando-se quanto a ele a questão, não só da ausência de alegação de factos que preenchessem a sua fattispecie, mas, inclusive, da falta de invocação do próprio privilégio imobiliário especial.

Apesar de tais insuficiências na invocação do privilégio imobiliário especial e de alguns dos factos necessários ao preenchimento do mesmo, o Administrador de Insolvência veio a reconhecer a totalidade dos créditos reclamados pelos trabalhadores como “privilegiados”.

As alegações de ambos os recorrentes impõem a resposta, prévia, a duas questões:

i) se o tribunal pode reconhecer a existência de um privilégio não expressamente invocado pelo credor reclamante;

ii) se o tribunal se pode socorrer de factos não expressamente alegados pelo credor.

Ao reclamarem os seus créditos, os credores da insolvência devem indicar “a sua natureza comum, subordinada, privilegiada ou garantida e, neste ultimo caso, os bens ou direito objeto de garantia e respetivos dados de identificação registral, se aplicável”, instruindo o requerimento com todos os documentos de que disponha para prova do alegado – artigo 128º, nº1, alíneas a), in fine e c), do CIRE

A qualificação dos créditos reclamados, ou por si reconhecidos, cabe no âmbito das amplas competências nesta sede atribuídas pelo CIRE ao administrador de insolvência: a lista que este elabora ao abrigo do artigo129º deve conter a relação, não só dos credores que tenham deduzido reclamação, como ainda “daqueles cujos direitos constem dos elementos da contabilidade do devedor ou sejam por outra forma do seu conhecimento”, dela fazendo constar “a identificação de cada credor, a natureza do crédito, o montante do capital e juros, as garantias pessoas e reais, os privilégios, a taxa de juros moratórios aplicável, e as eventuais condições suspensivas ou resolutivas” (ns. 1 e 2 do artigo 129º).

Ou seja, o administrador de insolvência não só pode reconhecer créditos que não tenham sido objeto de reclamação, como pode reconhecer garantias pessoais e reais e privilégios, não expressamente invocados pelos seus beneficiários.

Rompendo com sistema consagrado no CPREF e abrindo uma exceção ao princípio do pedido, o CIRE admite o reconhecimento de créditos não reclamados[2]. A possibilidade de reconhecimento de um crédito não reclamado revela, nas palavras de Catarina Serra, “um sinal de que a ação dos credores não é o motor exclusivo do processo de insolvência, de que a tutela que é concedida aos credores não se circunscreve aos que expressaram a sua vontade ou tomaram alguma iniciativa, de que a execução deve realizar-se em conformidade com princípios que transcendem o simples respeito pelos direitos individuais”[3].

Aproveitando o conhecimento que o administrador tem sobre a vida patrimonial do devedor, na sua esfera passiva e ativa, o legislador confere-lhe a tarefa de elaborar a relação de créditos reconhecidos e a relação de créditos não reconhecidos, podendo sustentá-las em qualquer fonte de conhecimento: nos requerimentos de reclamação apresentados pelos credores; nos elementos da contabilidade do devedor, ou em qualquer outra fonte do seu conhecimento (nº1 do artigo 129º)[4].

E se, dos elementos a que tem acesso (por terem sido juntos com a reclamação ou por resultarem da contabilidade do devedor), resultar que os créditos reclamados pelos trabalhadores se enquadram na sua totalidade na fatispecie do artigo 333º do CPC – por se tratar de créditos emergentes do contrato de trabalho e da sua violação ou cessação (e que, como tal, ao abrigo da referida norma, gozam os mesmos de: a) privilégio mobiliário geral; b) privilégio imobiliário especial sobre bem imóvel do empregador no qual o trabalhador presta atividade;) – deverá o administrador de insolvência qualificar tais créditos como privilegiados, independentemente de alguns dos trabalhadores reclamantes, por esquecimento, por ignorância[5] ou por diverso entendimento jurídico, não terem invocado expressamente qualquer um ou algum dos privilégios atribuídos por lei a tais créditos[6].

O tratamento igualitário de todos os créditos laborais, ainda que alguns não tenham invocado devidamente algum dos privilégios que lhes são concedidos por lei, impor-se-á, não só, pelo interesse público que subjaz ao processo de insolvência, refletido no princípio par conditio creditorum, expressamente consagrado no nº1 do artigo 194º CIRE[7] – o interesse do Estado na insolvência e o fim do instituto consistem na realização coativa do dever de conceder um tratamento paritário aos credores[8] – mas, essencialmente, pela especial natureza dos créditos em causa.

A favor de tal entendimento invocamos, assim, a proteção tradicionalmente conferida aos créditos laborais, uma vez que a própria concessão de privilégios é suportada numa imposição constitucional – dispondo o nº3 do art. 59º da CRP que “os salários gozam de garantia especial, nos termos da lei” –, traduzindo uma “discriminação positiva dos créditos salariais em relação aos demais créditos sobre os empregadores[9]”.

O direito ao salário elevado ao nível de direito fundamental do trabalhador – enquanto garantia da sua subsistência e do seu agregado familiar –, concretizado nos princípios da indisponibilidade, irredutibilidade e impenhorabilidade, levar-nos-ão a rejeitar um tratamento diferenciado na insolvência aos trabalhadores de uma mesma empresa quando, reconhecidamente e face aos elementos a que o AI teve acesso todos eles gozam de um mesmo privilégio sobre determinado bem, só porque alguns deles não o invocaram ou alegaram insuficientemente a materialidade que lhe subjaz.

No caso em apreço, como já foi referido, os créditos laborais foram, na sua totalidade, reconhecidos pelo A.I. como “privilegiados”, sem que este especificasse que tipo de privilégios estava a considerar e sem que fundamentasse minimamente (quer ao nível factual quer através da referência às normas legais em que se apoia), a qualificação por si proposta.

É certo que na ausência de impugnações, deverá ser proferida sentença de verificação de créditos, em que, salvo erro manifesto, se homologa a lista de credores reconhecidos elaborada pelo administrador de insolvência e se graduam os créditos em atenção ao que conste dessa lista (artigo 130º, nº3, CIRE).

Contudo, como já se fez constar do Acórdão que determinou a anulação do julgamento para ampliação da matéria de facto, funcionando o efeito cominatório unicamente quanto à existência, montante e natureza do crédito, cabendo a graduação de créditos em função das garantias invocáveis unicamente ao juiz, não poderá este proceder a tal graduação sem que os autos forneçam, e o juiz os faça constar da sentença de verificação de créditos, todos os elementos necessários à aplicação das normas de direito respeitantes à graduação dos créditos verificados.

No caso em apreço, reconhecendo o AI a todos os créditos dos trabalhadores a qualidade de “privilegiados”, garantia que não foi objeto de qualquer impugnada, o juiz a quo não se encontrava vinculado a reconhecê-la, mas encontrava-se obrigado a proceder à apreciação da questão de determinar que privilégios se encontravam aqui em causa e se  se verificavam ou não os respetivos pressupostos, relativamente a cada um dos créditos.

O juiz não podia proceder, sem mais, à homologação da Lista apresentada pelo AI, apesar de, nesta parte respeitante à qualificação dos créditos dos trabalhadores, não ter sido objeto de qualquer impugnação. Se a qualificação de tais créditos como “privilegiados” permitia deduzir que se queria referir aos privilégios concedidos pelo artigo 333º do CPT aos créditos dos trabalhadores emergentes do contrato de trabalho ou da sua violação e cessação, a omissão de qualquer fundamentação quanto ao reconhecimento de tais privilégios por parte do AI impedia o juiz de apreciar se os respetivos pressupostos se encontravam ou não preenchidos.

Para avaliar e reconhecer a existência dos privilégios e garantias reais e proceder à respetiva graduação, poderá o juiz, dentro dos poderes inquisitórios que lhe são conferidos pelos artigos 6º e 411º do CPC, por força do art. 17º CIRE, pedir informações ao AI, solicitar-lhe a junção de documentos bem como o envio das reclamações para consulta, bem como proceder as diligências instrutórias que tiver por conveniente.

O juiz, para a aferição da verificação dos pressupostos que integrem o preenchimento de tal privilégio, deverá socorrer-se dos elementos constantes dos autos, ainda que não expressamente alegados pelos credores reclamantes[10].

Tem vindo a ser entendido por alguma jurisprudência[11] impender sobre o credor reclamante o ónus de alegação e de prova da conexão entre a sua atividade ou a atividade empresarial da empresa e o imóvel relativamente ao qual pretende fazer valer o referido privilégio especial. Assim o imporia o dever que o artigo 128º, nº1, al. c), do CIRE faz impender sobre o credor reclamante de indicar “a sua natureza comum, subordinada, privilegiada ou garantida e, neste ultimo caso, os bens ou direito objeto de garantia e respetivos dados de identificação registral, se aplicável”, em conformidade com as regras gerais do ónus da prova contidas no art. 342º do Código Civil.

Contudo, as regras quanto ao ónus da prova só assumem relevância no caso de não prova de determinado facto (se o facto se vem a demostrar, as regras do ónus da prova perdem o seu interesse), como forma de se evitar uma situação de non liquet.

Assim, e tal como foi entendido na sentença recorrida, aderindo à posição jurisprudencial maioritária, igualmente seguida por este tribunal de recurso[12], entende-se que, embora caiba ao reclamante a alegação dos factos constitutivos do privilégio imobiliário especial, designadamente se o imóvel do empregador foi o local onde prestava a sua atividade laborar ou se aquele estava afeto a tal atividade, na ausência de tal alegação, pode esse facto ser adquirido processualmente, socorrendo-se o tribunal dos elementos constantes do processo ou procedendo-se à sua indagação oficiosa[13].

3. Graduação dos créditos dos trabalhadores face aos créditos hipotecários.

 Segundo o Apelante credor/(…), o facto de as credoras P (…) e A (…) terem alegado expressamente que não prestavam a sua atividade nos imóveis apreendidos para os autos, seria o suficiente para concluir que o privilégio imobiliário especial concedido aos trabalhadores pelo artigo 333º do CT não abrange os imóveis apreendidos e dados de hipoteca à Apelante.

Incidindo o privilégio imobiliário especial conferido pela al. b) do artigo 333º do CT unicamente “sobre o bem imóvel do empregador no qual o trabalhador preste a sua atividade” e não sobre a globalidade dos bens imóveis da titularidade da entidade patronal, tal restrição tem suscitado a questão do exato âmbito dos bens abrangidos: se todos os imóveis afetos à atividade do empregador ou se, apenas, aqueles imóveis onde o trabalhador tenha efetivamente exercido a sua atividade.

Numa interpretação ampla do aludido preceito defende-se que tal privilégio imobiliário especial abrange todos os imóveis do empregador afetos à sua atividade empresarial, a que os trabalhadores estão funcionalmente ligados – basta que os imóveis integrem a organização produtiva da empresa a que pertencem os trabalhadores, numa ligação que não tem de ser naturalística – isto é, não tem necessariamente a ver com a localização física do posto de trabalho de cada um deles – mas meramente funcional.

Numa interpretação mais restritiva e literal, sustenta-se que o privilégio abrange apenas o imóvel concreto em que o trabalhador preste, ou tenha prestado, de facto, a sua atividade.

Divergindo a doutrina na interpretação a dar a tal norma, o Acórdão para Uniformização de Jurisprudência nº8/2016[14], seguindo a jurisprudência já dominante, veio a aderir de forma unânime[15] à interpretação ampla de tal norma:

“Parece realmente ser esta a interpretação mais consentânea com a razão de ser da atribuição do privilégio creditório aos créditos laborais, que é, como se referiu, a especial proteção que devem merecer esses créditos, em atenção à sua relevância económica e social, que não se concilia com um injustificado tratamento diferenciado dos trabalhadores de uma mesma empresa, em função da atividade profissional de cada um e do local onde a exercem.

Como parece evidente, todos esses trabalhadores carecem da mesma proteção, como forma de assegurar o direito fundamental à retribuição, para salvaguarda de uma existência condigna. Será, pois essa interpretação mais ampla a que se harmoniza com a constituição.

Por outro lado, esses trabalhadores estão ligados ao mesmo empregador, que é o devedor comum, por um vínculo contratual idêntico, contribuindo com o seu trabalho – complementando-se nas suas diversas funções – para a prossecução da atividade global da empresa. Integram, assim, a organização empresarial e estão, todos eles, funcionalmente ligados aos imóveis que, constituindo património da empresa, servem de suporte físico a essa atividade.

(…) Nesta perspetiva, há uma evidente e idêntica conexão de todos os trabalhadores ao referido património da empresa, não existindo fundamento para a desigualdade de tratamento desses trabalhadores, no que respeita à garantia dos respetivos créditos”.

Como salientam José Pedro Anacoreta e Rita Garcia e Costa[16], não existe nenhuma razão para que os créditos de dois trabalhadores da mesma empresa tenham um tratamento diferente, apenas porque um prestou serviço num imóvel propriedade da empresa e outro num imóvel arrendado; assim como, o trabalhador que exerce as suas funções fora das instalações da empresa ou que está sujeito ao regime do teletrabalho não gozaria de qualquer garantia especial sobre os imóveis do empregador.

Adotamos, assim, a posição de que, para efeitos de verificação do privilégio em causa, o imóvel deve integrar de uma forma estável a organização empresarial da insolvente a que pertencem os trabalhadores; deve estar afeto à atividade prosseguida pela empresa e, como tal, à atividade de cada um desses trabalhadores, independentemente das funções concretamente exercidas por estes[17].

No caso em apreço, apurou-se que:

- os imóveis apreendidos, sitos no Fundão, destinavam-se a estabelecimento comercial;

- neles funcionava uma única loja de venda de calçado ao público que, juntamente com outras lojas sitas em Castelo Branco e na Covilhã, faziam parte da cadeia de estabelecimentos comerciais da insolvente;

- para além destas lojas, a insolvente detinha o seu armazém central, sede e escritórios num edifício sito em Alcains;

- todas as lojas trabalhavam em rede, com comunicação direta e circulação de mercadorias.

Face a estes factos, e não restando dúvidas de que os imóveis apreendidos se encontravam afetos à atividade empresarial da insolvente, também os trabalhadores P (…), A (…) e M (…)  gozarão de privilégio imobiliário especial sobre os dois imóveis apreendidos, independentemente de trabalharem em lojas da insolvente sitas noutros locais.

A apelação do credor/Banco (…)será de improceder, procedendo a apelação do credor/M (…)

IV – DECISÃO

 Pelo exposto, acordam os juízes deste tribunal da Relação em julgar:

- improcedente a apelação do Banco (…);

- procedente a apelação do credor M (…), revogando-se parcialmente a decisão recorrida, reconhecendo gozar o mesmo do privilégio especial imobiliário previsto no art. 333ºCT relativamente a ambos os imóveis apreendidos, graduando-o em 1º lugar, juntamente com as demais trabalhadoras (A (…), P (…), N (…) e C (…)), relativamente a cada um dos imóveis apreendidos sob as verbas ns. 1 e 2, nos exatos termos previstos na decisão recorrida.

O Apelante B (…) suportará as custas da sua apelação.

A Apelação do credor M (…) ficará sem custas.

Coimbra, 16 de maio de 2017

                                                                                 

Maria João Areias ( Relatora )

Vítor Amaral

Luís Cravo

V – Sumário elaborado nos termos do art. 663º, nº7 do CPC.

1. Dentro dos poderes atribuídos ao administrador de insolvência cabe, não só o reconhecimento de créditos não reclamados, mas ainda, o reconhecimento de garantias não invocadas ou insuficientemente alegadas.

2. Se, dos elementos a que tem acesso, resultar que os créditos reclamados pelos trabalhadores se enquadram na sua totalidade na factispecie da al. b) do nº1 do art. 333º CT, deverá o AI reconhecer-lhes o privilégio imobiliário aí previsto, independentemente de alguns dos trabalhadores reclamantes não terem invocado tal privilégio.

3. O privilégio imobiliário especial conferido pela al. b), do artigo 333º CT incide sobre os imóveis que integrem de forma estável a organização empresarial da insolvente a que pertencem os trabalhadores, independentemente do local onde, em concreto, se encontrem a exercer as suas funções.

 


[1] Ao invocar os “privilégios” que lhe adviriam  do facto de serem “créditos resultantes da prestação de trabalho e da cessação do respetivo contrato de trabalho”, está-se nitidamente a referir ao privilegio mobiliário geral e ao privilégio imobiliário especial previstos nas als. a) e b), do nº1 do artigo 333º do CT.
[2] Repescando uma faculdade que se encontrava prevista no antigo Regime da Falência e Insolvência contido no Código de Processo Civil (artigo 1224º). Já então Pedro de Sousa Macedo sustentava que os interesses de ordem pública e dos credores incertos afastam o princípio do dispositivo, funcionando antes o princípio inquisitório, salientando ainda que o conhecimento oficioso de créditos se encontrava em concordância com a admissibilidade da impugnação oficiosa pelo administrador expressamente, consagrada no nº2 do art. 1226º - Manual de Direito das Falências, II Vol., Almedina Coimbra -1968, pp.303-304.
[3] Catarina Serra, “A Falência no Quadro da Tutela Jurisdicional dos Direitos de Crédito”, Coimbra Editora, pp.274-276. Em igual sentido, Maria José Costeira, “Classificação, Verificação e Graduação de Créditos no Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas”, I Congresso de Direito da Insolvência”, Cood. Catarina Serra, Almedina, pp. 249 e 250.
[4] Pedro de Sousa Macedo, pronunciando-se sobre o antigo Parecer do Administrador sobre os créditos reconhecidos e não reconhecidos (ainda sem o valor atualmente concedido à relação de créditos reconhecidos e não reconhecidos prevista no atual 129º CIRE), afirmava que “este não é um simples relatório, condensando o que está nos autos, mas uma forma de indagação oficiosa para uma mais perfeita aquisição da verdade material. Por consideração dos interesses dos credores em geral (que não têm de acudir desde logo à fase do concurso uma vez que a lei lhes permite a insinuação posterior por via de ação própria) e dos interesses de ordem pública, que informa o princípio falimentar, funciona o princípio do inquisitório. Ao administrador, como órgão auxiliar do tribunal, pertence a tarefa de proceder a uma indagação o mais completa possível, não só no sentido de uma inteira determinação de todo o passivo (indicação de credores não reclamantes), como também pela verificação dos créditos que venham a ser reclamados. Para o efeito, lançará mão de todos os meios ao seu alcance, como sejam a audição do falido - Manual de Direito das Falências, p.310.
[5] Atentar-se-á em que a reclamação de créditos é dirigida, não ao tribunal, mas ao administrador de insolvência e não tem de ser subscrita por advogado (artigo 128º CIRE). Como salientam Luís A. Carvalho Fernandes e João Labareda, o processo de reclamações surge no CIRE com um modelo bem diferente, que se evidencia, desde logo, na apresentação dos respetivos requerimentos e constituiu uma das manifestações mais significativas da desjudicialização do processo de insolvência, declaradamente visado pelo legislador – “Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado”, 2ª ed., QUID JURIS, Lisboa 2013, p. 548.
[6] No sentido de que, se alguns dos trabalhadores não invocaram o privilégio imobiliário especial por referência ao(s) concretos imóveis da insolvente, cumpriria a este, em ultimo termo, o esclarecimento da situação, se pronunciou o Acórdão do TRC de 05-11-2013, relatado pelo aqui 2ª adjunto, Luís Cravo, disponível in www.dgsi.pt.
[7] Segundo o qual “o plano de insolvência obedece ao princípio da igualdade dos credores da insolvência, sem prejuízo das diferenciações justificadas por razões objetivas”.
[8] Catarina Serra, “A Falência no Quadro da Tutela (…)”, p.292. A tal respeito, afirma-se ainda no Acórdão do STJ de 12-07-2011: “A insolvência tem como escopo axial a satisfação paritária dos interesses dos credores (par conditio creditorum), ou pela negativa impedir que após a declaração de insolvência algum credor possa vir a obter ou adquirir na satisfação do seu crédito uma posição privilegiada ou mais eficaz (mais rápida ou mais eficaz) do que os restantes credores” – acórdão relatado por Gabriel Catarino, disponível in www.dgsi.pt.
[9] Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da Republica Portuguesa Anotada, Vol. I, 4ª ed., 777.
[10] Ainda que se entenda que o princípio do inquisitório previsto no art.11º do CIRE relativo à atendibilidade de factos não alegados, se aplica unicamente ao processo de insolvência, embargos e incidente de qualificação de insolvência, e já não ao apenso de reclamação de créditos, o nº2 do artigo 5º do CPC permite o conhecimento por parte do juiz dos factos instrumentais que resultem da discussão da causa, bem como dos factos de que o tribunal tem conhecimento pelo exercício das suas funções.
[11] Neste sentido, entre outros, Acórdão TRC de 01-10-21013, relatado por Albertina Pedroso, disponível in www.dgsi.pt.
[12] Cfr., Acórdão deste tribunal de 24-02-2015, relatado pela aqui relatora, bem como o aqui 2º adjunto, no Ac. TRC de 05-11-2013 de que foi relator, disponíveis in www.dgsi.pt.
[13] Neste sentido, Acórdão do STJ de 06-07-2011, relatado por Fonseca Ramos, e Acórdãos do TRC de 23-09-2014, relatado por Jorge Arcanjo, e de 01-010-2013, relatado por Albertina Pedroso, disponíveis in www.dgsi.pt.
[14] Acórdão proferido pelo STJ de 23-02-2016, relatado por Pinto de Almeida, e publicado no DR nº74/2016, Série I de 15-04-2016.
[15] Embora tal Acórdão tenha sido proferido com vários votos de vencido relativamente à concreta questão aí colocada – se os imóveis construídos por uma empresa de construção civil, destinados a comercialização, estão excluídos da garantia do privilégio imobiliário especial previsto no art. 377º, naº, al. b), do CT de 2003 –, o tribunal adotou de forma unânime a interpretação alargada de tal norma.
[16] “Prevalência de Créditos Laborais Face à Hipoteca?”, artigo disponível in www.uria.com/documentos/publicationes/1926/documento/articuloUM.pdf?id=3169.
[17] Neste sentido, Acórdão relatado pela aqui também relatora, do TRC de 24-02-2015, disponível in www.dgsi.pt.