Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
5/22.0GATBU.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ISABEL GAIO FERREIRA DE CASTRO
Descritores: IMPOSIÇÃO DA UTILIZAÇÃO DE MÁSCARAS OU VISEIRAS
CONSTITUCIONALIDADE
CRIME DE DESOBEDIÊNCIA
LEGITIMIDADE DA ORDEM
Data do Acordão: 03/12/2025
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE COIMBRA - JUÍZO DE COMPETÊNCIA GENÉRICA DE TÁBUA
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGO 348.º, N.º 1, ALÍNEA B), DO CÓDIGO PENAL, DECRETO-LEI N.º 10-A/2020, DE 13.03, DL N.º 104/2021, DE 27/11, LEI N.º 27/2006, DE 3 DE JULHO; ART.ºS 1.º, 26.º, N.º 1, 24.º E 64.º DA CRP.
Sumário: 1 - À data da publicação do Decreto-Lei n.º 10-A/2020, de 13.03, e da alteração introduzida pelo DL n.º 104/2021, de 27/11, encontrava-se declarada a situação de calamidade, nos termos definidos nos artigos 19.º e seguintes da Lei n.º 27/2006, de 3 de julho (Lei de Bases da Proteção Civil).

2 - O artigo 13º, n.º 1, als. a) e b), e n.º 10, do DL n.º 10-A/2020, de 13/03 não estabelece a criminalização da conduta violadora do dever descrito na norma, diretamente ou por remissão, pelo que não excede a competência do órgão executivo de que promanam os instrumentos legislativos que a aditaram e, subsequentemente, alteraram a sua redação e, como tal, não padece de inconstitucionalidade orgânica ou formal.

3 - E reporta-se apenas a restrições no acesso a determinados espaços, edifícios, estabelecimentos.

4 - A imposição da utilização de máscaras ou viseiras, no momento temporal em que o foi, e porque excecional e temporária – tal obrigatoriedade foi eliminada pelo Decreto Lei n.º 30-E/2022, de 21 de abril –, foi justificada e adequada, respeitando os princípios da necessidade e da proporcionalidade, face à ponderação de direitos constitucionais que se impunha realizar, porquanto havia que procurar travar a situação epidemiológica causada pela pandemia da doença COVID-19 e o índice de transmissibilidade inerente.

5 - A ordem com a cominação de desobediência emanada pelos militares da GNR, no âmbito das suas atribuições, no circunstancialismo descrito na factualidade provada, foi regularmente comunicada, assentou no disposto no artigo 13º, n.º 1, als. a) e b), e n.º 10, do DL n.º 10-A/2020, de 13/03, na versão introduzida pela DL n.º 104/2021, de 27/11, normativo que não é inconstitucional, mostrando-se necessária à salvaguarda de um interesse de natureza sanitária, em contexto de pandemia, não se vislumbrando outros meios de atuação das autoridades que pudessem por cobro à violação iminente do dever decorrente daquela norma.

6 - Não se perfilava qualquer expediente compulsivo previsto numa disposição legal idóneo a evitar as consequências perniciosas do comportamento desobediente.

7 - Não é condição de legitimidade da ordem emanada a prévia testagem por médico de forma a aferir se o recorrente tinha alguma doença contagiosa que fosse suscetível de se propagar para outros cidadãos, porquanto a norma que impunha a obrigatoriedade do uso de máscara ou viseira não a fazia depender de os visados estarem doentes.

Decisão Texto Integral: *

Acordam, em conferência, os Juízes da Secção Penal do Tribunal da Relação de Coimbra:

I. - RELATÓRIO

1. - No âmbito do processo comum que, sob o n.º 5/22.0GATBU, corre termos no Juízo de Competência Genérica de Tábua, do Tribunal Judicial da Comarca de Coimbra, na sequência de julgamento com intervenção de tribunal singular, foi proferida sentença que culminou com o seguinte dispositivo [transcrição[1]]:

         «Face ao exposto, decide-se julgar totalmente procedente, por provada, a decisão de pronúncia e, em consequência, decide-se:

3.1. Condenar o arguido AA pela prática, como autor material e na forma consumada, de 1 (um) crime de desobediência, previsto e punido pelo artigo 348.º, n.º 1, alínea b), do Código Penal, conjugado com o artigo 13.º-B, n.º 1, alíneas a) e b) e n.º 10, do Decreto-Lei n.º 10-A/2020, de 13 de março, na versão introduzida pelo Decreto-Lei n.º 104/2021, de 27 de novembro, numa pena de 40 (quarenta) dias de multa, à taxa diária de 8,00€ (oito euros), o que perfaz um quantum 320,00€ (trezentos e vinte euros), a qual após desconto de um dia de detenção, se fixa em 39 (trinta e nove) dias de multa, à mesma taxa, o que perfaz um total de 312,00€ (trezentos e doze euros);

3.2. Condenar o arguido AA nas custas processuais devidas, com taxa de justiça fixada em 2 UC, nos termos conjugados das normas constantes do n.º 1 do artigo 513.º e n.º 1 do artigo 514.º, ambos do Código de Processo Penal, e artigo 8.º, n.º 9, e tabela III anexa do Regulamento das Custas Processuais;

3.3. Após trânsito, remeta-se boletins ao registo criminal (cfr. artigos 6.º, alínea a) e 7.º, da Lei n.º 37/2015, de 5 de maio e artigo 12.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 171/2015, de 25 de agosto).».

 2. - Não se conformando com tal decisão, veio o arguido, AA, interpor recurso, tendo, no termo da extensa motivação, formulado as seguintes conclusões e petitório [transcrição]:

«I – O artigo 13º-B nº 1 alienas a) e b) e nº 10 do DL 10-A/2020, de 13/3, na versão introduzida pela DL nº 104/2021, de 27/11 é inconstitucional, porque viola a reserva relativa da competência da Assembleia da República.

II – Aquelas limitações, também não poderiam ser interpostas fora do estado de emergência, sendo que no dia dos factos não vigorava um dos estados de emergência.

III – O artigo 13º-B nº 1 alienas a) e b) e nº 10 do DL 10-A/2020, de 13/3, na versão introduzida pela DL nº 104/2021, de 27/11, também é inconstitucional por violar os princípios da dignidade da pessoa humana e da necessidade, tal como o direito à identidade pessoal na sua vertente de identidade física e o direito ao desenvolvimento da personalidade.

IV - A decisão condenatória ofende, assim, o primado da legalidade/constitucionalidade.

V – A ordem emanada da GNR é ilegítima por inconstitucional.

VI – O uso de máscaras obrigatórias a cobrir o rosto, sem que existam estudos e razões científicas para o seu uso, ofendem o Direito Natural e o Princípio do Juiz Natural.

VII – A falta do uso de máscara pelo arguido, nunca poderia colocar em causa a saúde dos outros cidadãos que se encontravam no mercado público, dado que se encontravam protegidos com as suas máscaras, ofendendo assim, também, o Direito Natural e o Princípio do Juiz Natural.

VIII- A pandemia teve origem nos testes RT-PCR, que não têm qualquer fiabilidade para detectar vírus e foram feitos perante ciclos de ampliação exorbitantes, violando assim, novamente, o Direito Natural e o Princípio do Juiz Natural.

IX – As entidades de saúde, não podem, sequer, recomendar, quanto mais obrigar, ao uso de máscaras que prejudicam a saúde dos cidadãos e que não têm qualquer eficácia científica no impedimento da transmissão de viroses.

X – O Arguido tem o direito constitucional de respirar livremente, tal como todos os cidadãos portugueses.

XI – O princípio da saúde pública, não é constitucionalmente superior aos direitos humanos, nem aos direitos, liberdades e garantias constitucionais.

Não se podendo sobrepor a eles.

XII – O arguido estava saudável no dia dos factos, não podendo ter sido condenado, como possível propagador de vírus por não usar máscara.

XIII – O princípio da mínima intervenção do direito penal encontra-se claramente ofendido com a decisão condenatória.

XIV – A democracia não poderia ter sido suspensa pelo conselho de ministros.

Termos em que se requer a V. Exas. que, atendendo aos fundamentos supra expostos, seja o presente recurso julgado procedente por provado, e em consequência, ser a decisão condenatória revogada e substituída por outra, que reconheça a ilegalidade da aplicação do crime de desobediência no que toca ao caso concreto, tal como a inconstitucionalidade das normas invocadas, absolvendo-se assim o arguido.

Espera Respeitosamente Mercê».

3. - A Digna Magistrada do Ministério Público junto da 1.ª instância respondeu ao recurso, concluindo, a final:

«1. O arguido AA, condenado como autor material e na forma consumada, de 1 (um) crime de desobediência, previsto e punido pelo artigo 348.º, n.º 1, alínea b), do Código Penal, conjugado com o artigo 13.º-B, n.º 1, alíneas a) e b) e n.º 10, do Decreto-Lei n.º 10-A/2020, de 13 de março, na versão introduzida pelo Decreto-Lei n.º 104/2021, de 27 de novembro, numa pena de 40 (quarenta) dias de multa, à taxa diária de 8,00€ (oito euros), o que perfaz um quantum 320,00€ (trezentos e vinte euros), a qual após desconto de um dia de detenção, se fixou em 39 (trinta e nove) dias de multa, à mesma taxa, o que perfez um total de 312,00€ (trezentos e doze euros).

2. O Decreto Lei n.º 81/2009 de 21 de agosto, (sistema de vigilância em saúde Pública), no seu artigo 17.º, atribui ao governo poderes para tomar medidas de exceção em caso de emergência em saúde pública, como é o caso de combate a uma pandemia como tal declarada pela Organização Mundial de Saúde, pelo que o artigo 13º-B nº 1 alienas a) e b) e nº 10 do DL 10-A/2020, de 13/3, não é inconstitucional.

3. Á data da prática dos factos estava declarada a situação de contingência no âmbito da pandemia de COVID-19, como medida preventiva face à evolução epidemiológica crescente (cfr. Resolução do Conselho de Ministros n.º 157/2021, de 27 de novembro, alterada pelas Resolução do Conselho de Ministros n.º 181-A/2021, de 23 de dezembro, Resolução do Conselho de Ministros n.º 2-A/2022, de 7 de janeiro, Resolução do Conselho de Ministros n.º 5-A/2022, de 21 de janeiro e Resolução do Conselho de Ministros n.º 17/2022, de 6 de fevereiro), em vigor a partir do dia 1 de dezembro de 2021 até às 23h59 do dia 20 de março de 2022.

4. A situação excecional de prevenção, contenção, mitigação e tratamento da infeção epidemiológica por SARS-COV-e e da doença Covid-19, continuava a existir, incumbindo ao legislador, a determinação de quais as medidas de combate à pandemia, que, face à evolução da doença, continuam a revelar-se necessárias.

5. Na senda do Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, de 27-06-2021, que se pronunciou sobre a Resolução de Conselho de Ministros entendemos que: “A RCM não padece de inconstitucionalidade material por violação do princípio da proporcionalidade, consagrado no artigo 18.º, n.º 2, 2.ª parte da CRP por a medida em causa ser adequada, com as suas inúmeras exceções, ao controle de doença pandémica em ambiência de incerteza científica, mas em que é facto público e notório que se propaga por contactos interpessoais”.

6. Sobre a mesma matéria se pronunciou o Tribunal da Relação de Coimbra, no Acórdão de 10-04-2024: “ A obrigatoriedade do uso da máscara de protecção no contexto de relação laboral em período declarado de pandemia provocada pela COVID-19 não viola o princípio da dignidade da pessoa nem os consequentes direitos à identidade e ao desenvolvimento da personalidade, pois o direito à saúde prevalece sobre todos eles e por isso não é inconstitucional (art.ºs 1.º, 26.º, n.º 1, 24.º e 64.º da CRP).”

7. A ordem emanada pelos militares da GNR, era legítima, porquanto, regularmente comunicada, assenta em disposições legais, in casu, no artigo 348.º, n.º 1, alínea b) do Código Penal, e no disposto no artigo 13.º-B, n.º 1, alíneas a) e b) e n.º 10, do Decreto-Lei 10-A/2020, de 13.03, na versão introduzida pelo Decreto-Lei n.º 104/2021, de 27.11, sendo certo que estes militares, sendo autoridades, têm poderes para esse efeito, uma vez que lhes são reconhecidos poderes de ordenar.

Pelo exposto a douta sentença condenatória proferida pelo tribunal a quo, não merece qualquer reparo ou censura, pelo que deve ser negado provimento ao recurso interposto e mantida a decisão recorrida.

Sendo certo que V. Exas apreciarão e farão a tão desejada Justiça!.»

4. - Nesta instância, o Ex.mo Procurador-Geral Adjunto, sufragando a posição do Ministério Público em primeira instância, emitiu parecer no sentido de o recurso interposto pelo arguido ser julgado improcedente, confirmando-se a sentença recorrida.

5. - Cumprido o estatuído no artigo 417º, n.º 2, do Código de Processo Penal, o arguido não se pronunciou sobre o predito parecer.

            6. - Colhidos os vistos e realizada a conferência, em consonância com o estatuído no artigo 419º, n.º 3, al. c), do Código de Processo Penal, cumpre apreciar e decidir.


*


            II. – FUNDAMENTAÇÃO

            1. - Delimitação do objeto do recurso

            Conforme decorre das disposições conjugadas dos artigos 412º, n.º 1, e 417º, n.º 3, do Código de Processo Penal, é pelo teor das conclusões que o recorrente extrai da motivação, nas quais sintetiza as razões de discordância com o decidido e resume o pedido, que se delimita o objeto do recurso e se fixam os limites do horizonte cognitivo do tribunal superior, sem prejuízo, naturalmente, das questões que devem ser conhecidas oficiosamente.

Concretamente, dispõe o artigo 412º, n.º 1, do Código de Processo Penal que “[a] motivação enuncia especificadamente os fundamentos do recurso e termina pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do pedido”.

Assim, como enfatiza o Professor Germano Marques da Silva, «[s]ão só as questões suscitadas pelo recorrente e sumariadas nas conclusões que o tribunal tem a apreciar»[2].

Contudo, o tribunal de recurso está, ainda, obrigado a decidir todas as questões de conhecimento oficioso, como é o caso das nulidades insanáveis que afetem o recorrente, nos termos dos artigos 379º, n.º 2, e 410º, n.º 3, do Código de Processo Penal, e dos vícios previstos no artigo 410º, n.º 2, do mesmo diploma, que obstam à apreciação do mérito do recurso, mesmo que este se encontre limitado à matéria de direito [cfr. Acórdão do Plenário das Secções do STJ n.º 7/95, de 19.10.1995, e Acórdão de Uniformização de Jurisprudência n.º 10/2005, de 20.10.2005[3]].

O objeto do recurso e os limites dos poderes de apreciação e decisão do Tribunal Superior são, assim, definidos e delimitados pelas referidas questões, umas, suscitadas pelo recorrente, e, outras, de conhecimento oficioso[4].

Assim, no caso vertente, atentas as conclusões formuladas pelo recorrente, as questões a apreciar e decidir são as seguintes:

            - A norma do artigo 13º, n.º 1, als. a) e b), e n.º 10, do DL n.º 10-A/2020, de 13/03, na versão introduzida pela DL n.º 104/2021, de 27/11, é inconstitucional?

            - A ordem com a cominação de desobediência era ilegítima?

            2. – Decisão recorrida

            A sentença tem o seguinte teor [transcrição]:


Sentença
1. Relatório

Para julgamento em processo comum e com intervenção de Tribunal Singular, foi proferida decisão de pronúncia contra o arguido:

AA, filho de BB e de CC, nascido em ../../1980, natural de ... – Inglaterra, portador do Passaporte n.º ...68 n, casado, residente em Rua ..., ..., ... ..., ...,

Pelos factos descritos no despacho de pronúncia sob referência 91611294, cujo teor se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais, imputando-lhe a prática de 1 (um) crime de desobediência, previsto e punido pelos artigos 14.º, n.º 1, 26.º e 348.º, n.º 1, alínea b), do Código Penal, conjugado com o artigo 13.º-B, n.º 1, alíneas a) e b) e n.º 10, do Decreto-Lei n.º 10-A/2020, de 13 de março, na versão introduzida pelo Decreto-Lei n.º 104/2021, de 27 de novembro.


*

O arguido apresentou contestação, invocado, em suma, que não entrou no mercado, mas sim que referiu que não sabia a base legal da ordem dada pela GNR, dado que não via TV, muito menos os shows diários a DGS promovia nos meios de comunicação, com recurso a grosseira manipulação das massas. Alega ainda que as resoluções do Conselho de Ministros que estipularam a obrigatoriedade do uso de máscara são inconstitucionais, que no dia dos factos não vigorava o estado de emergência. Mais diz que para que a recusa pudesse constituir crime de desobediência, a ordem com a cominação de desobediência teria de ser (também) material ou substancialmente legítima, sendo condição dessa legitimidade o prévio esgotamento dos meios legais disponíveis para alcançar o conteúdo útil dessa mesma ordem, ou seja, a testagem por médico se o arguido dispunha de alguma doença contagiosa que fosse suscetível de se propagar para os outros cidadãos que de acordo com a DGS (e da responsabilidade daquela) já se encontram seguros com o uso de máscaras. Diz que a ordem da GNR com a cominação de desobediência não era necessária, carecendo, assim, para efeitos do preenchimento do tipo incriminador, de validade substancial à luz do princípio da intervenção mínima do direito penal, ou da necessidade da pena (artigo 18.º, n.º 2 da Constituição da República Portuguesa), pelo que a sua inobservância não constitui crime de desobediência. Acresce que é manifesta a inconstitucionalidade material da norma resultante das disposições conjugadas dos artigos 13.º-B., n.º 1 e 2, do Decreto-Lei n.º 10-A/2020, de 13 de março, por violação dos princípios da dignidade da pessoa humana e da necessidade dos direitos à Identidade pessoal e ao desenvolvimento da personalidade. Acresce estar ainda por demonstrar estarmos perante uma verdadeira situação de calamidade pública que justifique o recurso ao estado de emergência. Por fim, alega: a sua conduta não teve consequências, porque o arguido estava saudável, sendo que mesmo que o uso de máscaras fosse eficaz para o contágio do Covid-19 (que na perspetiva do arguido não é), o arguido ao não usar nunca poderia contagiar ou outros cidadãos que foram coagidos a usarem máscara.

Arrolou testemunhas.


*

Procedeu-se ao julgamento com observância do formalismo legal, conforme consta da respetiva ata.

2. Saneamento

Mantém-se válida e regular a instância, não tendo sido suscitadas, nem subsistindo, quaisquer nulidades, exceções, ou outras questões prévias ou incidentais de que cumpra conhecer e que obstem ao conhecimento do mérito da causa.


***
3. Fundamentação de facto


3.1. Factos Provados

Da audiência de julgamento resultaram provados, com interesse para a decisão da causa, os seguintes factos:

[Factos da Decisão de Pronúncia]

3.1.1. No dia 09-01-2022, pelas 11h25, o arguido dirigiu-se ao Mercado Municipal de ..., sito na Rua ..., sem fazer uso de máscara ou viseira de proteção.

3.1.2. Ali chegado e porque pretendia entrar no referido espaço sem fazer uso daqueles elementos de proteção, foi acionada a presença da GNR ao local.

3.1.3. Ali chegada, a Patrulha da GNR, composta pelos militares DD e EE, explicaram ao arguido que se encontrava vedada a entrada de pessoas naquele local sem fazer uso dos elementos de proteção legalmente impostos.

3.1.4. Porque o arguido insistiu nos seus intentos, os militares advertiram-no, por diversas vezes que, caso entrasse nas instalações do Mercado Municipal sem fazer uso da máscara ou de viseira de proteção, incorreria na prática de um crime de desobediência e seria, por isso, detido.

3.1.5. Não obstante, o arguido ignorou as advertências e entrou no referido espaço sem os referidos elementos de proteção, altura em que foi dada voz de detenção.

3.1.6. O arguido sabia que ao entrar nas instalações do Mercado Municipal sem fazer uso da máscara ou de viseira de proteção, desrespeitava a ordem que lhe foi emanada pela GNR em cumprimento da lei e incorria na prática de um crime de desobediência em conformidade com o que lhe foi comunicado previamente.

3.1.7. Assim, estava ciente que estava a desobedecer a uma ordem legítima, com base legal, emanada de autoridade competente e que lhe fora devidamente notificada e, ainda assim, o arguido entrou nas instalações do Mercado Municipal sem fazer uso da máscara ou de viseira de proteção, agindo de forma deliberada, livre e conscientemente, sabendo que a sua conduta era proibida e punível pela lei penal.

[Antecedentes criminais]

3.1.8. O arguido não tem antecedentes criminais. 

[Factos da Contestação do arguido]

3.1.9. No dia 09-01-2022 não vigorava estado de emergência.

[Factos pessoais, sociais e económicos do arguido]

I. O arguido é licenciado em engenharia.

II. O arguido é casado e reside em casa própria com a mulher e três filhos, com 10, 8 e 4 anos de idade.

III. Os filhos do arguido têm escola em casa.

 IV. O arguido no momento não se encontra laboralmente ativo, encontrando-se em pausa profissional.

V. A esposa do arguido não tem ocupação profissional.

 VI. O arguido é proprietário de um imóvel em Inglaterra sobre o qual paga um empréstimo.

VII. O arguido é proprietário de uma quinta em Portugal.

VIII. O arguido é proprietário de quatro veículos automóveis, dos anos de 1997, 2007, 2021 e 2022.

Mais resultou provado:

a. O arguido admitiu os factos em causa nos autos, apenas esclarecendo que foi o próprio que chamou a Guarda Nacional Republicana porque os direitos humanos dele estavam a ser violados.

b. O arguido atuou no dia 09-01-2022 no âmbito de um movimento organizado de protesto contra as medidas de relativas a situação epidemiológica do Coronavírus - COVID 19.

c. O arguido foi detido no dia 09-01-2022, pelas 11h25m, tendo sido libertado nesse mesmo dia, às 13h00m.

3.2. Factos não provados

[Factos da Contestação do arguido]

3.2.1. O arguido não entrou no mercado, mas sim, referiu que não sabia a base legal da ordem dada pela Guarda Nacional Republicana, dado que não via TV, muito menos os shows diários que a DGS promovia nos meios de comunicação, com recurso a grosseira manipulação das massas e engenharia social pelo medo.

3.2.2. O arguido deslocou-se ao mercado municipal para comprar alimentos.

3.2.3. No dia 09-01-2022 o arguido estava saudável.


**

Quanto à restante matéria resultante da discussão da causa, que não foi levada aos factos provados e não provado, tal resulta de não revestir interesse para a boa decisão da causa, dentro das diversas soluções de direito, tratando-se de conclusões, constatações, considerações ou discussão de questões eminentemente jurídicas, encerrando os factos alegados factos irrelevantes ou repetitivos para a boa decisão da causa ou meras expressões conclusivas/argumentativas ou de direito.

3.3. Motivação da matéria de facto

O Tribunal formou a sua convicção, com vista à fixação da matéria de facto supra elencada, através da análise conjugada dos meios de prova produzidos e examinados em audiência de julgamento.

Designadamente, chama-se à colação, quanto à prova pessoal:

- As declarações prestadas pelo arguido;

- O depoimento das testemunhas arroladas pelo Ministério Público e pelo arguido: FF, GG e HH.

Quanto à prova documental:

i. Auto de notícia (cfr. referência 6968098);

ii. Auto de libertação (cfr. referência 6968098);

iii. Certificado do Registo Criminal (cfr. referência 94277317).


*

O arguido prestou declarações, admitindo de forma livre a prática dos factos que lhe vinham imputados na acusação, apenas ressalvando que foi o próprio que chamou a Guarda Nacional Republicana ao local dos factos. O arguido fê-lo de forma livre e espontânea quando confrontado com os factos em causa, pelo que das suas declarações nada emerge que seja apto a afastar o caráter confessório das mesmas, pese embora não se retirem as consequências previstas no artigo 344.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, porquanto a confissão em causa não foi integral e sem reservas, sendo que a demais prova arrolada foi produzida.

                No que toca às declarações do arguido, este tribunal considerou que as mesmas se apresentam verosímeis tendo em conta a sinceridade com que as prestou, tendo por sua vez, demonstrado o seu entendimento relativamente a obrigatoriedade do uso de máscaras ou viseiras aquando dos factos e à situação de o impedirem de entrar no mercado municipal sem tais equipamentos. Mais disse que quando chegou a Guarda Nacional Republicana estes lhe explicaram que tinha que colocar a máscara para entrar no recinto e avisaram-no de que não podia entrar sem máscara, considera também que o avisaram do crime de desobediência, sendo que ele pediu aos militares para se afastarem e entrou o mercado.

                Disse o arguido que não respeitou a ordem por considerar que a mesma era ilegal e violar os direitos básicos da humanidade.

Explicou que a testemunha GG estava a traduzir o que a Guarda Nacional Republicana lhe dizia e que percebeu perfeitamente tudo o que estava a acontecer, bem como o que a Guarda Nacional Republicana lhe dizia, entendendo que estava a desobedecer à ordem, tanto é que é ex-militar, pelo que quando lhe dão uma ordem e ele desobedece, sabe que o está a fazer, tendo plena consciência dos seus atos.

Das declarações confessórias do arguido e, bem assim, das motivações explicitadas ao tribunal, resultou provado o facto a.

Por sua vez, as testemunhas FF e GG confirmaram integralmente a factualidade descrita na decisão de pronúncia.

A testemunha FF, militar da Guarda Nacional Republicana autuante, explicou que se dirigiu ao mercado, acompanhado de outro militar, devidamente uniformizados, porque havia um grupo de indivíduos que queriam entrar sem máscara. De forma objetiva, clara e perentória, explicou que disse ao arguido que estava impedido por lei de entrar no mercado sem máscara, só podia se tivesse uma declaração médica a dizer que não podia usar máscara.

Garantiu a testemunha de que foi feita ao arguido a advertência e cominação com o crime de desobediência, mais tendo dito que se entrasse no mercado seria detido, o que fez repetidamente por cerca de 20 minutos. Após, o arguido irrompeu pelo mercado e foi detido.

Por último, a testemunha GG, de forma muito espontânea e objetiva, explicou que a mesma e o arguido fazem parte da mesma comunidade e que no dia dos factos o sucedido foi resultado de uma ação de protesto conjunta contra as medidas aplicadas na altura. Segundo a testemunha, todos os indivíduos queriam entrar no mercado em simultâneo, sem máscara, era o propósito do movimento em causa, e todos tinham claro as consequências da sua ação.

Disse a testemunha que o arguido foi o único corajoso que entrou efetivamente no mercado e que foi a sua decisão para fazer valer os princípios e valores que estavam a defender, sendo que estava perfeitamente consciente que ao entrar incorreria na prática de um crime – o que era exatamente o seu intuito.

testemunha HH não revelou qualquer conhecimento quando ao sucedido no dia dos factos porquanto não estava presente.

Com efeito, os factos 3.1.1. a 3.1.5. resultaram provados, de forma indubitável, pela admissão dos mesmos pelo arguido e, bem assim, pelos depoimentos congruentes, prestados de forma espontânea, objetiva e clara, das testemunhas FF e GG, sendo que no que respeita à primeira, o militar autuante, acabou igualmente por confirmar o teor do auto de notícia junto aos autos, o que foi corroborante com a prova pessoal produzida.

Cabe esclarecer que quanto ao facto 3.1.2., pese embora o arguido tenha dito que foi o próprio que ligou para a Guarda Nacional Republicana por considerar estarem a ser violados os seus direitos, sendo que a testemunha GG disse igualmente que foi a própria que chamou e, neste sentido, a testemunha FF disse desconhecer quem fez a chamada para o posto, mas que apenas receberam a chamada via rádio, o tribunal deu como provado o facto tal como descrito na decisão de pronúncia porquanto, independentemente de quem chamou a Guarda Nacional Republicana ao local, o certo é que a mesma foi acionada na decorrência de o arguido pretender entrar no mercado municipal sem fazer uso dos elementos de proteção.

De tudo o exposto, das concretas declarações do arguido – que o admitiu espontaneamente – e também do depoimento da testemunha GG, e ainda do que resulta dos factos objetivos analisados à luz das regras experiência comum, também decorre com clareza o elemento subjetivo do crime (factos 3.1.6. a 3.1.7.), na medida em que o arguido necessariamente representava as características que integram o tipo de ilícito em causa e houve uma decisão de vontade do mesmo para a realização do ilícito-típico, mediante uma ação, designadamente perante a análise global do comportamento do agente, tendo em conta as regras da normalidade do acontecer.


**

Por sua vez, o facto relativo aos antecedentes criminais do arguido (facto 3.1.8.), no caso, a sua ausência, resultou da análise do Certificado de Registo Criminal atualizado do mesmo.

**

O facto da contestação do arguido resultou provado – facto 3.1.9. – por ser facto notório e de conhecimento generalizado, na medida em que aquando dos factos, isto é, a 09-01-2022, estava declarada a situação de contingência no âmbito da pandemia de COVID-19, como medida preventiva face à evolução epidemiológica crescente (cfr. Resolução do Conselho de Ministros n.º 157/2021, de 27 de novembro, alterada pelas Resolução do Conselho de Ministros n.º 181-A/2021, de 23 de dezembro, Resolução do Conselho de Ministros n.º 2-A/2022, de 7 de janeiro, Resolução do Conselho de Ministros n.º 5-A/2022, de 21 de janeiro e Resolução do Conselho de Ministros n.º 17/2022, de 6 de fevereiro), em vigor a partir do dia 1 de dezembro de 2021 até às 23h59 do dia 20 de março de 2022.

Por sua vez, o estado de emergência foi sucessivamente renovado entre 9 de novembro de 2020 e 30 de abril de 2021, dia a partir do qual foi declarado o estado de calamidade, não estando, assim, em vigor à data dos factos o estado de emergência (cfr. Resolução do Conselho de Ministros n.º 45-C/2021, de 30 de abril).

Quanto à convicção negativa deste tribunal respetivamente no que respeita aos factos alegados na contestação do arguido, o facto 3.2.1. foi dado como não provado porque expressamente contrariado pela demais prova produzida, sendo que dúvidas inexistem que o arguido entrou no mercado (tal como o próprio admitiu). No que respeita ao facto de o arguido não conhecer a base legal por não assistir televisão não foi feita qualquer prova, tanto é que, se o arguido se dirigiu ao mercado no âmbito de uma ação/um movimento promovida com os seus pares, tal como relatou a testemunha GG, contra as medidas aplicadas aquando dos factos, é porque efetivamente sabia que as mesmas se encontravam em vigor.

Igualmente quanto ao facto 3.2.2. não foi feita prova suficiente da sua veracidade, desde logo de que foi efetivamente o único motivo pelo qual o arguido no dia dos factos se deslocou ao mercado, considerando o acima exposto.

Por fim, sobre o facto 3.2.3., pese embora o arguido tenha dito que estava saudável no dia dos factos, tal característica, por ter inerente um juízo científico, não se basta com a mera declaração do arguido nesse sentido, não sendo prova suficiente para o efeito o facto de o arguido de considerar e sentir saudável, motivo pelo qual se deu tal facto como não provado.


**

Já quanto aos factos que se reconduzem às condições pessoais, sociais e económicas do arguido (factos I. a VIII.), ficaram demostrados através das declarações do arguido em audiência de julgamento, que se mostraram credíveis e sinceras a respeito.

**

Por último, o facto b. ficou provado pelo depoimento objetivo e sincero da testemunha GG, corroborado a respeito pela testemunha FF, e o facto c. decorreu do auto de libertação junto aos autos.

***

4. Fundamentação de direito

Cumpre agora definir o enquadramento jurídico-penal aplicável e daí retirar as devidas conclusões jurídicas.

Ao arguido vem imputada a prática de um crime desobediência, previsto e punido pelo artigo 348.º, n.º 1, alínea b), do Código Penal, conjugado com o artigo 13.º-B, n.º 1, alíneas a) e b) e n.º 10, do Decreto-Lei n.º 10-A/2020, de 13 de março, na versão introduzida pelo Decreto-Lei n.º 104/2021, de 27 de novembro.

Vejamos.

4.1. Enquadramento jurídico-penal

Preceitua o artigo 348.º, n.º 1, do Código Penal que “quem faltar à obediência devida a ordem ou mandado legítimos regulamente comunicados e emanados de autoridade ou funcionário competente, é punido com pena de prisão até um ano ou com pena de multa até 120 dias se:

 a) Uma disposição legal cominar, no caso, a punição da desobediência simples;

b) Na ausência de disposição legal, a autoridade ou o funcionário fizerem a correspondente cominação.”

Com a presente incriminação visa-se a proteção da autonomia intencional do Estado, pretendendo-se, nas palavras de Cristina Líbano Monteiro, “de uma forma particular, a não colocação de entraves à actividade administrativa por parte dos destinatários dos seus actos” (cfr. Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo III, 2001, Coimbra Editora, p. 350). Através da repressão jurídico-penal da desobediência, pretendeu-se, assim, tutelar eficazmente o interesse administrativo do Estado em garantir o acatamento dos mandados legítimos da autoridade em matéria de serviço e ordem pública.

Os elementos objetivos do tipo de crime em análise, concretamente no que respeita à alínea b), são:

a) faltar a obediência devida a ordem ou mandado legítimos;

b) ter sido tal ordem ou mandado regularmente comunicados e emanados de autoridade ou funcionário competente; e

c) a autoridade ou funcionário fazerem a correspondente cominação.

A ordem ou mandado consiste numa norma de conduta com destinatário concretizado, in casu expressa pelo emitente, exigindo do destinatário uma ação ou uma abstenção determinadas, isto é, corresponde a toda a imposição da obrigação de praticar ou deixar de praticar certo facto.

Tal ordem ou mandado cujo não acatamento se reprime terá que ser substancialmente legítima, ou seja, importa que se adeque ou tenha expressão numa disposição legal que autorize a sua emissão nos termos em que foi realizada ou, na ausência de disposição legal, na sequência dos poderes para esse efeito reconhecidos ao funcionário ou autoridade expedidora.

Por seu turno, a ordem tem igualmente de ser formalmente válida, ou seja, apenas quando as ordens em causa são emitidas e comunicadas em conformidade com as formalidades que a lei estipula para a sua emissão e comunicação se poderá configurar um crime de desobediência.

Mais se impõe que essa ordem tenha que ser regularmente comunicada o que significa que o seu destinatário deve recebê-la e, sobretudo, entendê-la, ou seja exige-se que o arguido tenha conhecimento daquilo que lhe é imposto, que entenda o conteúdo e sentido da intimação.

Por fim, é necessário que a ordem proceda de autoridade ou funcionário que para tal tenha legitimidade, o que acontece quando a ordem emitida se enquadre dentro do limite da sua esfera de atribuições. O conceito de autoridade pressupõe a atribuição de um poder autónomo de ordenar e decidir, nele consequentemente se incluindo, entre outros, enquanto forças da segurança, os militares da Guarda Nacional Republicana.

Trata-se de um crime de mera atividade, que se reconduz, na essência, à violação de um dever de obediência a uma ordem ou mandado legítimos emanados de autoridade ou funcionário competente.

O crime de desobediência tanto pode ser cometido por ação como por omissão, punindo-se, deste modo, tanto a atividade que contrarie uma ordem ou mandado legítimo, como também o simples deixar de fazer aquilo que foi legitimamente ordenado ou mandado, independentemente das consequências ou de resultado.

Quanto ao elemento subjetivo, o crime é um crime essencialmente doloso, podendo o dolo consubstanciar-se em qualquer das suas modalidades (artigo 14.º do Código Penal).

*

No que respeita à ordem ou mandado legítimos, com relevância para o caso dos autos, importa levar em conta a legislação excecional em vigorava aquando da prática dos factos.

O artigo 13.º-B, n.º 1, alíneas a) e b) do Decreto-Lei n.º 10-A/2020, de 13 de março, designadamente com a redação dada pelo Decreto-Lei n.º 104/2021, de 27 de novembro (ou seja, a redação em vigor aquando da prática dos factos), previa o seguinte, sob a epígrafe “Uso de máscaras e viseiras”:

1 - É obrigatório o uso de máscaras ou viseiras para o acesso ou permanência nos seguintes locais:

a) Espaços, equipamentos e estabelecimentos comerciais e de prestação de serviços, independentemente da respetiva área;

b) Edifícios públicos ou de uso público onde se prestem serviços ou ocorram atos que envolvam público; (…)”.

Por sua vez, os n.ºs 8 e 10 da mesma norma legal dispunham o seguinte:

8 - Incumbe às pessoas ou entidades, públicas ou privadas, que sejam responsáveis pelos respetivos espaços ou estabelecimentos, serviços e edifícios públicos ou meios de transporte, a promoção do cumprimento do disposto no presente artigo.

(…)

10 - Sem prejuízo do número seguinte, em caso de incumprimento, as pessoas ou entidades referidas no n.º 8 devem informar os utilizadores não portadores de máscara que não podem aceder, permanecer ou utilizar os espaços, estabelecimentos ou transportes coletivos de passageiros e informar as autoridades e forças de segurança desse facto caso os utilizadores insistam em não cumprir aquela obrigatoriedade. (…)”.


***

Uma vez que em sede de contestação o arguido invocou a inconstitucionalidade material da norma resultante das disposições conjugadas dos artigos 13.º-B, n.ºs 1 e 2, do Decreto-Lei n.º 10-A/2020, de 13 de março, por violação dos princípios da dignidade da pessoa humana e da necessidade e dos direitos à identidade pessoal e ao desenvolvimento da personalidade, consagrados, respetivamente, nos artigos 1.º, 18.º, n.º 1, e 26.º, n.º 1, da Constituição, ir-se-á analisá-la.

A inconstitucionalidade material respeita a determinados preceitos e sucede quando o conteúdo da norma está em desconformidade com o que exige a Constituição da República Portuguesa.

Ora, considera-se que não assiste razão ao arguido.

As medidas previstas no Decreto-Lei n.º 10-A/2020, de 13 de março, designadamente com a redação dada pelo Decreto-Lei n.º 104/2021, de 27 de novembro, surgiram enquanto medidas excecionais e temporárias relativas à situação epidemiológica do Coronavírus - COVID 19. Tais medidas foram excecionalmente implementadas atendendo à emergência de saúde pública de âmbito internacional, declarada pela Organização Mundial de Saúde, no dia 30 de janeiro de 2020, bem como à classificação do vírus como uma pandemia, no dia 11 de março de 2020, pelo que se impôs acautelar, estrategicamente, a previsão de normas de contingência para a pandemia SARS-CoV-2, e, bem assim, assegurar o tratamento da doença COVID-19 no Serviço Nacional de Saúde.

A situação excecional que se vivia no momento da aplicação das medidas e a proliferação de casos registados de contágio de COVID-19 exigiu a aplicação de medidas extraordinárias e de caráter urgente, nomeadamente medidas sanitárias, que aumentassem as possibilidades de distanciamento social e prevenissem a proliferação dos contágios, onde se insere, necessariamente, a obrigatoriedade de uso de máscaras ou viseiras para acesso ou permanência em espaços, diga-se, de uma forma geral, tendencialmente movimentados.

Efetivamente não se afasta que a dignidade da pessoa humana e os consequentes direitos à identidade e ao desenvolvimento da personalidade, bem como o princípio da necessidade, são efetivamente princípios normativos constitucionalmente consagrados (cfr. artigos 1.º, 18.º, n.º 1 e 26.º, n.º 1 da Constituição da República Portuguesa), contudo, também o é, indubitavelmente, o direito à saúde e este, claramente, prevalece sobre todos aqueles pois que contende diretamente com o direito à vida, o que se entende como um direito verdadeiramente absoluto – artigos 24.º e 64.º da Constituição da República Portuguesa.

Acresce que a obrigatoriedade de uso de máscara ou viseira, porque necessariamente temporária, também não afeta o direito à identidade e desenvolvimento pessoal que remete essencialmente para o direito de os cidadãos a conhecerem e verem reconhecido o seu nome e ascendência biológica (neste sentido, vide o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 06-11-2018, processo n.º 1885/16.4T8MTR.E1.S2, disponível em www.dgsi.pt). Contudo, “mesmo que se entenda (como é o caso) que o direito à identidade parte da necessidade de cada um poder afirmar quem é e de assim ser conhecido e nessa medida distinguir-se das demais pessoas nas relações sociais, nas suas variadas vertentes (físico-biológica, seguramente, mas também política, ideológica, religiosa, enfim, cultural), é a todos os títulos evidente que também isso não é coarctado pelo uso de máscara imposto pela lei como melhor meio ao tempo conhecido e disponibilizado pela ciência e pela tecnologia para combater a pandemia com que o mundo então se confrontou (poderia dificultar, isso concede-se, mas não mais que isso)” (cfr. Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 10-04-2024, processo n.º 303/22.3T8CSC.L1-4, disponível em www.dgsi.pt).

Considera este tribunal que a imposição da utilização de máscaras ou viseiras, no momento temporal em que o foi, e porque excecional e temporária – tanto é que tal obrigatoriedade foi eliminada pelo Decreto Lei n.º 30-E/2022, de 21 de abril –, foi justificada e adequada, respeitando os princípios da necessidade e da proporcionalidade, face à ponderação de direitos constitucionais que se impunha realizar, porquanto havia que procurar travar a situação epidemiológica causada pela pandemia da doença COVID-19 e o índice de transmissibilidade inerente.

Assim, tem-se que o artigo 13.º-B  do Decreto-Lei n.º 10-A/2020, de 13 de março, na versão introduzida pelo Decreto-Lei n.º 104/2021, de 27 de novembro, não se encontra ferido de inconstitucionalidade material por não violar os princípios da dignidade da pessoa humana e da necessidade e os direitos à identidade pessoal e ao desenvolvimento da personalidade, consagrados, respetivamente, nos artigos 1.º, 18.º, n.º 1, e 26.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa, visto que o objetivo de tal norma legal era a proteção dos indivíduos através da adoção de uma medida que se destinava a não disseminar doenças.

Face ao exposto, decide-se aplicar a norma do artigo 13.º-B do Decreto-Lei n.º 10-A/2020, de 13 de março, na versão introduzida pelo Decreto-Lei n.º 104/2021, de 27 de novembro, por se entender que a mesma não é inconstitucional.


**

Revertendo ao caso dos autos, não restam dúvidas que os elementos do tipo objetivo de ilícito do crime de desobediência simples se dão por verificados.

Ficou provado que, no dia 09-01-2022, pelas 11h25, o arguido se dirigiu ao Mercado Municipal de ... sem fazer uso de máscara ou viseira de proteção. Ali chegado e porque pretendia entrar no referido espaço sem fazer uso daqueles elementos de proteção, foi acionada a presença da Guarda Nacional Republicana ao local. Ali chegada, a Patrulha da Guarda Nacional Republicana explicou ao arguido que se encontrava vedada a entrada de pessoas naquele local sem fazer uso dos elementos de proteção legalmente impostos e, porque o arguido insistiu nos seus intentos, os militares advertiram-no, por diversas vezes que, caso entrasse nas instalações do Mercado Municipal sem fazer uso da máscara ou de viseira de proteção, incorreria na prática de um crime de desobediência e seria, por isso, detido. Não obstante, o arguido ignorou as advertências e entrou no referido espaço sem os referidos elementos de proteção, altura em que foi dada voz de detenção.

No caso dos autos, a ordem dada pelos militares da Guarda Nacional Republicana ao arguido era legítima, assentando a fonte dessa legitimidade no disposto no artigo 13.º-B, n.º 1, alíneas a) e b) e n.º 10, do Decreto-Lei 10-A/2020, de 13 de março, na versão introduzida pelo Decreto-Lei n.º 104/2021, de 27 de novembro.

O arguido foi devidamente advertido pelos militares da Guarda Nacional Republicana de que teria de usar máscara para entrar no mercado municipal e de que se o não fizesse cometeria um crime de desobediência e seria detido e, mesmo assim incumpriu a ordem emanada, entrado em tal mercado sem fazer uso de máscara ou viseira.

O tipo legal em causa exige que a ordem ou mandado legítimo seja emitido por autoridade ou funcionário competente, não restando dúvida de que a Guarda Nacional Republicana, enquanto força de segurança, poderia emitir ou fazer executar a ordem de colocação de elementos de proteção para entrar num espaço que se reconduz a um mercado municipal.

 Mais, tem-se que a ordem dada pelos militares da Guarda Nacional Republicana foi efetivamente balizada pelos princípios que regem a intervenção penal, o da necessidade da pena e da proporcionalidade da intervenção penal, considerando as circunstâncias pandémicas excecionais do momento dos factos e o facto de estar em vigor legislação que impunha a obrigatoriedade de uso de máscaras ou viseiras para o acesso ou permanência em estabelecimentos comerciais e de prestação de serviços, independentemente da respetiva área e em edifícios públicos ou de uso público onde se prestem serviços ou ocorram atos que envolvam público – ao que, claramente, corresponde um mercado municipal, como in casu.

 Assim é porque a vida em sociedade não é possível sem o cumprimento por parte dos cidadãos das ordens legítimas emanadas por autoridades policiais e, havendo a obrigatoriedade de utilização de elementos de proteção nos termos descritos, tendo o arguido violado tal obrigatoriedade, não há dúvida de que a Guarda Nacional Republicana poderia, caso o arguido persistisse na conduta, como efetivamente persistiu, ou seja, se não acatasse a ordem de colocar a máscara ou viseira para entrar no mercado, cominá-lo com a prática de crime de desobediência, desde que previamente advertido de que a sua conduta o faria incorrer na prática de tal crime, tal como o foi no caso dos autos.

Note-se que a discordância do arguido relativamente à lei vigente em Portugal à data dos factos não constitui causa de exclusão nem da ilicitude, nem da culpa.

Por seu turno, não é condição de legitimidade da ordem emanada, como refere o arguido na sua contestação, a prévia testagem por médico por forma a aferir se o arguido dispunha de alguma doença contagiosa que fosse suscetível de se propagar para os outros cidadãos, porquanto a norma que impõe a obrigatoriedade do uso de máscara ou viseira é independente de o obrigado a tal estar ou não doente.

Todo o procedimento descrito e que foi dado como provado é esclarecedor de que a ordem que o arguido não acatou foi legítima, foi regularmente comunicada (pois que o arguido compreendeu perfeitamente o seu alcance, efetuada que foi a título presencial) e emanou de um agente com legitimidade para a proferir (militar da Guarda Nacional Republicana).

Mais ficou provado que o arguido sabia que ao entrar nas instalações do Mercado Municipal sem fazer uso da máscara ou de viseira de proteção, desrespeitava a ordem que lhe foi emanada pela Guarda Nacional Republicana em cumprimento da lei e incorria na prática de um crime de desobediência em conformidade com o que lhe foi comunicado previamente. Assim, estava ciente que estava a desobedecer a uma ordem legítima, com base legal, emanada de autoridade competente e que lhe fora devidamente notificada e, ainda assim, o arguido entrou nas instalações do Mercado Municipal sem fazer uso da máscara ou de viseira de proteção, agindo de forma deliberada, livre e conscientemente, sabendo que a sua conduta era proibida e punível pela lei penal.

Destarte, agiu o arguido com dolo direto (cfr. artigo 14.º, n.º 1 do Código Penal), de forma livre e com consciência da ilicitude do seu ato (cfr. artigo 17.º do Código Penal).

Tendo o arguido agido dolosamente e não emergindo da factualidade considerada provada qualquer causa de exclusão da ilicitude ou da culpa, mostrando-se preenchido, quer o tipo objetivo, quer o tipo subjetivo de ilícito do mencionado tipo legal de crime, conclui-se ter sido o arguido autor (artigo 26.º do Código Penal) do crime de desobediência simples pelo qual vem pronunciado.

4.2. Das consequências jurídicas do crime

Feito, pela forma descrita, o enquadramento jurídico-penal da conduta do arguido, cabe agora determinar a natureza e a medida da sanção a aplicar-lhe.

O crime de desobediência simples é punível com pena de prisão de 1 (um) mês até 1 (um) ano ou com pena de multa de 10 (dez) a 120 (cento e vinte) dias (artigos 348.º, n.º 1, alínea b), 41.º, n.º 1, e 47.º, n.º 1, do Código Penal).

4.2.1. Da escolha da pena

Fazendo uso da base legal e do raciocínio acima explicitado, verifica-se que estamos perante uma previsão abstrata de uma pena compósita alternativa (MIGUEZ GARCIA, M. e CASTELA RIO, J. M., Código Penal - Parte geral e especial, com notas e comentários, 3.ª edição atualizada, Coimbra, Almedina, 2018, p. 423), pelo que cabe agora determinar qual das duas referidas penas será a adequada ao caso concreto.

Para tanto, nos termos do artigo 70.º do Código Penal, “se ao crime forem aplicáveis, em alternativa, pena privativa e pena não privativa da liberdade, o tribunal dará preferência à segunda sempre que esta realizar de forma adequada e suficiente as finalidades da punição”. As finalidades da punição vêm previstas no artigo 40.º, n.º 1 do Código Penal, sendo: “a proteção de bens jurídicos” e a “reintegração do agente na sociedade”.

Assim, as penas só podem visar finalidades exclusivamente preventivas, o que conflui nas exigências de prevenção geral e especial, arredando-se em sede de escolha da pena a função exercida pela culpa. Ou seja, não cabe nesta fase atender à finalidade de compensação da culpa, relevando esta tão-só para o processo de determinação da pena, como pressuposto e limite inultrapassável do quantum daquela - “a função da culpa exerce-se no momento de determinação (…); ela é eminentemente estranha, porém, às razões históricas e político-criminais que justificam as penas alternativas e de substituição” (DIAS, Jorge de Figueiredo, Direito Penal, Parte Geral, TOMO II, As Consequências Jurídicas do Crime, 2.ª reimpressão, Coimbra, Coimbra Editora, 2009, p. 331 e 332).

No que tange à proteção de bens jurídicos, segundo Figueiredo Dias, “primordialmente, a finalidade visada pela pena há-de ser a da tutela necessária dos bens jurídicos-penais no caso concreto”, que se traduz na “necessidade de tutela da confiança e das expetativas da comunidade na manutenção da vigência da norma violada; sendo por isso uma razoável forma de expressão afirmar como finalidade primária da pena o restabelecimento da paz jurídica comunitária abalada pelo crime”. Daqui decorre a ideia da prevenção geral positiva, que dá conteúdo ao princípio da necessidade da pena consagrado no artigo 18.º, n.º 2 da Constituição da República Portuguesa (vide, DIAS, Jorge de Figueiredo, Direito Penal, Parte Geral, TOMO I, Questões Fundamentas, A Doutrina Geral do Crime 3.ª edição, Coimbra, Gestlegal, 2019, p. 90 e 91).

Contudo, em sede de escolha da pena, perante a alternatividade entre pena de prisão e de multa, a prevenção geral não é tida como primordial para os sobreditos efeitos. Senão vejamos.

Continuando a leitura integrada do artigo 40.º, n.º 1 do Código Penal, a reintegração do agente na sociedade remete-nos para o domínio da prevenção especial positiva, ou seja, o propósito da reinserção social, a ressocialização (ou talvez melhor: a inserção social, a socialização, porque pode tratar-se de alguém que foi desde sempre um dessocializado) do delinquente” (DIAS, Jorge de Figueiredo, Direito Penal, Parte Geral, TOMO I, Questões Fundamentas, A Doutrina Geral do Crime, 3.ª edição, Coimbra, Gestlegal, 2019, p. 63 e 64).

 Embora a finalidade principal das penas, stricto sensu, sejam as exigências de prevenção geral positiva, isto é, a reposição da validade contrafática da norma violada mediante tutela dos bens jurídicos afrontados, como se viu, em contexto de escolha de penas alternativas, a prevalência impõe-se na prevenção especial positiva de socialização, porquanto esta justifica, necessariamente, todo o movimento de luta contra  a pena de prisão, que está na base da prevalência das penas não privativas da liberdade, conforme decorre expressamente do artigo 70.º do Código Penal. Desta feita, só deve ser negada a aplicação de uma pena alternativa não privativa da liberdade quando a execução da prisão se revele, do ponto de vista da prevenção especial positiva, ou seja, da socialização do agente, necessária ou mais conveniente que a pena de multa.

Dito isto, na presente fase de escolha da pena, o papel da prevenção geral surge “sob a forma de conteúdo mínimo de prevenção de integração indispensável à defesa do ordenamento jurídico, como limite à atuação das exigências de prevenção especial de socialização. Quer dizer: desde que impostas ou aconselhadas à luz das exigências de socialização, a pena alternativa ou a pena de substituição só não serão aplicadas se a execução da pena de prisão se mostrar indispensável para que não sejam postas irremediavelmente em causa a tutela dos bens jurídicos e estabilização contrafática das expetativas comunitárias” (DIAS, Jorge de Figueiredo, Direito Penal, Parte Geral, TOMO II, As Consequências Jurídicas do Crime, 2.ª reimpressão, Coimbra, Coimbra Editora, 2009, p. 333).


*

No caso, as exigências de prevenção geral são elevadas, perante o aumento das condutas atentatórias da autonomia e autoridade estaduais que se vêm notando no nosso país, já que o incumprimento deliberado de determinada ordem, legitimamente imposta, cria não só entraves na administração da justiça e na sua celeridade, como gera um sentimento de impunidade que urge pôr cobro.

Relativamente às exigências de prevenção especial, entende o Tribunal que as mesmas não são acentuadas porquanto o arguido não tem antecedentes criminais e se encontra social e familiarmente inserido.

Assim, tendo em consideração as condições pessoais do arguido e que nunca foi condenado pela prática de crime da mesma natureza do que está em causa nos autos, entende o tribunal que as exigências que no caso se fazem sentir não se satisfazem, apenas, com a aplicação ao arguido de uma pena de prisão, afigurando-se que a pena de multa ainda reafirmará na comunidade a manutenção do comando normativo violado, porquanto a pena de prisão seria manifestamente desproporcional e desajustada quer à ressocialização do arguido quer à reafirmação da validade da norma violada.

Ponderando a situação na sua globalidade e tendo, principalmente, em conta as diminutas exigências de prevenção especial, opta-se pela pena de multa, na medida em que o tribunal considera que, mediante a aplicação de uma pena de multa, é possível supor que o arguido interiorizará a gravidade da sua conduta e as possíveis consequências que a mesma pode implicar na comunidade, pelo que a multa se afigura suficiente para a ressocialização do agente, perfila-se como adequada à manutenção da confiança da comunidade na vigência da norma infringida, à reprovação e à prevenção do crime.

4.2.2. Da medida concreta da pena

Determinada que está a espécie de pena aplicável ao arguido e, consequentemente, a moldura penal da mesma, há que fixar a respetiva medida concreta.

A pena concreta é fixada dentro da moldura legal resultante do preenchimento de determinado tipo legal de crime, todavia, esta moldura penal pode vir a ser modificada, em virtude das chamadas circunstâncias modificativas, agravantes ou atenuantes.

Note-se que as circunstâncias modificativas são pressupostos que não contendem com o tipo de ilícito ou com o tipo de culpa, nem mesmo com a punibilidade em sentido próprio, mas sim com a maior ou menor gravidade do crime como um todo (DIAS, Jorge de Figueiredo, Direito Penal Português, Parte Geral, Tomo II, As Consequências Jurídicas do Crime, 2.ª reimpressão, Coimbra, Coimbra Editora, 2009, p. 199 e 200).

In casu, nenhuma circunstância modificativa se verifica.


*

O crime de desobediência simples é punível em abstrato com pena de multa de 10 (dez) a 120 (cento e vinte) dias (cfr. artigos 348.º, n.º 1, alínea a), e 47.º, n.º 1, do Código Penal).

Importa referir que a determinação da pena de multa é feita segundo o sistema dos dias de multa (cfr. artigo 47.º do Código Penal), que pressupõe duas operações distintas e sucessivas: a determinação dos dias de multa, em função da culpa e das exigências de prevenção (artigo 47.º, n.º 1 e 71.º, n.º 1 do Código Penal); e a determinação do quantitativo diário, em função da situação económico-financeira do agente (artigo 47.º, n.º 2 do Código Penal).

i)  Dos dias de multa

Assim, de acordo com o preceituado no artigo 71.º, n.º 1 do Código Penal, aplicável ex vi do artigo 47.º, n.º 1 do Código Penal, os concretos dias de multa devem ser fixados em função da culpa do agente revelada no facto (artigo 40.º, n.º 2 do Código Penal) e das exigências de prevenção geral e especial – as finalidades de punição (artigo 40.º, n.º 1 do Código Penal).

Repristina-se aqui o raciocínio tecido supra, aquando da escolha da pena, acrescentando-se algumas considerações.

Conforme se disse, a prevenção geral positiva visa reforçar a confiança da comunidade na validade e na força de vigência das normas violadas, como instrumento de tutela de bens jurídicos, e a prevenção especial positiva, acautelar a reinserção social do agente. A finalidade primordial visada pela pena há de ser a prevenção geral positiva, donde decorre a medida ótima de tutela dos bens jurídicos e das expetativas comunitárias que a pena se propõe alcançar.

Segundo Figueiredo Dias, “abaixo deste ponto ótimo ideal outros existirão em que aquela tutela é ainda efetiva e consistente e onde portanto a pena concretamente aplicada se pode ainda situar sem que perca a sua função primordial de tutela dos bens jurídicos”. Continuando a descer do ponto ótimo, chegar-se-á ao limiar mínimo de defesa do ordenamento jurídico, abaixo do qual se porá em causa a reposição da validade das normas penais violadas (vide, neste sentido, DIAS, Jorge de Figueiredo, Direito Penal, Parte Geral, TOMO I, Questões Fundamentas, A Doutrina Geral do Crime, 3.ª edição, Coimbra, Gestlegal, 2019, p. 92).

Aqui chegados, conclui-se que a prevenção geral positiva nos fornece uma “moldura de prevenção”, dentro da qual deverão atuar as considerações de prevenção especial, que representam, em última instância, a medida da pena (posição sufragada em: DIAS, Jorge de Figueiredo, Direito Penal, Parte Geral, TOMO I, Questões Fundamentas, A Doutrina Geral do Crime, 3.ª edição, Coimbra, Gestlegal, 2019, p. 92; RODRIGUES, Anabela, O modelo de prevenção na determinação da medida concreta da pena, RPCC 12, 2002, p. 177 e seguintes; e ANTUNES, Maria João, Penas e Medidas de Segurança, Coimbra, Almedina, 2020, p. 45).

Note-se que as exigências de prevenção especial podem estar dignificadas, de acordo com o caso concreto, na sua vertente positiva ou negativa. A prevenção especial positiva remete-nos, como já se disse, para a socialização do agente, a negativa para as funções de advertência individual ou de segurança. Assim, caso o agente não se revele carente de socialização, em termos de prevenção especial, a pena terá uma função de suficiente advertência, reconduzindo a uma descida da medida da pena concreta para o limite mínimo da “moldura de prevenção”.

Compatibilizando a culpa com esta “moldura de prevenção”, esta vai atuar enquanto proibição do excesso, não sendo o fundamento da pena, mas sim o seu pressuposto necessário e limite máximo inultrapassável. Em caso algum a pena pode exceder a medida da culpa (cfr. artigo 40.º, n.º 2 do Código Penal), sob pena de violação do princípio da dignidade da pessoa humana, correspondendo assim a uma barreira intransponível na determinação da pena concreta.

Assim, pode resumir-se, como o faz Figueiredo Dias: “(1) Toda a pena serve finalidades exclusivas de prevenção geral e especial; (2) A pena concreta é limitada, no seu máximo inultrapassável, pela medida da culpa; (3) Dentro deste limite máximo ela é determinada no interior de uma moldura de prevenção geral de integração, cujo limite superior é oferecido pelo ponto ótimo de tutela dos bens jurídicos e cujo limite inferior é constituído pelas exigências mínimas de defesa do ordenamento jurídico; (4) Dentro desta moldura de prevenção geral de integração a medida da pena é encontrada em função de exigências de prevenção especial, em regra positiva ou de socialização, excecionalmente negativa, de intimidação ou de segurança individuais” (DIAS, Jorge de Figueiredo, Direito Penal, Parte Geral, TOMO I, Questões Fundamentas, A Doutrina Geral do Crime, 3.ª edição, Coimbra, Gestlegal, 2019, p. 96).

Aquando da determinação da pena concreta, nos termos do disposto no n.º 2 do artigo 71.º do Código Penal, o Tribunal tem de atender a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor ou contra o agente do mesmo. Este n.º 2 enuncia, não taxativamente, quais são estes fatores de determinação, cabendo aqui não olvidar da ambivalência que os mesmos podem gozar para efeitos de apreciação em sede de culpa e prevenção.

Vejamos agora a pena concreta a aplicar, tendo presente o acima explicitado.

A moldura penal abstratamente aplicável ao crime em causa, corresponde a uma pena de multa de 10 (dez) e 120 (cento e vinte) dias.

Quanto às exigências de prevenção, remete-se para as considerações tecidas supra em sede de escolha da pena, consagrando tão-só que tanto a prevenção geral se tem como elevada e a especial como diminuta.

Nesta sede temos então, ainda, que tomar em consideração os seguintes fatores:

- O grau de ilicitude do facto que se apresenta como mediano (em face da conduta desobediente do arguido).

- O modo de execução do crime assume uma relevância diminuta (tendo em conta que os factos em causa não se afastam do modo típico de revelação de delitos da mesma espécie).

- Quanto à gravidade das consequências do crime nada se apurou.

- A culpa do arguido, ao refletir a consciência da ilicitude do facto, situa-se no nível mediano, (atendendo ao grau de censurabilidade da atitude interna e personalidade manifestadas no facto).

- O dolo do arguido, tendo agido com dolo direto, apresenta-se na forma mais intensa de dolo.

         - As condições socioeconómicas do arguido, considerando a matéria dada como provada, têm-se como favoráveis, porquanto está familiar e social inserido, é licenciado em engenharia, é casado e reside em casa própria com a mulher e três filhos, com 10, 8 e 4 anos de idade, os filhos do arguido têm escola em casa, o arguido no momento não se encontra laboralmente ativo, encontrando-se em pausa profissional, a esposa do arguido não tem ocupação profissional, o arguido é proprietário de um imóvel em Inglaterra sobre o qual paga um empréstimo, o arguido é proprietário de uma quinta em Portugal, e é proprietário de quatro veículos automóveis, dos anos de 1997, 2007, 2021 e 2022.

- A ausência de antecedentes criminais prévios à prática do facto objeto dos autos, é de valorar positivamente.

- Quanto aos sentimentos manifestados no cometimento do crime e os fins ou
motivos que o determinaram
, da facticidade provada é possível extrair que o arguido no âmbito de uma ação pré-organizada de protesto contra as medidas em vigor para conter a situação epidemiológica do Coronavírus - COVID 19.

- A conduta processual do arguido é valorada positivamente, na medida em que este demonstrou espírito de colaboração ao ser confrontado com as evidências do cometimento do crime, adotando, durante o julgamento, uma postura processual positiva, admitindo parte dos factos de que vinha acusado.

Olhando ao contexto enunciado, ponderando as exigências de prevenção geral e especial ajustadas ao caso vertente e a culpa do agente, entende o tribunal fixar, ao arguido a pena de 40 (quarenta) dias de multa, a qual se fixa em 39 (trinta e nove) dias após desconto de 1 (um) dia de detenção, nos termos do artigo 80.º, n.º 2, do Código Penal.

i) Do quantitativo diário

Por sua vez, para fixar o quantitativo diário da pena de multa - de acordo com o que dispõe o artigo 47.º, n.º 2 do Código Penal, entre 5,00€ (cinco euros) e 500,00€ (quinhentos euros) - há que tomar em conta a situação económica e financeira do condenado e os seus encargos pessoais.

Assim, urge atender à totalidade dos rendimentos próprios do condenado, qualquer que seja a sua fonte, deduzindo-se os impostos, bem como as deduções para segurança social. Para além disto, não relevam os gastos permanentes (como empréstimos e alimentos), mas é necessário ter em conta os deveres jurídicos de assistência do condenado, bem como outras obrigações voluntariamente assumidas (ANTUNES, Maria João, Penas e Medidas de Segurança, Almedina, 2020, p. 48 e 49). Não obstante, aqui, naturalmente, o Tribunal recorre a um critério de razoabilidade e exigibilidade.

Na fixação do quantitativo diário, só fazendo corresponder àquele que tem maior disponibilidade um maior quantitativo diário se respeitará o princípio da igualdade de sacrifício e só assim a execução da pena de multa produz análoga eficácia preventiva, ou seja, a pena de multa produzirá um efeito preventivo semelhante para o rico e para o pobre.

Entende-se, assim, que o quantitativo diário mínimo de €5,00 (cinco euros) deverá ser aplicado aos arguidos com baixos rendimentos, de forma a impedir um desvirtuamento da teleologia subjacente à pena de multa e a evitar injustiças relativas entre os condenados (cfr. Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, datado de 4 de julho de 2008, processo n.º 153/08.1, disponível www.dgsi.pt).

Destarte, devemos atender ao rendimento disponível do condenado, depois destas deduções, pelo que no nosso caso, e face aos factos provados I. a VIII., retira-se uma condição económica favorável, tendo por referência o valor do salário mínimo nacional e os encargos do arguido.

Perante a situação económica e financeira do condenado, bem como os seus encargos pessoais, entende o tribunal fixar o quantitativo diário em 8,00€ (oito euros).


*

Face a exposto, decide-se aplicar ao arguido a taxa diária de 8,00€ (oito euros), o que atento o número de dias acima fixado perfaz a quantia de 320,00€ (trezentos e vinte euros) a qual, após desconto, se computa num total de 312,00€ (trezentos e doze euros).

4.2.3. Da substituição da pena de multa

Por fim, atento a que o arguido vai condenado numa pena de multa de pequena gravidade, coloca-se então a possibilidade de haver uma quarta operação quanto à determinação da pena que se prende com a sua substituição pela única pena prevista no Código Penal para o efeito.

No artigo 60.º do Código Penal encontra-se autonomizada uma pena de substituição da pena de multa fixada em medida não superior a 240 dias - a admoestação - que consiste numa solene advertência, que deverá ser efetuada de forma pública, tendo em atenção a dignidade do arguido e os fins da sua reintegração.

Pressuposto formal de aplicação de admoestação é a de ao agente dever ser aplicada pena de multa em medida não superior a 240 (duzentos e quarenta) dias (artigo 60.º, n.º 1 do Código Penal), e, como pressupostos materiais temos a exigência de prévia reparação do dano, que o Tribunal possa concluir, consideradas as circunstâncias concretas do facto e do agente, que a admoestação se revela um meio adequado e suficiente de realização das finalidades da punição (artigo 60.º, n.º 2 do Código Penal) e, ainda, que o agente não tenha sido condenado, nos três anos anteriores ao facto, em qualquer pena, onde se inclui a admoestação (artigo 60.º, n.º 3 do Código Penal).

Contudo, no caso em análise, conquanto diminutas, como explicitado acima, as exigências de prevenção especial, as exigências de prevenção geral são elevadas, pelo que não considera este tribunal, no que tange com a defesa do ordenamento jurídico, que a comunidade consideraria reposta a confiança na validade contrafática da norma violada com o sancionamento do arguido através de uma admoestação.

Assim, por razões de prevenção geral, não será substituída a pena de multa aplicada ao arguido.

5. Responsabilidade tributária

Uma vez que se impõe a condenação do arguido, terá o mesmo que suportar o pagamento das custas e demais encargos do processo (artigos 513.º, n.º 1 e 514.º, n.º 1 do Código de Processo Penal), fixando-se a taxa de justiça em 2 UC (artigo 8.º, n.º 9, do Regulamento das Custas Processuais e Tabela III a este anexa).


***

6. Dispositivo

 (…)».

            3. – Apreciação do recurso

            - A norma do artigo 13º, n.º 1, als. a) e b), e n.º 10, do DL n.º 10-A/2020, de 13/03, na versão introduzida pela DL n.º 104/2021, de 27/11, é inconstitucional?

            O recorrente começa por invocar que o artigo 13º-B, n.º 1, alíneas a) e b), e n.º 10, do DL n.º 10-A/2020, de 13/3, na versão introduzida pelo DL n.º 104/2021, de 27/11, é inconstitucional porque viola a reserva relativa da competência da Assembleia da República e porque as limitações que consagra também não poderiam ser interpostas fora do estado de emergência, sendo que no dia dos factos não vigorava um dos estados de emergência.

            Vejamos.

            Em causa está o artigo 13º, n.º 1, als. a) e b), e n.º 10, do DL n.º  10-A/2020, de 13/03 – diploma que estabelecia medidas excecionais e temporárias relativas à situação epidemiológica do novo Coronavírus - COVID 19 –, aditado pelo Decreto-Lei n.º 20/2020[5], de 01/05 [cfr. artigo 3.º], na redação dada pelo artigo 4.º do Decreto-Lei n.º 104/2021[6], de 27/11, que produziu efeitos a partir de 01.12.2021 até 22.04.2022, data em que entrou em vigor o Decreto-Lei n.º 30-E/2022[7], de 21/04, que revogou, entre o mais, as alíneas a) a e) do n.º 1  [cfr. artigos 2.º e 3º, al. a)].

            O preceito em causa insere-se num vasto conjunto de medidas legislativas adotadas para combater a pandemia da doença COVID-19, causada pelo novo Coronavírus, SARS-CoV-2.

            Com efeito, na sequência da declaração pela Organização Mundial de Saúde, em 30/01/2020, de uma emergência de saúde pública de âmbito internacional e da classificação, em 11/03/2020, do vírus SARS-CoV-2 como uma pandemia, o Estado português adotou várias medidas de prevenção, mitigação e tratamento da doença COVID-19.

            Conforme síntese efetuada no acórdão do Tribunal Constitucional n.º 170/2024[8], a 18/03/2020 foi declarado o estado de emergência, com fundamento na verificação de uma situação de calamidade pública, a vigorar entre 19/03/2020 e 02/04/2020 (Resolução da Assembleia da República n.º 15-A/2020, de 18 de março, e Decreto do Presidente da República n.º 14-A/2020, de 18 de março), o qual foi sendo sucessivamente renovado, mantendo-se até 02/05/2020.

            Logo após, o Governo declarou a situação de calamidade, que vigorou em todo o território continental até 26/06/2020 (Resoluções do Conselho de Ministros n.ºs 33-A/2020, 38/2020, 40-A/2020 e 43-B/2020). Seguiram-se novas declarações de calamidade, vigorando de 15/10/2020 a 23/11/2020 (Resoluções do Conselho de Ministros n.ºs 88-A/2020, 92-A/2020 e 96-B/2020).

            Entretanto, em 09/11/2020, teve lugar nova declaração do estado de emergência (Resolução da Assembleia da República n.º 83-A/2020, de 6 de novembro, e Decreto do Presidente da República n.º 51-U/2020, de 6 de novembro), a qual foi sendo sucessivamente renovada, vigorando até 30/04/2021.

            A partir de 01/05/2021, passou a vigorar a situação de calamidade, decretada através da Resolução do Conselho de Ministros n.º 45-C/2021, prorrogando-se, sucessivamente, até 31/08/2021 (cf. Resoluções do Conselho de Ministros n.ºs 46-C/2021, 59-B/2021, 62-A/2021, 64-A/2021, 70-A/2021, 74-A/2021, 76-A/2021, 77-A/2021, 86-A/2021, 91-A/2021, 92-A/2021, 96-A/2021 e 101-A/2021). Mais tarde, a Resolução do Conselho de Ministros n.º 157/2021 declarou novamente a situação de calamidade até 20/03/2022, a qual, no entanto, só vigorou até 18/02/2022, visto que, entretanto, foi revogada pela Resolução do Conselho de Ministros n.º 25-A/2022, que declarou o estado de alerta.

            Verifica-se, assim, para o que ora importa, que, à data da publicação do Decreto-Lei n.º 10-A/2020, de 13.03, e da alteração introduzida pelo DL n.º 104/2021, de 27/11, se encontrava declarada a situação de calamidade, nos termos definidos nos artigos 19.º e seguintes da Lei n.º 27/2006, de 3 de julho (Lei de Bases da Proteção Civil).

            O artigo 165.º, sob a epígrafe “Reserva relativa de competência legislativa”, estabelece que é da exclusiva competência da Assembleia da República, salvo autorização ao Governo, legislar sobre as matérias descriminadas no n.º 1, entre as quais, a definição dos crimes, penas, medidas de segurança e respetivos pressupostos, bem como processo criminal [cfr. al. c)].

            Como explicam J. J. Gomes Canotilho e Vital Moreira, «[o] alcance da reserva de competência legislativa da AR não é idêntico em todas as matérias», importando «distinguir três níveis: (a) um nível mais exigente, em que toda a regulamentação legislativa da matéria é reservada à AR – é o que ocorre na maior parte das alíneas; (b) um nível menos exigente, em que a reserva da AR se limita ao regime geral (als. d, e, h), ou seja, em que compete à AR definir o regime comum ou normal da matéria, sem prejuízo, todavia, de regimes especiais que possam ser definidos pelo governo (ou, se for caso disso, pelas Assembleias Legislativas regionais); (c) finalmente, um terceiro nível, em que a competência da AR é reservada apenas no que concerne às bases gerais do regime jurídico da matéria (als. f, g, n, u[9].

            Ora, a alínea c) do n.º 1 do artigo 165.º – que atribui ao parlamento a competência para definir os “crimes, penas, medidas de segurança e respetivos pressupostos, bem como processo criminal” – situa-se naquele primeiro nível, competindo à Assembleia da República, salvo autorização ao Governo, definir o regime integral, ao invés do que sucede em outras matérias, como decorre, por exemplo da alínea d), em que apenas é matéria de competência reservada da AR legislar sobre o regime geral do ilícito de mera ordenação social e do respetivo processo.

            Portanto, o Governo pode criar novos tipos de crimes, desde que tenha autorização da Assembleia da República[10].

Nem a Lei n.º 81/2009, de 21 de agosto – que institui um sistema de vigilância em saúde pública –, nem a Lei n.º 27/2006, de 3 de julho – Lei de Bases da Proteção Civil –, contêm qualquer disposição passível de configurar uma previsão ou autorização suficiente para a criação de novos tipos de crimes ou ampliação da abrangência dos já existentes no âmbito de uma situação de calamidade[11].

            O artigo 13º, n.º 1, als. a) e b), e n.º 10, do DL n.º 10-A/2020, de 13/03, na apontada redação em vigor à data dos factos objeto dos presentes autos, dispunha:

“1 - É obrigatório o uso de máscaras ou viseiras para o acesso ou permanência nos seguintes locais:

a) Espaços, equipamentos e estabelecimentos comerciais e de prestação de serviços, independentemente da respetiva área;

b) Edifícios públicos ou de uso público onde se prestem serviços ou ocorram atos que envolvam público;

(…)

10 - Sem prejuízo do número seguinte, em caso de incumprimento, as pessoas ou entidades referidas no n.º 8 devem informar os utilizadores não portadores de máscara que não podem aceder, permanecer ou utilizar os espaços, estabelecimentos ou transportes coletivos de passageiros e informar as autoridades e forças de segurança desse facto caso os utilizadores insistam em não cumprir aquela obrigatoriedade.”

            Ora, o versado preceito legal reporta-se apenas a restrições no acesso a determinados espaços, edifícios, estabelecimentos.

            Não configura uma norma incriminatória per se, pois não prevê a punibilidade, a qualquer título, da conduta, cometida em situação de calamidade, de desobedecer à obrigatoriedade do uso de máscaras ou viseiras para o acesso ou permanência nos locais nela descriminados.

            Outrossim, nem sequer nela se faz qualquer cominação para efeito do crime de desobediência, nos termos da alínea a), do n.º 1, do artigo 348º do Código Penal.

            Conclui-se, assim, que a norma em causa não estabelece a criminalização da conduta violadora do dever nela descrito, diretamente ou por remissão[12], pelo que não excede a competência do órgão executivo de que promanam os instrumentos legislativos que a aditaram e, subsequentemente, alteraram a sua redação e, como tal, não padece de inconstitucionalidade orgânica ou formal.

           

            O recorrente alega, ainda, que o artigo 13º, n.º 1, als. a) e b), e n.º 10, do DL n.º 10-A/2020, de 13/03, na versão introduzida pela DL n.º 104/2021, de 27/11, também é inconstitucional por violar os princípios da dignidade da pessoa humana e da necessidade, tal como o direito à identidade pessoal na sua vertente de identidade física e o direito ao desenvolvimento da personalidade, consagrados, respetivamente, nos artigos 1.º, 18.º, n.º 1, e 26.º, n.º 1, da Constituição.

            Esta questão da inconstitucionalidade material da norma já havia sido invocada pelo recorrente, em sede de contestação, tendo sido apreciada pelo tribunal a quo nos seguintes moldes:

«A inconstitucionalidade material respeita a determinados preceitos e sucede quando o conteúdo da norma está em desconformidade com o que exige a Constituição da República Portuguesa.

Ora, considera-se que não assiste razão ao arguido.

As medidas previstas no Decreto-Lei n.º 10-A/2020, de 13 de março, designadamente com a redação dada pelo Decreto-Lei n.º 104/2021, de 27 de novembro, surgiram enquanto medidas excecionais e temporárias relativas à situação epidemiológica do Coronavírus - COVID 19. Tais medidas foram excecionalmente implementadas atendendo à emergência de saúde pública de âmbito internacional, declarada pela Organização Mundial de Saúde, no dia 30 de janeiro de 2020, bem como à classificação do vírus como uma pandemia, no dia 11 de março de 2020, pelo que se impôs acautelar, estrategicamente, a previsão de normas de contingência para a pandemia SARS-CoV-2, e, bem assim, assegurar o tratamento da doença COVID-19 no Serviço Nacional de Saúde.

A situação excecional que se vivia no momento da aplicação das medidas e a proliferação de casos registados de contágio de COVID-19 exigiu a aplicação de medidas extraordinárias e de caráter urgente, nomeadamente medidas sanitárias, que aumentassem as possibilidades de distanciamento social e prevenissem a proliferação dos contágios, onde se insere, necessariamente, a obrigatoriedade de uso de máscaras ou viseiras para acesso ou permanência em espaços, diga-se, de uma forma geral, tendencialmente movimentados.

Efetivamente não se afasta que a dignidade da pessoa humana e os consequentes direitos à identidade e ao desenvolvimento da personalidade, bem como o princípio da necessidade, são efetivamente princípios normativos constitucionalmente consagrados (cfr. artigos 1.º, 18.º, n.º 1 e 26.º, n.º 1 da Constituição da República Portuguesa), contudo, também o é, indubitavelmente, o direito à saúde e este, claramente, prevalece sobre todos aqueles pois que contende diretamente com o direito à vida, o que se entende como um direito verdadeiramente absoluto – artigos 24.º e 64.º da Constituição da República Portuguesa.

Acresce que a obrigatoriedade de uso de máscara ou viseira, porque necessariamente temporária, também não afeta o direito à identidade e desenvolvimento pessoal que remete essencialmente para o direito de os cidadãos a conhecerem e verem reconhecido o seu nome e ascendência biológica (neste sentido, vide o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 06-11-2018, processo n.º 1885/16.4T8MTR.E1.S2, disponível em www.dgsi.pt). Contudo, “mesmo que se entenda (como é o caso) que o direito à identidade parte da necessidade de cada um poder afirmar quem é e de assim ser conhecido e nessa medida distinguir-se das demais pessoas nas relações sociais, nas suas variadas vertentes (físico-biológica, seguramente, mas também política, ideológica, religiosa, enfim, cultural), é a todos os títulos evidente que também isso não é coarctado pelo uso de máscara imposto pela lei como melhor meio ao tempo conhecido e disponibilizado pela ciência e pela tecnologia para combater a pandemia com que o mundo então se confrontou (poderia dificultar, isso concede-se, mas não mais que isso)” (cfr. Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 10-04-2024, processo n.º 303/22.3T8CSC.L1-4, disponível em www.dgsi.pt).

Considera este tribunal que a imposição da utilização de máscaras ou viseiras, no momento temporal em que o foi, e porque excecional e temporária – tanto é que tal obrigatoriedade foi eliminada pelo Decreto Lei n.º 30-E/2022, de 21 de abril –, foi justificada e adequada, respeitando os princípios da necessidade e da proporcionalidade, face à ponderação de direitos constitucionais que se impunha realizar, porquanto havia que procurar travar a situação epidemiológica causada pela pandemia da doença COVID-19 e o índice de transmissibilidade inerente.

Assim, tem-se que o artigo 13.º-B  do Decreto-Lei n.º 10-A/2020, de 13 de março, na versão introduzida pelo Decreto-Lei n.º 104/2021, de 27 de novembro, não se encontra ferido de inconstitucionalidade material por não violar os princípios da dignidade da pessoa humana e da necessidade e os direitos à identidade pessoal e ao desenvolvimento da personalidade, consagrados, respetivamente, nos artigos 1.º, 18.º, n.º 1, e 26.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa, visto que o objetivo de tal norma legal era a proteção dos indivíduos através da adoção de uma medida que se destinava a não disseminar doenças.

Face ao exposto, decide-se aplicar a norma do artigo 13.º-B do Decreto-Lei n.º 10-A/2020, de 13 de março, na versão introduzida pelo Decreto-Lei n.º 104/2021, de 27 de novembro, por se entender que a mesma não é inconstitucional

Acompanhamos a argumentação expendida e a conclusão alcançada, dando-se nota, ainda, do exarado no sumário do acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 10.04.2024 citado na decisão recorrida – «A obrigatoriedade do uso da máscara de protecção no contexto de relação laboral em período declarado de pandemia provocada pela COVID-19 não viola o princípio da dignidade da pessoa nem os consequentes direitos à identidade e ao desenvolvimento da personalidade, pois o direito à saúde prevalece sobre todos eles e por isso não é inconstitucional (art.ºs 1.º, 26.º, n.º 1, 24.º e 64.º da CRP).»

Termos em que se conclui que também não se verifica a invocada inconstitucionalidade material da norma em apreço.

Improcede, pois, esta primeira questão.

            - A ordem com a cominação de desobediência era ilegítima?

   Alega o recorrente, em apertada síntese, que ainda que a ordem se mostre funcionalmente adequada, nada obstando à sua emissão e ao seu acatamento pelo destinatário do ponto de vista da prossecução do interesse público subjacente, ela tem que ser legítima e o seu incumprimento atingir a dignidade penal e a necessidade de pena pressupostas pelo artigo 348º, em respeito pelo princípio da legalidade e da intervenção mínima da direito penal, o que não se verifica, in casu, sendo condição daquela legitimidade o prévio esgotamento dos meios legais disponíveis para alcançar o conteúdo útil dessa mesma ordem, ou seja, a testagem por médico se o arguido dispunha de alguma doença contagiosa que fosse susceptível de se propagar para os outros cidadãos que de acordo com a DGS (e da responsabilidade daquela) já se encontram seguros com o uso de máscaras. Conclui que a ordem é ilegítima porque é inconstitucional, o uso obrigatório de máscaras a cobrir o rosto, sem que existam estudos e razões científicas para o seu uso, ofendem o Direito Natural e o Princípio do Juiz Natural, a falta do uso de máscara nunca poderia colocar em causa a saúde dos outros cidadãos que se encontravam no mercado público, dado que se encontravam protegidos com as suas máscaras, ofendendo assim, também, o Direito Natural e o Princípio do Juiz Natural, a pandemia teve origem nos testes RT-PCR, que não têm qualquer fiabilidade para detetar vírus e foram feitos perante ciclos de ampliação exorbitantes, violando assim, novamente, o Direito Natural e o Princípio do Juiz Natural, as entidades de saúde, não podem, sequer, recomendar, quanto mais obrigar, ao uso de máscaras que prejudicam a saúde dos cidadãos, que não têm qualquer eficácia científica no impedimento da transmissão de viroses e que estava saudável no dia dos factos, não podendo ter sido condenado como possível propagador de vírus por não usar máscara.

            Vejamos.

            Dispõe o artigo 348.º do Código Penal, sob a epígrafe “Desobediência”:

            “1 - Quem faltar à obediência devida a ordem ou a mandado legítimos, regularmente comunicados e emanados de autoridade ou funcionário competente, é punido com pena de prisão até 1 ano ou com pena de multa até 120 dias se:

            a) Uma disposição legal cominar, no caso, a punição da desobediência simples; ou

            b) Na ausência de disposição legal, a autoridade ou o funcionário fizerem a correspondente cominação.

            2 - A pena é de prisão até 2 anos ou de multa até 240 dias nos casos em que uma disposição legal cominar a punição da desobediência qualificada.”

O crime de desobediência [simples] previsto no n.º 1 do artigo 348.º do Código Penal integra duas hipóteses, correspondentes às suas duas alíneas.  Têm como denominador comum – que justifica a sua inclusão num mesmo preceito incriminatório, como se retira da formulação que consta do proémio daquele n.º 1 – a verificação dos seguintes elementos: que o agente falte à obediência devida a uma ordem ou mandado legítimos que tenham sido regularmente comunicados e emanados de autoridade ou funcionário competente.

Porém, desdobra-se em distintos e relativamente autónomos elementos típicos, cada um dos quais tem um sentido e um alcance próprios[13]: segundo a alínea a), haverá crime quando, estando tais elementos verificados, uma disposição legal cominar, no caso, a punição da desobediência simples; segundo a alínea b), haverá crime quando, estando tais elementos verificados e não existindo disposição legal que comine aquela punição, uma autoridade ou um funcionário fizerem a correspondente cominação.

A hipótese da alínea a) tende a ser designada de desobediência em sentido impróprio, porque é de uma (outra) disposição legal que a cominação resulta [cominação legal]. A segunda hipótese referida – a da alínea b) – é frequentemente designada de desobediência em sentido próprio, porque a conduta tem lugar depois de uma autoridade ou funcionário cominarem a punição [cominação funcional].

No plano dos interesses protegidos, a teleologia da norma decorrente da alínea a) aproximar-se-á da proteção do interesse subjacente à própria disposição que descreve a conduta proibida e comina a punição da desobediência enquanto a desobediência prevista na alínea b) protege primacialmente ou mais diretamente a autonomia intencional do Estado.

Como assinala Cristina Líbano Monteiro, «[n]a al. a), o crime de desobediência parece destinado a servir de norma auxiliar (em sentido forte, uma vez que fixa as condições básicas do ilícito e a sua pena) a alguns preceitos de direito penal extravagante que incriminam um determinado comportamento desobediente, sem contudo fixarem uma moldura penal própria. (…) aqui, disposição legal quer evidentemente dizer norma penal (…).

Pelo contrário, no que diz respeito à al. b), (…) disposição legal significa aqui qualquer disposição legal. Em definitivo: a al. b) existe tão só para os casos em que nenhuma norma jurídica, seja qual for a natureza (i. é, um preceito não criminal) prevê aquele comportamento desobediente. Só então será justificável que o legislador se tenha preocupado com um vazio de punibilidade, decidindo-se embora por uma solução, (…), incorrecta e desrespeitadora do princípio da legalidade criminal».

Com efeito, a este respeito, exarou-se no acórdão de uniformização de jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça n.º 2/2013[14], em que o recorrente assentou parte da sua motivação:

«O respeito pelo princípio da legalidade, na vertente nullum crimen sine lege certa, ou uma razoável determinação da conduta ao nível da tipicidade, ou ainda o "tipo de garantia", reclamam um conjunto de exigências que a doutrina e jurisprudência têm feito, para que, no fundo, e como diz Figueiredo Dias, "a descrição da matéria proibida e de todos os outros requisitos de que dependa em concreto uma punição seja levada até um ponto em que se tornem objetivamente determináveis os comportamentos proibidos e sancionados e, consequentemente, se torne objetivamente motivável e dirigível a conduta dos cidadãos." (31)

Acresce que o princípio de intervenção mínima do direito penal, ou da necessidade da pena, que se extrai do n.º 2 do art. 18.º da CR (…), e portanto da proporcionalidade entre a danosidade social da conduta e a reação, tudo isto aponta, no caso do art. 348.º, para uma tarefa interpretativa em que se tenha muito presente a conformidade à CR.

A aferição do respeito pelo princípio da necessidade da pena parece ficar transferida, com a existência de uma cominação consagrada numa outra disposição legal, por razões de política criminal, para essa outra disposição legal (al. a) do n.º 1 do art, 348.º). É portanto em face da norma cominadora, que se deverá aferir da conformidade constitucional da previsão, em matéria de necessidade da pena e de legalidade (32).

No caso de uma cominação ad hoc, nos termos da al. b), do n.º 1 do preceito em foco, a subsidiariedade de que atrás se falou (…) resulta explicitamente da lei, no sentido de que se exige a "ausência de disposição legal", acrescentaremos nós, cominadora (33).

A cominação resulta de um ato de vontade individual e não normativo, pelo que só a análise de todo o circunstancialismo que rodeou a emanação da ordem poderá assegurar a conformidade com a CR da necessidade de criminalização da conduta.(34)

Ora, o único critério prestável para aferir dessa conformidade acaba por ser um critério fundamentalmente negativo: sempre que o legislador tenha previsto em termos normativos as consequências daquela mesma conduta, designadamente ao nível sancionatório (contraordenacional, disciplinar ou processual), deverá presumir-se, numa primeira abordagem, que rejeitou a criminalização do comportamento, e não deverá ser, pois, a autoridade ou o funcionário a substituir-se ao legislador.

No entanto, não está vedado que seja feita a cominação ad hoc do crime de desobediência, se a autoridade donde emana a ordem considerar, que a consequência prevista na lei pelo legislador, se mostra manifestamente ineficaz, face às circunstâncias do caso.

"Na fixação do sentido e alcance da lei, o intérprete presumirá que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos mais adequados" (art. 9.º n.º 3 do Código Civil).

Entendemos, pois, que só a ausência completa de qualquer expediente compulsivo previsto numa disposição legal, destinado a evitar as consequências perniciosas do comportamento desobediente (35), ou a previsão na lei de uma consequência, que se mostre na prática claramente insuficiente, autorizará a cominação ad hoc.

Resta acrescentar que, nesses casos, tais consequências terão que ter uma gravidade compatível com a criminalização, em homenagem ao princípio da proporcionalidade.

No fundo, terá sido o próprio legislador que reconheceu a eventualidade de se detetarem vazios legislativos perniciosos e introduziu, com a cominação ad hoc, uma válvula de segurança a esse nível.(36)»

(…) O elemento histórico de interpretação, (...), se algum contributo nos dá é o de a cominação ad hoc ter sido acolhida, sobretudo, como instrumento ao serviço da Administração.»

Tanto a ordem como o mandado consubstanciam uma norma de conduta concreta imediatamente dirigida a alguém – a imposição de uma ação ou de uma abstenção determinadas – provenientes de autoridade ou funcionário competente e deve caber dentro das atribuições funcionais próprias ou delegadas de quem a profere, no circunstancialismo espácio temporal e na matéria em causa.

Ora, no caso vertente, a ordem emanada pelos militares da GNR, no âmbito das suas atribuições, no circunstancialismo descrito na factualidade provada, foi regularmente comunicada, assentou no disposto no artigo 13º, n.º 1, als. a) e b), e n.º 10, do DL n.º 10-A/2020, de 13/03, na versão introduzida pela DL n.º 104/2021, de 27/11, normativo que, como analisamos supra, não é inconstitucional, mostrando-se necessária à salvaguarda de um interesse de natureza sanitária, em contexto de pandemia, não se vislumbrando outros meios de atuação das autoridades que pudessem por cobro à violação iminente do dever decorrente daquela norma. Não se perfilava qualquer expediente compulsivo previsto numa disposição legal idóneo a evitar as consequências perniciosas do comportamento desobediente, nem o recorrente o sugere.

Com efeito, como se assinalou na sentença recorrida, não é condição de legitimidade da ordem emanada a prévia testagem por médico de forma a aferir se o recorrente tinha alguma doença contagiosa que fosse suscetível de se propagar para outros cidadãos, porquanto a norma que impunha a obrigatoriedade do uso de máscara ou viseira não a fazia depender de os visados estarem doentes. Outrossim, a circunstância de os outros cidadãos que se encontravam no mercado estarem a usar máscaras não dispensava o recorrente de fazer o mesmo, pois a obrigatoriedade de uso era geral. Recorde-se que está em causa o crime de desobediência, e não o crime de propagação de doença previsto no artigo 283º do Código Penal, pelo que também carece de sentido a alegação do recorrente de que «estava saudável no dia dos factos, não podendo ter sido condenado como possível propagador de vírus por não usar máscara».

A ordem em causa mostra-se, pois, formalmente e substancialmente legítima, conforme com a constituição e o direito positivado, pelas razões antes explanadas, não ocorrendo qualquer violação do direito natural e do princípio do juiz natural invocados pelo recorrente.

Os demais argumentos aduzidos pelo recorrente ancoram-se nas suas convicções pessoais e em estudos científicos que não foram objeto de discussão e prova no âmbito do julgamento nos presentes autos, bem como em considerações e críticas de natureza política, pelo que são absolutamente irrelevantes e insindicáveis em sede de recurso.

Improcede, pois, totalmente o recurso interposto pelo recorrente.


*


            III. – DISPOSITIVO

Nos termos e pelos fundamentos supra expostos, acordam os Juízes do Tribunal da Relação de Coimbra em julgar totalmente improcedente o recurso interposto nos autos pelo arguido e, em consequência, manter a sentença recorrida.


*

Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça na quantia correspondente a 4 (quatro) unidades de conta [artigos 513º, n.º 1, do Código de Processo Penal, e 8º, n.º 9, do Regulamento das Custas Processuais e Tabela III anexa a este último diploma].

*

            Notifique [artigo 425º, n.º 6, do Código de Processo Penal].

*

*

(Elaborado e revisto pela relatora, sendo assinado eletronicamente pelas signatárias – artigo 94º, n.ºs 2 e 3, do Código de Processo Penal)
*
Coimbra, 12 de março de 2025

 Isabel Gaio Ferreira de Castro

[Relatora]

Helena Lamas 

[1.º Adjunto]

Rosa Pinto

 [2.ª Adjunta]


[1] Todas as transcrições a seguir efetuadas estão em conformidade com o texto original, ressalvando-se alterações da formatação do texto, da responsabilidade da relatora.


[2] In Curso de Processo Penal, Vol. III, 1994, pág. 340.
[3] Publicados no Diário da República, I.ª Série - A, de 19.10.1995 e 28.12.1995, respetivamente.
[4] Vide Germano Marques da Silva, Direito Processual Penal Português, vol. 3, Universidade Católica Editora, 2015, pág. 335 e 336; Simas Santos e Leal-Henriques, Recursos Penais, 8.ª ed., Rei dos Livros, 2011, pág. 113; Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código de Processo Penal, à luz da Constituição da República Portuguesa e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, 4ª edição atualizada, Universidade Católica Editora, 2011, págs. 1059-1061
[5] Diário da República n.º 85-A/2020, Série I de 2020-05-01
[6] Diário da República n.º 230-A/2021, Série I de 2021-11-27
[7] Diário da República n.º 78/2022, 1º Suplemento, Série I de 2022-04-21
[8] Acessível em https://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos, tal como os demais doravante citados sem expressa menção de fonte de consulta

[9] Constituição da República Portuguesa Anotada, 4.ª Ed. revista, Coimbra, Coimbra Editora, 2014, Vol. II, pág. 325.

[10] Porém, no acórdão n.º 352/2021, o Tribunal Constitucional considerou que o Governo tem competência própria, no quadro da execução da declaração presidencial do estado de emergência, para decretar normas em matéria de crimes e penas, designadamente agravando os limites mínimo e máximo da moldura penal do crime de desobediência. O seu exercício baseia-se num título extraordinário (a declaração do estado de exceção), reveste carácter temporário (a vigência do decreto presidencial) e é orientado a uma finalidade específica (a restauração da normalidade constitucional). Enfatizou, ainda, que este poder normativo de emergência cometido ao executivo na vigência de um estado de exceção constitucional não é arbitrário ou absoluto. No plano material, encontra-se vinculado ao princípio da proporcionalidade, plenamente operativo no momento da execução do estado de exceção e suscetível de controlo judicial. No plano institucional, o Governo responde perante o Presidente da República e a Assembleia da República (artigo 190.º da CRP), sendo a aplicação da declaração de estado de sítio ou de estado de emergência objeto específico de fiscalização parlamentar (artigo 162.º, alínea b), da CRP). Esta posição foi subsequentemente reiterada, de forma integral, no Acórdão n.º 193/2022.
[11] Neste sentido, vejam-se, entre outros, os acórdãos n.º 350/2022 e n.º 417/2024 do Tribunal Constitucional.

[12] Ao contrário de outras que efetivamente previam novos crimes, ainda que por disporem que constituíam cominação suficiente, designadamente, para o preenchimento do tipo de crime de desobediência, ou determinarem o agravamento das penas, situações que foram objeto de apreciação em múltiplos acórdãos do Tribunal Constitucional que vieram a considerar que padeciam de inconstitucionalidade orgânica [cfr., a titulo meramente exemplificativo, os acórdãos n.º 477/2022 e n.º 619/2022].
[13] Cfr. Cristina Líbano Monteiro, in Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial. Tomo III. Artigos 308.º a 386.º, Coimbra Editora, 2011, págs. 349 e ss.; Francisco Borges, in O Crime de Desobediência à Luz da Constituição, Almedina, 2011, págs. 51 e ss.
[14] Publicado no Diário da República n.º 5/2013, Série I de 2013-01-08, páginas 77 - 96