Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | JTRC | ||
Relator: | JORGE JACOB | ||
Descritores: | ANOMALIA PSÍQUICA POSTERIOR DO ARGUIDO CURADOR PROVISÓRIO CAPACIDADE PENAL SANEAMENTO CASO JULGADO FORMAL | ||
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Data do Acordão: | 01/22/2025 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Tribunal Recurso: | COMARCA DE LEIRIA - JUÍZO LOCAL CRIMINAL DAS CALDAS DA RAINHA - JUIZ 2 | ||
Texto Integral: | S | ||
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Meio Processual: | RECURSO CRIMINAL | ||
Decisão: | PARCIALMENTE REVOGADA | ||
Legislação Nacional: | ART. 15º CC; 20º CP; 311, 338º, N.º 1, CPP. | ||
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Sumário: | I - O Código Penal não prevê expressamente a capacidade jurídica para ser arguido, ainda que preveja a imputabilidade penal pela negativa, excluindo-a relativamente aos menores de 16 anos e aos portadores de anomalia psíquica de que decorra a incapacidade para, no momento da prática do facto, avaliar a sua ilicitude ou de se determinar de acordo com essa avaliação, podendo ainda ser declarado inimputável «(…) quem, por força de uma anomalia psíquica grave, não acidental e cujos efeitos não domina, sem que por isso possa ser censurado, tiver, no momento da prática do facto, a capacidade para avaliar a ilicitude deste ou para se determinar de acordo com essa avaliação sensivelmente diminuída». Também o Código de Processo Penal não contém norma expressa sobre a capacidade do arguido. Contudo, não há que acolher no processo penal o conceito de capacidade judiciária previsto no art. 15º do Código de Processo Civil, por inexistir lacuna que deva ser colmatada nos termos do art. 4º do CPP.
II - O que está em causa é um conceito de capacidade jurídica que se prende exclusivamente com a capacidade para ser sujeito passivo do processo penal e que se desdobra em duas vertentes: a) A capacidade formal ou abstracta para ser arguido, que coincide com a possibilidade de imputação criminal e que obriga à exclusão dos menores de 16 anos de idade e dos portadores de anomalia psíquica conforme à previsão do art. 20º do Código Penal; e b) A capacidade concreta para esse mesmo efeito, que supõe que o arguido seja capaz de participar com plena autonomia e esclarecimento no processo criminal, conclusão que se alcança através da interpretação conjugada das normas que disciplinam o estatuto do arguido. III - Não se segue, porém, que o incapaz não possa ser sujeito passivo do processo penal, tal como sucede com o inimputável. A lei afasta a possibilidade de aplicação de uma pena criminal ao agente de crime que seja considerado inimputável prevendo para os casos em que tal se justificar a aplicação de medidas de segurança; e distingue a situação dos imputáveis portadores de anomalia psíquica, que continuam a ser passíveis da aplicação de penas criminais ainda que estas possam, consoante os casos, ser cumpridas mediante internamento em estabelecimento destinado a inimputáveis ou ser suspensas até à cessação do estado que determinou a suspensão. Trata-se, segundo Figueiredo Dias, de “um instituto de natureza especial que constitui uma medida de diversão da execução da pena sem que, todavia, ele perca por isso natureza penal (…) o regime previsto na lei para o internamento e para a suspensão da execução da pena traduz a introdução do princípio da necessidade da pena na fase da execução: a execução efectiva da pena privativa da liberdade ocorre somente quando tal se revelar necessário do ponto de vista das finalidades preventivas assinaladas à punição”. IV - Tendo a acusação sido recebida e proferido despacho de saneamento nos termos do art. 311º do CPP sem formação de caso julgado formal, como sucede com os despachos ditos «tabelares», e não ocorrendo causa de extinção do procedimento ou da responsabilidade criminal – que pode e deve ser conhecida logo que verificada –, o conhecimento de questões prévias ou incidentais que porventura pudessem obstar à apreciação do mérito da causa e acerca das quais não tenha ainda havido decisão, podendo desde logo ser apreciadas, é feito em audiência, precedendo discussão pelos sujeitos processuais, como decorre do art. 338º, nº 1, do CPP. V - O prosseguimento do processo relativamente ao arguido imputável afectado por anomalia psíquica não implica a nomeação de curador provisório nem se suspende para esse efeito. (Sumário elaborado pelo Relator) | ||
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Decisão Texto Integral: | Relator – Jorge Miranda Jacob
1ª Adjunta – Helena Lamas 2ª Adjunta – Fátima Calvo __________________________
Acordam em conferência no Tribunal da Relação de Coimbra:
I – RELATÓRIO:
Por despacho de 11.06.2024 foi determinada a manutenção da suspensão do processo e que os autos ficassem a aguardar a sua extinção por prescrição, com fundamento na circunstância de resultar do relatório pericial junto aos autos que o arguido não tem capacidade para entender que está a ser julgado nem para participar num julgamento ou conferenciar com o seu advogado, ou para perceber o alcance de lhe ser aplicada uma punição.
Inconformado, recorre o Ministério Público formulando as seguintes conclusões: 1.Não pode concordar-se com a suspensão sem mais do processo, que fica, assim, a aguardar a prescrição, nos termos determinados no despacho recorrido. 2.A capacidade judiciária é um conceito civil que surge definido no art.15° do CP. 3.Por isso, a forma de suprir a incapacidade judiciária vem estabelecida no CPC, mais concretamente nos arts.16° e 17°. 4.Não estando prevista no CP nem no CPP esse mesmo suprimento aplica-se subsidiariamente ao processo penal os supra citados arts.16° e 17º, ex vi art.4° do CPP. 5.Por outro lado, a situação em apreço mostra-se, quanto a nós, devidamente contemplada e prevista nos art.105° e 106° do CP. 6.Ora, destes dois preceitos resulta, além do mais, que o processo segue para julgamento. 7.Isto é, que a anomalia psíquica posterior, como sucede no nosso caso, não impede a realização de julgamento. 8.Só assim se compreende, aliás, esses dois preceitos, sob pena de crime hediondos ficarem totalmente impunes e sem a realização, sequer, de julgamento. 9.E que sentido teria julgar inimputáveis à data dos factos (que venham a ser considerados perigosos) e não o fazer em relação a imputáveis à data dos factos? 10.Terá, todavia, de ser salvaguardada a incapacidade do arguido através das regras cíveis supra elencadas. 11.Diferente será depois o cumprimento da pena, que pode ser suspenso, nos termos do supra citado art.106°. 12.Assim, verificando-se no caso em apreço uma incapacidade de facto no decurso dos autos - surgida em momento posterior aos factos - deverá ser nomeado um curador provisório ( enquanto correrá termos processo de acompanhamento de maior), suspendendo-se os autos, até lá, e prosseguindo depois para julgamento (Vide, nesse sentido, o Acordão da Relação de Évora de 28/11/2006, proferido no processo n°1256/06-l). Nestes termos, deverá ser julgado procedente o recurso ora interposto e, consequentemente, ser revogado o despacho recorrido que deverá ser substituído por outro que providencie pela nomeação de um curador provisório ao arguido, suspendendo, entretanto, a instância,
Nesta Relação a Ex.ª Procuradora-Geral Adjunta exarou douto parecer acompanhando a posição do M.P. em primeira instância salvo no que tange ao suprimento da incapacidade e nomeação de curador provisório, sustentando a sua posição nos seguintes termos: (…) 2.1. Na situação em apreço, temos que o arguido foi acusado em 24.09.2023, por factos ocorridos em 19.08.2022, da prática em autoria material, na forma consumada e, em concurso efetivo, de dois crimes de ameaça agravada, p. e p. pelo disposto no art. 155.º, n.º 1, al. a), com referência aos arts. 131.º e 153.º, todos do CP. Vindo a ser designado o dia 25.01.2024 para a realização do julgamento, tendo sido apresentada contestação em 02.08.2023 e, na sequência de requerimento do arguido datado de 23.01.2024, no qual alegava a falta de capacidade do arguido para estar em julgamento, devido a AVC sofrido em 23.08.2023, veio o julgamento a ser dado sem efeito e determinada a realização de perícia psiquiátrica forense, na qual, em resposta ao quesito formulado quanto à capacidade do arguido para por si estar em juízo, exercer a sua defesa ou perceber o alcance de lhe ser aplicada uma pena de multa ou outra, foi respondido: “Não”. A questão controversa e de fundo, relaciona-se com o facto de saber qual o destino do processo quando o arguido é acometido, após a data da prática dos factos, de doença a nível cognitivo/anomalia psíquica superveniente, que o impede de exercer de forma pessoal e plena a sua defesa. Como ponto de partida não podemos deixar de sufragar o entendimento da Sr.ª Procuradora da República da 1.ª Instância, quanto ao prosseguimento dos autos para julgamento, embora nos suscitem duvidas quanto à aplicabilidade em sede penal das normas processuais civis relativas à representação de incapazes, suprimento da incapacidade e sua representação através de curador especial ou provisório(art.ºs 15.º, 16.º, 17.º do CPC), para daí suprir a incapacidade do arguido, quando a situação em apreço se mostra contemplada e prevista nos art.ºs 105.º e 106.º do Código Penal, não havendo que aplicar subsidiariamente ao processo penal(por força do art.º 4.º do CPP) os citados normativos previstos no CPC. É que, por força dos art.º 105.º e 106.º do CP, o processo segue para julgamento, por forma a que possa ser averiguada a responsabilidade criminal do arguido quanto à prova do facto ilícito, típico e culposo. No despacho sob censura entendeu a Sr.ª Juíz que o processo ficava suspenso, aguardando a prescrição do procedimento criminal, invocando a capacidade judiciária como pressuposto processual ao prosseguimento dos autos. Todavia a opção tomada, quanto à suspensão do processo de per si, não encontra respaldo no código processo penal, no qual apenas se prevê a do processo nos casos dos artigos 7.º e 281.º CPP e não para os casos da anomalia psíquica após a data da prática dos factos. Será legitimo invocar a falta de capacidade judiciária, como pressuposto processual, relacionado com as condições para o arguido poder exercer pessoalmente a sua defesa, para a partir daí, se concluir, ou não, pela suspensão e/ou arquivamento dos autos? A resposta, ainda que não pacifica, terá de ser encontrada à luz das normas penais e processuais penais, tendo presente o princípio da suficiência do processo, o principio da harmonia do sistema e de que o legislador previu todas as soluções possíveis, não cabendo ao interprete distinguir onde o legislador não distinguiu, nem integrar lacunas, quando a própria lei penal e processual penal nos indica a solução a seguir. É certo que o código processual português, destinado à aplicação das penas e medidas de segurança, cfr. art.º 2.º não reconhece qualquer autonomia quanto à forma de processo, nem efeito suspensivo ou extintivo, no caso de o arguido não estar na posse de todas as suas faculdades mentais, já que o processo é tramitado independentemente de o arguido ser portador de uma anomalia psíquica que lhe diminua ou exclua a capacidade de participar de forma construtiva na declaração do direito do caso, neste sentido, Maria João Antunes- “Direito Processual Penal”, pag. 52 e 53. O que significa que a resposta à questão colocada haverá de ter idêntico tratamento, por identidade de pressupostos, aquela que se coloca no caso inimputabilidade ou inimputabilidade diminuída por anomalia psíquica do arguido, a que alude o art.º 20.º do C.P. e respetivas consequências previstas nos art.ºs 91.º a 108.º do mesmo diploma legal, a exigir sempre o prosseguimento do processo para a realização do julgamento, com total respeito pelos direitos de defesa do arguido. Para o efeito veja-se a propósito o que determina, o art.º 61.º n.º 1 al. d) e n.º 2, quanto à obrigatoriedade da presença de defensor em todos os atos processuais; os artigo 156.º, n.º 7 e 351.º n.ºs 1 e 2 e 351.º n.ºs 1 e 2, quanto à indicação das pessoas que podem requerer a realização de perícia ao arguido e presença de perito em tribunal, quando se suscite a inimputabilidade do arguido. Ou seja, procurar suprir a capacidade/incapacidade processual do arguido, com o recurso aos normativos previstos nos artigos 16.º e 17.º do código processo civil, por força do disposto no art.º 4.º do CPP (integração de lacunas) quando o legislador penal previu as situações referentes à incapacidade processual do arguido e forma de as ultrapassar, é ignorar o que para o efeito se encontra consagrado no art.º 91.º a 108.º do Código Penal. Levando às últimas consequências o entendimento sufragado no despacho judicial, levaria ao desaparecimento do regime de aplicação de medidas de segurança a inimputáveis perigosos no âmbito criminal ou ainda impossibilidade da realização do julgamento de arguido portador de anomalia psíquica mesmo que não perigoso, incapaz de compreender o sentido da condenação. Na verdade, seguindo de perto os ensinamentos de Maria João Antunes, in, “O Internamento de Imputáveis em Estabelecimentos Destinados a Inimputáveis”, pag.. 55-56, 65-66 “quando ao delinquente imputável sobrevém uma anomalia psíquica mantém-se a necessidade de pena, impõe-se a reafirmação da validade da norma violada. E este efeito obtém-se quando se profere uma sentença condenatória – como decorre também da mera existência do processo penal – pelo que tem sentido aplicar uma pena a um delinquente que não a compreenda; não tem é sentido executar nele tal pena”, Afirmamos ainda a insusceptibilidade de compatibilizar a suspensão do processo, com o que a perda de instrumentos produtos ou vantagens previsto no art.º 109.º n.ºs 1 e 2 e 110.º n.ºs 1 e 2 do Código Penal. É que, como bem refere Maria Raquel Desterro, Eliana Lopes Cardoso e João Conde Correia, in “o Novo Regime de Recuperação de Ativos- À luz da Diretiva 2014/42/EU e a Lei que a Transpôs, “No direito português a doença do arguido que tenha prestado termo de identidade e residência não impede a realização do julgamento, a sua condenação e o consequente confisco.” Nestes termos, inexistindo a figura da incapacidade judiciária no processo penal e sendo a inimputabilidade, a par de outras, questão a resolver no âmbito do processo penal, sendo certo que tal questão não se sobrepõe à apreciação da prova do facto ilícito, cf. art.º 368.º do CPP, importa determinar o prosseguimento dos autos. 8. Face ao exposto, somos, pois, de parecer que o recurso do Ministério Público deverá ser julgado procedente, revogando-se o despacho recorrido, por outro que designe data para a realização do julgamento.
Foram colhidos os vistos legais. Delimitando-se o âmbito do recurso pelas conclusões formuladas, há que conhecer do seguinte: - Em função da situação pessoal do arguido, deverá entender-se que este padece de incapacidade judiciária? - Devendo esta ser suprida nos termos previstos nos arts.16° e 17° do CPC, por força do disposto no art. 4º do CPP, providenciando-se pela nomeação de um curador provisório e suspendendo-se, entretanto, a instância? - Devendo os autos prosseguir para julgamento?
II – FUNDAMENTAÇÃO:
O despacho recorrido tem o seguinte teor: Resulta do relatório pericial junto aos autos que o Arguido não tem, presentemente, capacidade para entender que está a ser julgado, nem para participar num julgamento, ou conferenciar com o seu advogado, ou tão pouco, para perceber o alcance de lhe ser aplicada uma punição. Resulta, assim, evidente, do teor do relatório pericial, que o arguido não tem capacidade judiciária, o que configura um pressuposto processual (capacidade dirigida ao processo) e relaciona-se com as condições para o arguido exercer pessoalmente a sua defesa. Acresce que tal incapacidade é permanente e maioritariamente irreversível. A incapacidade judiciária do arguido impede a sua sujeição a julgamento no âmbito penal, devendo os autos ficar suspensos até à sua extinção, por alguma das formas previstas no artigo 127º do Código Penal, ou, ainda, por prescrição. Conforme decidido no Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 13.07.2022, no Processo n.º 7/10.0IDFAR.E2, publicado no sítio www.dgsi.pt.: Perante uma incapacidade de facto, grave, total e permanente da arguida – posterior à prática dos factos, mas sem se enquadrar na previsão do art. 105º do C. Penal - os autos não podem prosseguir para julgamento, na parte que lhe respeita, devendo suspender-se o procedimento criminal a partir da data em que se adquiriu o conhecimento de tal incapacidade. Faltando esse pressuposto processual - que a representação por advogado constituído ou defensor oficioso não colmata na medida em que o tipo de representação que oferece não pode suprir a capacidade judiciária -, enquanto susceptibilidade de um arguido estar por si, em juízo, tudo se passa como se a recorrente “não estivesse em juízo” quando foi submetida a julgamento. O que implica a inobservância dos seus direitos de defesa, com garantia constitucional, e, nomeadamente o de poder estar presente aos actos processuais que directamente lhe disserem respeito, enumerado no art. 61º do C.P.P. Em face do exposto, mantem-se a suspensão dos autos. Os factos imputados ao arguido e que integram a prática de dois crimes de ameaça agravada, p. e p. pelos artigos 153º e 155º n.º1 alínea a) do Código Penal ocorreram em 19.08.2022. O prazo de prescrição é de cinco anos (artigo 118º n.º1 alínea c) do Código Penal. Ocorreram duas causas de interrupção da prescrição: com a constituição de arguido em 23.01.2023 e com a notificação da acusação, em 10.05.2023. Verifica-se, ainda, a causa de suspensão da prescrição prevista no artigo 120º n.º1 alínea b), com o prazo máximo de suspensão de três anos (cfr. n.º2 do mesmo preceito). Assim, a prescrição do procedimento criminal ocorrerá previsivelmente no dia 10.05.2031 (início do prazo a contar da segunda causa de interrupção da prescrição, ou seja, 10.05.2023 + cinco anos de prazo de prescrição + três anos de prazo máximo da suspensão). (…)
Com interesse para a decisão a proferir resulta dos autos o seguinte: 1. Por despacho do M.P. de 29/04/2023 foi deduzida acusação contra o arguido AA, imputando-lhe a autoria material, na forma consumada e em concurso efectivo, de dois crimes de ameaça agravada, p. e p. pelo disposto no art. 155.º, n.º 1, al. a), com referência aos arts. 131.º e 153.º, todos do Código Penal. 2. Remetidos os autos à distribuição, foi a acusação recebida por despacho judicial de 19/07/2023. 3. Em 02/08/2023 foi apresentada contestação. 4. Em 14/09/2023 foi proferido despacho admitindo a contestação e designando data para julgamento. 5. Em 23/01/2024 deu entrada nos autos requerimento com o seguinte teor: 1. No pretérito dia 23.08.2023 o arguido sofreu um AVC isquémico parietal direito com sequelas físicas e cognitivas, cfr. documentos nºs 1 a 3. 2. Perante uma incapacidade de facto grave do arguido, posterior à prática dos factos, julgamos que os autos não poderão prosseguir para julgamento devendo suspender-se, em face da incapacidade do arguido. 3. Existe falta de pressuposto processual (capacidade judiciária) que a representação por Advogado constituído não colmata. 4. A submissão do arguido a Julgamento atenta a sua incapacidade constituiria violação dos seus direitos de defesa constitucionalmente garantidos. 5. O arguido não fala, não escreve, não se conseguindo expressar, tão pouco detendo noção do real alcance do seu entendimento face à circunstancia em que se encontra. 6. Mediante promoção do M.P. foi solicitada perícia ao INML, tendo sido efectuada perícia psiquiátrica forense de cujo relatório consta, para além do mais, o seguinte: 5. .... DISCUSSÃO E CONCLUSÕES De acordo com a avaliação clínico-forense realizada e consulta dos elementos clínicos disponibilizados para análise, somos de parecer que o Examinando apresentava à data da perícia uma anomalia psíquica compatível com o diagnóstico de Perturbação Neurocognitiva Major de instalação súbita (CID-102: F 01.0, OMS3, 1992) por AVC isquémico-hemorrágico ocorrido no dia 23/08/2023. Esta situação de saúde é permanente e maioritariamente irreversível. Os factos em apreço no presente processo terão tido lugar no dia 19/08/2022, data em que o arguido não apresentaria quaisquer indícios de doença (neuro)psiquiátrica, motivo pelo qual não se suscitam quaisquer dúvidas quanto à imputabilidade em razão de anomalia psíquica, que não apresentava nessa data. Nesse sentido, a provarem-se os factos pelos quais está acusado, e para os quais não foi possível ao arguido fornecer a sua versão, encontram-se preenchidos pressupostos médico-legais de imputabilidade. Dito isto, na actualidade o arguido padece de anomalia psíquica– perturbação neurocognitiva major – com défices cognitivos e de linguagem que o incapacitam de compreender totalmente o que lhe é dito, bem como de se expressar, quer verbalmente, quer por escrito, pois apresenta uma afasia global. Esta situação é permanente e maioritariamente irreversível, já que não ocorreram melhorias significativas apesar do tratamento instituído nos últimos meses. Assim, ainda que à data dos alegados factos o arguido pudesse ter a capacidade para avaliar a ilicitude dos seus actos e/ou de se determinar perante a avaliação feita, na actualidade a anomalia psíquica de que padece não lhe permite compreender na globalidade a natureza do presente processo. Tal deve-se ao agravamento cognitivo consequência do AVC e das complicações do mesmo. Em suma, independentemente de à data dos factos poder ter capacidades cognitivas e volitivas minimamente preservadas, na actualidade o arguido apresenta défices cognitivos de tal forma extensos que não lhe permitem ter capacidade para entender na plenitude que está a ser julgado, bem como para participar num julgamento e/ou conferenciar com o seu advogado. Acresce que a anomalia psíquica de que padece também condiciona que o mesmo já não seja influenciável pelas penas. Independentemente da decisão que vier a ser proferida, na actualidade, consideramos que não há qualquer possibilidade de reversão do quadro clínico com eventuais tratamentos a ser instituídos, pelo que não se considera adequada a colocação numa regular enfermaria para doentes mentais, seja de Hospital Geral seja de Hospital Psiquiátrico, não estando um internamento psiquiátrico, nesta data, indicado. Efectivamente, na actualidade o arguido necessita de cuidados permanentes de 3ª pessoa que podem ser assegurados no domicílio e/ou numa instituição vocacionada para o tratamento de indivíduos com estas patologias, quer em regime externo, quer em regime interno, desde que garantido o apoio de 3ª pessoa 24h/dia. 6. .... RESPOSTA A QUESITOS a) Qual a doença (limitações físicas/cognitivas) de que o arguido actualmente padece e respectivo prognóstico? Perturbação Neurocognitiva Major de instalação súbita (CID-10: F 01.0) por AVC isquémicohemorrágico ocorrido no dia 23/08/2023. Esta situação é permanente e maioritariamente irreversível, sendo de prever que os défices motores, cognitivos e de linguagem persistam relativamente inalterados, apesar dos tratamentos que possam vir a ser instituídos. b) Quais as sequelas que resultaram do AVC sofrido a 23.08.2023? Hemiparésia direita, afasia de compreensão e de expressão, para além de outras limitações que não foram possíveis de caracterizar e/ou quantificar no presente exame pericial. c) O arguido tem capacidade para estar por si em juízo/audiência de discussão e julgamento, exercer a sua defesa e entender ou perceber o alcance de lhe ser aplicada uma punição (multa, pena de prisão ou outra)? Não. 7. Na sequência da junção deste exame aos autos foi proferido o despacho recorrido, supratranscrito.
*** Vejamos então as questões suscitadas: O ponto de partida para a questão que fundamentalmente importa decidir será necessariamente a análise imbricada dos ordenamentos penal e processual penal, pois só por essa forma se poderá surpreender a intenção do legislador no tratamento das questões atinentes à capacidade para ser arguido em processo penal. A complementaridade destes dois ramos do direito impõe essa análise porquanto, sem prejuízo da autonomia do direito substantivo face ao direito adjectivo, estabelece-se entre ambos uma relação de instrumentalidade ou de complementaridade, sendo através do processo penal que o direito penal se realiza, «garantia que vai de acordo e é exigida pelo Estado-de-Direito» [1], revelando-se a conexão normativa na «circunstância de o direito criminal e o direito processual criminal haverem de ter o seu ponto de partida no mesmo pensamento fundamental» [2]. Assim, numa primeira aproximação, diremos que o Código Penal não prevê expressamente a capacidade jurídica para ser arguido, ainda que preveja a imputabilidade penal pela negativa, excluindo-a relativamente aos menores de 16 anos (art. 19º) e aos portadores de anomalia psíquica de que decorra a incapacidade para, no momento da prática do facto, avaliar a sua ilicitude ou de se determinar de acordo com essa avaliação (art. 20º, nº 1), podendo ainda ser declarado inimputável «(…) quem, por força de uma anomalia psíquica grave, não acidental e cujos efeitos não domina, sem que por isso possa ser censurado, tiver, no momento da prática do facto, a capacidade para avaliar a ilicitude deste ou para se determinar de acordo com essa avaliação sensivelmente diminuída» (nº 2). Porém, como adverte Castanheira Neves, «a capacidade (processual) para ser réu criminal só não se define exactamente pela responsabilidade ou imputabilidade criminal porque o juízo sobre a irresponsabilidade ou a inimputabilidade mesmo absoluta do arguido bem poderá ser uma conclusão a conseguir no processo criminal, além de que esse juízo não terá de implicar, como se sabe, a exclusão de medidas criminais não penais» [3]. Também o Código de Processo Penal é omisso (melhor dizendo, não contém norma expressa) sobre a capacidade do arguido. Não se segue, no entanto, que deva ser acolhido o conceito de capacidade judiciária previsto no art. 15º do Código de Processo Civil, aí definida como «(…) a suscetibilidade de estar, por si, em juízo», tendo «(…) por base e por medida a capacidade do exercício de direitos», posto que a aplicação das normas do Código de Processo Civil no âmbito do Processo Penal, por força do art. 4º do CPP, só poderá decorrer de eventual lacuna no ordenamento processual penal. O recurso às normas do Código de Processo Civil apenas será de admitir nos casos omissos, quando as disposições do Código de Processo Penal não puderem aplicar-se por analogia e apenas relativamente às normas que se harmonizem com o processo penal. Retenha-se, de todo o modo, que «o processo penal tende a ser um ordenamento completo e autossuficiente, sem espaços carecidos de regulação, e constitui, tanto pela limitação e especificidade das matérias e das regulações, como pela pretensão de completude, um campo normativo onde não será esperado encontrar demasiadas lacunas» [4]. Ainda que o ordenamento processual penal não consagre o conceito ou definição que indagamos não se segue sem mais que estejamos em presença de uma lacuna. Não há que confundir uma diversa regulamentação em outros ramos do direito com a existência de uma lacuna no ordenamento processual penal [5], sendo mister verificar se o tema se encontra regulado de modo autónomo, ainda que diverso do previsto noutras regulamentações adjectivas, maxime, na processual civil, ou mesmo se não se encontra regulado por desnecessidade decorrente de uma concepção diversa da que presidiu à formulação normativa em outros ramos do direito. A omissão poderá corresponder apenas a um «silêncio eloquente» da lei, para utilizar a expressão feliz de Henriques Gaspar [6]. Também Cavaleiro de Ferreira refere a existência de «lacunas aparentes», que não são verdadeiras lacunas mas apenas casos que aparentando não terem sido regulados pela lei na verdade o foram, como resultará da interpretação; «são apenas casos obscuros que a interpretação esclarece. Lacunas reais são só aquelas que não cabem no conteúdo da lei, depois de submetida a todas as formas possíveis de interpretação» [7]; sem que se esqueça a lição de Figueiredo Dias quando adverte que «(…) toda a interpretação possível em direito penal tem de ser “teleologicamente comandada, isto é, em definitivo determinada à luz do fim almejado pela norma; e por outro que ela seja funcionalmente justificada, quer dizer, adequada à função que o conceito (e, em definitivo, a regulamentação) assume no sistema”» [8]. Abreviando razões, diremos que o que está em causa é um conceito de capacidade jurídica que se prende exclusivamente com a capacidade para ser sujeito passivo do processo penal e que se desdobra em duas vertentes: - A capacidade formal ou abstracta para ser arguido, que coincide com a possibilidade de imputação criminal e que obriga à exclusão dos menores de 16 anos de idade e dos portadores de anomalia psíquica conforme à previsão do art. 20º do Código Penal; e - A capacidade concreta para esse mesmo efeito, que supõe que o arguido seja capaz de participar com plena autonomia e esclarecimento no processo criminal, conclusão que se alcança através da interpretação conjugada das normas que disciplinam o estatuto do arguido [9]. Trilhando este caminho, Pedro Soares de Albergaria considera que a capacidade processual em processo penal «(…) é a aptidão do arguido para exercer pessoalmente a sua defesa independentemente da questão de se saber se no momento da prática do facto era ou não susceptível de um juízo de culpa. Em termos tais que a pessoa será processualmente incapaz quando, em razão de anomalia, não tenha condições para, no momento em que tenha de intervir no processo e ao longo dele, providenciar por uma defesa inteligente e inteligível» [10]. Não se segue, porém, que o incapaz não possa ser sujeito passivo do processo penal, como sucede com o inimputável, cuja inimputabilidade poderá resultar de anomalia mental que lhe retire a capacidade de entender o significado e alcance do julgamento e o sentido da medida de segurança que porventura lhe venha a ser imposta, suposto não ser passível de sujeição a uma pena criminal. Por ora, importa referir que até ao momento e, portanto, no que concerne ao reconhecimento da incapacidade que afecta o arguido, não se detecta na decisão recorrida qualquer assintonia com a posição que sustentamos. Divergimos, no entanto, e desde já, não apenas no que respeita às consequências da verificação dessa incapacidade, mas também na oportunidade da sua verificação (ou seja, na oportunidade do despacho recorrido. Tendo a acusação sido recebida e proferido despacho de saneamento nos termos do art. 311º do CPP sem formação de caso julgado formal, como sucede com os despachos ditos «tabelares», e não ocorrendo causa de extinção do procedimento ou da responsabilidade criminal – que pode e deve ser conhecida logo que verificada –, o conhecimento de questões prévias ou incidentais que porventura pudessem obstar à apreciação do mérito da causa e acerca das quais não tenha ainda havido decisão, podendo desde logo ser apreciadas, é feito em audiência, precedendo discussão pelos sujeitos processuais, como decorre do art. 338º, nº 1, do CPP; esse deveria ter sido, pois, o momento de apreciação do requerimento formulado pela defesa; referência que se faz meramente en passant, por não constituir objecto do recurso). Assim, tomando como assente que no caso se comprova uma “incapacidade” que quadra com os termos de que demos conta, há que averiguar quais as consequências processuais daí decorrentes. A decisão em crise considerou que «A incapacidade judiciária do arguido impede a sua sujeição a julgamento no âmbito penal, devendo os autos ficar suspensos até à sua extinção, por alguma das formas previstas no artigo 127º do Código Penal, ou, ainda, por prescrição». Reconhecendo que a resposta não colhe unanimidade, discordamos da solução propugnada na decisão recorrida, que a nosso ver contraria frontalmente o regime legalmente previsto. No regime do Código de Processo Penal de 1929 a questão, a dirimir em incidente de alienação mental, contava com expressa regulamentação no art. 130º que, na redacção introduzida pelo DL nº 185/72, de 31 de Maio, dispunha nos termos seguintes: Se o arguido for declarado irresponsável antes do julgamento, ficará sem efeito a acusação, se a tiver havido. Se a irresponsabilidade for declarada no julgamento, será o réu absolvido da pena. § único. Quando se mostre que a falta de integridade mental do arguido foi posterior à prática da infracção, será suspensa a execução do despacho de pronúncia, ou equivalente, bem como os termos ulteriores do processo, incluindo a execução da sentença e cumprimento da pena, até que o arguido recupere o pleno uso das suas faculdades mentais. Face a este normativo era então inequívoca a suspensão do processo uma vez verificada a falta de integridade mental do arguido após a prática da infracção. O legislador do Código de Processo Penal de 1987, que tinha conhecimento e clara consciência do funcionamento do regime processual penal que revogou – tanto assim que consignou no preâmbulo do DL n.º 78/87, de 17 de Fevereiro, que «o Código, que agora passa a ocupar o espaço do de 1929 e da legislação avulsa que, dispersa e, por vezes, incoerentemente, o complementou, surge, no entanto, em resultado de uma ponderada preparação e de um debate institucional alargado» –, abandonou aquela solução, eliminando o incidente de alienação mental, desnecessário face ao regime vertido no novo Código Penal. Na verdade, este diploma dedica todo um capítulo ao internamento de imputáveis portadores de anomalia psíquica, distribuindo o respectivo regime pelos artigos 104º a 108º. Diversamente do que sucede com o regime previsto para os inimputáveis, não está em causa, no que concerne aos imputáveis portadores de anomalia psíquica, a aplicação de uma medida de segurança, como o revelam quer a interpretação sistemática – no Título III do Livro I o Código distingue as situações, dedicando o capítulo VII às medidas de segurança e o capítulo VIII ao internamento de imputáveis portadores de anomalia psíquica – quer a própria estrutura das normas que regem sobre o tema e para as quais remetemos. Assim, conquanto se afaste a possibilidade de aplicação de uma pena criminal ao agente de crime que seja considerado inimputável prevendo-se para os casos em que tal se justificar a aplicação de medidas de segurança, distingue-se a situação dos imputáveis portadores de anomalia psíquica, que continuam a ser passíveis da aplicação de penas criminais ainda que estas possam, consoante os casos, ser cumpridas mediante internamento em estabelecimento destinado a inimputáveis ou ser suspensas até à cessação do estado que determinou a suspensão. Trata-se, aliás, da solução que melhor se harmoniza com o princípio da legalidade em processo penal, que se por um lado impõe ao M.P. a obrigação de proceder por todas as infracções de cujos pressupostos tenha conhecimento e de acusar por todas aquelas de que tenha logrado recolher indícios suficientes, gera por outro lado uma imutabilidade da acusação pública, que obsta a que a acusação seja retirada a partir do momento em que um tribunal seja chamado a decidir sobre ela [11]; e a partir desse momento, a suspensão do processo só é de admitir nos casos expressamente previstos na lei. Ora, o que não se vê é que no caso de verificação da incapacidade do arguido decorrente de anomalia psíquica posterior ao facto criminoso a lei imponha ou, sequer, admita, a suspensão do processo antes de iniciado o julgamento. Em bom rigor, é em julgamento que essa situação, se já manifestada, deverá ser verificada, produzindo-se a prova necessária e dela se retirando todas as consequências, sendo de excluir a decisão prévia ao julgamento, desprovida das garantias que resultam da publicidade da audiência e do contraditório assegurados pela realização da audiência de julgamento; havendo assim que excluir a possibilidade de decisão por simples despacho numa matéria de tal modo relevante que contende com o sancionamento da conduta e com a correspondente execução, se a ela houver lugar. O entendimento perfilhado no despacho recorrido obsta ao julgamento do arguido e à apreciação da sua responsabilidade penal por uma forma não transparente e que não seria compreendida pela comunidade jurídica [12]. Estamos em crer que a opção do legislador terá visado não apenas uma conformação com o princípio da legalidade, mas ainda a conformidade com a função de garantia do sistema de prova e a preservação da credibilidade dos tribunais e do sistema de justiça. Na verdade, o julgamento da situação de incapacidade não cabe ao perito forense que examina o arguido e produz o relatório de perícia psiquiátrica forense, mas ao tribunal, em audiência, observadas todas as garantias conferidas pelo processo penal e pela realização da audiência de julgamento, ainda que as conclusões vertidas no referido relatório se imponham com a força imanente às perícias científicas realizadas em estabelecimento oficial. Têm aqui pleno cabimento as seguintes considerações, vertidas no acórdão do STJ de 29 de Fevereiro de 2024 e que pela sua pertinência reproduzimos: « (…) Ora, a anomalia psíquica a que alude o artº 106.º, sobrevinda ao agente após a prática do crime, tem que ser de tal forma grave que coloque o arguido numa situação semelhante à de um inimputável, isto é, sem o domínio da vontade e sem a capacidade de entender, só não determinando o internamento em estabelecimento destinado a inimputáveis - como acontece no caso previsto no artº 105.º do C. Penal, em que também se prevê a situação de anomalia psíquica sobrevinda ao agente após a prática do facto - porque na situação prevista no artº 106.º tal anomalia psíquica posterior não torna o agente perigoso, ao contrário do que acontece na previsão do artº 105.º do C. Penal. Com efeito, não é qualquer doença do foro psíquico, sobrevinda ao agente depois da prática do crime, que permite alterar a forma de cumprimento da pena de prisão, impondo-se que esteja em causa uma anomalia psíquica de tal forma grave que torne o arguido incapaz de entender e querer, bem como de perceber o alcance do processo criminal de que está a ser alvo e suas consequências» [13]. Neste mesmo aresto pode ler-se, a dado passo: «(…) não cabe também ao Tribunal a quo reconhecer ao arguido qualquer especial direito, não previsto na lei, de não ser julgado pelos factos que lhe são imputados por entretanto ter passado a padecer de (…). Aliás, no caso de pessoas inimputáveis ou com inimputabilidade diminuída, não deixa a lei de lhes reconhecer os mesmos direitos e deveres que reconhece a qualquer arguido, podendo os mesmos prestar declarações perante o Tribunal e fazendo-o necessariamente com as capacidades que detêm. Acresce que, nos termos previstos no n.º 2 e 3 do artºº 334.º do C.P.P., sempre que o arguido se encontrar praticamente impossibilitado de comparecer à audiência, nomeadamente por idade, doença grave ou residência no estrangeiro, pode requerer ou consentir que a audiência tenha lugar na sua ausência, sendo que, se o tribunal vier a considerar absolutamente indispensável a presença do arguido, ordena-a, interrompendo ou adiando a audiência, se isso for necessário. Quer isto dizer que, mesmo nas situações em que o arguido se encontra praticamente impossibilidade de comparecer, se o Tribunal entender que a presença do arguido não é absolutamente indispensável, não adia o julgamento. E, nos termos previstos no n.º 4 do mesmo artº 334.º do C.P.P., sempre que a audiência tiver lugar na ausência do arguido, este é representado, para todos os efeitos possíveis, pelo defensor». De resto, que a aplicação do regime previsto no instituto a que nos reportamos se situa ainda no domínio das consequências jurídicas do crime e que abrange tanto os casos em que a anomalia surge antes da execução da pena ter início como durante essa execução, foi questão que não suscitou dúvidas a Figueiredo Dias [14] que, reportando-se aos pressupostos do internamento de delinquentes cuja anomalia psíquica os priva da capacidade de compreensão da pena refere que «De acordo com os arts. 104º e 105º (actuais artigos 105º e 106º), pressuposto da sua aplicação é que a anomalia psíquica de que padece o delinquente seja posterior à prática da infracção, tenha ela surgido antes da sentença condenatória ser proferida, de a pena começar a ser executada ou já na fase de execução. Não se trata aqui, por conseguinte, do conhecimento superveniente da anomalia psíquica contemporânea da prática do crime. Para esta valerá o regime processual do recurso de revisão [art. 449º, 1, b), do CPP], se a sentença já tiver transitado em julgado [15]; e, mais adiante, «(…) imposição de medidas que podem crismar-se, em certo sentido, como medidas de diversão na execução da pena. Não em “sentido técnico”, é certo, por isso que elas não significam uma forma de realizar o sentido punitivo “fora” do campo das reacções criminais, antes assumem a natureza de medidas instrumentais visando o restabelecimento da capacidade de compreensão da pena e, consequentemente, a realização das finalidades da punição ainda dentro do âmbito do controlo formal» [16]. No mesmo sentido se orienta o Acórdão do STJ, de 21/02/2024, perfilhando a orientação de Figueiredo Dias e Maria João Antunes quando acolhem as medidas previstas na lei como medidas de natureza especial que constituem uma diversão da execução da pena. Lê-se nesse aresto que «Quanto à natureza do internamente e da suspensão, Figueiredo Dias, acompanhando sempre Maria João Antunes, considera tratar-se de “um instituto de natureza especial que constitui uma medida de diversão da execução da pena sem que, todavia, ele perca por isso natureza penal”. E acentua que “o regime previsto na lei para o internamento e para a suspensão da execução da pena traduz a introdução do princípio da necessidade da pena na fase da execução: a execução efectiva da pena privativa da liberdade ocorre somente quando tal se revelar necessário do ponto de vista das finalidades preventivas assinaladas à punição. É então na coerência deste regime que o art. 106.º, n.º 1, do CP determina que se a anomalia psíquica sobrevinda ao agente depois da prática do crime, determinante da incapacidade de compreensão da pena, não determinar simultaneamente a perigosidade do agente, “a execução da pena de prisão a que tiver sido condenado suspende-se até cessar o estado que fundamentou a suspensão”» [17]. Por fim, tem-se por lapidar a afirmação de Maria João Antunes, aliás, citada pela Exª Procuradora-Geral Adjunta no seu parecer, quando escreve que «quando ao delinquente imputável sobrevém uma anomalia psíquica mantém-se a necessidade de pena, impõe-se a reafirmação da validade da norma violada. E este efeito obtém-se quando se profere uma sentença condenatória – como decorre também da mera existência do processo penal – pelo que tem sentido aplicar uma pena a um delinquente que não a compreenda; não tem é sentido executar nele tal pena» [18] / [19] . Revertendo ao caso concreto, o que resulta do relatório que entretanto foi junto aos autos e que determinou o despacho recorrido é que o arguido, tendo sofrido um acidente vascular cerebral, vulgo AVC, passou a padecer em momento ulterior ao da prática dos factos ilícitos de uma anomalia psíquica traduzida em perturbação neurocognitiva major com défices cognitivos e de linguagem que o incapacitam de compreender totalmente o que lhe é dito, bem como de se expressar, quer verbalmente, quer por escrito, por apresentar uma afasia global. Essa anomalia psíquica não o terá tornado criminalmente perigoso, em termos tais que se o agente fosse inimputável determinariam o seu internamento efectivo. Assim, vindo essas conclusões do relatório a considerar-se comprovadas em audiência, haverá lugar, oportunamente, se o arguido vier a ser condenado, à aplicação do regime previsto no art. 106º do Código Penal.
Com isto, ficam decididas a 1ª e 3ª questões que acima se identificaram como constituindo objecto do recurso. A última questão posta traduz-se em averiguar se a incapacidade judiciária do arguido deverá ser suprida nos termos previstos nos arts.16° e 17° do CPC, providenciando-se pela nomeação de um curador provisório e suspendendo-se, entretanto, a instância. A resposta não poderá deixar de ser negativa. A nomeação de curador provisório não contende com o caso nem encontra acolhimento no Código de Processo Penal, que regula autonomamente a situação do arguido inimputável, como a do arguido imputável afectado por anomalia psíquica, pelo que consequentemente não haverá lugar a suspensão do processo por inexistência de questão não penal a dirimir fora do processo, nos termos previstos no art. 7º, nºs 1 e 2, do CPP.
III – DISPOSITIVO:
Pelo exposto, acordam nesta Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra em conceder parcial provimento ao recurso, determinando que os autos prossigam para julgamento nos termos apontados. No mais, improcede o recurso. Não é devida taxa de justiça.
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Coimbra, 22 de Janeiro de 2024 (Processado pelo relator e revisto por todos os signatários)
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