Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | JTRC | ||
Relator: | ROSA PINTO | ||
Descritores: | IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO CRIME DE HOMICÍDIO NEGLIGENTE ELEMENTOS DO TIPO ACTO MÉDICO RESPONSABILIDADE PELO RISCO | ||
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Data do Acordão: | 03/12/2025 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Tribunal Recurso: | TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE COIMBRA - JUÍZO LOCAL CRIMINAL DE COIMBRA - JUIZ 2 | ||
Texto Integral: | S | ||
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Meio Processual: | RECURSO CRIMINAL | ||
Decisão: | PARCIALMENTE REVOGADA | ||
Legislação Nacional: | ARTIGO 379º, Nº 1, ALÍNEA C), E ARTIGO 403º Nº 3 DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL, ARTIGO 137º, Nº1, DO CÓDIGO PENAL; ART. 493.º, N.º 2, DO CC. | ||
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Sumário: | 1 - A matéria vertida nos pontos 50.G, 50.H e 50.I extravasa o âmbito do reenvio, por não dizer respeito aos instrumentos utilizados na administração do produto e eventual não esterilização dos mesmos, verificando-se, pois, nesse segmento, a nulidade por excesso de pronúncia, prevista no artigo 379º, nº 1, alínea c), do Código de Processo Penal, suprível pelo Tribunal da Relação que em consequência os elimina.
2 - O tipo de facto negligente é definido por três elementos: o reconhecimento do risco da realização do tipo legal; o cuidado juridicamente exigível; a previsão do resultado típico. 3 - A morte de AA por sépsis adveio do procedimento de administração do produto através de injecções. Procedimento em relação ao qual não se provou qualquer violação de dever objectivo de cuidado causal da morte. 4 - Face aos riscos inerentes aos tratamentos de mesoterapia - que o próprio arguido reconhece, - é possível que os mesmos venham a desencadear uma inflamação ou até mesmo uma infecção. O que já não é previsível é que, respeitando o médico o protocolo na administração do produto, o doente contraia uma infecção generalizada no corpo que o conduza à morte. 5 - Previsibilidade que não se verifica no caso sub judice. 6 - Assim, não se verificam os elementos típicos, objectivos e subjectivos, do crime de homicídio negligente, previsto e punido pelo artigo 137º, nº1, do Código Penal. 7 - A responsabilidade a título de risco pelos serviços médicos não se compatibiliza com a natureza do acto médico, procurados pelo doente para curar ou mitigar o seu sofrimento e não para exposição a riscos daquela dimensão; como regra tal prestação não comporta risco, sem esquecer, no entanto, que, por vezes, concorrem consabidos riscos graves e outros, supervenientemente, de forma imprevisível e absolutamente indominável. 8 - A actividade de prestação de serviços médicos não se enquadra na previsão do art. 493.º, n.º 2, do CC, prevendo a responsabilidade pelo risco, por tal actividade não ser, na sua essência, genericamente, perigosa, nem por si nem nas suas consequências, devendo, por isso, o que retira proveito daquela sofrer as consequências da sua prática e prová-las, sendo excessiva a presunção de culpa no caso da actividade médica. 9 - A limitação do recurso a uma parte da decisão, não prejudica o dever de retirar da procedência daquela as consequências legalmente impostas relativamente a toda a decisão recorrida - nº 3 do artigo 403º do CPP. | ||
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Decisão Texto Integral: | Acordam, em conferência, na 4ª Secção, Criminal, do Tribunal da Relação de Coimbra.
A – Relatório 1. Pela Comarca de Coimbra (Juízo Local Criminal de Coimbra - Juiz 2), sob acusação do Ministério Público, pela prática, como autor material e na forma consumada, de um crime de homicídio por negligência, previsto e punido pelos artigos 26º e 137º, nºs 1 e 2, do Código Penal, foi submetido a julgamento, em processo comum, com intervenção do Tribunal Singular, o arguido BB, casado, médico, filho de CC e de DD, nascido em ../../1951, natural da freguesia ..., município ..., residente na Urbanização ..., ..., ....
2. As ofendidas EE e FF deduziram pedido de indemnização civil contra o arguido BB, a “Clínica A..., Lda”, a “B..., Lda” e “C... – Companhia de Seguros de Vida, S.A.”, peticionando a condenação solidária dos demandados no pagamento da quantia de 125.000,00 euros, bem como nos juros legais vincendos, contados desde a notificação do pedido cível até efectivo e integral pagamento.
3. Realizada a audiência de julgamento, foi proferida sentença, a 5.3.2020, decidindo-se:
- Absolver o arguido, BB, casado, médico, filho de CC e de DD, nascido em ../../1951, natural da freguesia ..., município ..., residente na Urbanização ..., ..., ..., da prática, como autor material e na forma consumada, do crime de homicídio por negligência grosseira, previsto e punido pelos artigos 26º e 137º, nºs 1 e 2, do Código Penal, de que se encontrava acusado. - Condenar o arguido, BB, casado, médico, filho de CC e de DD, nascido em ../../1951, natural da freguesia ..., município ..., residente na Urbanização ..., ..., ..., pela prática, como autor material e na forma consumada, de um crime de homicídio por negligência, previsto e punido pelos artigos 26º e 137º, nº 1, do Código Penal, na pena de 200 (duzentos) dias de multa à razão diária de 25,00 (vinte e cinco euros), o que perfaz o total de € 5.000,00 (cinco mil euros). - Julgar parcialmente procedente o pedido de indemnização civil deduzido por EE e FF, contra os demandados BB, Clínica A..., L.Da, com sede na Quinta ..., ..., ..., B..., L.da, com sede na Rua ..., ..., e C... – Companhia De Seguros De Vida, S.A., e, por conseguinte:
▪ Absolver, integralmente, do pedido a demandada B..., L.da, com sede na Rua ..., .... ▪ Condenar os demandados BB, Clínica A..., L.da, com sede na Quinta ..., ..., ..., e C... – Companhia de Seguros de Vida, S.A., com sede na Av.ª ..., ..., ..., solidariamente, a pagar às demandantes, EE e FF, a quantia de € 50,000,00 (cinquenta mil euros), acrescida dos respectivos juros de mora vincendos, desde a presente data, à taxa legal de 4 % ou outra que, entretanto, sobrevier, até efectivo e integral pagamento, absolvendo-os do mais peticionado. - Custas a cargo do arguido, com taxa de justiça que se fixa, ponderada a “complexidade da causa”, em 5 UCs, compreendendo, ainda, os respectivos encargos (artigos 513º, nº 1, 514º, nº 1, do Código de Processo Penal, 8º, nº 9, e Tabela Anexa III, do Regulamento das Custas Processuais). - Custas da instância cível a cargo de demandantes e demandados, na proporção matemática dos respectivos decaimentos – artigos 523º do Código de Processo Penal e 527º, nºs 1 e 2, do Código de Processo Civil”.
4. Na sequência de recursos interpostos pelo arguido BB, pela “C... – Companhia de Seguros, S.A.” e pelas assistentes EE e FF, (este subordinado), esta Relação proferiu acórdão, a 23.6.2021, decidindo nos seguintes termos:
a) Julgar improcedente a invocada nulidade da sentença recorrida, nos termos dos artigos 379º, nº 1, alínea b), do Código de Processo Penal e 615º, nº 1, alínea d), do CPC, por violação do disposto nos artigos 358º do Código de Processo Penal, 35º, nº 2, da CRP e 609º do CPC (recursos do arguido e demandada C...); b) Ordenar a correcção da parte decisória da sentença recorrida, substituindo-se a denominação “C... – Companhia de Seguros de Vida, S.A.” por “C... – Companhia de Seguros, S.A.”;
c) Alterar a decisão sobre a matéria de facto, passando os pontos 19 e 32 da factualidade provada a ter a seguinte redacção: 19 – No dia 02 de Julho de 2013, AA efectuou uma nova sessão de tratamentos, com injecção, através da técnica da Mesoterapia, de silício orgânico [“MESOESTETIC – X Pprof 013 – Ampolas regeneradoras de silício orgânico – 5ml/017fl. Oz. Lote: D-6; prazo de validade 10-2015”] na região dos gémeos da perna esquerda e na região lombar, que lhe foi administrada pelo arguido, na referida clínica. 32 – No dia 09 de Julho de 2013, uma vez que AA se encontrava muito débil e com dificuldades respiratórias, foi transportada pelo INEM para o Serviço de Urgências do Centro Hospitalar da Universidade de Coimbra, onde deu entrada, com um quadro clínico crítico, tendo, no final dessa dia (cerca de 12 horas depois da entrada nos Serviços de Urgências), os rins e o sistema respiratório em falência.
d) Aditar dois pontos à matéria de facto provada, com os números 50-A e 50-B, com a seguinte redacção:
50-A – Foi efetuada colheita à AA, por exsudação da ferida a 10-07-2013, a fim de ser efectuado exame cultural bacteriológico, sem crescimento bacteriológico ao fim de 5 dias de incubação mas com identificação de staphylococcus aureus em 13-07-2013, pelas 12h35. 50-B – As embalagens utilizadas pelo arguido não estavam contaminadas por agente patológico – fls. 491.
e) Declarar a existência do vício previsto no artigo 410º, nº 2, alínea a), do Código de Processo Penal;
f) Determinar, ao abrigo do disposto no artigo 426º, nº 1, do Código de Processo Penal, o reenvio do processo para novo julgamento, restrito ao apuramento dos instrumentos utilizados na administração do produto (como seringa, agulha e outros eventualmente utilizados) e sua eventual não esterilização, a efectuar de acordo com o disposto no artigo 426º-A do mesmo diploma legal”.
5. Os autos baixaram, então, à 1.ª instância tendo em vista a realização de novo julgamento.
6. Na sessão de 13.9.2024 da nova audiência de discussão e julgamento, o tribunal a quo comunicou uma alteração não substancial dos factos, nos seguintes termos:
“Atenta a prova produzida em audiência de julgamento, resulta indiciada a seguinte alteração não substancial da factualidade: Da produção probatória realizada em sede de audiência de discussão e julgamento, constata-se a necessidade de acrescentar circunstancialismo/outra factualidade (art. 368º, nº2 do CPPenal) que permita contextualizar, de forma plena e adequada, a ilicitude e o nexo da causalidade da conduta que se acha a ser imputada ao arguido. Com efeito, da discussão da causa, resultam indiciariamente apurada a seguinte matéria [que se perspectiva ficar inserta nos factos 50.C a 50.I], com o seguinte teor: 50.C. Os instrumentos que devem ser utilizados na administração da técnica de mesoterapia são seringas e agulhas para a inoculação da solução final na pele (é necessário obter uma mistura de 2/3 fármacos), seringa de transferência e respectiva agulha mais longa e estéril (para efectuar a extracção dos fármacos de cada uma das ampolas para dentro das seringas de inoculação), luvas e marquesa devidamente desinfectadas. 50.D. A esterilização dos instrumentos utilizados e do local apenas deve ser efectuada com álcool a 70% . 50-E. O arguido usou álcool a 90% e álcool isopropílico para a sobredita desinfeção, substâncias que não adequadas para adequada esterilização. 50-F. Não estavam correctamente esterilizados os instrumentos utilizados e o local do tratamento. 50-G. Nas 48 horas após o procedimento é desaconselhável, para além de banho quente (temperatura da água superior a 25º) e da exposição solar, também a aplicação de tópicos no local de tratamento, a ionização sobre a zona envolvida e a massagem local. 50-H. A prescrição e aplicação de um anti-inflamatório tópico (AINE) em processo infecioso (erisipeia/ celulite, por agravamento de necrose cutânea), mesmo após as 48 horas é medicamente debatido, existindo controvérsia médica sobre o assunto. 50-I. O arguido, pela sua formação e experiência, tinha obrigação de saber que a aplicação da “manga pneumática” (pressoterapia) é contra-indicada em local de inflamação, sendo suscetível de condicionar a evolução do quadro infecioso, que conduziu à morte da doente. Tais circunstâncias, a provarem-se, constituem alteração não substancial dos factos, pelo que se comunica a mesma ao arguido para que o mesmo, querendo, se pronuncie, nos termos do disposto no art. 358, nº 1 do C.P.P.”.
7. De seguida, dada a palavra ao ilustre Mandatário do arguido, pelo mesmo foi dito nada ter a opor a tal alteração, prescindindo do prazo de defesa.
8. Após realização do novo julgamento, o Tribunal a quo, a 13.9.2024, proferiu nova sentença, decidindo nos seguintes termos:
“1. Absolvo o arguido, BB, casado, médico, filho de CC e de DD, nascido em ../../1951, natural da freguesia ..., município ..., residente na Urbanização ..., ..., ... ..., da prática, como autor material e na forma consumada, do crime de homicídio por negligência grosseira, previsto e punido pelos art.ºs 26.º e 137.º, nºs 1 e 2, do Código Penal, de que se encontrava acusado. 2. Condeno o arguido, BB, casado, médico, filho de CC e de DD, nascido em ../../1951, natural da freguesia ..., município ..., residente na Urbanização ..., ..., ... ..., pela prática, como autor material e na forma consumada, de um crime de homicídio por negligência, previsto e punido pelos art.ºs 26.º e 137.º, n.º 1, do Código Penal, na pena de 200 (duzentos) dias de multa à razão diária de 25,00 (vinte e cinco euros), o que perfaz o total de € 5.000,00 (cinco mil euros). Mais julgo parcialmente procedente o pedido de indemnização civil deduzido por EE e FF contra os demandados BB, CLÍNICA A..., L.DA, com sede na Quinta ..., ..., ... ..., B..., L.DA, com sede na Rua ... ... ..., e C... – COMPANHIA DE SEGUROS DE VIDA, S.A., e, por conseguinte: 1. Absolvo, integralmente, do pedido a demandada B..., L.DA, com sede na Rua ... ... .... 2. Condeno os demandados BB, CLÍNICA A..., L.DA, com sede na Quinta ..., ..., ... ..., e C... – COMPANHIA DE SEGUROS, S.A., com sede na Av.ª ..., ..., ..., solidariamente, a pagar às demandantes, EE e FF, a quantia de € 65,000,00 (sessenta e cinco mil euros), acrescida dos respectivos juros de mora vincendos, desde a presente data, à taxa legal de 4 % ou outra que, entretanto, sobrevier, até efectivo e integral pagamento, absolvendo-os do mais peticionado. * Custas a cargo do arguido, com taxa de justiça que se fixa, ponderada a “complexidade da causa”, em 5 UCs, compreendendo, ainda, os respectivos encargos (art.ºs 513.º, n.º 1, 514.º, n.º 1, do Cód. de Proc. Penal, 8.º, n.º 9, e Tabela Anexa III, do Regulamento das Custas Processuais). Custas da instância cível a cargo de demandantes e demandados, na proporção matemática dos respectivos decaimentos – art.ºs 523.º do Cód. de Processo Penal e 527.º, n.ºs 1 e 2, do Cód. de Processo Civil”.
9. Inconformado com a douta sentença, veio agora o arguido BB interpor recurso da mesma, terminando a motivação com as seguintes conclusões: “A) Vem o presente recurso interposto da douta decisão que condenou o Arguido pela prática de um crime de homicídio por negligência grosseira, previsto e punido pelos art.ºs 26.º e 137.º, n.ºs 1 e 2, do Código Penal, na pena de 200 (duzentos) dias de multa à razão diária de €25,00 euros, o que perfaz o total de €.5000,00 (cinco mil euros) e, bem como, solidariamente a pagar às Demandantes a quantia de €65.000,00 (sessenta e cinco mil euros), acrescida dos respetivos juros de mora vincendos, desde a data da prolação da sentença; B) O presente recurso versa sobre matéria de facto e de direito e abrange toda a decisão; C) No que respeita à matéria de facto considera o aqui Recorrente que o Tribunal a quo não podia ter dado como provados os pontos 50-D, 50-E, 50-F, 50-I, 50, 51 e 52 dos “Factos Provados”, todos eles em total contradição com o ponto 2 dos “Factos Não Provados” - da douta sentença, pelo que fez um incorreto juízo e, em consequência, uma aplicação totalmente inadequada da matéria de Direito que, conforme infra se explanará neste recurso, imporá uma decisão diversa da proferida; D) No âmbito dos presentes autos, deduziu o Ministério Público a Acusação contra o arguido imputando-lhe a prática, como autor material e na forma consumada, de um crime de homicídio por negligência, previsto e punido pelos art.ºs 26.º e 137.º, n.ºs 1 e 2, do Código Penal, nos termos dos factos constantes da douta acusação, os quais aqui se dão por reproduzidos, a que aderiram as demandantes que, por sua vez, deduziram pedido de indemnização civil contra o arguido e demandada; E) O Tribunal da Relação de Coimbra, na sequência do douto Acórdão de fls. 1297 e ss, o qual concedeu parcial provimento aos recursos interpostos pelos arguido e demandada, ordenou ao Tribunal da primeira instância a realização de novo julgamento com o seguinte propósito único: “Determinar, ao abrigo do disposto no artigo 426º, nº 1, do Código de Processo Penal, o reenvio do processo para novo julgamento, restrito ao apuramento dos instrumentos utilizados na administração do produto (como seringa, agulha e outros eventualmente utilizados) e sua eventual não esterilização, a efectuar de acordo com o disposto no artigo 426º-A do mesmo diploma legal.”; F) No dia 29 de novembro de 2022, depois de proferida a primeira sentença e após prolação do Acórdão do TRC, ou seja, com o conhecimento integral do teor dos autos (i.e, foi considerada toda a matéria probatória do processo judicial), os membros do Conselho Disciplinar Superior da Ordem dos Médicos, entre os quais se destaca o Sr. Dr. GG, Médico relator da consulta técnico-científica do Conselho Médico legal (mencionada na primeira sentença), acordaram, por unanimidade (com subscrição de 13 médicos) a sua decisão fundamentada, com base no parecer do respetivo Colégio de Dermatovenerealogia, subscrito pela Sra. Dra. HH, e que no essencial refere o seguinte: “Da matéria de facto provada resulta que, na sequência dos tratamentos realizados pelo médico arguido na pessoa da inditosa AA, esta veio a contrair infeção grave. Cujo desenvolvimento veio a conduzir à morte. Da leitura que fazemos da sentença proferida no processo crime, cremos poder dizer que o cerne da questão que conduziu à condenação do aqui arguido esteve na consideração de que a aplicação do silício orgânico por via injectável contra as “recomendações do fabricante e do infarmed” constitui grave violação das leges artis e foi a causa direta e necessária da morte da doente. A matéria que demos como provada, seguindo, no essencial, o parecer do Colégio da Especialidade de Dermatologia da Ordem dos Médicos, afasta-nos dessa linha de raciocínio e conclusão.” [sublinhados nossos] – fim de citação; G) Aqui chegados, e voltando ao objeto da sentença em causa, e tal como o Tribunal a quo refere (e bem, nesta parte) “[…]à luz do próprio enquadramento colocado pelo Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, ao nível da instância criminal, o nexo de imputação da morte de AA não estará tanto relacionado com o facto de se tratar de um tratamento com a utilização de silício orgânico aplicado pela via subcutânea (em vez de tópica8) mas com as “picadas” na pele que foram necessárias fazer para o administrar, portanto, com o facto dessas “picadas” da pele constituírem portas de entrada para bactérias/infecções.” (cf. pág. 18 da sentença); H) Assim, analisada a sentença e contrapondo-a com a prova constante dos autos, entende o arguido-recorrente que foram incorretamente julgados os seguintes factos dados como provados: 50-D. A esterilização dos instrumentos utilizados e do local apenas deve ser efectuada com álcool a 70%; 50-E. O arguido usou álcool a 90% e álcool isopropílico para a desinfeção substâncias não adequadas para esterilização.; 50-F. Não estavam correctamente esterilizados os instrumentos utilizados e o local do tratamento. […]; 50-I. O arguido, pela sua formação e experiência, tinha obrigação de saber que a aplicação da “manga pneumática” (pressoterapia) é contra-indicada em local de inflamação, sendo suscetível de condicionar a evolução do quadro infecioso, que conduziu à morte da doente.; 50. O arguido, ao actuar do modo descrito, sabia que violava as leges artis, contribuindo, assim, de forma directa, para desencadear um quadro infeccioso da pele das pernas e da pele da região lombar de AA, que evoluiu para uma fasceíte necrosante, com choque séptico e consequente morte de AA.; 51. O arguido não podia, enquanto médico que acompanhava AA, deixar de representar como possível que esta viesse a contrair uma infecção, por via da aplicação injectável do produto silício, que lhe viesse a causar infecção generalizada no corpo e consequente morte.; e 52. Ao agir como supra descrito, o arguido criou grave perigo para a vida, corpo e saúde de AA, que veio a morrer em virtude do relatado comportamento do arguido; I) Considera o arguido-recorrente que factualidade supra enunciada, salvo o devido e merecido respeito, resulta de uma errónea interpretação seletiva da prova que foi valorada de forma a sustentar a tese de que o arguido violou as leges artis e, sobretudo, com tal conduta causou a morte da infeliz AA, de 89 anos de idade; J) Na nossa modesta opinião jamais o Tribunal a quo poderia concluir que o arguido usou na desinfeção substâncias não adequadas para esterilização e que não estavam correctamente esterilizados os instrumentos utilizados e o local do tratamento (factos 50-D, 50-E e 50-F do Factos Provados) e, como tal, o modo de administração preconizado pelo arguido consubstanciou uma violação das leges artis e, sobretudo, causou a morte à Sra. AA. Porquanto, além de não ter sido realizada qualquer autópsia, inexiste nos autos qualquer prova cabal que nos leve a concluir que a causa da morte foi a administração médica do Arguido; K) O Tribunal a quo ignorou por completo prova determinante existente nos autos, prova essa que foi totalmente desconsiderada e impunha decisão diversa; L) O Tribunal a quo considerou, de forma algo inexplicável (diga-se!) que o arguido não fez a devida assepsia, por alegadamente ter usado uma solução de álcool isopropílico e etanol (comercialmente conhecida como “Softasept” - cf. referido pelo arguido na fase de inquérito, fls -- Auto de Interrogatório subsequente de Arguido) que não contém apenas 70% de álcool; M) A Mma Juiz a quo, eventualmente induzida pela atual debilidade física do arguido e pela sua notória diminuição de acuidade auditiva, considerou que o seu depoimento do não foi coerente e credível e, a contrario, valorou como credíveis os depoimentos indiretos das “testemunhas” (demandantes nestes autos, filhas da falecida, verdadeiras interessadas na lide) que afirmaram que a sua falecida mãe (Sra AA), farmacêutica de profissão, pessoa muito ativa e com apurado sentido crítico (conforme atestado pelas próprias), lhes referiu que o Sr. Dr. BB (arguido) não desinfetava o local das “picadas”; N) O Tribunal a quo infere (com base em presunções) que, no dia 2 de julho de 2013 o arguido (aqui recorrente) não desinfetou as zonas da pele da falecida AA com uma solução adequada e, como tal, violou de forma grosseira os seus deveres de cuidado na administração do medicamento. Contrariamente às várias explicações (médicas) possíveis, conclui o Tribunal a quo, sem mais e de forma incompreensível, que “[…] sendo o arguido a única pessoa viva, neste momento, que nele esteve presente –, e embora o arguido negue a falta de esterilização/desinfeção do local/material utilizado e uso de luvas, a verdade é que é o próprio a admitir que não utilizou, nos cuidados de assepsia do local, material e instrumentos utilizados (não descartáveis, como o caso das ampolas, ou da seringa de transferência, ou do próprio tabuleiro onde pousou o material…) a solução alcoólica exigível: a esterilização do local deveria ter sido efetuada com álcool a 70º e o próprio admitiu que usou álcool a 90º ou Álcool Isopropílico – ambas as soluções alcoólicas não aconselhadas.” (?). - Isto é totalmente FALSO, pois o arguido nunca disse, nem admitiu, que não utilizou a solução alcoólica ali exigível: estamos perante uma infeliz ilação, certamente resultante de um lapso, da Mma Juiz a quo; O) A este propósito, convirá aqui destacar (e ouvir) o depoimento do arguido, notoriamente já cansado e agastado, no final da sessão de julgamento do dia 31.01.2023, entre as 15h56m e as 16h46m (com particular enfoque a partir dos 3m e 45ss do referido depoimento) que instado sobre qual o desinfetante que usava respondeu que uma “preparado” de álcool etanol e álcool isopropílico que que são comprados justamente para desinfeção da pele (veja-se que a testemunha médica, com vasta experiência neste tipo de tratamentos, Dra. II, referiu que tanto se podia usar álcool como ou até mesmo betadine); P) Não é pelo facto de no parecer do Conselho de Dermatologia (ínsito no Acórdão do Conselho Superior da Ordem dos Médicos) lermos que “Quanto à esterilização do local, esta deve ser efetuada apenas com álcool a 70%.” [pág. 56 do Acórdão] que podemos daqui retirar a conclusão de que a solução do preparado de álcool isopropílico e etanol (comercialmente conhecido como “Softasept” - cf. referido pelo arguido na fase de inquérito, fls -- constante do Auto de Interrogatório subsequente do Arguido) não é uma solução indicada para a desinfeção da pele; Q) Veja-se que o “Softasept” (solução de álcool isopropílicio e etanol) é um conhecido desinfetante alcoólico da pele (solução cutânea), indicado para desinfeção pré-cirúrgica da pele, desinfeção em caso de biópsias, punções, recolha de amostras sanguíneas, injeções e cateterizações – cf. https:// www.mymedfarma .com/pt/principios-ativos/151-alcool-isopropilico-etanol/63-solucao-cutanea/3139-softasept-sol-cutanea; R) Ora, a jurisprudência tem comumente entendido que ocorrendo erro no facto que serve de base ao relatório pericial ou consulta médico-legal, tal erro permite ao julgador arredar a força probatória que estes revestem, o que advém da conjugação do disposto nos artigos 163º, nº 2 e 127º, ambos do CPP (cfr. Acórdão do S.T.J. proferido em 25.02.2015, no âmbito do processo nº804/03.2TAALML.S1 - consultável em www.dgsi.pt) – o que é manifestamente notório no caso em apreço; S) Os depoimentos da demandantes estão pejados de contradições (vd. sessão de gravação do dia 31.01.2023, da filha da falecida, demandante EE, na mesma a sessão de julgamento do dia 31.01.2023, entre as 10h09m e as 10h36m, em particular a partir dos 3m e 25ss e seguintes do referido depoimento; e da filha, demandante, FF, também na mesma sessão de julgamento do dia 31.01.2023, depoimento audível entre as 10h36m e as 11h02m, com destaque a partir dos 7m e 25ss e seguintes do referido depoimento). Destes dois depoimentos podemos destacar as seguintes contradições: T) - aplicação do penso: a primeira demandante (EE) refere de forma perentória que mãe (falecida AA) não vinha com qualquer penso visível na perna, e di-lo com conhecimento direto porque ia buscar a mãe à clínica do arguido logo após os tratamentos; e, por sua vez, a filha demandante FF, também com conhecimento direto e pelas mesmas razões (refere ter ido mais de duas dezenas de vezes buscar a mãe à clínica), afirma que a mãe trazia um penso na perna quando a ia buscar no final dos tratamentos; U) - da administração do Lovenox: a primeira demandante (EE) refere, também de forma perentória e em total contradição com o que resulta provado, que foi a sua irmã (FF) quem administrou o Lovenox à sua mãe; e, por sua vez, a referida irmã, filha-demandante FF negou que tenha sido ela a administrar o Lovenox (tendo localizado perfeitamente este incidente no tempo e no espaço) e acrescentou que desconhecia quem teria feito essa mesma administração; V) - da alegada não desinfeção: a primeira demandante (EE) refere, muito sugestionada pela Mma Juiz a quo, que a mãe certamente não chamou o médico à atenção - pela alegada falta de desinfeção prévia - por uma questão de respeito e receio; por sua vez, a sua irmã (FF) sobre a mesma questão afirmou que certamente que a mãe teria chamado o médico à tenção, pois “[…] dada a maneira de ser da minha mãe tenho a certeza que deve ter mesmo perguntado o porquê.” ; W) Estas flagrantes contradições são reveladoras da pouca coerência destes “testemunhos” e, como não poderia deixar de o ser, da falta de credibilidade dos depoimentos das demandantes. São, pois, aspetos que impõem ao julgador uma apreciação diversa daquela que fez o Tribunal a quo, pois a opção pela coerência e credibilidade destes depoimentos não têm aqui uma justificação lógica e minimamente admissível face às regras da experiência comum. Estamos, pois, perante um notório erro na apreciação da prova; X) A este propósito, convém aqui recordar que a falecida AA era Farmacêutica (tal como as suas filhas – Demandantes) e, apesar da sua idade, era uma pessoa bastante ativa, dinâmica e perfeitamente lúcida (tudo isto foi referido quer pelo arguido, quer, sobretudo pelas suas filhas e pelo médico que a assistia desde 2005, o Sr. Dr. JJ). Segundo a demandante Dra. FF, filha da falecida, a Sra. AA “era uma farmacêutica muito crítica” e, segundo a outra filha, a Demandante Dra. EE, “a mãe gostava muito do Dr. BB”, tendo dito, ainda, que “a mãe vinha de lá sempre tão satisfeita”; Y) Ora, mesmo assim o Tribunal a quo entendeu “sacrificar” o arguido mediante uma ostensiva e gritante violação do ónus da prova, credibilizando in totum o depoimento das demandantes (“testemunhos” indiretos), também elas farmacêuticas, que se limitaram a dizer, de forma conveniente, que a falecida mãe (farmacêutica ativa e com grande sentido crítico) lhes disse que o arguido não desinfetava a pele antes da administração injetável do medicamento; Z) Ora, perante as flagrantes contradições (supra assinaladas) das demandantes (e cujos depoimentos foram convenientemente unanimes em afirmar que a mãe dizia que o médico não desinfetava a pele), não se percebe como é que o Tribunal a quo valorou tais depoimentos e menosprezou, por completo, aquilo que o arguido disse que, como facilmente se pode constatar pela consulta dos autos, é totalmente consentâneo com a sua versão dos acontecimentos, pois NUNCA o arguido disse hoje uma coisa e amanhã outra, nem tão pouco mentiu perante o Tribunal; AA) Mesmo assim, e perante estas evidências, a Mma Juiz a quo credibilizou a versão das interessadas (demandantes) chegando inclusive ao ponto de aventar que não percebia o motivo pelo qual o arguido procedia à desinfeção do tabuleiro (e demais instrumentos) quando tudo o que era por si usado era material esterilizado – pasme-se!! Então, Perguntamos nós, o tabuleiro onde se colocam as seringas e as ampolas não deve ser desinfetado?; BB) Veja-se que aqui em causa estão 3 farmacêuticas: a falecida AA (pessoa perfeitamente lúcida, à data Diretora Técnica da Farmácia e com apurado sentido crítico) e as duas filhas (demandantes). Se atendermos à versão das demandantes, o mesmo é dizer que as três farmacêuticas (mãe e filhas), durante cerca de 2 anos (os tratamentos iniciaram em 2012), foram coniventes e cúmplices de um médico (aqui arguido) que aplicava um medicamento injetável sem previamente desinfetar? Isto faz algum tipo de sentido ou é sequer concebível? Convenhamos!!; CC) Até à data dos factos (02.07.2013) o arguido (médico com vasta experiência profissional e mais de 10 anos de prática mesoterápica) NUNCA teve na sua clínica qualquer incidente de infeção cutâneo, nem tão pouco um caso de fasceíte necrotizante e muito menos uma infeção provocada pela famigerada bactéria staphylococcus aureus que alegadamente vitimou a falecida AA, sendo certo que se esse tipo de bactéria por ali cogitasse (na clínica do arguido) teríamos certamente notícia de largas dezenas (ou mesmo centenas) de mortes referentes a outros pacientes dentro dos milhares que já por lá passaram. Porém, para o Tribunal a quo isso não foi tido em conta; DD) O Arguido sempre disse que nunca tinha tido um caso desta natureza, isto é, uma paciente infetada com a bactéria staphyloccus aureus (que surge vulgarmente em ambiente hospitalar), mas que em sua opinião, poderá ter surgido uma infeção de pele e tecidos moles, desencadeada por algum micro-organismo oportunista que eventualmente terá penetrado pela “porta-aberta” que a fragilidade imunitária da própria paciente poderá constituir. O arguido (e demais colegas que prestaram testemunho) também aventaram, como mera hipótese, que à data do último tratamento (2 de julho de 2013) a falecida AA poderia ser já portadora de uma qualquer infeção que estivesse alojada na mesoderme (camada da pele não visível a olho nú) e, como tal, dado que alegadamente a infeção se verificou na duas “portas de entrada” (zonas puncionadas pelo arguido), ao introduzir a seringa (no tratamento mesoterápico do dia 2 de julho de 2013), através da consequente perfuração da pele, esta seringa transportou a eventual bactéria para o tecido conjuntivo. Veja-se que qualquer solução antissética usada na desinfeção da pele apenas combate os microrganismos existentes na epiderme (e não na mesoderme). Este cenário hipotético é perfeitamente possível e não pode ser descartado; EE) No mesmo sentido, também não podemos descartar a possibilidade da falecida não ter seguido as recomendações do médico (aqui arguido) e ter tomado banho de água quente (com temperatura acima de 25 graus) e, ainda, usado um qualquer produto de higiene pessoal que possa ter desencadeado um processo infecioso; FF) Acresce que, no dia 8 de julho de 2013, e tal como se pode ouvir no depoimento da demandante FF (gravação da sessão de julgamento do dia 19.12.2018, entre as 12h05m e 12h33m, com particular destaque para os minutos 7 a 13m30ss do referido depoimento) esta filha da falecida afirmou ter usado água oxigenada e betadine para desinfetar a pele da mãe, bem como fez compressão naquelas concretas zonas com compressas e ligaduras. Instada sobre se usou luvas referiu que não, mas que teria lavado as mãos com sabão e água. Nesse dia, a sua mãe (falecida AA) foi à sanita para fazer necessidades e quando se levantou escorregou e caiu na casa de banho. A demandante nunca transmitiu esta situação aos médicos que assistiram a sua mãe, no dia seguinte, no Hospital, mas fê-lo em Tribunal no dia 19.12.2018, pelo que não podemos descurar esta sua intervenção e a queda (e eventual traumatismo) que a falecida sofreu - numa zona conspurcada como habitualmente é uma casa de banho; GG) O certo é que, com estranheza, no caso em apreço o Tribunal a quo não aceitou – sem qualquer fundamento - a versão do arguido que sempre colaborou com a justiça (desde a fase do inquérito e nunca se escudou no silêncio) e decidiu “levar ao colo” aqueloutra Acusação, fazendo assim tábua-rasa da prova (ou ausência dela) [in]existente nos referidos autos; HH) Porém, honra seja feita à Senhora Procuradora do Ministério Público que, com justeza e assertividade, pugnou pela absolvição do arguido; II) Salvo o devido e merecido respeito, está aqui demonstrado o motivo pelo qual discordamos totalmente da referida sentença do Tribunal a quo, no que respeita à motivação de facto e de direito, bem como à relevância e interpretação dada a todo o acervo probatório constante dos autos – mormente à omissão e/ou não alusão de provas existentes no processo e, sobretudo, à notória violação do princípio in dubio pro reo; JJ) Acresce que as declarações do Arguido e a sua conduta (boa prática médica) foram, ainda, sustentadas em juízo pelos médicos Dr. KK e pela Dr.ª II; KK) Por conseguinte, e perante todo o exposto (vícios notórios, meios de prova supra identificados e factos incorretamente julgados) e sem necessidade de maior explanação, jamais se poderiam credibilizar (como fez o Tribunal a quo) os depoimentos das demandantes e, sem qualquer fundamento ou razão de ser, descredibilizar a versão do arguido (sem quaisquer contradições com aquilo que sempre referiu em todo o processo), com base em meras presunções que invertem por completo o ónus da prova, pelo que os factos provados 50-D, 50-E, 50-F, 50-I, 50, 51 e 52 da sentença recorrida deverão ser dados como não provados e, por conseguinte, toda a demais factualidade que levou o Tribunal a quo a condenar o Arguido; LL) Acresce, ainda, que o Tribunal a quo não faz imputação dos factos concretizadores do elemento subjetivo do tipo, o que consubstancia vício de insuficiência previsto no art. 140º, nº 2, do C.P.P., pois a sentença recorrida não descreve, nem imputa ao arguido qualquer facto atinente ao preenchimento do elemento subjetivo de acordo com a Acusação (cf. pág. 62 da Sentença); MM) Ora, a não serem dados como provados os factos da Acusação jamais se pode concluir pela prática do ilícito aqui imputado, pois é jurisprudência pacífica (vd. Acórdão Uniformizador de Jurisprudência nº 1/2015, proferido pelo S.T.J. e, 27.01.2015) que não é lícito, ao julgador, sanar a deficiência da Acusação Pública no que diz respeito aos factos integradores do elemento subjetivo através do mecanismo previsto no artigo 358º do CPP: «A falta de descrição, na acusação, dos elementos subjectivos do crime, nomeadamente dos que se traduzem no conhecimento, representação ou previsão de todas as circunstâncias da factualidade típica, na livre determinação do agente e na vontade de praticar o facto com o sentido do correspondente desvalor, não pode ser integrada, em julgamento, por recurso ao mecanismo previsto no artigo 358.º do Código de Processo Penal.»; NN) Porquanto, também por este prisma o Tribunal a quo, ao condenar o arguido pela prática de um crime de homicídio por negligência (médica) sem a necessária imputação do tipo subjetivo do crime em apreço, violou o disposto no artigo 137º, nº 1 do Código Penal; OO) No que concerne à causa da morte da Sra. AA entende (uma vez mais) o ora recorrente que a correta decisão da matéria de facto, conjugada com as demais provas existentes nos autos e cujo relevo é determinante para a descoberta da verdade material mas que, erroneamente, foi desconsiderada pelo Tribunal a quo, afasta qualquer tipo de negligência do arguido relembrando, para tanto, toda a cronologia dos factos: PP) Desde pelo menos 2012 que a falecida AA recorria aos serviços médicos do Arguido (ora recorrente) com o propósito de realizar tratamentos de mesoterapia com incidência na sua perna esquerda (região gemelar) e na zona lombo sagrada, mediante administração de silício orgânico (Ampolas X-Prof 013 da Mesoestetic) juntamente com um anestésico Lidoject; QQ) No mês de maio de 2013 a Sra. AA, e uma vez mais, de forma totalmente informada, consciente e consentida, iniciou (tal como em 2012) os tratamentos de mesoterapia administrados pelo arguido; RR) Após a 8ª sessão de tratamento – ocorrida no dia 2 de julho de 2013 -, mais propriamente no dia 03 de Julho, a Sra. AA inicia um aparente processo inflamatório e doloroso, que depois parece progredir, dias mais tarde (mais propriamente no dia 8 de Julho), para um estado clínico agravado que fez com que, pela manhã desse dia, a Sra. AA contactasse telefonicamente o arguido, dando-lhe conta do agravamento do seu estado. Em função disso o Arguido, que não se encontrava em ..., recomendou-lhe tomar o antibiótico Ciproxina 500 mg, duas vezes ao dia; SS) Nesse mesmo dia, ao final da tarde, a Sra. AA recorreu à consulta do seu médico Cirurgião Vascular, Dr. JJ, que, além da observação clínica lhe efectuou um ecodoppler às duas pernas. O referido médico prescreveu a toma imediata de Lovenox e disse à Sra. AA para no dia seguinte ir fazer análises. Ou seja, nem este mesmo médico (testemunha em juízo), perante este estado clínico, sentiu qualquer necessidade de enviar de imediato a Sra. AA para as urgências do CHUC; TT) Nessa mesma noite o Lovenox foi administrado pela via injectável na zona do abdómen, pela filha da Sra. AA (julgamos nós, em função das contradições supra assinaladas), a Dra. EE, na sua própria farmácia e, nesse dia, a sua mãe (falecida AA) foi à sanita fazer necessidades e quando se levantou escorregou e caiu na casa de banho, pelo que a filha demandante, FF, desinfetou a perna e face posterior da coxa da mãe com água oxigenada e betadine, bem como fez compressão naquelas concretas zonas com compressas e ligaduras, sem usar quaisquer luvas, não obstante ter dito que lavou as mãos com sabão e água.; UU) No dia 09 de Julho de 2013, e uma vez que AA se encontrava muito débil, foi transportada pelo INEM para o Serviço de Urgências do Centro Hospitalar da Universidade de Coimbra, onde deu entrada, com um quadro clínico crítico; VV) Na sequência dos exames de diagnóstico realizados no CHUC veio a apurar-se que a Sra. AA tinha um edema dos tecidos celulares subcutâneos da perna e face posterior da coxa à esquerda e dermohipodermite aguda bacteriana da perna esquerda (provável fasceíte necrotisante) – cfr. fls. 35 ss dos autos. Submetida a intervenção cirúrgica no dia 10 de julho, a Sra. AA veio a falecer no dia 18 de Julho na sequência de uma aparente falência multiorgânica por sépsis; WW) Não foi realizada qualquer autópsia, inexiste nos autos qualquer prova cabal que nos leve a concluir que a causa da morte foi decorreu de uma eventual falha de assepsia aquando da administração preconizada pelo arguido. XX) É consabido que a utilização de agulhas pode, em abstrato, potenciar focos infeciosos desencadeadores de problemas, sendo este um risco inerente ao acto médico, do arguido e demais médicos (testemunhas e prova pericial afiançaram junto do Tribunal a quo, que o uso daquelas micro-agulhas e da via mesoterápica comporta muito menos riscos do que a utilização, por exemplo, das agulhas intramusculares); YY) Foi referido em juízo pelo Sr. Perito que “Uma injeção cria uma porta de entrada para microorganismos e essa porta leva algum tempo a fechar, pelo que não é recomendável tomar banho nas 24 horas seguintes para evitar contaminações.” (14h35ss a 16m30ss do seu depoimento) e que “Havendo as tais portas de entrada tudo é possível, é um risco inerente à atividade médica sem dúvida.” (cfr. registo áudio compreendido entre os minutos 55m28 a 45m35ss do referido depoimento); ZZ) Mais esclareceu e afirmou em juízo que “Não é possível determinar em concreto quando é que a bactéria infeciosa entrou na paciente nem é possível dizer-se qual a porta de entrada.” (cfr. minutos 57m30ss a 57m40ss do seu depoimento) acrescentando, ainda, que “...a autópsia era muito relevante, sem dúvida nenhuma. Nós não sabemos qual a causa exata da morte...não é possível concluir a causa da morte!”. “Por isso é que a autópsia era muito importante.” (cfr. registo áudio compreendido entre a 1h00m05ss e 1h00m47ss do seu depoimento); AAA) Não se concebe, sobretudo considerando o que se aludiu no ponto anterior, como se pode concluir, apenas por presunção estribada nas declarações das interessadas-demandantes (que, diga-se, estão pejadas de contradições) que o arguido foi negligente e não realizou a devida assepsia; BBB) Relembre-se que, aquando da alta das urgências para o internamento, a vítima apresentava um diagnóstico de sépsis por celulilte (em investigação) às 17h11 – cfr. fls. 51 – e que o staphylococcus aureus apenas foi revelado no estudo bacteriológico efetuado após a amputação, por exsudação da ferida, volvidos 3 dias – cfr. fls. 79 e 80 -, e o diagnóstico de infeção necrotizante dos tecidos moles do membro inferior esquerdo só surge 12h após a entrada nas urgências, ou seja, pelas 21h56 do dia 09-07-2013 – cfr. fls. 107; CCC) Ora, é consabido que a fasceíte necrosante é uma doença extremamente rara, uma infeção muito rápida, galopante e fulminante, que pode culminar com a morte de um paciente numa questão de um/dois dias ou até horas (cfr. atestou em juízo a testemunha Dra. LL, Médica Dermatologista, na 2ª sessão de julgamento datada de 19.12.2018); DDD) Perante as provas periciais juntas aos autos e os esclarecimentos prestados em juízo pelos vários médicos, cremos, de forma segura, que a atuação do arguido não violou as leges artis e, porquanto, a morte da Sra. AA não pode ser imputada ao arguido; EEE) Desconhece-se, isso sim, o que terá em concreto acontecido no organismo da Sra. AA e qual a via pela qual contraiu a bactéria Staphylococcus aureus que certamente provocou a multi-falência orgânica e consequente morte; FFF) Acreditamos sim que a medicação proposta pelo aqui arguido, e corroborada pelo Senhor Doutor JJ (que a manteve), em nada contribuiu para as conhecidas e nefastas ocorrências que culminaram com a morte da Sra. AA; GGG) De todas estas observações podemos até admitir, como o arguido admitiu em juízo, que todo este quadro poderá ter tido início nas ditas “portas de entrada provocadas” pelas injeções sub dérmicas (e não no produto inoculado) que no "terreno propício" que eram as co-morbilidades que a paciente eventualmente já teria, agravadas pela situação particular da água oxigenada que a sua filha usou para desinfetar aquelas zonas do corpo, o eventual traumatismo provocado pela queda na casa de banho e o contacto que o corpo terá tido com aquele local (casa de banho) conspurcado e, por fim, o atraso no diagnóstico levaram ao desenrolar imprevisível e catastrófico da situação de acordo com a evolução natural da fasceíte necrosante; HHH) Como referido, o arguido (aqui recorrente) considera a sua conduta neste caso previdente, empenhada, diligente, e de forma alguma negligente, pois não negou nem poupou em qualquer altura em enveredar todos os seus esforços na busca de uma solução diferente da que ocorreu; III) Sufragar o entendimento perfilhado pelo Tribunal a quo, além de consubstanciar uma perversa inversão do ónus da prova, é coartar irremediavelmente a atuação médica a qual, por essência, carrega em si o peso incomensurável dos riscos que inexoravelmente implica – o risco médico; JJJ) Mesmo que, por mera hipótese académica (o que não se concede), no caso em apreço tivesse ocorrido violação das leges artis, sempre diríamos que, perante o elevado número de interações (vg. eventuais banhos de água quente, queda no wc, colocação de água oxigenada sobre as zonas afetadas e ligaduras sobre a pele fragilizada, administração do lovenox, etc…) que decorreram pelo menos entre os dias 2 e 9 de julho de 2013 (data da entrada no CHUC), a conduta do arguido não foi causa direta e necessária do resultado morte; KKK) Porquanto, jamais se poderá dizer que a morte da Sra. AA por sépsis adveio, como causa direta, da atuação do arguido e, sobretudo, que o arguido descurou a devida assepsia e, como tal, violou deveres de prudência e cuidado no exercício da sua profissão; LLL) Posto isto, vistos e analisada toda a matéria probatória aqui produzida, forçoso é de concluir que está justificada a licitude da conduta do aqui recorrente, como (boa) prática médica - do ponto de vista técnico e medicinal -, pelo que toda a matéria probatória constante dos autos impunha necessariamente a absolvição do arguido; MMM) Não obstante a clareza dos factos e provas aqui reportadas, parece-nos óbvio que o arguido não violou a leges artis e nem tão pouco causou a morte de AA, pelo que o Tribunal a quo andou mal ao condená-lo pela prática de um crime de homicídio por negligência; NNN) Porquanto, atentas as contradições das provas periciais existentes nos autos e os depoimentos das testemunhas de igual valor (supra identificadas), o tribunal a quo violou ainda as normas contidas nos artigos 163º, nº 2 e 127º, ambos do CPP, a que, desde já, se invoca com as legais consequências. OOO) Relativamente à invocada inversão do ónus da prova (no quadro da responsabilidade delitual) invocada pelo Tribunal a quo, teremos de convir que a fundamentação da decisão recorrida é ilegal, violadora da presunção de inocência, pelo que a aplicação do artigo 342º nº 2 do Código Civil redunda na violação do disposto nos artigos 61º, nº 1, alínea d) e 343º, nº 1, ambos do C.P.P. e 32º, nº 2 da Constituição da República Portuguesa; PPP) Na mesma esteira e assente nas mesmas motivações, a Mma juiz a quo, ao condenar o arguido no pedido indemnizatório, violou o disposto nos artigos 340º e 483º, ambos do CC, pelo que deveria – isso sim – ser absolvido do pedido (o que se requer). Termos em que, e com o douto suprimento de V. Exas. deve ser dado provimento ao presente recurso, revogando-se a decisão recorrida, com a consequente absolvição do Arguido, assim se fazendo JUSTIÇA”.
10. Também a demandada “C... – Companhia de Seguros, S.A.”, inconformada com a douta sentença, veio interpor recurso da mesma, terminando a motivação com as seguintes conclusões:
“A. Nos presentes autos, foi ordenado o reenvio parcial do processo para repetição do julgamento restrito ao apuramento da factualidade atinente à determinação dos instrumentos utilizados na administração do produto (seringa, agulhas e outros eventualmente utilizados) e sua eventual não esterilização; B. Ora, dos pontos 46 a 48, 50I, 50 a 52 dos factos provados, ressumbra evidente que a sentença recorrida – repristinando o vazio da acusação pública – não descreve, nem imputa ao arguido qualquer facto atinente ao preenchimento do elemento subjectivo, isto é, não dá como provado que, o arguido, ao proceder às injecções de silício orgânico, sem cabal esterilização dos instrumentos por si utilizados, bem sabia que actuava em violação do dever objectivo de cuidado que se lhe impunha, menosprezando as normas da assepsia a que estava adstrito, não se coibindo, contudo, de agir, procedendo à aplicação subcutânea do silício orgânico; C. Outrossim, não dá como assente que o arguido, enquanto médico, ao actuar dessa forma, não podia deixar de representar como possível que, por força das “picadas” sem conveniente e adequada esterilização dos instrumentos, a Dra AA pudesse vir a contrair uma infecção com possível produção do resultado morte; D. E mais: quanto à desinfecção do local, ainda que extravase o âmbito do reenvio, a sentença impugnada dá por provado, por um lado, que o arguido não desinfectou devidamente o local – pontos 50-E e 50-F –, mantendo como não provado o ponto 2, qual seja, que o arguido/demandado, no dia 02/07/2013, aplicou as injecções sem desinfectar prévia e devidamente os locais em que aquelas foram administradas, nada imputando ao arguido quanto ao elemento subjectivo; E. Ora, sendo tal factualidade imprescindível ao preenchimento do elemento subjectivo do tipo legal de crime pelo qual veio a ser condenado, emergindo a condenação solidária da recorrente no pagamento da indemnização fixada na prática de tais factos, conclui-se que a decisão recorrida padece do vício de insuficiência, previsto no artigo 410º, nº 2, alínea a), do CPP, insuprível através do mecanismo previsto no artigo 358º do CPP; F. Ao decidir como decidiu, condenando o arguido pela prática de um crime de homicídio por negligência médica e, consequentemente, condenando a ora Recorrente a ressarcir as demandantes dos danos por si alegados, violou o Tribunal a quo o disposto nos artigos 129º do CP, 137º, nº 1, do CPP e 483º, do Código Civil, devendo a decisão impugnada ser revogada e substituída por outra que absolva a demandada do pedido de indemnização civil contra si deduzido. G. Ao julgar e decidir, como decidiu, os pontos 50E e 50F dos factos provados, mantendo-se como não provado por força do caso julgado progressivo que “no dia 02/07/2013, o demandado aplicou as injecções sem desinfectar prévia e devidamente os locais e, que aquelas foram administradas”, o Tribunal a quo direccionou os trabalhos, produziu prova e julgou matéria de facto relativa à desinfecção dos locais onde foram administradas as injecções, em claro desrespeito da decisão de reenvio, já transitada em julgado. H. Violou o Tribunal recorrido o poder jurisdicional que lhe cabia, qual seja de proferir decisão circunscrita à matéria do reenvio, resultando violados os preceitos contidos nos artigos 426, nº 1, do CPP e 202º, nº 2, da Lei Fundamental. I. O entendimento perfilhado pelo Tribunal a quo reconduz à violação das garantias e direitos de defesa do arguido demandado, nos termos do disposto nos artigos 20º, nº 4, 29º, nº 5, 32º, nºs 1, 5 e 9, 205º, nº 3, todos da CRP, artigo 4.º do Protocolo n.º 7, adicional à CEDH, de 22/11/1984 e pelo artigo. 14.º, n.º 7, do Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos, nomeadamente, o princípio ne bis in idem e corolário caso julgado, direito a um processo justo e equitativo, com inexoráveis reflexos para a aqui recorrente, cujas garantias de defesa surgem irremediavelmente comprometidas em idêntica medida, inquinando a decisão revidenda da nulidade prevista nos artigos 379º, nº 2, alínea c), do CPP e 615º, nº 1, alínea d), aplicável por força do disposto no artigo 129º do CP, a qual desde já se invoca com as legais consequências, isto é, devendo a sentença recorrida ser revogada no que diz respeito ao pedido de indemnização civil. J. Ressumbra ainda evidente a contradição insanável e de crucial relevo para a boa decisão da causa entre os factos dados como provados e não provados, porquanto não pode a sentença recorrida concluir, por um lado, que o arguido demandado não desinfectou correctamente o local onde foi administrado o produto, e, por outro, que não se demonstrou que o arguido não desinfectou, prévia e devidamente, os locais em que as injecções foram praticadas. K. Deverá, assim, a sentença ser revogada neste particular, mantendo-se apenas o ponto 2 dos factos não provados. L. Os factos incorrectamente julgados são os seguintes: 50D – A esterilização dos instrumentos utilizados e do local apenas deve ser efectuada com álcool a 70%. 50E – O arguido usou álcool a 90% e álcool isopropílico para a desinfeção substâncias não adequadas para esterilização. 50F – Não estavam correctamente esterilizados os instrumentos utilizados e o local do tratamento. 50. O arguido, ao actuar do modo descrito, sabia que violava as leges artis, contribuindo, assim, de forma directa, para desencadear um quadro infeccioso da pele das pernas e da pele da região lombar de AA, que evoluiu para uma fasceíte necrosante, com choque séptico e consequente morte de AA. 51. O arguido não podia, enquanto médico que acompanhava AA, deixar de representar como possível que esta viesse a contrair uma infecção, por via da aplicação injectável do produto silício, que lhe viesse a causar infecção generalizada no corpo e consequente morte. 52. Ao agir como supra descrito, o arguido criou grave perigo para a vida, corpo e saúde de AA, que veio a morrer em virtude do relatado comportamento do arguido, considerando a recorrente que a correcta decisão da matéria de facto consiste no seguinte elenco de factos provados, rasurando-se os segmentos que devem ser eliminados ou dados como não provados: 50D – A esterilização dos instrumentos utilizados e do local 50E – O arguido usou álcool a 90% e álcool isopropílico para a desinfeção, substâncias 50F – Estavam correctamente esterilizados os instrumentos utilizados e o local do tratamento. 50. M. N. O. MM, preliminarmente, esclarecer que esterilizar e desinfectar não são sinónimos, nem procedimentos idênticos: os locais e instrumentos usados nos procedimentos médicos são esterilizados, enquanto que a pele humana não se esteriliza, mas sim é objecto de desinfecção/assepsia. P. A ANES – Associação Nacional de Esterilização – realça que a esterilidade absoluta não existe, tratando-se de um conceito probabilístico, sendo que a ANCIS – Associação Nacional de Controlo de Infecção – elucida que, quanto a um nível elevado de desinfecção / assepsia, os antissépticos major, ou seja, bactericidas e de largo espectro são, nomeadamente, os álcoois, seja etílico, seja isopropílico. Q. Quanto aos pontos 50D, 50E e 50F e à sua fundamentação, a páginas 32 a 34, dir-se-á que, não obstante o Tribunal recorrido citar o Parecer do Colégio da Especialidade de Dermatologia da Ordem dos Médicos produzido em sede de processo disciplinar movido ao arguido, o certo é que a elaboração de tal documento se inseriu num procedimento no qual a recorrente não foi interessada, não tendo tido qualquer intervenção e do qual apenas teve conhecimento no âmbito do presente pleito, não podendo valer como meio probatório nos presentes autos, porque não foi obtido com respeito ao direito ao contraditório previsto no artigo 327º, nº 2, do CPP. R. Acresce que a sua autora não explicita, nem esclarece o que lhe permite chegar à premissa precipitada de que quanto à esterilização do local, esta deve ser efectuada com álcool a 70º, isto é, não cita qualquer fonte, nem concretiza os motivos científicos que levam a tal conclusão, sendo que, considerando que dimana da Especialidade da Dermatologia, julga-se que se referia ao local de injecção do produto, ou seja, a pele da utente, e não ao local físico onde foram realizados os tratamentos, em consonância, de resto, com o Relatório Pericial junto aos autos no volume 3º, a fls. 593, quando refere em resposta ao quesito 13º que o material usado deve ser devidamente esterilizado. S. Ademais, a Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro (In https://www.utad.pt/wp-content/uploads/sites /11/2022/09/Manual-de-Procedimentos-Gerais-d quanto aos produtos para efeitos de esterilização, alude a todos os álcoois, sem primazia para o álcool (cujo princípio activo é o etanol) a 70%, contrariamente ao propugnado pelo Tribunal a quo. T. Não poderá vingar a interpretação ensaiada pelo Tribunal a quo quanto ao facto de a menção pelas Assistentes / Demandantes da falta de desinfecção do local das “picadas” ser extensível à conclusão de falta de esterilização adequada do local e dos instrumentos por banda do arguido, por o seu depoimento assim não o consentir – EE e FF, depoimentos prestados em 31-01-2023, com Início às 10:09 horas e Final às 10:36 horas e Início às 10:36 horas e Final às 11:02 horas, respectivamente. U. Ademais, o depoimento de NN, prestado de forma credível e isenta, atentas as suas funções de manutenção do espaço, reposição do material, limpeza e algo mais necessário, para a actividade na clínica do arguido, seu Pai, em 31-01-2023, com Início às 14:31 horas e Final às 14:46 horas, e mais concretamente nos minutos 02´35 a 04´26 e 05´22 a 06´32, demonstra que o protocolo médico de esterilização foi sempre respeitado pelo arguido, seja quanto ao local, seja quanto aos instrumentos usados – descartáveis e de uso único –, levando a que o ponto 50F deva ser dado como alterado em conformidade. V. As declarações do arguido não podem deixar de ser valoradas, seja porque o facto de ter sido mais cauteloso não significa que criou uma versão dos factos “à medida”, como o aflora a sentença, até porque as declarações prestadas no primeiro julgamento não perderam validade, antes devendo ser concatenadas com aquelas agora prestadas e delas se infere que o procedimento descrito pelo arguido não se alterou com a prolação da decisão; seja porque não poderá deixar de se convocar o tempo entretanto decorrido – mais de 13 anos – e a idade do arguido que podem levar a que o seu depoimento não seja prestado de forma tão escorreita como o pretende a Julgadora. W. Por conseguinte, e desde logo, não poderá vingar a tese sufragada na decisão recorrida quanto à desadequação da esterilização efectuada pelo arguido, devendo os pontos 50D, 50E e 50F serem alterados como acima propugnado. X. Quanto à assepsia, reitera-se que tal factualidade não deveria ter sido objecto de apreciação, mantendo-se, nesta sede, o ponto 2 dos factos não provados, nos termos do qual: No dia 02/07/2013, o demandado aplicou as injecções sem desinfectar prévia e devidamente os locais em que aquelas foram administradas. Y. Sem embargo, tendo o Tribunal recorrido feito uma correcta súmula do depoimento prestado pela testemunha II (página 31), que referiu que: “deve proceder-se à desinfecção da pele, com betadine ou um soro alcoólico”, também o deveria ter ponderado quanto à forma de proceder à desinfecção da pele, sem qualquer diferenciação nos tipos de álcoois usados. Z. Não se consente que o depoimento prestado pelas filhas da ofendida AA seja valorado para considerar que o arguido não fez uma assepsia adequada da pela, não obstante a fundamentação exarada a páginas 32 a 34, em primeiro lugar por não se tratar de testemunhas, mas sim de Assistentes e Demandantes civis, ou seja, parte interessada no desfecho da causa, com o necessário sopeso na ponderação da credibilidade dos seus dizeres. AA. Tal reveste ainda mais acuidade considerando que os depoimentos por si prestados são contraditórios com aqueloutros prestados na audiência do primitivo julgamento e dos quais se extraiu o ponto 70º dos factos provados, inalterado sob o ponto 74º da decisão ora recorrida, relativamente à injecção de lovenox: num primeiro momento, ambas referiram que fora a Assistente EE à proceder à injecção de Lovenox e, na audiência de 31-01-2024, esta última referiu que fora a sua irmã FF quando esta reiterou que tinha sido a sura irmã – oiçam-se os depoimentos prestados em 31-01-2023, com Início às 10:09 horas e Final às 10:36 horas, mais concretamente, a passagem dos minutos 16´09 a 16´30, e Início às 10:36 horas e Final às 11:02 horas, mais concretamente, a passagem dos minutos 21´07 a 22´10, respectivamente. BB. Quanto a alegada falta de penso, a testemunha FF afirma peremptoriamente que a Mãe tinha um penso quando saia do consultório (oiçam-se os minutos 08´46 a 11´07) e a sua irmã EE o nega peremptoriamente (minutos 08´36 a 08´51) – depoimentos prestados em 31-01-2023, com Início às 10:09 horas e Final às 10:36 horas e Início às 10:36 horas e Final às 11:02 horas, respectivamente. CC. Acresce que não podia, lícita e legalmente, o Tribunal recorrido valorar os dizeres da ofendida AA careados aos autos pelas Assistentes, à coberto do disposto no artigo 129º, do CPP, pois que tal preceito apenas admite o recurso ao depoimento indirecto no caso do decesso da testemunha anteriormente ouvida nos autos, sucedâneo, como não podia deixar de ser, de pleno respeito ao princípio do contraditório consagrado no artigo 32º, nº 2, da CRP e com consagração no plano infra constitucional no artigo 327º, nº 2, do CPP. DD. Ora, a Dra AA, não fosse o fatídico desfecho do processo infecioso, como ofendida directa dos factos objecto dos presentes autos, teria legitimidade para se constituir assistente e deduzir pretensão ressarcitória, como, de resto, o fizeram as suas filhas. EE. O artigo 129º do CPP não pode nunca ser extensível às declarações do assistente, ainda que não formalmente constituído, pois coarcta os direitos de defesa do arguido/demandado, nomeadamente, o direito ao contraditório, previstos no artigo 32º, nºs 1 e 5 da CRP e 327º, nº 2, do CPP. FF. Ao decidir como decidiu, violou a decisão recorrida as normas contidas nos artigos 32º, nºs 1 e 5 da CRP e 129º e 327º, nº 2, ambos do CPP, valorando prova proibida, nos termos do disposto no artigo 125º do CPP, a contrario sensu. GG. Ademais, seguindo de perto os ensinamentos da ANCI, Associação Nacional de Controlo de Infecção, as soluções alcoólicas- dentro das quais, indistintamente, os álcoois e o etílico e isopropílico –, são as mais indicadas para pele sã no adulto, nos procedimentos invasivos e cirúrgicos e na antissépsia das mãos dos profissionais (In https://www.anci.pt/sites/default/files/ iii_jornadas_-_antissepticos_e_desinfectantes.pdf). HH. Finalmente, a fundamentação ensaiada pelo Tribunal recorrido viola o disposto no artigo 127º do CPP, porquanto assenta em errada aplicação das regras da experiência comum, conquanto não é plausível, nem consentâneo com as regras da normalidade do acontecer que uma farmacêutica contando com 89 anos, ainda em exercício de funções, conhecedora dos tratamentos aplicados e aos quais se submetia há mais de um ano, assim como dos protocolos médicos aplicáveis – pontos 15º, 66º, 71º e 84º dos factos provados –, atenta a sua personalidade, aceitasse a realização de tratamentos sem assepsia e sem higienização/ esterilização do local e do material usado. II. Ao decidir como decidiu, violou a decisão recorrida o disposto nos artigos 349º e 351º, ambos do CC, assim como o disposto no artigo 127º do CPP e, consequentemente, o dever de fundamentação e a presunção de inocência, previstos nos artigos 374º, nº 2, do CPP e 32º, nº 2, da CRP, inquinando a decisão sob escrutínio da nulidade prevista no artigo 379º, nº 1, alínea a) do CPP, que se invoca com as legais consequências. JJ. Do acima exposto, assim como da concatenação da sentença recorrida e o acervo probatório constante dos autos, conclui-se que o arguido não violou as leges artis, nem o dever objectivo de cuidado que sobre si impende, qual seja, o de esterilizar o local onde assistiu a Dra AA e os instrumentos por si usados na aplicação subcutânea, por via injectável, do silício orgânico. KK. De resto, lida e relida a fundamentação, não se vislumbra qualquer raciocínio logico-dedutivo, que se impunha ao Tribunal a quo por força da decisão de reenvio, do qual se extrai que: - o arguido não promoveu a esterilização do local onde aplicou o tratamento à vítima, nem dos instrumentos por si usados; - a esterilização é menos eficaz com álcool a 90º do que com álcool a 70º e os motivos científicos que presidem à essa conclusão; - dessa alegada desadequada esterilização resultou o processo infeccioso que vitimou a Dra AA e de que desse quadro infeccioso adveio a fascéite necrosante e contração do estafilococos áureo que conduziu ao seu falecimento. LL. Acresce que: - a vítima já realizara o mesmo tratamento em vezes anteriores sem ter apresentado qualquer reacção e/ou alergia, o que deve ser ponderado ao abrigo do princípio da confiança que outrossim norteia a actividade médica – pontos 15º, 67º e 71º dos factos provados; - a medicação receitada pelo arguido, mercê do quadro inflamatório que apresentava a vítima e sua posterior evolução, ao longo de 7 dias – prazo este incompatível com um quadro de fasceíte necrotizante – foi validada e secundado pelo cirurgião vascular que observou a vítima na véspera da sua ida às urgências – ponto 72º dos factos provados; - na véspera de se deslocar ao hospital, à noite, a vítima caiu na casa de banho – ponto 75º; - a vítima era técnica farmacêutica, sendo directora técnica de uma farmácia de que era proprietária – ponto 84º dos factos provados; - não foi realizada a autopsia; MM. Mal andou o Tribunal ao dar como provada a violação do dever objectivo de cuidado, a verificação de nexo causal entre a conduta do arguido e o desfecho morte, assim como o preenchimento do elemento subjectivo do crime. NN. Em sede de fundamentação, a páginas 32, 34, 36, 37, 41 , o Tribunal a quo resolveu em detrimento e ilicitamente contra o arguido e, consequentemente, a recorrente, a dúvida que assolou o seu espírito, acabando por confessar que cabia ao arguido a prova dos factos por si alegados, em clara violação do princípio da presunção de inocência, consagrado no artigo 32º, nº 2, da Lei Fundamental! OO. Daí resulta a violação do dever de fundamentação previsto no artigo 374º, n,º 2, do CPP, assim como do princípio in dúbio pro reo, por desrespeito do princípio da livre apreciação da prova segundo as regras da experiência e da livre convicção, nos termos do disposto no artigo 127º do CPP, assim como dos princípios da presunção de inocência e do in dúbio pro reo, previstos no artigo 32º, nº 2 da CRP, ferindo a decisão recorrida da nulidade prevista no artigo 379º, nº 1, alínea a), do CPP, que deverá ser revogada e substituída por outra de absolvição da recorrente, atenta a atipicidade da conduta repontada ao arguido. PP. Aqui chegados, salientar-se-á que o Ministério Público promoveu a absolvição do arguido, não podendo deixar de ser realçado e de suscitar estranheza quanto à condenação proferida, remetendo-se V. Ex.ªs para a gravação dessa exposição, efectuada a 08-07-2024, com início às 10:51:52 e termo pelas 11:25:02, no ficheiro Diligencia_1301-13.3TACBR_2024-07-08_10-51-50. QQ. No que atine às obrigações/deveres do médico, o artigo 31º, do Código Deontológico da Ordem dos Médicos, sob a égide Princípio geral, comanda que “o médico que aceite o encargo ou tenha o dever de atender um doente obriga-se à prestação dos melhores cuidados ao seu alcance, agindo sempre com correcção e delicadeza, no exclusivo intuito de promover ou restituir a saúde, conservar a vida e a sua qualidade, suavizar os sofrimentos, nomeadamente nos doentes sem esperança de cura ou em fase terminal, no pleno respeito pela dignidade do ser humano” e, por sua vez, o Código Internacional de Ética Médica determina que “o médico deve ter sempre presente o cuidado de conservar a vida humana”, sendo, assim, obrigação do médico prestar ao doente os cuidados ao seu alcance, de acordo com os seus conhecimentos e o estado actual da ciência médica, por forma a preservar-lhe a saúde na medida do possível, o que tudo tem a haver com as chamadas “leges artis”, entendidas estas como o conjunto de regras da arte médica, isto é, as regras reconhecidas pela ciência médica em geral como as apropriadas à abordagem de um determinado caso clínico na concreta situação em que tal abordagem ocorre. RR. Na senda das decisões anteriormente proferidas, conclui-se que o arguido não praticou qualquer conduta violadora do dever objectivo de cuidado que sobre si impendia, tendo procedido à esterilização dos instrumentos e local onde praticou o acto médico, não se logrando demonstrar a prática de qualquer acto que, necessária e directamente, levasse ao desfecho trágico da Dr.ª AA. SS. Consequentemente, a conduta do arguido não preenche os elementos típicos do crime de homicídio por negligência pelo qual foi condenado, ressumbrando violados pelo Tribunal a quo os preceitos contidos nos artigos 10º, 15º e 137º, n.º 1, todos do Código Penal, devendo a decisão recorrida ser revogada e substituída por outra que o absolva. TT. Soçobrando os argumentos ora convocados, o que por mera cautela de raciocínio se concebe sem consentir, mantendo-se a decisão fáctica incólume, não se pode concluir que a conduta do arguido foi causa directa e necessária do resultado morte, já que esterilizou e desinfectou, ainda que deficientemente, seja o local, sejam os instrumentos, seja a pele da ofendida AA. UU. Sendo resultado morte um elemento objectivo do tipo, a conduta nunca poderá ser subsumível no tipo pelo qual foi o arguido condenado, devendo, como tal, ser absolvido. VV. Ora, o consentimento do paciente é um dos requisitos da licitude da atividade médica, atento o preceituado nos artigos 5.º da CEDHBioMed e 3.º, n.º 2 da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, devendo ser livre e esclarecido para gozar de eficácia. WW. Demonstrado nos autos ficou que: - a vítima padecia de patologia osteoarticular degenerativa – fls. 35; - era directora técnica e proprietária de uma farmácia – ponto 84º dos factos provados; - já realizara o mesmo tratamento em vezes anteriores sem qualquer reacção ao produto injectado, do que se extrai, no quadro das regras da normalidade do acontecer e das presunções judicias que o tratamento era eficaz no debelar das dores de que sofria – ponto 71º dos factos provados; - fora informada pelo arguido dos benefícios e riscos da terapêutica aplicada, sendo que, atenta a sua profissão e a repetição dos actos médicos em causa – injecção de silício orgânico por mesoterapia – a paciente não teria recusado a intervenção se tivesse sido devidamente informado; - a intervenção foi medicamente indicada, tendo conduzido a uma melhoria da saúde da paciente, para afastar as consideráveis dores de que padecida atenta a sua doença degenerativa. XX. Conclui-se, consequentemente, que a vítima era sabedora dos riscos em que incorreria, através do tratamento por injecções por micro-agulhas, mas atento o equilíbrio risco/benefício, consentiu na eventual realização da complicação infeciosa. YY. Deverá a sentença recorrida ter absolvido o arguido do crime de ofensas à integridade física por negligência, por verificação da causa de exclusão da ilicitude prevista nos artigos 38º e 149º, ambos do CP, pelo que, ao não ter decidido desta forma, violou o Tribunal recorrido o disposto nos artigos 38º, 148º e 149º, todos do CP. ZZ. Quanto à pretensão ressarcitória e subsequente condenação, o poder jurisdicional conferido ao Tribunal a quo se circunscreveu ao conhecimento da matéria objecto de reenvio, devendo, no demais, manter-se incólume a sentença proferida em 05-03-2020, mormente no que diz respeito à pretensão ressarcitória, cabendo aos sujeitos processuais dela interpor recurso, querendo. AAA. Mais acuidade reveste o vício ora convocado já que o Tribunal a quo não presidiu à audiência de julgamento em que se produziu a prova atinente à factualidade da pretensão ressarcitória. BBB. Ao Tribunal a quo estava vedado o conhecimento da pretensão ressarcitória, sob pena de violação do caso julgado formal e material, em obediência aos artigo 29.º, n.º 5, da CRP, pelo artigo 4.º do Protocolo n.º 7, adicional à CEDH, de 22/11/1984 e pelo artigo. 14.º, n.º 7, do Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos, assim como dos princípios do juiz natural, do contraditório, da imediação, consagrados nos artigos 327º, nº 2, 355º, nº1 e 426º, nº 1, todos do CPP. CCC. Assim, ao decidir como decidiu, nomeadamente, ao condenar a recorrente ao pagamento, solidário, da quantia de € 65,000,00 (sessenta e cinco mil euros), acrescida dos respectivos juros de mora vincendos, desde a data de prolação da sentença, à taxa legal de 4 % ou outra que, entretanto, sobrevier, até efectivo e integral pagamento, violou o Tribunal recorrido o poder jurisdicional que lhe cabia e de proferir decisão circunscrita à matéria do reenvio, resultando violados os preceitos contidos nos artigos 426, nº 1, do CPP e 202º, nº 2, da Lei Fundamental. DDD. O entendimento perfilhado pelo Tribunal a quo reconduz à violação das garantias e direitos de defesa do arguido demandado, nos termos do disposto nos artigos 20º, nº 4, 29º, nº 5, 32º, nºs 1, 5 e 9, 205º, nº 3, todos da CRP, artigo 4.º do Protocolo n.º 7, adicional à CEDH, de 22/11/1984 e pelo artigo. 14.º, n.º 7, do Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos, nomeadamente, o princípio ne bis in idem e corolário caso julgado, direito a um processo justo e equitativo, com inexoráveis reflexos para a aqui recorrente, cujas garantias de defesa surgem irremediavelmente comprometidas em idêntica medida, inquinando a decisão revidenda da nulidade prevista nos artigos 379º, nº 2, alínea c), do CPP e 615º, nº 1, alínea d), aplicável por força do disposto no artigo 129º do CP, a qual desde já se invoca com as legais consequências, isto é, devendo a sentença recorrida ser revogada no que diz respeito ao pedido de indemnização civil. EEE. Por outro lado, concatenando o enquadramento jurídico aos factos acima elencadas, forçoso será de concluir pelo erro de julgamento em que incorre a sentença recorrida, por violação do disposto nos artigos 137º, nº 1, do CP e 483º, do CC, devendo a recorrente ser absolvida do pedido contra si formulado, por inexistência de facto ilícito imputável ao seu segurado, gerador da responsabilidade de indemnizar e por inexistência de causalidade entre a conduta lícita do segurado arguido e dos danos sofridos. FFF. Ademais, quanto à inversão do ónus da prova em sede de responsabilidade delitual, tal como propugnado a fls. 37 da fundamentação da decisão recorrida, dir-se-á que tal modo de proceder é ilegal, porque violador da presunção de inocência e do corolário direito ao silêncio, mais a mais quando, nos termos do disposto nos artigos 53º e 69º do CPP, recai sobre o Ministério Público e os assistentes a prova dos factos que imputam ao arguido e, reflexamente, aos demandados. GGG. Ora, é legalmente vedado ao julgador destrinçar as duas qualidades de arguido/demandado, pelo que a aplicação do artigo 342º nº 2 do CC redunda na violação do disposto nos artigos 61º, nº 1, alínea d) e 343º, nº 1, ambos do CPP e 32º, nº 2 da Constituição da República Portuguesa, pelo que, ao decidir como decidiu, violou a decisão recorrida o disposto nos artigos 342º nº 2 do CC, 53º, 61º, nº 1, alínea d), 69º, 127º e 343º, nº 1, ambos do CPP e 32º, nº 2 da Constituição da República Portuguesa. HHH. Tal violação reconduz ao vício do erro notório na apreciação dos factos, previsto no artigo 410º, nº 2, alínea c), do CPP e consequente violação do dever de fundamentação previsto no artigo 374º, nº 2, do citado diploma legal, sancionado da nulidade prevista no artigo 379º, nº 1, alínea a) do mesmo diploma legal, devendo, em consequência, ser revogada a sentença recorrida e a recorrente absolvida. III. Por mera cautela de raciocínio, sem conceder e sem que o esforça agora precipitado ponha em crise o anteriormente alegado, sempre se dirá que, nos termos do disposto no artigo 340º do CC e à semelhança do disposto nos artigos 38º e 149º, ambos do CP, o consentimento da vítima exclui a ilicitude da conduta. JJJ. Atenta a dimensão normativa agora avocada, precípuo se torna que os requisitos apontados supra, quanto à causa de exclusão da ilicitude prevista nos artigos 38º e 149º do CP se aplicam mutatis mutandi. KKK. Por dever de economia processual, dão-se aqui por reproduzidos os argumentos esgrimidos, concluindo-se que: - a vítima padecia de patologia osteoarticular degenerativa – fls. 35; - era directora técnica e proprietária de uma farmácia – ponto 80 dos factos provados; - já realizara o mesmo tratamento em vezes anteriores sem qualquer reacção ao produto injectado, do que se extrai, no quadro das regras da normalidade do acontecer e das presunções judicias que o tratamento era eficaz no debelar das dores de que sofria – ponto 67º dos factos provados; - fora informada pelo arguido dos benefícios e riscos da terapêutica aplicada, sendo que, atenta a sua profissão e a repetição dos actos médicos em causa – injecção de silício orgânico por mesoterapia – a paciente não teria recusado a intervenção se tivesse sido devidamente informado; - a intervenção foi medicamente indicada, tendo conduzido a uma melhoria da saúde da paciente, para afastar as consideráveis dores de que padecida atenta a sua doença degenerativa. LLL. Conclui-se que a vítima era sabedora dos riscos em que incorreria, através do tratamento por injecções por micro-agulhas, mas atento o equilíbrio risco/benefício, consentiu na eventual realização da complicação infeciosa. MMM. Deveria a sentença recorrida ter absolvido a recorrente do pedido de indemnização civil deduzido, por verificação da causa de exclusão da ilicitude prevista no artigo 340º, do CC, sendo que ao não ter decidido desta forma, violou o Tribunal recorrido o disposto nos artigos 340º e 483º, ambos do CC. NNN. Finalmente, considerando a factualidade dada como não provada nos pontos 8 a 20 da sentença recorrida, os quanta indemnizatórios fixados para o ressarcimento dos danos morais das demandantes e do dano morte da vítima são excessivos e violadores dos princípios que o tutelam o instituto da responsabilidade civil, mormente à luz dos seguintes factos: à data do óbito, a vítima contava com 89 anos, a sua vivência quotidiana e familiar e a esperança média de vida da mulher portuguesa. OOO. Nesta confluência, deverá a condenação da recorrente ser revogada e, em substituição, ser proferida sentença que condene a demandada, no pagamento solidário de quantia nunca superior a € 40.000,00 (quarenta mil euros)”.
11. O Ministério Público respondeu ao recurso interposto pelo arguido, pugnando pela sua absolvição.
Afirma que “atendendo ao teor do acórdão de fixação de jurisprudência n.º 2/2011, de 27.01, cumpre dizer o seguinte: Face à dinâmica da prova e à apreciação que dela foi feita em sede de alegações pelo Ministério Público, segundo a qual resulta não ter sido o produto ministrado per se que tenha causado a infecção; quanto ao procedimento, considerou o Ministério Público não se ter feito prova bastante que os instrumentos utilizados não tenham sido efectivamente esterilizados, no que se inclui a seringa de transição. Por esse motivo, pugnou-se pela ausência de prova sobre o nexo de causalidade entre a conduta do arguido e o resultado verificado, pelo que, apelando ao princípio in dubio pro reo, deve o arguido ser absolvido, assim se fazendo a tão costumada Justiça”.
12. As assistentes EE e FF vieram, igualmente, responder ao recurso interposto pelo arguido, bem como ao intentado pela demandada “C... - Companhia de Seguros, S.A.”, pugnando pela improcedência de ambos e manutenção da sentença reorrida, concluindo que:
“1. O RECORRENTE DISCORDA DA MATÉRIA DE FACTO DADA COMO PROVADA, NOMEADAMENTE NOS PONTOS 50.D, 50.E, 50.F, 50.I, 50, 51 E 52, POR ALEGADA CONTRADIÇÃO COM A MATÉRIA DADA COMO NÃO PROVADA NO PONTO 2. 2. A MATÉRIA DADA COMO NÃO PROVADA EM 2 NÃO IMPLICA QUE OS LOCAIS DE ADMINISTRAÇÃO E OS MATERIAIS UTILIZADOS TENHAM SIDO DESINFETADOS E ESTERILIZADOS DE FORMA ADEQUADA, CONFORME DEMONSTRADO NOS PONTOS 50.D, 50.E, 50.F, 50.I, 50, 51 E 52, ONDE SE CONCLUI QUE O ARGUIDO UTILIZOU ÁLCOOL DE 90º QUANDO DEVERIA TER UTILIZADO DE 70º. 3. O RECORRENTE TAMBÉM ALEGA QUE HOUVE ERRO NA APRECIAÇÃO DA PROVA, UMA VEZ QUE A CREDIBILIDADE DO DEPOIMENTO DAS ASSISTENTES FOI TIDA COMO SUPERIOR À DO DEPOIMENTO DO ARGUIDO. 4. NO ENTANTO ACONTECE QUE FOI O PRÓPRIO ARGUIDO QUE CONFESSOU, NO SEU DEPOIMENTO, QUE USOU ÁLCOOL DE 90º. 5. O RECORRENTE TAMBÉM ALEGA A INEXISTÊNCIA DE PROVAS DE QUE O MATERIAL UTILIZADO E O TABULEIRO ONDE OS INSTRUMENTOS ERAM COLOCADOS ESTAVAM DEVIDAMENTE ESTERILIZADOS. 6. NO ENTANTO, FICOU CLARO QUE ESSES MATERIAIS ERAM APENAS "BORRIFADOS COM ÁLCOOL", O QUE CONFIRMA QUE A ESTERILIZAÇÃO ESTAVA EM DESACORDO COM AS NORMAS EXIGIDAS. 7. NÃO HÁ RAZÃO PARA QUESTIONAR A VALIDADE DAS CONCLUSÕES DO TRIBUNAL A QUO, DADO QUE OS DEPOIMENTOS PRESTADOS DURANTE A AUDIÊNCIA DE JULGAMENTO FORAM DEVIDAMENTE AVALIADOS E NÃO HÁ ELEMENTOS QUE SUGIRAM ERRO DE APRECIAÇÃO OU CONTRADIÇÕES SUBSTANTIVAS ENTRE OS FACTOS PROVADOS E OS DEPOIMENTOS APRESENTADOS. 8. O ARGUIDO, EM DEPOIMENTO, ADMITE TER UTILIZADO ÁLCOOL A 90 GRAUS PARA A DESINFEÇÃO DE MATERIAIS E LOCAIS, O QUE NÃO É RECOMENDADO PARA PROCEDIMENTOS MÉDICOS. 9. O ARGUIDO RECONHECEU QUE A BACTÉRIA QUE CAUSOU A INFEÇÃO QUE RESULTOU NA MORTE DA VÍTIMA ENTROU ATRAVÉS DAS DUAS PICADAS QUE ELE PRÓPRIO REALIZOU. 10. O ARGUIDO NÃO CONSEGUIU DEMONSTRAR QUE PROCEDEU DE FORMA ADEQUADA À ESTERILIZAÇÃO DOS INSTRUMENTOS E À DEFINIÇÃO DO LOCAL DAS INJEÇÕES. 11. OS DOIS ÚNICOS LOCAIS QUE FORAM ALVO DE PICADAS POR PARTE DO ARGUIDO, ZONA LOMBAR E PERNA ESQUERDA, INFETARAM! 12. A INFEÇÃO OCORREU PRECISAMENTE NOS ÚNICOS DOIS LOCAIS O ARGUIDO DEUS AS DUAS “PICADAS”: A PERNA ESQUERDA E A ZONA LOMBAR. 13. FORAM ESSAS AS ÚNICAS ÁREAS QUE DESENVOLVERAM INFEÇÕES GRAVES, CULMINANDO EM UM QUADRO DE FASCEÍTE NECROSANTE. 14. O ARGUIDO, COMO PROFISSIONAL DA SAÚDE, TINHA A RESPONSABILIDADE DE GARANTIR A ESTERILIZAÇÃO ADEQUADA E O CUIDADO NECESSÁRIO DURANTE O PROCEDIMENTO. 15. DA ACUSÇÃO, DO PEDIDO DE INDEMNIZAÇÃO CIVIL E DA SENTENÇA RECORRIDA CONSTAM TODOS OS FACTOS QUE PREENCHEM O TIPO OBJETIVO E SUBJETIVO DE ILÍCITO. 16. O ARGUMENTO DO CONSENTIMENTO DA VÍTIMA NÃO PODE PROCEDER, POIS ESTA NÃO FOI INFORMADA SOBRE AS CONDIÇÕES INADEQUADAS DE DESINFEÇÃO E, MESMO QUE O CONSENTIMENTO TIVESSE SIDO DADO, ELE SERIA JURIDICAMENTE INOPERANTE, PORQUANTO A PRÁTICA DO ARGUIDO VIOLOU NORMAS DE SAÚDE, OFENDENDO OS BONS COSTUMES. 17. O TRIBUNAL A QUO, DEPOIS DE ANALISAR TODAS AS PROVAS, NÃO FICOU DÚVIDAS RAZOÁVEIS SOBRE OS FACTOS EM QUESTÃO, PELO QUE O PRINCÍPIO DA PRESUNÇÃO DE INOCÊNCIA NÃO FOI VIOLADO. 18. O DEPOIMENTO DO ARGUIDO, AO RECONHECER AS FALHAS NOS PROCEDIMENTOS E A FALTA DE ESTERILIZAÇÃO CORRETA, NÃO DEIXA MARGEM PARA DÚVIDAS QUANTO À SUA RESPONSABILIDADE NO OCORRIDO. 19. A MORTE DA VÍTIMA FOI DIRETAMENTE CAUSADA PELA CONDUTA DO ARGUIDO. NÃO HOUVE INTERRUPÇÃO DO NEXO CAUSAL, E NÃO SE VERIFICAM FACTOS INDEPENDENTES QUE POSSAM TER ALTERADO O DESFECHO FATAL. 20. O ARGUIDO FOI CORRETAMENTE CONDENADO POR HOMICÍDIO POR NEGLIGÊNCIA, POIS NÃO OBSERVOU OS CUIDADOS MÍNIMOS EXIGIDOS PARA A EXECUÇÃO DO PROCEDIMENTO MÉDICO, O QUE RESULTOU NO ÓBITO DA VÍTIMA. 21. A SENTENÇA RECORRIDA ESTÁ DEVIDAMENTE FUNDAMENTADA E A ANÁLISE DOS FACTOS NÃO CONTÉM ERRO NOTÓRIO, NÃO HAVENDO QUALQUER ERRO QUE MOTIVE A SUA ALTERAÇÃO. 22. POR FIM, NÃO SE VERIFICA A VIOLAÇÃO DO PRINCÍPIO DA PROIBIÇÃO DA REFORMATIO IN PEJUS (N.º 1 DO ARTIGO 409.º DO CPP), UMA VEZ QUE A DECISÃO NÃO FOI TOMADA NA SEQUÊNCIA DE RECURSO INTERPOSTO PELO ARGUIDO, NEM NO SEU INTERESSE, MAS SIM EM VIRTUDE DO RECURSO SUBORDINADO APRESENTADO PELAS ASSISTENTES. 23. FORAM AS PRÓPRIAS ASSISTENTES, ORA RECORRIDAS, QUE ARGUIRAM A NULIDADE DA SENTENÇA AO ABRIGO DO DISPOSTO NA ALÍNEA C) DO N.º 1 DO ARTIGO 379.º DO CPP, QUE PREVÊ A NULIDADE QUANDO "O TRIBUNAL DEIXE DE PRONUNCIAR-SE SOBRE QUESTÕES QUE DEVESSE APRECIAR OU CONHEÇA DE QUESTÕES DE QUE NÃO PODIA TOMAR CONHECIMENTO". 24. ACRESCE QUE O ACÓRDÃO DA RELAÇÃO, DATADO DE 23 DE JUNHO DE 2021, RECONHECEU EXPRESSAMENTE A NULIDADE DA SENTENÇA INICIAL, AO AFIRMAR: "NO ENTANTO, SEMPRE SE DIZ QUE, TAL COMO ALEGADO PELAS DEMANDANTES CÍVEIS, A SENTENÇA RECORRIDA NÃO SE PRONUNCIOU SOBRE QUESTÃO QUE DEVERIA TER APRECIADO; EM CONCRETO, SOBRE O PEDIDO INDEMNIZATÓRIO PELOS DANOS MORAIS SOFRIDOS PELA VÍTIMA DESDE O DIA 2.7.2013 ATÉ À SUA MORTE." 25. A SENTENÇA RECORRIDA TAMBÉM FOI CLARA AO EXPLICAR: "NESTA MATÉRIA, COMO BEM RECONHECIDO PELO DOUTO ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE COIMBRA, A PRIMEIRA SENTENÇA NÃO SE PRONUNCIOU SOBRE UMA QUESTÃO QUE DEVERIA TER APRECIADO, OU SEJA, EM CONCRETO, SOBRE O PEDIDO INDEMNIZATÓRIO PELOS DANOS MORAIS SOFRIDOS PELA VÍTIMA DESDE O DIA 2.7.2013 ATÉ À SUA MORTE. CUMPRE, NESTA SEDE, APRECIAR ENTÃO O PEDIDO INDEMNIZATÓRIO PELOS DANOS MORAIS SOFRIDOS PELA VÍTIMA E QUE FORAM PETICIONADOS PELAS DEMANDANTES." 26. NÃO EXISTE QUALQUER EXCESSO DE PRONÚNCIA, VIOLAÇÃO DA MATÉRIA DE REENVIO OU EXTRAPOLAÇÃO DO PODER JURISDICIONAL DO TRIBUNAL A QUO”.
13. O recurso foi remetido para este Tribunal da Relação e aqui, com vista nos termos do artigo 416º do Código de Processo Penal, a Ex.ma Procuradora-Geral Adjunta limitou-se a apor o seu visto.
14. Respeitando as formalidades aplicáveis, após o exame preliminar e depois de colhidos os vistos, o processo foi à conferência, face ao disposto no artigo 419º, nº 3, alínea c), do Código de Processo Penal.
15. Dos trabalhos desta resultou a presente apreciação e decisão. *
B – Fundamentação
1. O âmbito do recurso é dado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respectiva motivação, face ao disposto no artigo 412º, nº 1, do Código de Processo Penal, que dispõe que “a motivação enuncia especificadamente os fundamentos do recurso e termina pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do pedido”. São, pois, apenas as questões suscitadas pelo recorrente e sumariadas nas respectivas conclusões que o tribunal de recurso tem de apreciar, sem prejuízo das de conhecimento oficioso (identificação de vícios da decisão recorrida, previstos no artigo 410º, nº 2, do Código de Processo Penal, pela simples leitura do texto da decisão, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, e verificação de nulidades que não devam considerar-se sanadas, nos termos dos artigos 379º, nº 2, e 410º, nº 3, do mesmo diploma legal). O que é pacífico, tanto a nível da doutrina como da jurisprudência (cfr. Germano Marques da Silva, Direito Processual Penal Português, vol. 3, Universidade Católica Editora, 2015, pág. 335; Simas Santos e Leal-Henriques, Recursos Penais, 8.ª ed., 2011, pág. 113; bem como o Acórdão de Fixação de Jurisprudência do STJ, nº 7/95, de 19.10.1995, publicado no DR 1ª série, de 28.12.1995; e ainda, entre muitos, os Acórdãos do STJ de 11.7.2019, in www.dgsi.pt; de 25.06.1998, in BMJ 478, pág. 242; de 03.02.1999, in BMJ 484, pág. 271; de 28.04.1999, in CJ/STJ, Ano VII, Tomo II, pág. 193).
2. No caso dos autos, face às conclusões da motivação apresentadas pelos recorrentes, as questões a decidir são as seguintes:
Do recurso do arguido BB
- se os factos provados dos pontos 50-D, 50-E, 50-F, 50-I, 50, 51 e 52 estão em contradição com o ponto 2 dos factos não provados;
- se os factos provados dos pontos 50-D, 50-E, 50-F, 50-I, 50, 51 e 52 foram incorrectamente julgados, devendo ser dados como não provados;
- se o tribunal a quo violou o princípio in dubio pro reo;
- se inexistem factos provados que preencham os elementos subjectivos do crime sub judice;
- se o arguido deve ser absolvido do crime de homicídio por negligência por que foi condenado, bem como do pedido de indemnização civil.
Do recurso da demandada “C... – Companhia De Seguros, S.A.”
- se a sentença recorrida enferma do vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, por falta dos factos concretizadores do elemento subjectivo do tipo, pelo que a demandada civil deve ser absolvida;
- se a sentença recorrida enferma de nulidade por excesso de pronúncia, uma vez que o tribunal a quo ao direccionar os trabalhos, produzir prova e julgar a matéria de facto relativa à desinfecção dos locais onde foram administradas as injecções, desrespeitou a decisão de reenvio, já transitada em julgado;
- se a sentença recorrida enferma do vício de contradição insanável entre os factos provados e não provados; - se os factos provados dos pontos 50-D, 50E, 50F, 50, 51 e 52 foram incorrectamente julgados;
- se o Parecer do Colégio da Especialidade de Dermatologia da Ordem dos Médicos produzido em sede de processo disciplinar movido ao arguido, não poderá valer como meio probatório nos presentes autos, porque não foi obtido com respeito ao direito ao contraditório previsto no artigo 327º, nº 2, do Código de Processo Penal;
- se apenas é admitido o recurso ao depoimento indirecto, através do disposto no artigo 129º, do Código de Processo Penal, no caso do decesso da testemunha anteriormente ouvida nos autos;
- se o tribunal a quo violou o princípio in dubio pro reo;
- se o arguido deve ser absolvido, por não se encontrarem preenchidos os elementos típicos do crime de homicídio por negligência;
- se ao tribunal a quo estava vedado o conhecimento da pretensão ressarcitória, sob pena de violação do caso julgado formal e material, em obediência aos artigo 29.º, n.º 5, da CRP, pelo artigo 4.º do Protocolo n.º 7, adicional à CEDH, de 22/11/1984 e pelo artigo. 14.º, n.º 7, do Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos, assim como dos princípios do juiz natural, do contraditório, da imediação, consagrados nos artigos 327º, nº 2, 355º, nº1 e 426º, nº 1, todos do CPP.
- se a sentença recorrida deve ser revogada no que diz respeito ao pedido de indemnização civil;
- subsidiariamente, se deve ser proferida sentença que condene a demandada no pagamento solidário de quantia nunca superior a € 40.000,00 (quarenta mil euros).
3. Para decidir das questões supra enunciadas, vejamos a factualidade e motivação da sentença recorrida.
“II.A – Factos Provados Da acusação: 1. O arguido é médico de profissão; 2. O arguido está inscrito na Ordem dos Médicos desde ../../1979, como titular da cédula profissional n.º ...15; 3. Desde ../../2005 o arguido está inscrito para o exercício da actividade de acupunctura; 4. O arguido é sócio e gerente da sociedade denominada A..., L.da, com sede na Urbanização ..., nesta cidade e comarca de Coimbra; 5. O arguido exerce a sua actividade profissional nas instalações da sede da sociedade A..., L.da; 6. A sociedade A..., L.da, tem por objecto social a realização de consultas de clínica geral e especialidades médicas, de medicinas alternativas (acupunctura, homeopatia, osteopatia e vertebroterapia) e outros que se revelem de acordo com a deontologia médica, telemedicina-após divulgação, orientação de tratamentos, apoio com software e hardware adoptados; Medicina estética, orientação estética, dietética; Apoio com terapeutas e produtos específicos, estéticos, dietéticos alternativos, terapia física e de reabilitação; Apoio com terapeutas específicos em reabilitação física, bodybuilding; 7. De entre outras técnicas praticadas na citada clínica, o arguido fazia uso de técnicas de Mesoterapia; 8. A Mesoterapia não é reconhecida como especialidade médica pela Ordem dos Médicos; 9. As técnicas de Mesoterapia consistem em injectar medicamentos, em doses muito baixas, entre a epiderme e a derme, sendo uma técnica inscrita na tabela dos códigos de nomenclatura e valor relativo de actos médicos da Ordem dos Médicos, sob o código 90.10.00.05 (sendo o código 90 respeitante a actos de medicina física e de reabilitação); 10. Além de outras substâncias, nas técnicas de mesoterapia, o arguido usava silício orgânico [MESOESTETIC – X Pprof 013 – Ampolas regeneradoras de silício orgânico]; 11. AA nasceu em ../../1923; 12. Desde data não concretamente determinada, AA recorreu aos serviços médicos prestados pelo arguido naquela clínica; 13. Com o propósito, entre o mais, de debelar as dores que sentia na zona dos membros inferiores e na zona lombo sagrada (dor ciática); 14. Nessa sequência, pelo menos desde o ano de 2011, AA vinha a ser submetida a sessões de acupunctura, pelo arguido, naquela clínica; 15. A partir do ano de 2012, e paralelamente àquelas sessões, por conselho e prescrição do arguido, AA (à data com 89 anos de idade), passou a ser sujeita a tratamentos de mesoterapia na perna esquerda e na zona lombo sagrada; 16. Com a administração de injecções de silício orgânico [“MESOESTETIC – X Pprof 013 – Ampolas regeneradoras de silício orgânico – 5ml/017fl. Oz.]; 17. Aplicadas com agulhas específicas (micro agulhas) e através da técnica da Mesoterapia; 18. As referidas injecções eram aplicadas pelo arguido juntamente com um anestésico à base de lidocaína, denominado Lidoject [“400mg/20ml – Solução injectável – Subcutânea e intravenosa – LIDOJECT 2% - Laboratório Labesfal”]; 19. No dia 02 de Julho de 2013, AA efectuou uma nova sessão de tratamentos, com injecção, através da técnica da Mesoterapia, de silício orgânico [“MESOESTETIC – X Pprof 013 – Ampolas regeneradoras de silício orgânico – 5ml/017fl. Oz. Lote: D-6; prazo de validade 10-2015”] na região dos gémeos da perna esquerda e na região lombar, que lhe foi administrada pelo arguido, na referida clínica. 20. No dia 03 de Julho de 2013, AA sentiu dores localizadas e uma ligeira inflamação nas zonas onde o arguido, no dia anterior, lhe havia administrado as referidas injecções de silício; 21. Na sequência de tais sintomas, e verificando que os mesmos se agravavam, no dia 04 de Julho de 2013, AA contactou o arguido; 22. Nessa ocasião, o arguido referiu a AA que se tratava, provavelmente, de alergia ao produto administrado e recomendou-lhe fazer gelo, tomar anti-inflamatório (Nimed) e aplicar Zemalex creme nas referidas zonas corporais; 23. No dia 05 de Julho de 2013, verificando que os sintomas se agravavam, AA voltou a contactar o arguido, queixando-se do agravamento das dores e da inflamação, descrevendo que existia uma auréola vermelha à volta dos locais onde foram administradas as injecções de silício e que tinha dificuldade em movimentar-se; 24. Nesse mesmo dia, o arguido observou AA, na referida clínica, e aplicou-lhe uma manga pneumática na perna esquerda, durante aproximadamente 40 minutos, explicando-lhe que o objectivo seria o de activar a circulação sanguínea; 25. Mais disse o arguido a AA que a mesma tinha uma infecção nas zonas afectadas; 26. E, por isso, receitou-lhe a aplicação de Fucidine H, duas vezes ao dia, e aplicação de gelo nessas partes do corpo; 27. Não obstante a intervenção do arguido e de AA ter aplicado o medicamento prescrito e ter seguido as indicações daquele, de colocar gelo nas zonas do corpo afectadas, apareceu-lhe uma mancha vermelha nas costas e um edema no tornozelo da perna esquerda; 28. No dia 08 de Julho de 2013, pela manhã, AA voltou a contactar telefonicamente o arguido, dando-lhe conta do agravamento do seu estado clínico; 29. Durante esse contacto telefónico, o arguido prescreveu-lhe a toma de antibiótico, Ciproxina 500 mg, duas vezes ao dia; 30. No dia 08 de Julho de 2013, à tarde, AA recorreu a consulta de cirurgia vascular; 31. Tendo sido observada pelo Dr. JJ, cirurgião vascular, que, além da observação clínica, lhe efectuou um ecodoppler às duas pernas, exame que revelou, a nível arterial, estenoses difusas e, a nível venoso, retorno venoso de baixa modelação no membro inferior esquerdo; 32. No dia 09 de Julho de 2013, uma vez que AA se encontrava muito débil e com dificuldades respiratórias, foi transportada pelo INEM para o Serviço de Urgências do Centro Hospitalar da Universidade de Coimbra, onde deu entrada, com um quadro clínico crítico, tendo, no final desse dia (cerca de 12 horas depois da entrada nos Serviços de Urgências), os rins e o sistema respiratório em falência. 33. Na sequência dos exames de diagnóstico realizados veio a apurar-se que AA tinha edema dos tecidos celulares subcutâneos da perna e face posterior da coxa à esquerda e dermohipodermite aguda bacteriana da perna esquerda com descolamento bolhoso no terço inferior, preenchido com conteúdo serohemático, em contexto de fasceite necrosante; 34. De imediato, AA foi internada em UICD (Unidade de Internamento de Curta Duração) a cargo da Medicina Interna; 35. Apresentando sinais sugestivos de infecção necrotizante dos tecidos moles do membro inferior esquerdo e da região lombar; 36. E encontrava-se em falência multiorgânica por sépsis (com insuficiência respiratória tipo I, renal aguda, hematológica, hepática e hemodinâmica; acidémia por acidose metabólica e hiperlactacidémia) e com rabdomiólise; 37. Na sequência da avaliação clínica efectuada foi proposta terapêutica cirúrgica urgente; 38. No dia 10 de Julho de 2013, AA foi submetida a amputação supracondiliana do membro inferior esquerdo e a desbridamento dos tecidos moles da região lombar, sob anestesia geral; 39. Após a intervenção cirúrgica, AA permaneceu sob ventilação invasiva e terapêutica aminérgica dupla, na Unidade de Cuidados Pós-Anestésicos, tendo sido transferida para o Serviço de Medicina Intensiva algumas horas depois; 40. No Serviço de Medicina Intensiva, AA foi submetida a terapêutica de substituição renal e a cuidados de penso, com limpezas cirúrgicas adicionais; 41. No dia 18 de Julho de 2013, pelas 16H55, AA faleceu na sequência de falência multiorgânica por sépsis; 42. AA contraiu uma infecção por via da aplicação injectável do produto silício; 43. E que lhe veio a causar infecção generalizada no corpo e consequente morte; 44. O produto MESOESTETIC – X Pprof 013 – Ampolas regeneradoras de silício orgânico – 5ml/017fl. Oz destinava-se, segundo o fabricante, a aplicação por via tópica; 45. Ao aplicar o referido produto por via injectável, sabia o arguido que agia contra as recomendações do fabricante e do Infarmed; 46. O arguido sabia que, de acordo com as recomendações do fabricante do produto e do Infarmed, tal substância deveria ser usada apenas por via tópica e não por via injectável; 47. O arguido, ao actuar do modo descrito, sabia que violava as leges artis; 48. O arguido, actuando contra as recomendações técnicas de aplicação do referido produto, exerceu a sua profissão preterindo a atenção e o cuidado que o exercício de medicina requer, cuidado e atenção que lhe eram exigíveis e de que era capaz; 49. A morte de AA por sépsis adveio, como causa directa, do facto de o arguido ter violado os mais elementares deveres de prudência e cuidado, que, no exercício da sua profissão, podia e devia ter tido; 50-A. Foi efetuada colheita à AA, por exsudação da ferida a 10-07-2013, a fim de ser efectuado exame cultural bacteriológico, sem crescimento bacteriológico ao fim de 5 dias de incubação mas com identificação de staphylococcus aureus em 13-07-2013, pelas 12h35. 50-B. As embalagens utilizadas pelo arguido não estavam contaminadas por agente patológico – fls. 491. 50.C. Os instrumentos que devem ser utilizados na administração da técnica de mesoterapia são seringas e agulhas para a inoculação da solução final na pele (é necessário obter uma mistura de 2/3 fármacos), seringa de transferência e respectiva agulha mais longa e estéril (para efectuar a extracção dos fármacos de cada uma das ampolas para dentro das seringas de inoculação), luvas e marquesa desinfectadas- Facto aditado 50.D. A esterilização dos instrumentos utilizados e do local apenas deve ser efectuada com álcool a 70% . 50-E. O arguido usou álcool a 90% e álcool isopropílico para a desinfeção substâncias não adequadas para esterilização. 50-F. Não estavam correctamente esterilizados os instrumentos utilizados e o local do tratamento. 50-G. Nas 48 horas após o procedimento é desaconselhável, para além de banho quente (temperatura da água superior a 25º) e da exposição solar, também a aplicação de tópicos no local de tratamento, a ionização sobre a zona envolvida e a massagem local. 50-H. A prescrição e aplicação de um anti-inflamatório tópico (AINE) em processo infecioso (erisipeia/ celulite, por agravamento de necrose cutânea), mesmo após as 48 horas é medicamente debatido, existindo controvérsia médica sobre o assunto. 50-I. O arguido, pela sua formação e experiência, tinha obrigação de saber que a aplicação da “manga pneumática” (pressoterapia) é contra-indicada em local de inflamação, sendo suscetível de condicionar a evolução do quadro infecioso, que conduziu à morte da doente. 50. O arguido, ao actuar do modo descrito, sabia que violava as leges artis, contribuindo, assim, de forma directa, para desencadear um quadro infeccioso da pele das pernas e da pele da região lombar de AA, que evoluiu para uma fasceíte necrosante, com choque séptico e consequente morte de AA. 51. O arguido não podia, enquanto médico que acompanhava AA, deixar de representar como possível que esta viesse a contrair uma infecção, por via da aplicação injectável do produto silício, que lhe viesse a causar infecção generalizada no corpo e consequente morte. 52. Ao agir como supra descrito, o arguido criou grave perigo para a vida, corpo e saúde de AA, que veio a morrer em virtude do relatado comportamento do arguido. Mais se provou [Condições pessoais]: 53. O arguido BB não tem qualquer condenação inscrita no respectivo registo criminal; 54. O arguido, de 72 anos, é natural de ..., é originário de uma família de boa condição socioeconómica sendo o mais velho de três irmãos. Filho de pai industrial e mãe doméstica, cresceu em ... onde decorre a sua infância e juventude, referindo um enquadramento familiar estável, tranquilo. 55. Em 1968 vem residir para ... com a mãe e os dois irmãos mais novos, onde completa o ensino Liceal. Ingressa depois na Universidade de Coimbra, na Faculdade de Medicina onde completa o curso em Medicina, nos anos 1978/79. 56. O arguido iniciou a sua carreira profissional de médico no Hospital ..., concluindo depois a especialidade de Clínica Geral, passando a trabalhar no centro saúde de ..., ..., onde permaneceu por 17 anos. 57. BB em 2000 criou a clínica “A...”, sediada em ..., onde passa a exercer grande parte da sua atividade clínica privada, particularmente focada em áreas de estética e acupuntura mantendo, no entanto, em simultâneo com a atividade de clínico geral. 58. Nos últimos anos, vem reduzindo a sua atividade profissional exercendo apenas funções, em regime de substituição, no Hospital ... e na clínica A..., de que é proprietário. 59. O arguido é casado, vivendo na companhia da sua mulher, tendo uma filha, com 40 anos, que vive no mesmo edifício habitacional e com quem mantem uma relação próxima. 60. O arguido encontra-se reformado, da função pública, desde o final 2021, auferindo uma aposentação de aproximadamente, de 1200€. 61. Da atividade profissional privada que ainda exerce, tem como receita cerca de 4.000,00€ mês, valores a que acresce a pensão de reforma da mulher de cerca de 900,00€ mês. 62. O agregado familiar do arguido habita casa própria, para cuja aquisição contraiu empréstimo bancário, despendendo, mensalmente, na sua amortização a quantia de cerca de € 2.500,00. 63. O agregado familiar do arguido tem outra habitação secundária, para cuja aquisição contraiu empréstimo bancário, despendendo, mensalmente, na sua amortização a quantia de cerca de € 500,00; 64. Como encargo fixo mensal possui ainda cerca de 1.000€ relativos às despesas mensais com a manutenção dos referidos imóveis. 65. O arguido é reputado, no seu meio profissional, como pessoa zelosa e cuidadosa no tratamento dos doentes e no seu acompanhamento, estabelecendo com os mesmos uma relação de proximidade. Do pedido de indemnização cível: 66. EE e FF são filhas e únicas herdeiras de AA, também conhecida por OO, falecida em 18/07/2013, com a idade de 89 anos e no estado de viúva; 67. Desde, pelo menos, o mês de Maio de 2013, AA foi observada em diversas consultas de clínica geral pelo demandado nas instalações da Clínica A..., L.da, sita na Quinta ..., ..., ... ..., sociedade da qual o demandado é sócio e director clínico; 68. Os respectivos recibos das consultas também foram emitidos em nome da B..., L.da, sita na Rua ..., ... ..., de que o demandado também é sócio; 69. O demandado é médico de clínica geral e familiar; 70. O demandado prescreveu a AA, tratamentos de acupunctura e injecções de silício na perna esquerda e na zona lombo-sagrada, a fim de, na opinião daquele, a ajudar a suportar as dores de que aquela se queixava relacionados com “dor ciática”; 71. AA já realizara o mesmo tratamento em vezes anteriores sem ter apresentado qualquer reacção e/ou alergia ao dito produto injectado; 72. Por colocar o referido cirurgião vascular, Dr. JJ, a hipótese de se tratar de uma celulite infecciosa, recomendou a AA que continuasse com a toma do antibiótico prescrito pelo demandado e que tomasse, também, Lovenox 40 durante dois dias e Lovenox 20 por mais seis dias; 73. O referido Dr. JJ, recomendou a AA que realizasse análises clínicas; 74. Nessa data, EE, farmacêutica de profissão, administrou a AA, Lovenox 40, por via injectável, no abdómen; 75. No dia 08 de Julho de 2013, à noite, AA escorregou e caiu na casa-de-banho; 76. Nessa altura, FF deslocou-se a casa de AA e verificou que o edema estava a aumentar e que apresentava bolhas na região dos gémeos da perna esquerda; 77. Após fazer o curativo, com aplicação de Betadine e colocação de compressas e ligaduras na perna, por FF, AA foi deitar-se; 78. No dia 09/07/2013, pela manhã, AA, ao acordar, mostrou-se cansada e com dificuldades respiratórias, dizendo às filhas não se sentir nada bem, tendo então sido de imediato chamado o INEM, que a transportou para o CHUC; 79. Pelas 18H30 do dia 09/07/2013, AA foi transferida para a Sala de Observação das Urgências; 80. No dia 10/07/2013, foi solicitado a EE e FF o seu consentimento informado para a realização dos procedimentos que se viessem a mostrar indicados, designadamente, procedimento cirúrgico de amputação, uma vez já não ser possível obter tal consentimento junto de AA, por se apresentar inconsciente; 81. No seguimento da dita cirurgia, AA ficou internada e em observação na unidade de Cuidados Intensivos do CHUC, com multifalências orgânicas, respiração assistida e a realizar diálise; 82. Até à presente data, o demandado não contactou, telefonicamente ou por qualquer outro meio, as demandantes ou outros familiares da falecida AA; 83. AA era pessoa dinâmica e independente; 84. À data do seu falecimento, AA era directora técnica da Farmácia ..., em ..., da qual era proprietária; 85. AA sentiu dores; 86. E angústia, enquanto se manteve consciente, por sentir que ia morrer; 87. Entre EE e FF e AA existia uma relação de grande amizade, amor e companheirismo; 88. EE e FF sofreram desgosto, dor, mágoa com a perda da sua mãe; 89. E ficaram tristes e angustiadas; 90. AA era mãe carinhosa e preocupada com as filhas; 91. EE e FF amavam a sua falecida mãe, tendo sentido muito a sua morte; 92. AA sofreu aflição, angústia e dor causadas pela consciência do risco da lesão iminente que teve durante o decurso de toda a situação; 93. A cirurgia de amputação da perna causou dores e sofrimento a AA; 94. AA sofreu a aflição, a angústia e a dor da morte; Das contestações: 95. Entre o demandado BB e a C... – COMPANHIA DE SEGUROS, S.A., (naquela data designada D...) foi celebrado contrato de seguro do ramo Responsabilidade Civil, modalidade RC Profissional Médicos – medicina Interna, titulado pela apólice com o n.º ...95, com data de efeito a partir de 09/07/2012 e sucessivamente renovado até ao presente; 96. Este contrato tem por objecto a garantia das coberturas indicadas nas condições particulares, gerais e Condição Especial 21 em conformidade com o teor do documento n.º 1 junto com a contestação da demandada C... – COMPANHIA DE SEGUROS, S.A., que aqui se dá como integralmente reproduzido; 97. O capital seguro, no âmbito da referida apólice, está limitado a € 300.000,00 (trezentos mil euros), com uma franquia de 10 %, no mínimo de € 125,00 (cento e vinte e cinco euros). * B) DOS FACTOS NÃO PROVADOS Não se provaram os seguintes factos: 1. O arguido usava “silício injectável”; 2. No dia 02/07/2013, o demandado aplicou as injecções sem desinfectar prévia e devidamente os locais em que aquelas foram administradas; 3. No dia 02/07/2013, os instrumentos/local utilizados não tinham focos de contaminação e estavam correctamente esterilizados. 4. No dia 09/07/2013, AA queixava-se de muitas dores naquelas zonas do seu corpo; 5. Uma vez chegada às urgências do CHUC, pelas 9h30m da referida terça-feira, 09.07.2013, a mãe das demandantes foi observada por vários especialistas, que informaram as demandantes que a sua mãe se encontrava em estado crítico, tendo já alguns órgãos em falência; 6. Ao longo desse dia, a situação da perna esquerda e das costas foi-se agravando, queixando-se a mãe das demandantes de muitas dores e sendo visível o aparecimento de novas bolhas na dita perna; 7. A zona com edema na região lombo-sagrada apresentava já uma dimensão de cerca de 15cm x 15cm; 8. Pelas 00h30 do dia 10.07.2013, quarta-feira, as demandantes foram chamadas de urgência ao CHUC, sendo então informadas que o falecimento daquela poderia ocorrer nas quatro ou cinco horas seguintes se não fosse submetida a cirurgia de amputação da perna esquerda e a cirurgia com vista ao corte e retirada dos tecidos necrosados existentes nas costas; 9. Foi dito às demandantes pela médica-cirurgiã que se tratava de uma fasceite necrosante, uma situação de sépsis muito grave, fatal caso não fosse de imediato operada à perna esquerda e às costas; 10. Na terça-feira, dia 09.07.2013, à tarde, no decorrer do internamento de sua mãe, FF telefonou ao demandado e deu-lhe conhecimento da situação clínica em que aquela se encontrava; 11. No dia seguinte, quarta-feira, 10.07.2013, pela 01H30, FF voltou a telefonar ao demandado, informando-o de que a sua mãe teria que ser submetida às cirurgias supra referidas; 12. Na sexta-feira, 12.07.2013, EE, acompanhada do companheiro de sua filha PP, deslocou-se à Clínica A... e solicitou ao demandado que lhe entregasse produto igual ao que este havia injectado na mãe daquela; 13. Solicitação a que o demandado anuiu, tendo nesse momento entregue a EE alguns frascos de “silício injectável”; 14. Não existe autorização do INFARMED para a respectiva comercialização em Portugal por o silício não ser produto medicamente indicado segundo o estado dos conhecimentos e da experiência da medicina, muito menos de forma injectável; 15. A Ordem dos Médicos mantém com a C..., NIPC ...09, com sede na Rua ..., ... ..., um protocolo de seguros que inclui o Seguro de Responsabilidade Civil Profissional para Médicos inscritos na Ordem dos Médicos; 16. AA era uma pessoa saudável; 17. As demandantes tiveram conhecimento do acidente que causou a morte da sua mãe no dia em que o mesmo aconteceu, tendo sofrido o choque e a angústia profunda da situação irreversível de nunca mais poder estar com ela; 18. Ficando, por isso, num estado de profunda prostração e frustração ao ser confrontada com a morte do seu ente querido; 19. Em consequência do seu estado emocional e físico, as demandantes sentiram dificuldades em dormir, dormem e acordam com sobressaltos; 20. As demandantes ainda hoje continuam com angústias e a dormirem com dificuldades;
* Não se provaram quaisquer outros factos com relevo para a decisão da causa.
* *** C) DA MOTIVAÇÃO DA DECISÃO DE FACTO:
O poder de reenvio restringe-se apenas à colocação pelo tribunal de recurso das “questões concretas” que compete ao tribunal de primeira instância decidir[1]. A decisão do tribunal superior sobre a restante matéria, ou seja, as questões que o tribunal superior não “colocar” para resolução pelo tribunal de primeira instância, transitou em julgado – o chamado “caso julgado progressivo”[2]. Importa sublinhar que o facto de o Acórdão do Conselho Disciplinar Regional do Centro[3] datado de 29.11.2022[4] (fls. 1590 a 1631), proferido no âmbito do processo disciplinar[5] instaurado ao arguido BB (que manteve a a sanção disciplinar de censura) ser citado/atendido o Parecer do Colégio de Especialidade da Dermatovenereologia da Ordem dos Médicos, que propugna que o uso de silício orgânico não se trata de uma substância proibida, podendo ser usada e preparada, e por esse prisma, que o seu uso pela via subcutânea não constituia violação das leges artis, certo é que, no âmbito deste processo judicial, tal Parecer[6] (ou as conclusões retiradas pelo Acórdão do Conselho Disciplinar Regional do Centro proferido em momento posterior à decisão objecto de recurso, e que o levou em linha de conta) não se poderá suplantar às decisões judiciais já proferidas nos autos, maxime ao Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, em que foi decidido atender à prova pericial coligida nestes autos, levando em linha de conta o conspecto factual já dado como consolidado/assente[7] pelo Tribunal da Relação de Coimbra (no qual se conta o apuramento/apreciação de alguns factos contravertidos, cuja redacção, entretanto, foi dada como assente) tendo a apreciação da questão concreta colocado por aquele Tribunal Superior em sede de reenvio neste 2º julgamento (matéria vertida nos pontos 49 a 62, relacionada com a violação do dever objectivo de cuidado e requisito da previsibilidade) de ser harmonizar com o conspecto factual já definido. Portanto, a prova pericial, Consulta Técnico-Científica, a considerar nos presentes autos é a elaborada no âmbito destes autos, onde se analisa a situação sub judice. Portanto, à luz do próprio enquadramento colocado pelo Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, ao nível da instância criminal, o nexo de imputação da morte de AA não estará tanto relacionado com o facto de se tratar de um tratamento com a utilização de silício orgânico aplicado pela via subcutânea (em vez de tópica[8]) mas com as “picadas” na pele que foram necessárias fazer para o administrar, portanto, com o facto dessas “picadas” da pele constituírem portas de entrada para bactérias/infecções. Como se pode ler nas decisões judiciais anteriores a génese de todo o processo infecioso que veio a culminar com a morte de AA foi o procedimento de administração do produto. Nessas decisões não se diz que a infecção foi causada pelo produto em si, mas pelo procedimento de administração desse produto. As injecções foram a porta de entrada da bactéria (Staphylococcus aureus) que veio a ser examinada como presente no corpo de AA, e que esteve na génese de todo o processo infecioso, é o que resulta da motivação da sentença, e é reforçado pelo Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra[9], alicerçada nos elementos clínicos e na Consulta Técnico Científica de fls. 585 e segs. Assente que se encontra que a única forma da bactéria entrar foram os injectáveis, o reenvio para este novo julgamento está restrito ao apuramento dos instrumentos utilizados na administração do produto (como seringa, agulha e outros eventualmente utilizados) e se foram usados devidamente esterilizados (se foi efectuada a devida esterilização). Nesta medida, em face do âmbito do reenvio determinado pelo Venerando Tribunal da Relação de Coimbra, maxime do enfoque conferido por esse tribunal de recurso à “questão concreta” [parcela bem definida da decisão anterior recorrida] que competirá a este tribunal de primeira instância apreciar e decidir neste segundo julgamento, pelo que aqui se deixa transcrita a motivação da decisão de facto da primeira decisão complementada pela apreciação já feita pelo Douto Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra - que reveste a autoridade de caso julgado progressivo-, e com a qual se terá de harmonizar a subsequente apreciação/motivação da questão concreta colocada neste segundo julgamento e convicção deste tribunal quanto à redacção dos correspondentes novos factos dados como provados ou não provados dentro de um todo que se pretende coerente. Assim cogitando, mantendo o Douto Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra as linhas de força da motivação da sentença proferida nos autos de fls. 1108 a 1141, nas partes consolidadas, e tendo em vista uma maior clareza e harmonização da subsequente motivação quanto ao aditamento dos novos factos dados como provados numa ótica de um “todo coerente”, antes de se aditar a motivação da parcela definida para ser decidida em sede de reenvio, aqui se deixa transcrita a motivação da sentença anterior (fls. 1108-1141):
“Os factos dados como provados foram assim considerados tendo em atenção toda a prova produzida e analisada em audiência de julgamento (bem como todos os documentos carreados para os autos), apreciada segundo as regras da experiência comum e a livre convicção do Tribunal (art.ºs 127.º e 355.º do Cód. de Processo Penal), mas também tendo em atenção o valor conferido pela lei à prova pericial (art.º 163.º do mesmo código). Importa, contudo, primeiramente, expor o modo como deve proceder-se à correcta valoração da prova, sempre, na perspectiva, naturalmente, da livre apreciação da prova (com o concomitante imperativo da sua fundamentação). O artigo 32.º, n.º 2, primeira parte, da Constituição da República Portuguesa, estabelece o princípio da presunção de inocência, segundo o qual “todo o arguido se presume inocente até ao trânsito em julgado da sentença de condenação”. Este princípio “… não é mais um mero postulado ideal, mas um verdadeiro princípio de prova, directamente vinculante de todas as autoridades. Este princípio destina-se a proteger as pessoas que são objecto de uma suspeita ou acusação, garantindo que não serão julgadas culpadas enquanto não se demonstrarem os factos da imputação através de uma actividade probatória inequívoca. Só a prova dos factos imputados, obtida legalmente, pode servir para destruir a presunção provisória de inocência.” - Germano Marques da Silva – Curso de Processo Penal, Vol. II, Editorial Verbo, Lisboa, 1993, p. 89. Assim, “no plano estritamente processual probatório, a presunção de inocência significa que toda a decisão condenatória deve ser precedida sempre de uma mínima e suficiente actividade probatória, impedindo a condenação sem provas; significa além disso que as provas tidas em conta para fundamentar a decisão de condenação hão-de ser legalmente admissíveis e válidas e que o encargo de destruir a presunção de inocência recai sobre os acusadores e que não existe nunca ónus do acusado sobre a prova da sua inocência” - Aut. e Ob. Cit., p. 90. Este princípio tem, pois, como um dos seus corolários em matéria processual penal o princípio in dubio pro reo, que, por seu turno, impõe ao julgador a valoração em benefício do arguido de qualquer non liquet em questão de prova, sob pena de, ao invés, estar a impor-se um ónus probatório a cargo do arguido, baseado em uma presunção da sua culpabilidade - Aut. e Ob. Cit., p. 91. Do que se conclui que a prova, em processo penal, há-de fazer-se na perspectiva da ilisão da presunção “iuris tantum” de inocência. De qualquer modo, tal não afasta o supra identificado princípio da livre apreciação da prova, o qual baliza os limites à discricionariedade do julgador pelas regras da experiência comum e pela lógica do “homem médio” suposto pela ordem jurídica. Com efeito, conforme bem se escreve no Ac. do STJ de 10/01/2008, “de todo o modo, não haverá, na aplicação da regra processual da «livre apreciação da prova» (art. 127.º do CPP), que lançar mão, limitando-a, do princípio «in dubio pro reo» exigido pela constitucional presunção de inocência do acusado, se a prova produzida [Ainda que «indirecta».], depois de avaliada segundo as regras da experiência e a liberdade de apreciação da prova, não conduzir […] «à subsistência no espírito do tribunal de uma dúvida positiva e invencível sobre a existência ou inexistência do facto». O “in dubio pro reo”, com efeito, «parte da dúvida, supõe a dúvida e destina-se a permitir uma decisão judicial que veja ameaçada a concretização por carência de uma firme certeza do julgador» (cfr. Cristina Líbano Monteiro, «In Dubio Pro Reo», Coimbra, 1997). Até porque «a prova, mais do que uma demonstração racional, é um esforço de razoabilidade» (idem, p 17): «O juiz lança-se à procura do «realmente acontecido» conhecendo, por um lado, os limites que o próprio objecto impõe à sua tentativa de o «agarrar» (idem, p. 13). E, por isso, é que, «nos casos em que as regras da experiência, a razoabilidade («A prova, mais do que uma demonstração racional, é um esforço de razoabilidade») e a liberdade de apreciação da prova convencerem da verdade da acusação (Suscitando, a propósito, “uma firme certeza do julgador”, sem que concomitantemente “subsista no espírito do tribunal uma dúvida positiva e invencível sobre a existência ou inexistência do facto”.), não há lugar à intervenção da «contraface (de que a «face» é a «livre convicção») da intenção de imprimir à prova a marca da razoabilidade ou da racionalidade objectiva» que é o in dubio pro reo (cuja pertinência «partiria da dúvida, suporia a dúvida e se destinaria a permitir uma decisão judicial que visse ameaçada a sua concretização por carência de uma firme certeza do julgador» (idem). Ademais, «são admissíveis [em processo penal] as provas que não forem proibidas por lei» (art. 125.º do CPP), nelas incluídas as presunções judiciais (ou seja, «as ilações que o julgador tira de um facto conhecido para firmar um facto conhecido»: art. 349.º do CC). Daí que a circunstância de a presunção judicial não constituir «prova directa» não contrarie o princípio da livre apreciação da prova, que permite ao julgador apreciar a «prova» (qualquer que ela seja, desde que não proibida por lei) segundo as regras da experiência e a sua livre convicção (art. 127.º do CPP). […] […] E isso porque «a prova, mais do que uma demonstração racional, é um esforço de razoabilidade»: «no trabalho de verificação dos enunciados factuais, a posição do investigador-juiz pode, de algum modo, assimilar-se à do historiador: tanto um como o outro, irremediavelmente situados num qualquer presente, procuram reconstituir algo que se passou antes e que não é reprodutível». Donde que «não seja qualquer dúvida sobre os factos que autoriza sem mais uma solução favorável ao arguido», mas apenas a chamada dúvida razoável ("a doubt for which reasons can be given”)». Pois que «nos actos humanos nunca se dá uma certeza contra a qual não militem alguns motivos de dúvida». «Pedir uma certeza absoluta para orientar a actuação seria, por conseguinte, o mesmo que exigir o impossível e, em termos práticos, paralisar as decisões morais». Enfim, «a dúvida que há-de levar o tribunal a decidir pro reo tem de ser uma dúvida positiva, uma dúvida racional que ilida a certeza contrária, ou, por outras palavras ainda, uma dúvida que impeça a convicção do tribunal» (ibidem)” - Ac. do STJ de 10/01/2008, Proc.º N.º 07P4198, www.dgsi.pt. Posto isto, vejamos o que resultou do manancial probatório carreado para os autos e a concreta motivação do supra descrito. A informação da Ordem dos Médicos a fls. 227 a 234 relevou, essencialmente, quanto ao exercício da profissão de médico por parte do arguido e sua inscrição naquela ordem profissional, nomeadamente, no que tange à actividade de acupunctura, outrossim, quanto ao não reconhecimento, por aquela, da mesoterapia como especialidade médica. A certidão da matrícula da sociedade A..., L.da, a fls. 115 a 118, atendeu-se no que respeita à existência da mesma, sede social e localização, objecto social, qualidades de seu sócio e gerente por parte do arguido e exercício da actividade médica no seu âmbito, factualidade admitida pelo arguido nas declarações que prestou em audiência de julgamento. Em tais declarações, o arguido admitiu, outrossim, o emprego da técnica da mesoterapia, cujas essenciais características explicou e foram corroboradas, designadamente, pelos depoimentos das testemunhas KK, médico (clínica geral) e II, médica (medicina física e de reabilitação), bem como na consulta técnico-científica ao Conselho Médico-Legal (cfr. fls. 585 a 605, 617 e 618), tal não sendo, efectivamente, especialidade médica, mas uma técnica, encontrando-se, aliás, na tabela dos códigos de nomenclatura e valor relativo de actos médicos da Ordem dos Médicos, sob o código 90.10.00.05 (sendo o código 90 respeitante a actos de medicina física e de reabilitação) -http://ordemdosmedicos.pt/wpcontent/ uploads/2017/09/E2013_4424_Cirurgia_Geral_13_02_13.pdf. O emprego de tal técnica pelo arguido decorre, também, dos elementos constantes da certidão extraída dos autos com o n.º 933/07...., a fls. 266-B e ss., bem como do auto de busca e apreensão, a fls. 263 e 264, do auto de diligência forense em ambiente digital de fls. 328, 329 e CD a fls. 330 e dos documentos incorporados no CD a fls. 330, impressos e juntos a fls. 334 a 471. As declarações prestadas pelo arguido, em articulação com o depoimento da testemunha QQ, empresário (prestando serviços para uma empresa que fornece o arguido) e com o referido auto de busca e apreensão, a fls. 263 e 264, relevaram quanto ao uso do silício orgânico na apresentação MESOESTETIC – X Prof 013. A data de nascimento da ofendida, AA, assentou-se com base na cópia dos elementos clínicos a fls. 18 a 24, em articulação com a cópia do respectivo assento de óbito a fls. 16. A prestação dos actos médicos pelo arguido à ofendida decorreu das declarações prestadas pelo arguido em juízo, conjugadas com as declarações das demandantes FF e EE, filhas daquela, e com o depoimento prestado por NN, assistente de consultório, filha do arguido, e que para o mesmo prestava trabalho, ademais se atendendo ao teor das cópias das facturas/recibos juntos por cópia a fls. 18 a 24. No que respeita à concreta administração de MESOESTETIC – X Prof 013 efectuada pelo arguido no dia 02 de Julho de 2013, vicissitudes havidas subsequentemente na pessoa de AA e demais cuidados e prescrições efectuadas pelo arguido, assistência prestada pelo cirurgião vascular, assistência e internamento hospitalar e seus diversos eventos, o Tribunal considerou, além das declarações do arguido, aqueloutras outras consentâneas tomadas às demandantes FF e EE, e dos depoimentos das testemunhas JJ, médico cirurgião vascular, e LL, médica dermatologista, ao serviço do CHUC (tendo esta última prestado assistência à ofendida no âmbito do respectivo internamento hospitalar), tudo conjugado com os documentos clínicos e relatório do serviço urgência a fls. 33 a 98, 100, 101, 106 a 108, e 276 a 303 dos autos. Tais elementos clínicos e relatório, somados à cópia do assento de óbito a fls. 16, atenderam-se para a determinação do falecimento de AA. No que tange à génese do processo infeccioso culminando no referido óbito, o Tribunal atendeu ao confronto e à conjugação das declarações prestadas pelo arguido em audiência de julgamento, com os depoimentos das testemunhas KK, médico (clínica geral), RR, médico (cirurgia geral), irmão do arguido, II, médica (medicina física e de reabilitação), com os esclarecimentos tomados em juízo ao Ex.mo Perito GG, com a informação do Infarmed a fls. 110, 111, 235 a 239, 267 a 275, 478 a 484, e 491 a 494, informação e parecer da Entidade Reguladora da Saúde a fls.171 a 187, e 195 a 214, folheto informativo respeitante ao produto MESOESTETIC – X Prof 013, a fls. 312 e ss., e sendo de primacial relevo a consulta técnico-científica ao Conselho Médico Legal, a fls. 585 a 605, e 617 e 618, assim como os esclarecimentos ulteriormente prestados, a fls. 1049. Assim, resulta, de modo claro, da conjugação daqueles elementos clínicos e da referida consulta técnico-científica que a génese de todo o processo infeccioso que veio a culminar com a morte de AA foi o procedimento de administração do produto MESOESTETIC – X Prof 013 (a par do anestésico Lidojet), onde se esclarece que o quadro infeccioso se instalou ao longo de 16 (dezasseis) dias, e desde o dia 02/07/2013, e adiantando que, mesmo sendo “possível que as lesões sofridas pela ofendida possam ter sido causadas por outro motivo que não a administração subcutânea no local das lesões de produtos usados na mesoterapia, como uma pequena escoriação ou uma ferida na pele ou consequência dum traumatismo local”, o subsequente esclarecimento (fls. 1049) arreda tal possibilidade ante os elementos entretanto carreados para os autos (como a administração de Lovenox por via injectável no abdómen ou a queda entretanto havida), sendo, aliás, notório que, nessas ocasiões, o quadro infeccioso já estava instalado e, portanto, com origem anterior, precisamente, o acto praticado pelo arguido. Neste conspecto, cumpre salientar o particular valor da prova pericial produzida, em decorrência do art.º 163.º do Cód. de Processo Penal (“1 - O juízo técnico, científico ou artístico inerente à prova pericial presume-se subtraído à livre apreciação do julgador. 2 - Sempre que a convicção do julgador divergir do juízo contido no parecer dos peritos, deve aquele fundamentar a divergência”), consoante bem se escreve no Ac. da RC de 11/05/2016: “ainda que se considere que a única prova pericial é o Parecer do Conselho Médico-Legal do Instituto de Medicina Legal. Estabelece o artigo 159º do CPP que: «1- As perícias médico-legais e forenses que se insiram nas atribuições do Instituto Nacional de Medicina Legal são realizadas pelas delegações deste e pelos gabinetes médico-legais. 2 - Excepcionalmente, perante manifesta impossibilidade dos serviços, as perícias referidas no número anterior podem ser realizadas por entidades terceiras, públicas ou privadas, contratadas ou indicadas para o efeito pelo Instituto. (…)» Com efeito, segundo a Lei Orgânica do Instituto Nacional de Medicina Legal e Ciências Forenses, I.P, (Dl n.º 166/2012, de 31 Julho) compete ao conselho médico-legal exercer funções de consultadoria técnico-científica e emitir pareceres sobre questões técnicas e científicas no âmbito da medicina legal e de outras ciências forenses – art. 7º, n.º 1, als. a) e b). Acrescentando o n.º 2 que A consulta técnico-científica pode ser solicitada pelo membro do Governo responsável pela área da justiça, pelo Conselho Superior da Magistratura, pela Procuradoria-Geral da República ou pelo presidente do conselho diretivo do INMLCF, I.P.. Quanto à apreciação da prova indiciária há a considerar os seguintes preceitos do Código de Processo Penal: Artigo 127º «Salvo quando a lei dispuser diferentemente, a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade julgadora.». Artigo 151º «A prova pericial tem lugar quando a percepção ou apreciação dos factos exigirem especiais conhecimentos técnicos, científicos ou artísticos.». Artigo 163º «1- O juízo técnico, científico ou artístico inerente à prova pericial presume-se subtraído à livre apreciação do julgador. 2- Sempre que a convicção do julgador divergir do juízo contido no parecer dos peritos, deve aquele fundamentar a divergência.» Portanto, a prova pericial é uma excepção ao princípio da livre apreciação da prova previsto no artigo 127º do CPP pois, aquela só pode ser afastada quando o julgador fundamentar a divergência, conforme artigo 163º do mesmo diploma. A este propósito escreveu o Prof. Germano Marques da Silva ([21]) que “a presunção que o artigo 163º n.º 1 consagra não é uma verdadeira presunção, no sentido de ilação, o que a lei tira de um facto conhecido para firmar um facto desconhecido; o que a lei verdadeiramente dispõe é que, salvo com fundamento numa crítica material da mesma natureza, isto é, científica, técnica ou artística, o relatório pericial se impõe ao julgador. Não é necessária uma contraprova, basta a valoração diversa dos argumentos invocados pelos peritos e que são fundamento do juízo pericial. Compreende-se que assim seja. Com efeito, se a lei prevê a intervenção de pessoas dotadas de conhecimentos especiais para a valoração da prova, seria de todo incompreensível que depois admitisse que o pressuposto da prova pericial não tivesse qualquer relevância, mas já é razoável que o juízo técnico, científico ou artístico possa ser apreciado na base de argumentos da mesma natureza”. Como escreveu Figueiredo Dias ([22]) «se os dados de facto que servem de base ao parecer estão sujeitos à livre apreciação do juiz – que, contrariando-os, pode furtar validade ao parecer – já o juízo científico ou parecer propriamente dito só é passível de uma crítica igualmente material ou científica. Quer dizer: perante um certo juízo cientificamente provado, de acordo com as exigências legais, o tribunal guarda a sua inteira liberdade, no que toca à apreciação da base de facto pressuposta; quanto, porém, ao juízo científico, a apreciação há-de ser científica também, e estará, por conseguinte, subtraída em princípio à competência do tribunal». “O perito realiza quase sempre um prévio labor perceptivo sobre os factos e objectos a respeito dos quais deve emitir o seu relatório. Por conseguinte o perito é, antes de mais, um percepcionador ou, nas palavras de Stein, é um receptor da prova nos mesmos termos que o juiz porquanto examina com os seus próprios sentidos os factos e objectos sobre os quais recaiu ou vai recair a actividade probatória das partes” ([23]).” - Ac. da RC de 11/05/2016, Proc.º N.º 3211/11.0TALRA.C1, www.dgsi.pt. Já vimos que a mesoterapia, não sendo especialidade médica, é, indubitavelmente, um acto médico (cfr., também, o texto da consulta técnico-científica efectuada nos autos com o n.º 933/09...., junto por certidão, a fls. 266-u e 266-v: “A mesoterapia consiste na injecção por baixo da superfície cutânea (mesoderme) de pequenos volumes de fármacos, mediante agulhas muito curtas e finas, ligadas a seringas convencionais ou a seringas mecânicas próprias para o efeito”), aliás, utilizado sobretudo no âmbito da medicina física e de reabilitação, como realçou a testemunha II, mas, também, da reumatologia, sendo esclarecedor a consulta técnico-científica a fls. 586 e ss.: [a mesoterapia] “é geralmente usada em clínicas de estética e é realizada por médicos, técnicos e enfermeiros com formação específica na área. Inclui a administração de fármacos por meio de múltiplas injecções entra-cutâneas, com objetivo de tratar algumas doenças e proporcionar a eliminação de sinais e/ou sintomas associados. A mesoterapia músculo esquelética visa o controle da inflamação e da dor, através da aplicação, na forma injectável, de anti-inflamatórios não-hormonais, relaxantes musculares, vasodilatadores, anestésicos, entre outros. Trata-se de uma técnica médica posta em prática pelo Dr. Michel Pistor, médico francês em 1952 e que consiste em injectar medicamentos em doses muito baixas, convencionais ou homeopáticos, cujos ingredientes podem variar, mas que englobam normalmente extractos de plantas, vitaminas, minerais, na camada média da pele, o mais perto possível do local a tratar, com o mínimo de efeitos indesejáveis, sem envolver outras áreas do organismo. A técnica de Mesoterapia tem sido aplicada com objectivos terapêuticos, nomeadamente no tratamento de dor e inflamação local. As principais indicações para Mesoterapia em Reumatologia. são: tendinites, bursites, artropatias degenerativas (osteoartrose), lombalgias, mialgias e contraturas musculares. Tem sido usada para tratar alguns doentes reumáticos no Instituto Português de Reumatologia há vários anos, complementando outras terapêuticas. A mesoterapia é usada, igualmente, com fins estéticos, sendo considerada um dos tratamentos mais eficazes para combater a celulite e depósitos de gorduras em certas áreas corporais, como parede abdominal, face e pescoço”. Não obstante, prosseguindo a leitura do mesmo texto, “têm sido descritas reações adversas graves, como hepatite tóxica, toxicodermia e epídermólise neurótica. Pode ainda provocar prurido e vermelhidão no local de aplicação. Embora, em 1987, a Academia Francesa de Medicina tenha reconhecido a mesoterapia como parte da medicina convencional, após terem sido descritos muitos casos de infeções por micobactérias, as autoridades sanitárias francesas mostraram preocupação pela falta de provas científicas controladas. No 13 de Junho de 2011 a lei Nº 2011-382 do Ministério de Saúde francês proibiu o seu emprego no tratamento da adiposidade subcutânea. A técnica foi recentemente desautorizada no Brasil e na Índia, dois dos principais mercados da mesoterapia para tratamento estético”, de qualquer modo, como salientou II, em decorrência do seu uso generalizado por esteticistas e não por médicos. Sucede, porém, que a administração efectuada pelo arguido não foi de um produto, melhor dizendo, de um medicamento, destinado a ser aplicado por via injectável (ainda que mediante a supra descrita técnica), mas de um produto cosmético destinado pelo próprio fabricante a administração por via tópica, conforme explicado no próprio folheto informativo e realçado nas informações prestadas aos autos pelo Infarmed, isto, independentemente, da possível existência de outras apresentações de silício orgânico destinadas à aplicação por via intradérmica (como se afigura que existam ou tenham existido, como relatado pelas testemunhas II e KK, o que, aliás, é plausível luz do relevo de tal substância mencionado na consulta técnico-científica: “participa na biossíntese de certas moléculas, tais como o colagénio, a elastina e o ácido hialurónico e, por conseguinte, na formação de todos os tecidos em que essas moléculas desempenham um papel relevante, ou seja, o tecido conjuntivo em geral e, muito em particular, as cartilagens, os ossos e a pele, pelo que podemos concluir que tem acção sobre as articulações atrasando o envelhecimento da cartilagem e melhora a mobilidade e a flexibilidade das articulações. Sobre os ossos contribui para a calcificação óssea, sendo um estimulante do processo de mineralização”). Das características daquela apresentação do produto decorre que o arguido, necessariamente, pela sua formação e exercício da actividade profissional, tinha que ter conhecimento das mesmas e, portanto, estava dotado de plena aptidão para cumprir o dever objectivo de cuidado que se lhe impunha, abstendo-se de empregar aquele produto com aquela concreta apresentação, não se descortinando que não pudesse deixar de prever que daquela administração pudesse decorrer um processo infeccioso, aliás, como de qualquer punção na pele, como referido na consulta técnico-científica e realçado unanimemente pelas testemunhas médicas inquiridas. Especificamente para manter provada a matéria dos pontos 42 e 43 da factualidade provada motivou-se no Douto Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, que “na resposta aos pedidos de esclarecimento (fls. 617 e seguintes) à Consulta Técnico-Científica consta que podemos afirmar que há um nexo de causalidade entre as aplicações por via injectável de silício orgânico na região gemelar esquerda e na região lombar e o desenvolvimento do quadro infecioso que se seguiu e que levou ao desenvolvimento do quadro de fasceíte necrosante, com choque séptico, falência multiorgânica e morte. Já em sede de julgamento o Sr. Perito, Dr. GG, prestou esclarecimentos tendo reafirmado a sua posição, afirmando que a única forma da bactéria entrar foram os injectáveis. Esclareceu que o nexo de causalidade não tem nada a ver com a informação do Infarmed, tem a ver com a existência de duas portas de entrada. Disse que o facto de ser injecção, até podia ser injecção de água, não tem nada a ver com o silício. Posteriormente ao julgamento e depois de confrontado com os elementos/documentos juntos aos autos, voltou o Sr. Perito a prestar esclarecimentos, como resulta de fls. 1049. Reafirmou que o produto Mesoestetic Ampolas regeneradoras de silício orgânico deve ser aplicado sobre a pele a tratar. Mais disse que, pela análise dos depoimentos e da bibliografia que nos foram fornecidos, ficamos informados que há médicos que aplicam este produto pela via injectável, em microinjecções na região dolorosa, off-label, por sua iniciativa, que afirmaram que o seu uso não está autorizado nos hospitais do SNS. Em conclusão, afirmamos que o uso deste produto deve seguir as recomendações do folheto informativo e ser aplicado somente por via tópica, conforme a informação fornecida pelo Infarmed sobre este caso, que considerou a aplicação por via injectável “indevida/ilegal”. Daqui extraiu o Tribunal da Relação de Coimbra que “AA contraiu a infecção em virtude, por via, da aplicação injectável do produto silício. Essa infecção veio a causar uma infecção generalizada no corpo e consequente morte. Não se afirma que a infecção foi causada pelo produto em si, mas pelo procedimento de administração desse produto. As injecções foram a porta de entrada da dita bactéria. É o que resulta igualmente da motivação da sentença recorrida quando se refere que a génese de todo o processo infeccioso que veio a culminar com a morte de AA foi o procedimento de administração do produto MESOESTETIC – X Prof 013. Aliás, o arguido, quando presta declarações em sede de julgamento, também afirma que a causa da morte não foi a administração do silício mas a infecção que a Sra teve, não se sabe ainda bem porquê. Admite que tenha sido derivada de uma infecção que tenha ocorrido no seguimento de um tratamento médico que fez à senhora. Só não aceita é que a causa tenha sido a administração do silício. Como disse, a infecção não foi da injecção do silício. A infecção resultou, eventualmente, das picadas. Um tratamento que implica injeções pode implicar efeitos secundários. Disse ainda: No momento em que eu vou ferir a pele pode acontecer que uma bactéria consiga entrar por esse ferimento, mas é do ferimento em si e não propriamente do produto que é inócuo e não foi ele seguramente que desencadeou a infecção.” Por esse motivo (como supra se referiu) o Tribunal da Relação de Coimbra manteve provada a matéria dos pontos 42 e 43 da factualidade provada.
O mesmo sucedendo com o ponto 44 da factualidade provada, para tanto alicerçando o Douto Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra “o documento de fls. 456 e seguintes da “Mesoestetic Grupo Pharma”, onde se refere de forma bem explícita que deve ser dado um uso tópico ao produto. Deve aplicar-se o conteúdo com os dedos, com suaves massagens circulares até à absorção completa. E não é o facto da caixa do produto nada dizer nesse sentido que invalida o que fica dito. Aliás, o arguido, caso tivesse dúvidas sobre a aplicação do produto, deveria informa-se do seu correcto modo de aplicação, mormente junto do fornecedor. Também o Infarmed, nas informações que prestou a fls. 235, afirma que as substâncias contidas no produto Mesoestetic-XProf.013-Ampolas regeneradoras de silício orgânico-5 ml não se destinam a ser injectadas. A administração por via intradérmica ou injectável desse produto é considerada uso indevido/ilegal, sendo necessário averiguar as circunstâncias dessa utilização. Não é o facto de outros médicos aplicarem o produto por via injectável que faz desse modo de aplicação um modo correcto ou legal.” * Especificamente para manter provada a matéria dos pontos 45, 46, 47 e 48 da factualidade provada[10] motivou-se no Douto Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra: “Como resulta das declarações do arguido em sede de julgamento, este sabia que o produto não era reconhecido pelo Infarmed. Por outro lado, o facto de o injectar há vários anos e de outros colegas o fazerem, não o transforma em produto injectável, como se disse. Como também não é crível que o arguido não soubesse da posição do fabricante do produto, acerca da administração do mesmo. Assim, e por agir em desconformidade quer com a posição do Infarmed quer com a posição do fabricante do produto, o arguido sabia que violava as leges artis. Não agiu com o cuidado e atenção que lhe eram exigíveis e de que era capaz. Relativamente à Consulta Técnico-Científica levada a cabo no Processo nº 933/09...., junta aos presentes autos por certidão a fls. 353-354, diga-se que a mesma teve em consideração o caso concreto desse processo. A Consulta Técnico-Científica a considerar nos presentes autos é a elaborada no âmbito destes autos, onde se analisa a situação sub judice.” Aqui chegados, importa agora motivar a redacção dos pontos 49 a 52 dada como assente, objecto do reenvio para este segundo julgamento. Importa, desde já, referir que a prova não pode ser analisada de forma compartimentada, segmentada, atomizada, mas, ao invés, dever ser valorada na sua globalidade, estabelecendo conexões, conjugando os diferentes meios de prova e não desprezando as presunções simples, naturais ou hominis (que são meios lógicos de apreciação das provas e de formação da convicção) podendo a convicção do tribunal tanto assentar em prova direta do facto como em prova indiciária da qual se infere o facto probando[11], aqui se concordando plenamente com a posição do Acórdão do Tribunal da Relação de Porto de 09-12-2015 (proc. nº676/13.9GAMCN.P1), acessível na dgsi, de que “As provas não têm forçosamente que criar no espírito do julgador uma absoluta certeza dos factos a provar – certeza essa que, muitas vezes, seria impossível, ou quase impossível de alcançar. O que é necessário é que as mesmas indiquem um grau de probabilidade tão elevado que se baste como certeza possível para as necessidades da vida, de forma a se poder concluir, sem dúvida razoável, que um indivíduo praticou determinados factos.” Como resulta da abundante prova[12] (documental, pericial, testemunhal e até por declarações do próprio arguido) a mesoterapia comporta riscos. Tais riscos podem ser atribuídos ao fármaco (como o caso das alergias, de flush localizado ou generalizado, náuseas, vómitos, cefaleias e necrose cutânea), mas também podem ser induzidas pela própria técnica (e nestas contam-se as infecções, como as foliculites, abcessos, celulite)[13]. No caso em apreço, de acordo com o objecto do conspecto factual definido pelo Douto Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra[14], não importará já debruçar-se este Tribunal sobre os riscos atribuídos ao fármaco, reiterando-se que, segundo o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, a vexata quaestio que importa dilucidar prende-se com a administração das injecções, e já não com a natureza do produto. Sobre a própria técnica, em declarações, foi o próprio arguido a referir que “existe um protocolo no procedimento que pode ter alguma perigosidade para a pessoa”. Ora, apesar destes riscos sempre existirem, cabe ao médico despender todos os esforços e adotar todas as cautelas no sentido de minimizar a possibilidade da sua ocorrência e de prestar ao doente o tratamento nas condições mais seguras possíveis. Tais condições dependem, nomeadamente, do cumprimento do protocolo médico e regras de higienização do local/material de tratamento e, também, da diligência a adotar pelo próprio médico, com base na experiência e vastos conhecimentos que se confiam que um profissional que, à data, exercia há 34 anos tenha. Cumpre, portanto, ao tribunal analisar o procedimento de administração do silício. Para melhor explanação da fundamentação, importa atender aos seguintes elementos: Como resultou da prova produzida (e se encontra já assente) de entre as técnicas alternativas praticadas na clínica do arguido, e apesar de não ser reconhecida como especialidade médica pela Ordem dos Médicos, o arguido fazia uso de técnicas de Mesoterapia, que consistem em injectar medicamentos em doses muito baixas, entre a epiderme e a derme. Pelo menos desde 2012, AA, nascida em ../../1923 (na altura do tratamento em apreciação, com 89 anos) recorreu aos serviços médicos prestados pelo arguido naquela clínica, com o propósito, entre o mais, de debelar as dores que sentia na zona dos membros inferiores e na zona lombo sagrada (vulgo dor ciática). Os tratamentos de mesoterapia na perna esquerda e na zona lombo sagrada eram feitos com a administração de injecções de ilício orgânico (ampolas regeneradoras melhor identificadas nos factos provados) aplicadas com agulhas especificas (microagulhas) No dia 02 de Julho de 2013, AA efectuou uma nova sessão de tratamentos, com injecção, através da técnica da Mesoterapia, de silício na região dos gémeos da perna esquerda e na região lombar, que lhe foi administrada pelo arguido, na sua clínica de ...; No dia 03 de Julho de 2013, AA sentiu dores localizadas e uma ligeira inflamação nas zonas onde o arguido, no dia anterior, lhe havia administrado as referidas injecções de silício; Ora, logo no dia seguinte a esta sessão de mesoterapia, e precisamente nos dois locais em que foi administrada esta técnica, houve aparecimento de inflamação (calor, eritema) para além da manifestação de dor. Ora, este quadro inflamatório e doloroso não deixa qualquer margem para dúvidas de que as queixas se relacionam com o procedimento efetuado. Ao procedimento de administração do produto referiram-se sobretudo as testemunhas com formação médica, KK e II. Assim, II (médica de medicina física e de reabilitação aposentada, que durante cerca de duas décadas praticou esta técnica de mesoterapia no Hospital de S. José, em Lisboa) elucidou o tribunal acerca do procedimento de aplicação desta técnica, referindo que os cuidados são os seguintes: - deve proceder-se à desinfeção da pele, com bétadine ou um soro alcoólico, salientando que se houve uma desinfeção com um dos produtos mencionados, a diferença de temperatura é sentida pelo doente. - não se pode picar em pele lesada, verruga, sinal, mas apenas em pele sã; - deve utilizar-se material esterilizado, costumando a seringa e ampolas virem em embalagens unipessoais que são descartáveis. Mais referiu que no tratamento são aplicadas várias picadas na zona a tratar, de cm a cm, podendo ir de 20 até 60 picadelas (ou mais), dependendo do doente, o que significa o mesmo número de portas de entrada no organismo. Todavia, considerou que se se tiver de aplicar em duas zonas distintas, pode usar-se a mesma agulha. Mais esclareceu que depois da aplicação do tratamento, a zona da pele não tem que ser coberta. Passa-se desinfetante e a “porta fechou”. Não há perigo dessa zona vir a ser uma zona de entrada de bactérias porque a agulha utilizada é muito “fininha”, tendo salientado que o risco de entrada de bactérias ocorre logo na picada (ainda que viesse a admitir mais à frente que, em termos teóricos, esta picada pudesse ser uma porta de entrada, referiu ser ínfimo o risco de tal suceder)
De igual forma, o depoimento da testemunha de defesa KK (médico, colega de curso e amigo do arguido de longa data; que já executou esta técnica durante alguns anos em Portugal, após ter frequentado o 1º curso realizado no nosso país, em out/nov. de 1989, ministrado pela sociedade francesa) recaiu sobre o procedimento prévio à aplicação da mesoterapia, esclarecendo que a pele tem que estar limpa, desinfetada com recurso a produtos desinfetantes; as mãos devem estar desinfetadas e preferencialmente devem ser usadas luvas, as quais também devem ser desinfetadas com álcool; e os fármacos devem estar dentro do prazo de validade. Esclareceu que os materiais usados são: (1) seringas com agulhas para a administração directa do tratamento através da pele do paciente, as quais por norma são descartáveis e esterilizadas; (2) seringa de transferência com uma agulha diferente (mais longa) para extracção dos fármacos de cada uma das ampolas para obter a substância a utilizar. O depoimento das filhas da ofendida, EE e FF, ambas farmacêuticas, relevou sobretudo pelos desabafos que relataram ter ouvido da boca da falecida mãe (atendíveis em face do disposto art. 129º, nº1, in fine, do CPPenal) sobre o não cumprimento escrupuloso por parte do arguido dos cuidados de assepsia necessários à administração injetável do produto, e que, ainda que se prendessem sobretudo com a desinfeção da pele, se crê extensível à desinfeção das mãos do próprio arguido, da utilização de luvas, e bem assim, da desinfeção destas e de todo o material usado não descartável, e assim, não esterilizado de origem. Ambas referiram que a mãe lhes relatou, desde o 1º tratamento de mesoterapia, que o médico não desinfetava a pele, e o incómodo e desconforto que isso lhe causava. Compreende-se a perceção desta falta/insuficiência de desinfeção porque EE era farmacêutica e tinha naturalmente experiência em administrar injeções na farmácia, sendo, por isso, sabedora das regras que devem ser seguidas. De igual forma, se compreende que a falecida, pessoa de outra geração, não tenha chamado a atenção do aqui arguido devido ao legítimo receio de o ofender profissionalmente. Ora, pese embora estas inoculações terem sido aplicadas quando a falecida estava deitada na marquesa de barriga para baixo – uma vez que as zonas a tratar se situavam na parte posterior da perna e na zona lombar –, não se tem qualquer dúvida que a mesma “sentiria” [todos os produtos com álcool dão a sensação de frio] a aplicação de álcool na pele, maxime álcool de 70% , o qual não é tão volátil como o de 90%, e por isso fica mais tempo na pele, sendo absolutamente percetível a diferença de temperatura. Cremos, aliás, ser de conhecimento de todos, a necessidade de grande assepsia na administração das normais injeções. Cuidados de assepsia esses que devem ser especialmente seguidos na técnica de mesoterapia em que são utilizadas várias agulhas em cada um dos locais a tratar. Do cruzamento dos depoimentos destas duas últimas testemunhas, ambas com formação de farmácia (que sublinharam a necessidade de desinfeção da pele com álcool a 70º, seguida de imediato de inoculação), com os depoimentos das duas testemunhas com formação médica supra referidas, e ainda com o teor do Acórdão do Conselho Superior da Ordem dos Médicos[15] de fls. 1590 a 1631 (onde se menciona expressamente que a esterilização deve ser efetuada apenas com álcool a 70%), percebe-se que o arguido estava obrigado à esterilização, quer do local, quer de todos os instrumentos utilizados no tratamento, onde se incluem as habituais luvas de látex, a seringa de transferência e respectiva agulha (mais longa), as ampolas, e o próprio tabuleiro onde aqueles instrumentos são pousados, com álcool de 70%. Com efeito, neste conspecto, o arguido, quando prestou declarações sobre o procedimento, começou por dizer que “há um protocolo no procedimento que pode ter alguma perigosidade para a pessoa”, fazendo parte do mesmo, “a desinfeção e a utilização das luvas”. Todavia, propugnou que efetuou esses procedimentos: esterilização, utilização das luvas, e cuidados de assepsia. Não obstante, o seu relato não se mostrou fluido, espontâneo, coerente, nem convincente. Pese embora se creia que o protocolo de atuação no ato médico seja “rotineiro”, como salientou o arguido, tal não implica que seja necessariamente seguido. O que decorre de juízes de experiência comum é, precisamente, o inverso – a ocorrência de alguma “leveza”, facilitismo e até incúria no seguimento à risca de todo o iter procedimental. Ora, quanto ao facto de ter efetuado a esterilização, não se compreende essa sua afirmação, porque, como alegou, tratando-se de seringas e agulhas descartáveis as mesmas já vêm esterilizadas. Não seria necessário desinfetar material que já viria, à partida, esterilizado de origem (seringas e agulha para a inoculação), a não ser que os invólucros estivessem abertos ou corrompidos. Quanto à adoção dos últimos cuidados (uso de luvas desinfetadas e cuidados de assepsia do local e material), temos que a conjugação das declarações do arguido com a restante prova documental não permite concluir que assim tenha acontecido. Foi evidenciado pela falecida AA o desconforto e estranheza sentidos quanto à falta de desinfeção da pele aquando dos tratamentos de mesoterapia, e desde o seu início, junto das filhas, as aqui assistentes EE e FF (ambas com formação superior em Farmácia). Na verdade, embora não existam testemunhas oculares do tratamento – sendo o arguido a única pessoa viva, neste momento, que nele esteve presente –, e embora o arguido negue a falta de esterilização/desinfeção do local/material utilizado e uso de luvas, a verdade é que é o próprio a admitir que não utilizou, nos cuidados de assepsia do local, material e instrumentos utilizados (não descartáveis, como o caso das ampolas, ou da seringa de transferência, ou do próprio tabuleiro onde pousou o material…) a solução alcoólica exigível: a esterilização do local deveria ter sido efetuada com álcool a 70º e o próprio admitiu que usou álcool a 90º ou Álcool Isopropílico – ambas as soluções alcoólicas não aconselhadas. De fazer notar que o Álcool Isopropílico notoriamente é um produto de limpeza profissional, ideal para a manutenção de componentes eletrónicos, vidros, inox e outros metais, e não para a desinfeção de locais/materiais associados a procedimentos médicos. O arguido, de forma pouco cautelosa, também não contaria com nenhuma assistente no manuseamento/desinfeção do material utilizado (cfr. declarações do arguido e de NN). De notar que ambas as soluções que o arguido diz ter utilizado têm em comum o facto de apresentarem uma secagem rápida, ficando este tribunal com a convicção de que o arguido escolheu mencioná-las, nas suas declarações, por conta da “questão sensitiva” causada na pele, na tentativa de fragilizar os depoimentos das filhas da paciente, apresentando uma explicação para a queixa daquela sobre a não desinfeção (explicação que consistiria na ausência da sensação de frio da aplicação do álcool na pele por conta da sua secagem mais rápida). Ainda a propósito da desinfeção do local após a realização da injeção, o arguido tentou também nas suas declarações demonstrar aquilo que considera “incongruências” nos depoimentos das duas filhas de AA, sobre a “forma como a mesma aparecia depois do ato médico”, referindo-se ao facto de uma delas ter dito que nunca viu a mãe a sair do tratamento com “penso”, e de outra dizer que julga ter visto a mãe com um “penso na perna”. Trata-se de uma evidente minudência, sem relevo, até porque ficou suficientemente claro que a zona tratada não tem que ser “tapada”, como explicou a testemunha médica II. Ademais, o arguido quando prestou declarações em sede de julgamento, admite nas que “deu 2 picadas em cada uma das zonas (lombar e perna), e que, ambos os locais desenvolveram o mesmo processo infeccioso que evoluiu”. Portanto, é o próprio arguido, quando presta declarações a admitir também “não ter qualquer dúvida que a porta de entrada da infeção foram as picadas, nem nunca teve”. Ou seja, que a causa da morte esteve nas infecções que AA levou. Embora, não apresente qualquer justificação plausível para tal ocorrência, admitiu que as “picadas” foram a porta de entrada, admitindo assim que quando picou/feriu a pele uma bactéria conseguisse entrar por esse ferimento. Mais admitiu que a seguir à inoculação (introdução do líquido) desinfeta a pele; e que no momento em que dá a picada “pode ter apanhado alguma bactéria”. Aliás, adiantou, num primeiro momento, que não tem explicação para a infeção. Ora, partindo da versão do arguido que procedeu à desinfeção da pele após a inoculação, então o risco de a bactéria ter entrado em momento posterior é praticamente inexistente. Neste conspecto, importa trazer à colação os esclarecimentos prestados pela médica II quando explicou que “passa-se desinfetante e a porta fechou”, que “não há perigo dessa zona vir a ser uma zona de entrada de bactérias porque a agulha utilizada é muito “fininha” e que “o risco de entrada de bactérias é logo na picada”. O arguido também não apresenta propriamente uma explicação lógica para o aparecimento do quadro infecioso, que se sucedeu com grande imediatismo ao tratamento, para mais, em ambos os locais das injeções. Acresce que a explicação que tentou apresentar num segundo momento, aderindo a uma tese teórica, ventilada nessa sessão de julgamento, pela testemunha KK[16], segundo a qual a paciente poderia ser portadora de uma inflamação na própria pele (estar a desenvolver-se uma infeção subcutânea), da qual não se apercebeu, em virtude de, aparentemente, não haver sinais de infeção, e, da possibilidade do transporte bacteriano de uma zona da pele para outra através da seringa, ainda mais inverosímil se mostra. Pois bem, é que esta explicação implicaria que a bactéria tivesse sido transportada através da seringa, da primeira zona inoculada, para a segunda zona inoculada, através das inoculações sucessivas do produto em local diferente. Todavia, para além desta explicação ser por si só muito frágil (tese não comprovada), a verdade é que também colide com a própria versão apresentada pelo arguido, o qual veio dizer que usou duas seringas em cada uma das zonas. Ora, se usou seringas diferentes em cada uma das zonas, cai por terra a explicação (apenas colocada em tese) aflorada pela testemunha KK da bactéria poder ter sido transportada, durante o tratamento, de um local do corpo para o outro (zona lombar/perna, ou vice-versa). Acresce dizer que, como explicou o arguido, tratar-se-ia da 2ª fase de tratamentos de mesoterapia, e ia na 6ª sessão de um total de 8 sessões que previu fazer a AA. Logo, a existir algum processo inflamatório subcutâneo prévio, estamos em crer que ele seria visível antes da aplicação da mesoterapia, porque como explicaram os médicos testemunhas, KK e II existem sinais visíveis na simples observação da pele e, nessa situação, não deveria ter sido administrado a substância como boa prática médica. Ambos os médicos deram conta que não se pode “picar” em pele lesada, mas apenas em pele sã. Ora, excluída esta hipótese de infecção subcutânea prévia, a verdade é que o médico KK (testemunha de defesa, colega e amigo do arguido há muitos anos), questionado acerca da possível justificação para o desenvolvimento de um quadro infecioso nos dois locais onde foram administradas as injeções, admitindo que ambos constituíram porta de entrada da bactéria, disse não ter resposta. E não tem resposta, porque em face do decurso dos acontecimentos analisados à luz dos juízes de experiência comum, não existe outra resposta que não seja que o arguido enquanto médico não despendeu todos os esforços, nem adotou todas as cautelas no sentido de minimizar a possibilidade da ocorrência da infecção e de prestar à doente o tratamento nas condições mais seguras possíveis, incumprindo o protocolo médico e as regras de higienização do local/material de tratamento e, também, não adotando a diligência a necessária, com base na sua experiência e vastos conhecimentos que se exigem a um profissional que exerce a sua profissão há cerca 34 anos (na altura). De notar que foi precisamente no local (costas e perna esquerda) onde o silício havia sido injectado pelo arguido, através de duas seringas, que no dia seguinte à aplicação AA sentiu dores e inflamação e em que apareceram, e que dois dias depois se consolidou a auréola e mancha vermelha (nas costas) e o edema (da perna esquerda), tudo num quadro de agravamento das dores e de dificuldade em movimentar-se. Fica também por responder porque motivo o arguido no dia 5 de julho de 2013, após observação da doente, o arguido decidiu (em clara má prática clinica) aplicar-lhe “manga pneumática” na perna esquerda, durante 40 minutos, quando, no mesmo dia, lhe disse que ela tinha uma infeção nas zonas afectadas [ainda que só lhe prescrevesse a aplicação de Feducine H[17] e aplicação de gelo nessas partes do corpo, em vez do antibiótico ciproxina 500 mg, o qual apenas lhe veio a prescrever (pelo telefone!) telefonicamente 6 dias depois do tratamento, e 3 dias depois da pomada, e, sem prescrever quaisquer análises/exames suplementares para completar o diagnóstico, como deveria caso tivesse adoptado a diligência necessária. Este último aconselhamento (análises/exames suplementares para completar o diagnóstico) justificava-se em face da avançada idade da paciente AA [estava a apenas 3 meses de completar 90 anos], e do seu estado claramente débil (o arguido deveria ter tido especialmente em conta que com o avançar da idade a pele é mais fina e poderá mais facilmente ocorre dano cutâneo) e visto o agravamento do seu estado clínico ao longo desses dias que se sucederam ao tratamento. Agravamento esse que voltou a ocorrer no dia 8 de julho (de que o informou) e que despoletou que no dia seguinte (9 de julho) viesse a dar entrada, com um quadro clinico critico, nas urgências do hospital, e que na sequência dos exames de diagnóstico, aí finalmente realizados, veio apurar-se da gravidade do seu estado clinico (descrito no facto 33); e que na sequência da avaliação clínica efetuada tivesse sido proposta terapêutica cirúrgica urgente (amputação do membro inferior esquerdo e o desfridamento dos tecidos moles da região lombar); quadro clinico este que se deteriorou inexoravelmente, culminando com a sua morte no dia 18 de julho de 2013. Acresce dizer que mesmo no regime da responsabilidade delitual, admite-se uma inversão do ónus da prova da culpa quando forem utilizados meios perigosos (caso das punções com agulhas): nesta situação incumbe, conforme se dispõe no art. 493º, nº 2, do Código Civil, a quem os usou provar que empregou todas as providências exigidas pelas circunstâncias com o fim de prevenir os danos causados”[neste sentido, MIGUEL TEIXEIRA DE SOUSA in “Sobre o ónus da prova nas acções de responsabilidade civil médica” cit., pp. 137 in fine e 138.]. Porque, a não ser assim, a imposição, às filhas da falecida ofendida AA – que não estiveram presentes nos tratamentos –, da prova da não esterilização do local e de todo o material usado tratar-se-ia de fazer impender sobre si uma “prova diabólica”, e, nessa medida, impossível e inadmissível. * Da concatenação de toda a prova produzida com todo o conspecto factual já consolidado, parece emergir, com suficiente grau de certeza, que existiu todo o um processo anómalo que se iniciou com esta sessão de tratamento de mesoterapia e que terminou no infeliz decesso de AA. Como inicialmente se sublinhou, sempre caberá ao médico atuar da forma mais diligente possível, o que implica o cumprimento de todos os deveres de cuidado que sobre ele recaem. Como resulta da conjugação da prova documental e testemunhal, nas 48 horas após o procedimento é desaconselhável, para além de banho quente (temperatura da água superior a 25º) e da exposição solar[18], também a aplicação de tópicos no local de tratamento, a ionização sobre a zona envolvida e a massagem local. Ficou demonstrado que o arguido veio a prescrever a aplicação de um anti-inflamatório tópico (AINE) no 2º dia após o procedimento, desconhecendo-se se este foi aplicado após as 48 horas recomendáveis (por se desconhecer a hora do tratamento e da aplicação). A verdade é que o próprio uso de AINE em processo infecioso de celulite, por agravamento de necrose cutânea, é debatido, existindo controvérsia médica sobre o assunto, pelo que, sendo um assunto debatido, deveria o arguido, caso tivesse agido com a diligência devida em face dos contornos do caso concreto (imediatismo da inflamação surgida em ambos os locais tratados, idade avançada da paciente, agravamento das queixas e dos sinais que conduzem ao diagnóstico de um processo infecioso), deveria ter tido especial cuidado na prescrição e observação efectuadas. E isto é assim, mesmo que se considere que no dia 4 de julho o arguido não tinha ainda equacionado o diagnóstico de quadro infecioso, como deveria em face dos sinais de inflamação (eritema, calor e dor) por si observados, dos perigos sempre associados ao procedimento de administração de injecções na técnica da mesoterapia, e à idade avançada da falecida e características das sua pele. De facto, o arguido, enquanto médico, deveria ter tido especialmente em conta que a falecida estaria a cerca de três meses de completar 90 anos, e que com o avançar da idade a pele é mais fina e poderá mais facilmente ocorrer dano cutâneo, no qual se inclui a própria necrose cutânea (inflamação local que escala para infecção). AA queixou-se ao arguido com imediatismo das dores sentidas nas duas zonas corporais onde foi submetida a tratamento de mesoterapia através do recurso a micro-agulhas e o grau de dor e agravamento do quadro clínico implicaram que voltasse a contactar o arguido no dia 5 de julho e que fosse observada no mesmo dia. Nesta última data, o próprio arguido colocou a hipótese de infeção cutânea, mas optou por apenas medicar AA com antibiótico tópico, sem prescrever qualquer análise ou exame suplementar, como deveria ter feito. Para mais, e sobretudo, nesse dia, o aqui arguido submeteu AA à aplicação de uma manga pneumática (pressoterapia), técnica contra-indicada em local de inflamação. Na versão do arguido, aplicou a manga pneumática na perna esquerda de AA (durante 40 min), que se trata de um procedimento que é usado na estética, quando há edema nos membros inferiores, para diminuir a pressão periférica à volta das pernas, evitando a progressão do edema. Todavia, o que resulta da conjugação da prova produzida com o conspecto factual assente (v.g. facto 24 -assente nas declarações prestadas pelo próprio arguido no primeiro julgamento) é que tal manga pneumática comprime a zona, ativando a circulação profunda e não a periférica o que é claramente contraproducente (cfr. facto 50-I). Com efeito, em face do teor da prova documental junta aos autos, dos esclarecimentos médicos que foram sendo prestados e juízos de experiência comum, o arguido, pela sua formação médica e longa experiência, tinha obrigação de saber que a aplicação de “manga pneumática” (tratamento usado em estética, de pressoterapia) é contra-indicada em local de inflamação, sendo suscetível de condicionar a evolução do quadro infecioso que conduziu à morte de AA. Apenas, no dia 8 de julho (5 dias depois do quadro inflamatório e doloroso despoletado com a aplicação do tratamento e 3 dias depois de lhe ter referido tratar-se de um quadro infecioso ao aplicar-lhe antibiótico tópico), é que, novamente contactado por AA, em face do agravamento clinico, optou por lhe prescrever antibiótico (Ciproxina 500 mg) ainda que não a tivesse observado (na sequência de contacto telefónico), nem prescrito qualquer análise/exame para comprovar o diagnóstico, não obstante a avançada idade e fragilidade da paciente, e os riscos associados a qualquer infeção, sobretudo a um quadro infecioso causado pela bactéria Staphylococcus aureus (que se trata da bactéria mais perigosa de todas entre as bactérias estafilocócicas mais comuns) como se veio a verificar. Tudo isto contribuiu para o agravamento clínico de AA e, estamos em crer, para a espiral de acontecimentos que se sucederam e que conduziram ao desenvolvimento da fatal celulite infeciosa-fascite necrosante e do seu consequente decesso. Assim, não existem quaisquer dúvidas de que a causa da morte só poderá advir de uma falha na execução do ato médico por parte do arguido. Da conjugação de toda a prova produzida resultou a convicção do tribunal de que o arguido executou as quatro inoculações (introdução de, pelo menos, quatro agulhas, na pele, partindo da versão do arguido de que teria dado duas injeções em cada um dos dois locais) em condições tais que se deu a introdução da bactéria no corpo da ofendida. Pelo exposto, e em síntese, não se pode afirmar que todos os procedimentos devidos neste tipo de tratamento foram observados no caso concreto, sendo o próprio arguido a admitir, desde logo, duas falhas essenciais: 1º) A utilização do álcool a 90%, quando para a esterilização (do tabuleiro, das ampolas, das luvas, da seringa de transferência… do local) deveria ter utilizado o álcool de 70% Só por aqui, não foram, pois, observados sem falhas os procedimentos que se impunham ao arguido, permitindo a conjugação da prova afirmar que existe uma relação entre as picadas de mesoterapia e o quadro infecioso da ofendida AA, pois foram, inequivocamente, os locais de entrada da infeção. 2º) O arguido era conhecedor do agravamento do quadro, já que foi sendo contactado várias vezes pela ofendida nos dias seguintes (pelo menos, por três vezes), tendo-a mesmo observado no dia 5 de julho e colocado a hipótese de se tratar de infeção cutânea (altura em que optou por a medicar com antibiótico tópico), e de a ter submetido à aplicação de “manga pneumática” (aparentemente contra a vontade da paciente, como admitiu), quando a pressoterapia é uma técnica contra-indicada em local de inflamação. Acresce dizer que, tratando-se de factos transversais à procedência dos pressupostos do pedido de indemnização cível sempre cumpriria ao demandado/arguido executar todo um conjunto de procedimentos destinados a evitar a infeção causada pela defeituosa execução das injeções do produto administrado, uma vez que não logrou efetuar a contraprova de que foram observados todos os procedimentos de assepsia que no caso concreto se impunham (art. 346.º do Código Civil). Todavia, propugnou que efectuou esses procedimentos: esterilização, a utilização das luvas, e os cuidados de assepsia. Todavia, o seu relato não se mostrou fluido, espontâneo, desinteressado, nem convincente. Pese embora se creia que o protocolo de actuação no acto médico seja “rotineiro”, como salientou o arguido, tal não implica que seja necessariamente seguido. O que decorre de juízes de experiência comum, é precisamente, o inverso, a ocorrência de alguma “leveza”, facilitismo e até incúria no seguimento à risca de todo o iter procedimental. O arguido vem dizer que adoptou esses procedimentos: efectuou a esterilização, procedeu à utilização das luvas, teve os cuidados de assepsia. Ora, quanto ao facto de ter efectuado a esterilização, não se compreende essa sua afirmação, porque, como alegou, tratando-se de seringas e agulhas descartáveis as mesmas já vinham esterilizadas. Não seria necessário desinfectar material que já viria, à partida, esterilizado de origem (seringas e agulha de inoculação). Quanto à adotação dos últimos cuidados (uso de luvas, desinfetadas, e adopção de todos os cuidados de assepsia), temos que a conjugação das declarações do arguido com a restante prova documental não permitem concluir que assim tenha acontecido. Desde logo, porque é o próprio arguido a afirmar que não usou a solução alcoólica preconizada: a esterilização do local deveria ter sido efectuada apenas com álcool a 70º, quando o próprio admitiu que usou álcool a 90º ou Álcool Isopropílico. Ambas as soluções alcólicas não aconselhadas. De fazer notar que o Álcool Isopropílico notoriamente é um produto de limpeza profissional, ideal para a manutenção de componentes eletrónicos, vidros, inox e outros metais, e não para a desinfeção de locais associados a procedimentos médicos. De notar, que ambos as soluções têm em comum o facto de apresentarem uma secagem rápida, ficando este tribunal, com a convicção, que a escolha destas soluções pelo arguido nas suas declarações, se pretende com a “questão sensitiva” causada na pele. Ou seja, com a tentativa de fragilizar os depoimentos das filhas da paciente, apresentando uma explicação para a queixa daquelas às filhas sobre a não desinfecção (não ter tido a sensação de frio da aplicação do álcool na pele em face da sua secagem mais rápida, que explicaria não terem sido sentidos). Tentou também nas suas declarações demonstrar aquilo que considera “incongruências” nos depoimentos das duas filhas de EE, sobre a “forma como a mesma aparecia depois do acto médico”, referindo-se ao facto de uma delas ter dito que nunca viu a mãe a sair do tratamento com “penso”, e de outra dizer que julga ter visto a mãe com um “penso” na perna”. Trata-se de uma evidente minudência, sem relevo, até porque ficou suficientemente claro que a zona tratada não tem que ser “tapada”, como explicou a testemunha médica II. Aqui chegados, somos a concluir que a prova reunida apreciada segundo os parâmetros de valoração que discorremos inicialmente, nomeadamente levando em conta que as provas não têm forçosamente que criar no espírito do julgador uma absoluta certeza dos factos a provar – certeza essa que, muitas vezes, seria impossível, ou quase impossível de alcançar- permite formular um juízo com um grau de probabilidade tão elevado que é o para as necessidades da vida, de forma a se poder concluir, sem dúvida razoável, que efectivamente, o arguido na sua profissão de médico não despendeu todos os esforços, nem adotou todas as cautelas no sentido de minimizar a possibilidade da ocorrência do quadro infecioso originado com as injecções, nem prestou à doente o tratamento nas condições mais seguras possíveis (cumprimento defeituoso do protocolo médico e regras de higienização do local/material de tratamento e, também, da diligência a adotar pelo próprio médico, com base na experiência e vastos conhecimentos que se confiam que um profissional que exerce há 34 anos tenha. Ora, em face da sua formação e exercício da actividade profissional, o arguido tinha que ter conhecimento do protocolo médico e das regras mais adequadas de higienização do local/material de tratamento, e, portanto, estava dotado de plena aptidão para cumprir o dever objectivo de cuidado que se lhe impunha, abstendo-se de empregar uma solução alcoólica de 90% ou álcool isopropílico em vez do exigível álcool a 70%, não se descortinando que não pudesse deixar de prever que daquela da cabal falta de esterilização pudesse decorrer um processo infeccioso, aliás, como de qualquer punção na pele[19], como referido na consulta técnico-científica e realçado unanimemente pelas testemunhas médicas inquiridas.
Quanto aos elementos subjectivos do tipo, importa ainda aqui citar a primeira sentença: “Ainda nesta sede, umas breves palavras quanto à consciência da ilicitude, e sem querer embarcar em ociosos considerandos sobre a problemática (Exaustivamente abordada por Jorge de Figueiredo Dias – O Problema da Consciência da Ilicitude em Direito Penal, 2.ª Ed., Coimbra Editora, Coimbra, 1978), diga-se tão somente que se ela é essencial aos factos dolosos, revela-se de todo alheia, por natureza, aos factos negligentes, pois “a atitude descuidada ou leviana que fundamenta esta modalidade de culpa não é pura e simplesmente compatível com a correcta orientação do agente para o desvalor do facto perante o qual a consciência ética da pessoa é chamada a tomar posição (essa correcta orientação só existe no âmbito dos crimes dolosos, só aqui portanto sendo possível falar de falta de consciência da ilicitude)” - Paula Ribeiro de Faria, Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo I, Coimbra Editora, Coimbra, 1999, p. 271. - sendo, assim, desprovido de qualquer sentido curar de saber se, no que ao arguido respeita, se constatava ou não uma consciência virtual ou potencial do ilícito - Jorge de Figueiredo Dias – Temas Básicos da Doutrina Penal, Coimbra Editora, Coimbra, 2001, p. 376.”
No que respeita às condições pessoais e económicas do arguido as mesmas demonstraram-se através do teor do relatório social de fls. 1582/1583, das declarações que o mesmo a este respeito prestou em juízo (confirmando que não se verificaram alterações), em articulação com os depoimentos prestados pelas testemunhas NN, assistente de consultório, filha do arguido. Quanto às restantes condições pessoais, cita-se a anterior sentença que atendeu ainda ao depoimento de “SS, médico (de medicina geral e familiar), colega de trabalho no hospital e amigo do arguido, todas com o mesmo quotidianamente conviventes, pelas suas relações pessoais sabedoras dos aspectos que, de forma coerente, narraram.” Quanto à ausência de antecedentes criminais, relevou o teor do respectivo certificado de registo criminal junto aos autos. De igual modo se cita, a motivação da anterior sentença quanto ao pedido de indemnização cível: “A qualidade das demandantes de herdeiras de AA assentou-se com base na cópia da escritura de habilitação a fls. 14 e 15. Relativamente à vivência familiar e profissional quotidiana de AA, além das declarações tomadas às demandantes, relevaram os depoimentos conjugados das testemunhas TT, prima daquela e sua “afilhada”, PP, ajudante técnica de farmácia, neta de AA (filha da demandante EE e sobrinha da demandante FF), UU, contabilista, que prestou serviços no âmbito da sua profissão nas farmácias exploradas pelas demandantes e ofendida, VV, neto da ofendida (filho da demandante FF e sobrinho da demandante EE), e WW, técnica de farmácia aposentada, antiga trabalhadora da ofendida e amiga da família, todas sabedoras dos aspectos que, coerentemente, relataram. Tais declarações e depoimentos relevaram, outrossim, no que respeita às consequências do falecimento da ofendida na pessoa das demandantes, plausíveis à luz da normalidade e da proximidade existencial havida. As consequências na pessoa da ofendida decorreram do teor dos já supra mencionados documentos clínicos e relatório do serviço urgência a fls. 33 a 98, 100, 101, 106 a 108, e 276 a 303 dos autos, e cópia do assento de óbito a fls. 16, sendo os fenómenos dolorosos e as angústias entendíveis à luz da normalidade e ante todo o processo infeccioso que conduziu à morte, passando pela amputação de um membro. A celebração do contrato de seguro resultou da cópia da respectiva cópia da apólice junta aos autos pela demandada. Os factos não provados assim se consideraram ou por sobre os mesmos se não ter produzido qualquer prova ou em virtude de aquela que foi produzida se mostrar insuficiente para formar a convicção do Tribunal em sentido diverso, ou, ainda, por se ter diferentemente demonstrado. Cumpre realçar que não se demonstrou o uso de “silício injectável” por parte do arguido, mas da administração de silício orgânico na apresentação do produto cosmético denominado MESOESTETIC – X Prof 013, nem foi introduzida nos autos qualquer apólice respeitante ao alegado “protocolo de seguros” entre a Ordem dos Médicos e a demandada seguradora. Embora sendo uma afirmação conclusiva, resulta, designadamente, dos elementos clínicos carreados para os autos, que a ofendida padecia, já por ocasião da actuação do arguido, de diversas doenças (v.g., portadora de pacemaker; patologia tiroideia; displidémia; glaucoma; patologia osteoarticular degenerativa, sendo usualmente medicada) – cfr. fls. 35 – não sendo, portanto, pessoa saudável”.
* *
4. Cumpre agora apreciar e decidir.
As questões a decidir serão apreciadas seguindo uma ordem de precedência lógica que atende ao efeito do conhecimento de umas em relação às outras.
A primeira questão a apreciar é a de saber se a sentença recorrida enferma de nulidade por excesso de pronúncia, uma vez que o tribunal a quo ao direccionar os trabalhos, produzir prova e julgar a matéria de facto relativa à desinfecção dos locais onde foram administradas as injecções, desrespeitou a decisão de reenvio, já transitada em julgado (questão do recurso da “C... – Companhia De Seguros, S.A.”).
Alega a recorrente que o Tribunal da Relação ordenou, ao abrigo dos poderes conferidos pelo artigo 426º, nº 1, do CPP, o reenvio parcial dos autos, para novo julgamento, restrito à seguinte matéria: “(…) apuramento dos instrumentos utilizados na administração do produto (como seringa, agulha e outros eventualmente utilizados) e sua eventual não esterilização”.
Ora, nos pontos 50E e 50F é dado como provado que o arguido usou substâncias não adequadas para a esterilização, não estando correctamente esterilizados os instrumentos utilizados e o local do tratamento, sendo que, nos factos dados como não provados, é consignado que, no dia 02/07/2013, o demandado aplicou as injecções sem desinfectar prévia e devidamente os locais em que aquelas foram administradas. É manifesto que o Tribunal a quo, ao direccionar os trabalhos, produzir prova e julgar a matéria de facto relativa à desinfecção dos locais onde foram administradas as injecções, desrespeitou a decisão de reenvio, já transitada em julgado. O poder jurisdicional conferido ao Tribunal a quo deve circunscrever-se ao conhecimento da matéria referente à esterilização dos instrumentos usados, devendo, no demais, manter-se incólume a sentença proferida em 05-03-2020, mormente no que diz respeito à desinfecção do local onde foram administradas as injecções. Ao Tribunal a quo estava vedado o conhecimento da factualidade relativa à desinfecção do local onde foram administradas as injecções, sob pena de violação do caso julgado formal e material, em obediência ao artigo 29.º, n.º 5, da CRP, pelo artigo 4.º do Protocolo n.º 7, adicional à CEDH, de 22/11/1984 e pelo artigo. 14.º, n.º 7, do Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos, assim como dos princípios do juiz natural, do contraditório, da imediação, consagrados nos artigos 327º, nº 2, 355º, nº1 e 426º, nº 1, ambos do CPP. Assim, ao decidir como decidiu, nomeadamente, ao dar como provado que o arguido usou substâncias não adequadas para a desinfecção e que o local onde foram praticadas as injecções não estava correctamente esterilizado, violou o Tribunal recorrido o poder jurisdicional que lhe cabia, qual seja de proferir decisão circunscrita à matéria do reenvio, resultando violados os preceitos contidos nos artigos 426, nº 1, do CPP e 202º, nº 2, da Lei Fundamental. O entendimento perfilhado pelo Tribunal a quo reconduz à violação das garantias e direitos de defesa do arguido demandado, nos termos do disposto nos artigos 20º, nº 4, 29º, nº 5, 32º, nºs 1, 5 e 9, 205º, nº 3, todos da CRP, artigo 4.º do Protocolo n.º 7, adicional à CEDH, de 22/11/1984 e pelo artigo. 14.º, n.º 7, do Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos, nomeadamente, o princípio ne bis in idem e corolário caso julgado, direito a um processo justo e equitativo, com inexoráveis reflexos para a aqui recorrente, cujas garantias de defesa surgem irremediavelmente comprometidas em idêntica medida, Inquinando a decisão revidenda da nulidade prevista nos artigos 379º, nº 2, alínea c), do CPP e 615º, nº 1, alínea d), aplicável por força do disposto no artigo 129º do CP, a qual desde já se invoca com as legais consequências, isto é, devendo a sentença recorrida ser revogada no que diz respeito ao pedido de indemnização civil.
Vejamos.
Dispõe o artigo 379º do Código de Processo Penal que: 1 - É nula a sentença: a) Que não contiver as menções referidas no n.º 2 e na alínea b) do n.º 3 do artigo 374.º ou, em processo sumário ou abreviado, não contiver a decisão condenatória ou absolutória ou as menções referidas nas alíneas a) a d) do n.º 1 do artigo 389.º-A e 391.º-F; b) Que condenar por factos diversos dos descritos na acusação ou na pronúncia, se a houver, fora dos casos e das condições previstos nos artigos 358.º e 359.º; c) Quando o tribunal deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento. 2 - As nulidades da sentença devem ser arguidas ou conhecidas em recurso, devendo o tribunal supri-las, aplicando-se, com as necessárias adaptações, o disposto no n.º 4 do artigo 414.º
Como se refere no Ac. do STJ de 27.10.2010, in www.dgsi.pt, “A omissão de pronúncia significa, na essência, ausência de posição ou de decisão do tribunal em caso ou sobre matérias em que a lei imponha que o juiz tome posição expressa sobre questões que lhe sejam submetidas, ou que o juiz oficiosamente deve apreciar. Por sua vez, o excesso de pronúncia significa que o Tribunal conheceu de questão de que não lhe era lícito conhecer porque não compreendida no objecto do recurso. Essas nulidades não são insanáveis, porque não englobadas nas nulidades previstas no art. 119º do CPP. Englobam-se as mesmas no disposto na al. c) do n.º 1 do art. 379º do CPP, que dispõe que é nula a sentença quando o tribunal deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento. Porém, mesmo não alegadas essas nulidades, sempre seriam oficiosamente cognoscíveis em recurso, visto que as nulidades de sentença enumeradas no art. 379.º, n.º 1, do CPP, têm regime próprio e diferenciado do regime geral das nulidades dos restantes actos processuais, estabelecendo-se no n.º 2 do mesmo artigo que as nulidades da sentença devem ser arguidas ou conhecidas em recurso sendo lícito ao tribunal supri-las, aplicando-se com as necessárias adaptações o disposto no art. 414.º, n.º 4”.
Mais recentemente afirmou o STJ no seu Ac. de 7.12.2023, in www.dgsi.pt, que “a nulidade por excesso de pronúncia ocorre quando o tribunal se pronuncia sobre questões de que não podia tomar conhecimento, conforme art. 379.º, n. º 1, al) c), 2.ª parte, ex vi do art. 425.º, n.º 4, do Código de Processo Penal”.
Pois bem.
Como resulta do acórdão desta Relação de 23.6.2021, determinou-se, ao abrigo do disposto no artigo 426º, nº 1, do Código de Processo Penal, o reenvio do processo para novo julgamento, restrito ao apuramento dos instrumentos utilizados na administração do produto (como seringa, agulha e outros eventualmente utilizados) e sua eventual não esterilização, a efectuar de acordo com o disposto no artigo 426º-A do mesmo diploma legal.
O que o tribunal a quo frisou variadas vezes ao longo do segundo julgamento.
Por sua vez, como resulta, desde logo, do despacho que comunicou a alteração não substancial de factos e da sentença recorrida, os factos aditados foram os vertidos nos pontos 50.C a 50.I. que apresentam a seguinte redacção:
50.D. A esterilização dos instrumentos utilizados e do local apenas deve ser efectuada com álcool a 70%. 50-E. O arguido usou álcool a 90% e álcool isopropílico para a desinfeção substâncias não adequadas para esterilização. 50-F. Não estavam correctamente esterilizados os instrumentos utilizados e o local do tratamento. 50-G. Nas 48 horas após o procedimento é desaconselhável, para além de banho quente (temperatura da água superior a 25º) e da exposição solar, também a aplicação de tópicos no local de tratamento, a ionização sobre a zona envolvida e a massagem local. 50-H. A prescrição e aplicação de um anti-inflamatório tópico (AINE) em processo infecioso (erisipeia/ celulite, por agravamento de necrose cutânea), mesmo após as 48 horas é medicamente debatido, existindo controvérsia médica sobre o assunto. 50-I. O arguido, pela sua formação e experiência, tinha obrigação de saber que a aplicação da “manga pneumática” (pressoterapia) é contra-indicada em local de inflamação, sendo suscetível de condicionar a evolução do quadro infecioso, que conduziu à morte da doente. Da leitura destes factos, facilmente se constata que os vertidos nos pontos 50.D, 50.E, 50.F dizem respeito aos instrumentos utilizados na administração do produto, sendo que o local do tratamento cabe igualmente nesse conceito, já que, como adiante se verá, se cinge à marquesa onde a vítima se encontrava aquando dos tratamentos.
Já a matéria vertida nos pontos 50.G, 50.H e 50.I extravasa o âmbito do reenvio, por não dizer respeito aos instrumentos utilizados na administração do produto e eventual não esterilização dos mesmos.
Quanto a estes pontos, verifica-se, pois, a nulidade por excesso de pronúncia, prevista no artigo 379º, nº 1, alínea c), do Código de Processo Penal.
Como esclarece Oliveira Mendes, in Código de Processo Penal Comentado, de Henriques Gaspar e outros, págs. 1183-1184, “por efeito da alteração introduzida ao texto do nº 2 pela Lei nº 20/2013, de 21.2, passou a constituir um dever do tribunal de recurso o suprimento das nulidades da sentença recorrida (é o que decorre da actual letra da lei “as nulidades da sentença devem ser arguidas ou conhecidas em recurso, devendo o tribunal supri-las …”), razão pela qual sobre o tribunal de recurso impende a obrigação de suprir as nulidades de que padeça a sentença recorrida, a menos, obviamente, que a nulidade só seja susceptível de suprimento pelo tribunal recorrido, situação que será a comum, visto que na grande maioria dos casos o suprimento pelo tribunal de recurso redundaria na supressão de um grau de jurisdição”. No caso concreto, a verificada nulidade pode ser suprida por esta Relação, já que os autos contêm todos os elementos para o efeito, e não irá conduzir à supressão de nenhum grau de jurisdição. Apenas está em causa uma decisão já tomada em sede de recurso.
Assim sendo, suprindo a nulidade de excesso de pronúncia, devem ser eliminados da matéria de facto dada como provada os pontos 50.G, 50.H e 50.I.
O ponto 2 dos factos não provados, que diz respeito à desinfecção dos locais em que foram administradas as injecções (desinfecção da pele e não de qualquer instrumento já que quanto a estes o termo utilizado é esterilização) traduz apenas a manutenção do que já constava na primeira sentença recorrida e que o primeiro acórdão desta Relação não alterou. Não é objecto do reenvio, razão pela qual nada há a apontar.
* Passa-se agora a conhecer se os factos provados dos pontos 50-D, 50-E, 50-F, 50-I, 50, 51 e 52 estão em contradição com o ponto 2 dos factos não provados (questão do recurso do arguido) e se a sentença recorrida enferma do vício de contradição insanável entre os factos provados e não provados (questão do recurso da “C... – Companhia De Seguros, S.A.”).
Alega a demandada C... que não pode a sentença recorrida concluir, por um lado, que o arguido demandado não desinfectou correctamente o local onde foi administrado o produto, e, por outro, que não se demonstrou que o arguido não desinfectou, prévia e devidamente, os locais em que as injecções foram praticadas. Deverá, assim, a sentença ser revogada neste particular, mantendo-se apenas o ponto 2 dos factos não provados.
Afirma o arguido que, no que respeita à matéria de facto, considera que o Tribunal a quo não podia ter dado como provados os pontos 50-D, 50-E, 50-F, 50-I, 50, 51 e 52 dos “Factos Provados”, todos eles em total contradição com o ponto 2 dos “Factos Não Provados” - da douta sentença, pelo que fez um incorreto juízo e, em consequência, uma aplicação totalmente inadequada da matéria de direito.
Pois bem.
Como estipula o artigo 428º do Código de Processo Penal, as Relações conhecem de facto e de direito.
A matéria de facto pode ser sindicada por duas vias: no âmbito, mais restrito, dos vícios previstos no artigo 410º, nº2, do Código de Processo Penal, no que se convencionou chamar de revista alargada; ou através da impugnação ampla da matéria de facto, a que se refere o artigo 412º, nºs 3, 4 e 6, do mesmo diploma legal. Na chamada revista alargada, estamos perante a arguição dos vícios decisórios previstos nas diversas alíneas do nº 2 do referido artigo 410º, cuja indagação, como resulta do preceito, tem que resultar da decisão recorrida, por si mesma ou conjugada com as regras da experiência comum, não sendo por isso admissível o recurso a elementos àquela estranhos, para a fundamentar, como, por exemplo, quaisquer dados existentes nos autos, mesmo que provenientes do próprio julgamento. Na impugnação ampla da matéria de facto, a apreciação não se restringe ao texto da decisão, alargando-se à análise do que se contém e pode extrair da prova (documentada) produzida em audiência, mas sempre dentro dos limites fornecidos pelo recorrente no estrito cumprimento do ónus de especificação imposto pelos nºs 3 e 4 do artigo 412º do Código de Processo Penal. Assim, enquanto os vícios previstos no artigo 410º, nº2, do Código de Processo Penal, são vícios da decisão, evidenciados pelo próprio texto, por si ou em conjugação com as regras da experiência comum, na impugnação ampla temos a alegação de erros de julgamento por invocação de provas produzidas e erroneamente apreciadas pelo tribunal recorrido, que imponham diversa apreciação. Neste caso, o recorrente pretende que o tribunal de recurso se debruce não apenas sobre o texto da decisão recorrida, mas sobre a prova produzida em 1.ª instância, alegadamente mal apreciada – cfr. Ac. da RL de 9.5.2017, in www.dgsi.pt.
Vejamos em que consiste o alegado vício.
Nos termos do artigo 410º, nº 2, do Código de Processo Penal, “mesmo nos casos em que a lei restrinja a cognição do tribunal de recurso a matéria de direito, o recurso pode ter como fundamentos, desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum: a) A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada; b) A contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão; c) Erro notório na apreciação da prova.
A letra da lei revela, desde logo, que tais vícios têm que resultar do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum.
O vício a que alude o artigo 410º, nº 2, alínea b), do Código de Processo Penal, de contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão, apenas se verificará quando, analisada a matéria de facto, se chegue a conclusões antagónicas entre si e que não podem ser ultrapassadas, ou seja, quando se dá por provado e como não provado o mesmo facto, quando se afirma e se nega a mesma coisa, ao mesmo tempo, ou quando simultaneamente se dão como provados factos contraditórios ou quando a contradição se estabelece entre a fundamentação probatória da matéria de facto, sendo ainda de considerar a existência de contradição entre a fundamentação e a decisão.
Afirmam Simas Santos e Leal Henriques, in “Recursos Penais”, 8ª ed., 2011, pág. 77, que “a contradição insanável da fundamentação ou entre os fundamentos e a decisão, traduz-se numa incompatibilidade, não ultrapassável através da própria decisão recorrida, entre os factos provados, entre estes e os não provados ou entre a fundamentação probatória e a decisão. Ou seja: há contradição insanável da fundamentação quando, fazendo um raciocínio lógico, for de concluir que a fundamentação leva precisamente a uma decisão contrária àquela que foi tomada ou quando, de harmonia com o mesmo raciocínio, se concluir que a decisão não é esclarecedora, face à colisão entre os fundamentos invocados; há contradição entre os fundamentos e a decisão quando haja oposição entre o que ficou provado e o que é referido como fundamento da decisão tomada; e há contradição entre os factos quando os provados e os não provados se contradigam entre si ou por forma a excluírem-se mutuamente”.
Como se refere no Ac. da RC de 13.5.2020, in www.dgsi.pt, “a alínea b), do n.º 2, do artigo 410.º do CPP abrange dois vícios distintos, que são: - a contradição insanável da fundamentação; e a contradição insanável entre a fundamentação e a decisão. No primeiro caso incluem-se as situações em que a fundamentação desenvolvida pelo julgador evidencia premissas antagónicas ou manifestamente inconciliáveis. Ocorre, por exemplo, quando se dão como provados dois ou mais factos que manifestamente não podem estar simultaneamente provados ou quando o mesmo facto é considerado como provado e como não provado. Quanto à segunda situação, abrange as circunstâncias em que os factos provados ou não provados colidem com a fundamentação da decisão. É o vício que se verifica, por exemplo, quando a decisão assenta em premissas distintas das que se tiveram como provadas”.
“Os vícios decisórios – a insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, a contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão e o erro notório na apreciação da prova – previstos no nº 2 do artigo 410º do Código de Processo Penal, traduzem defeitos estruturais da decisão penal e não do julgamento e por isso, a sua evidenciação, como dispõe a lei, só pode resultar do texto da decisão, por si só, ou conjugado com as regras da experiência comum. O seu regime legal não prevê a reapreciação da prova – contrariamente ao que sucede com a impugnação ampla da matéria de facto –, limitando-se a actuação do tribunal de recurso à detecção do defeito presente na sentença e, não podendo saná-lo, à determinação do reenvio, total ou parcial, do processo para novo julgamento (art. 426º, nº 1 do C. Processo Penal)” – cfr. Ac. da RC de 12.6.2019, in www.dgsi.pt. Cumpre, então, apreciar se o ponto 2 dos factos não provados está em contradição com os factos provados, mormente com os dos pontos 50-D, 50-E, 50-F, 50-I, 50, 51 e 52.
Como já se disse, o ponto 50.I deve ser eliminado da factualidade provada.
Por sua vez, o ponto 2 dos não provados apresenta a seguinte redacção:
2. No dia 02/07/2013, o demandado aplicou as injecções sem desinfectar prévia e devidamente os locais em que aquelas foram administradas.
Este ponto refere-se à desinfecção dos locais onde as injecções foram administradas, no corpo da vítima – perna esquerda e região lombar. É um facto que, como já se disse, constava da primeira sentença proferida e que não sofreu alteração com o primeiro acórdão desta Relação. É matéria não abrangida pelo reenvio. Não se trata, obviamente, de desinfectar qualquer outro local, que não está concretizado, como por exemplo o gabinete onde eram efetuados os tratamentos ou mesmo a marquesa onde a Dra AA se deitou. O tribunal a quo, ao longo da segunda audiência de julgamento, deixou isso bem claro, mormente aquando das declarações prestadas pela assistente EE. Tendo-lhe sido perguntado se a sua mãe nunca chamou a atenção do arguido para o facto dele não desinfectar a pele e para o facto dele não colocar um penso, respondeu a assistente: Ela tinha receio de estar a aborrecer o médico. Ela nunca pensou que podia morrer disso. Foi então que a M.ma Juiz esclareceu o seguinte: a pele já ter sido desinfectada foi uma questão que já foi decidida na outra sentença. Aqora o que nos interessa aqui é o material.
De facto, foi sobre o material, os instrumentos utilizados, que incidiu a matéria do ponto 50.D, tanto mais que o termo utilizado é esterilização. O termo desinfecção refere-se à pele e a esterilização aos materiais e instrumentos. Assim, o local a que se refere o ponto 50.D não é o mesmo a que se refere o ponto 2 dos factos não provados. No ponto 50.D falamos de instrumentos e local onde a vítima se encontrava. No ponto 2 dos factos não provados falamos de locais no corpo da vítima onde as injecções foram administradas.
A ser assim, também não há qualquer contradição com a matéria do ponto 50-E. O arguido usou álcool a 90% e álcool isopropílico para a desinfeção, substâncias não adequadas para esterilização. Usou álcool a 90% e álcool isopropílico para a desinfeção da pele, entenda-se; substâncias essas não adequadas para esterilização dos materiais. No ponto 50-F fala-se dos instrumentos e do local do tratamento. Este não é o local no corpo da vítima, não se refere à pele da vítima, mas ao local onde ela se encontrava. Daí o termo esterilizados.
Inexiste igualmente qualquer contradição entre a matéria provada dos pontos 50, 51 e 52 com o ponto 2 dos factos não provados.
Assim, inexiste a apontada contradição.
Numa visão mais alargada e porque o mencionado vício é, também, de conhecimento oficioso, sempre se diz que não se detectam conclusões antagónicas e insanáveis na matéria de facto, ou qualquer contradição insanável na motivação da decisão de facto ou entre esta e o elenco dos factos provados e não provados. Como não se verifica qualquer contradição entre a fundamentação e a decisão.
Improcede esta questão suscitada pelos recorrentes. * Próximas questões: - se os factos provados dos pontos 50-D, 50-E, 50-F, 50-I, 50, 51 e 52 foram incorrectamente julgados, devendo ser dados como não provados (questão do recurso do arguido); e se os factos provados dos pontos 50-D, 50E, 50F, 50, 51 e 52 foram incorrectamente julgados (questão do recurso da “C... – Companhia De Seguros, S.A.”).
Alega o arguido que a factualidade supra enunciada resulta de uma errónea interpretação seletiva da prova, que foi valorada de forma a sustentar a tese de que o arguido violou as leges artis - ao actuar nos moldes descritos na Acusação e agora na sentença aqui em causa – e, sobretudo, com tal conduta causou a morte da infeliz AA, de 89 anos de idade. Na nossa modesta opinião jamais o Tribunal a quo poderia concluir que o arguido usou para a desinfeção substâncias não adequadas para esterilização e que não estavam correctamente esterilizados os instrumentos utilizados e o local do tratamento (factos 50-D, 50-E e 50-F do Factos Provados) e, como tal, o modo de administração preconizado pelo arguido consubstanciou uma violação das leges artis e, sobretudo, causou a morte à Sra. AA. Porquanto, além de não ter sido realizada qualquer autópsia, inexiste nos autos qualquer prova cabal que nos leve a concluir que a causa da morte foi a administração médica do Arguido. O Tribunal a quo ignorou por completo prova determinante existente nos autos e que, pela relevância da mesma, foi totalmente desconsiderada e impunha decisão diversa. O Tribunal a quo considerou, de forma algo inexplicável (diga-se!) que o arguido não fez a devida assepsia, por alegadamente ter usado uma solução de álcool isopropílico e etanol (comercialmente conhecida como “Softasept” - cf. referido pelo arguido na fase de inquérito, Interrogatório subsequente de Arguido) que não contém apenas 70% de álcool. Aliás, em bom rigor, a Mma Juiz a quo, eventualmente induzida pela atual debilidade física do arguido e pela sua notória diminuição de acuidade auditiva, considerou que o depoimento do arguido não foi coerente e, a contrario, considerou como credíveis os depoimentos indiretos das “testemunhas” (demandantes nestes autos, filhas da falecida, verdadeiras interessadas na lide) que afirmaram que a sua falecida mãe (Sra AA), farmacêutica de profissão, pessoa muito ativa e com apurado sentido crítico (conforme atestado pelas próprias), lhes referiu que o Sr. Dr. BB (arguido) não desinfetava o local das “picadas”.
Por sua vez, alega a demandada C... que considera que a correcta decisão da matéria de facto consiste no seguinte elenco de factos provados, rasurando-se os segmentos que devem ser eliminados ou dados como não provados: 50D – A esterilização dos instrumentos utilizados e do local 50E – O arguido usou álcool a 90% e álcool isopropílico para a desinfeção, substâncias 50F – Estavam correctamente esterilizados os instrumentos utilizados e o local do tratamento. 50. M. N. A pele humana não se esteriliza, mas sim é objecto de desinfecção/assepsia. Sucede que as filhas da vítima cujo depoimento alicerça o decidido não são testemunhas mas sim Assistentes e Demandantes civis, ou seja, parte interessada no desfecho da causa. Logo, deverá tal ser sopesado na ponderação da credibilidade dos seus dizeres. É que o depoimento prestado pelas Assistentes Demandantes não poderá valer para dar como provada tal factualidade. Sem embargo, dir-se-á que o Tribunal recorrido faz uma correcta súmula do depoimento prestado pela testemunha II (página 31), que referiu que: “deve proceder-se à desinfecção da pele, com betadine ou um soro alcoólico”, ainda que remate que será sentida pelo doente, por força da diferença de temperatura. Mal andou o Tribunal ao dar como provada a violação do dever objectivo de cuidado, a verificação de nexo causal entre a conduta do arguido e o desfecho morte, assim como o preenchimento do elemento subjectivo do crime. Ora, o que os recorrentes pretendem é discutir a referida matéria de facto provada impugnada e supra identificada, por entenderem que foi incorretamente julgada pelo tribunal a quo, que foi cometido um erro de julgamento por errónea apreciação da prova.
Estamos, assim, no domínio dos artigos 412º, nº 3, e 431º, ambos do Código de Processo Penal.
Estipula o artigo 412º, nº 3, do Código de Processo Penal que, “quando impugne a decisão proferida sobre matéria de facto, o recorrente deve especificar: a) Os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados; b) As concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida; c) As provas que devem ser renovadas.
No caso sub judice a questão não se prende com a alínea c) mas sim com as alíneas a) e b). A especificação dos concretos pontos de facto traduz-se na indicação dos factos individualizados que constam da sentença recorrida e que se consideram incorrectamente julgados. A especificação das concretas provas só se satisfaz com a indicação do conteúdo específico do meio de prova ou de obtenção de prova e com a explicitação da razão pela qual essas provas impõem decisão diversa da recorrida. Nos termos do nº 4 da mesma norma legal “quando as provas tenham sido gravadas, as especificações previstas nas alíneas b) e c) do número anterior fazem-se por referência ao consignado na acta, nos termos do disposto no nº 3 do artigo 364º, devendo o recorrente indicar concretamente as passagens em que funda a impugnação”. Não basta, pois, a simples remissão para a totalidade de um ou vários depoimentos.
De qualquer forma, neste particular, o STJ, no Ac. nº 3/2012, publicado no DR, 1ª série, de 18.4.212, fixou jurisprudência no sentido de que:
«Visando o recurso a impugnação da decisão sobre a matéria de facto, com reapreciação da prova gravada, basta, para efeitos do disposto no artigo 412.º, n.º 3, alínea b), do CPP, a referência às concretas passagens/excertos das declarações que, no entendimento do recorrente, imponham decisão diversa da assumida, desde que transcritas, na ausência de consignação na acta do início e termo das declarações».
Requisitos que foram respeitados pelos recorrentes já que especificaram os factos concretos que consideram incorrectamente julgados, bem como as concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida, com as quais fundamentam a impugnação. Relativamente à prova indicada, pessoal, consideram-se respeitados os requisitos em relação às declarações prestadas pelo arguido e pelas assistentes EE e FF, e depoimento da testemunha NN, com a identificação das passagens relevantes, transcrição de algumas e indicação dos respectivos minutos da gravação. O tribunal procede à audição ou visualização das passagens indicadas e de outras que considere relevantes para a descoberta da verdade e a boa decisão da causa – nº 6 do artigo 412º do Código de Processo Penal.
Por sua vez, dispõe o artigo 431º do mesmo diploma legal que, “sem prejuízo do disposto no artigo 410.º, a decisão do tribunal de 1.ª instância sobre matéria de facto pode ser modificada: a) Se do processo constarem todos os elementos de prova que lhe serviram de base; b) Se a prova tiver sido impugnada nos termos do n.º 3 do artigo 412.º; ou c) Se tiver havido renovação da prova.
“A respeito da impugnação da matéria de facto, nos termos do artigo 412º, no 3, do Código de Processo Penal, há que considerar o seguinte: Como se refere nos doutos acórdãos do S.T.J de 15.12.2005 e de 09.03.2006, Procs. nos 2951/05 e 461/06, respetivamente, ambos disponíveis in www.dgsi.pt, e é jurisprudência uniforme, «o recurso de facto para a Relação não é um novo julgamento em que a 2.ª instância aprecia toda a prova produzida e documentada em 1ª instância, como se o julgamento ali realizado não existisse: antes se deve afirmar que os recursos, mesmo em matéria de facto, são remédios jurídicos destinados a colmatar erros de julgamento, que devem ser indicados precisamente com menção das provas que demonstram esses erros». A gravação das provas funciona como uma válvula de escape para o tribunal superior poder sindicar situações insustentáveis, situações-limite de erros de julgamento sobre matéria de facto (Neste sentido, acórdão do S.T.J. de 21.01.2003, disponível in www.dgsi.pt). E, como se refere no acórdão desta Relação do Porto de 26.11.2008, in Revista de Legislação e Jurisprudência, ano 139º, no 3960, págs. 176 e segs. «não podemos esquecer a perceção e convicção criada pelo julgador na 1.ª instância, decorrente da oralidade da audiência e da imediação das provas. O juízo feito pelo Tribunal da Relação é sempre um juízo distanciado, que não é “colhido diretamente e ao vivo”, como sucede com o juízo formado pelo julgador da 1ª. Instância” - cfr. Ac. da RP de 28.2.2018, in www.dgsi.pt.
Veja-se igualmente o Ac. da RG de 6.12.2010, in www.dgsi.pt, onde se pode ler que, no caso de impugnação da matéria de facto, a que se refere o nº 3 do artigo 412º do Código de Processo Penal, “a apreciação não se restringe ao texto da decisão, alargando-se à análise do que se contém e pode extrair da prova (documentada) produzida em audiência, mas sempre dentro dos limites fornecidos pelo recorrente no estrito cumprimento do ónus de especificação imposto pelos nºs 3 e 4 do artigo 412º. Nos casos de impugnação ampla, o recurso da matéria de facto não visa a realização de um segundo julgamento sobre aquela matéria, agora com base na audição de gravações, antes constituindo um mero remédio para obviar a eventuais erros ou incorrecções da decisão recorrida na forma como apreciou a prova, na perspectiva dos concretos pontos de facto identificados pelo recorrente”. Mais se lê no mesmo aresto que “o recurso que impugne (amplamente) a decisão sobre a matéria de facto não pressupõe, por conseguinte, a reapreciação total do acervo dos elementos de prova produzidos e que serviram de fundamento à decisão recorrida, mas antes uma reapreciação autónoma sobre a razoabilidade da decisão do tribunal a quo quanto aos «concretos pontos de facto» que o recorrente especifique como incorrectamente julgados. Para esse efeito, deve o tribunal de recurso verificar se os pontos de facto questionados têm suporte na fundamentação da decisão recorrida, avaliando e comparando especificadamente os meios de prova indicados nessa decisão e os meios de prova indicados pelo recorrente e que este considera imporem decisão diversa (- Cfr. Acórdãos do S.T.J. de 14 de Março de 2007, de 23 de Maio de 2007e de 3 de Julho de 2008, disponíveis em www.dgsi.pt/jstj.). Justamente porque o recurso em que se impugne (amplamente) a decisão sobre a matéria de facto não constituiu um novo julgamento do objecto do processo, mas antes um remédio jurídico que se destina a despistar e corrigir, cirurgicamente, erros in judicando ou in procedendo, que o recorrente deve expressamente indicar, impõe-se a este o ónus de proceder a uma tríplice especificação, como estipulado no artigo 412.º, n.º 3 do Código de Processo Penal”.
Assim, estando a audiência devidamente documentada, não obstante o princípio da livre apreciação da prova, pode a Relação alterar a matéria de facto, quando entenda existir um erro na apreciação da prova – cfr. Ac. da RC de 15.3.2006, in www.jusnet.pt.
No caso concreto, por se verificarem todos os pressupostos, esta Relação deve averiguar se, relativamente aos factos indicado pelos recorrentes, o Tribunal de 1ª instância julgou bem. Para o efeito, face às questões suscitadas, aos argumentos invocados quanto aos meios de prova e ainda à convicção formada pelo julgador vertida na motivação da decisão de facto, este Tribunal da Relação, ao abrigo do disposto no nº6 do artigo 412º do Código de Processo Penal, ouviu integralmente as declarações prestadas pelo arguido, pelas assistentes EE e FF, bem como o depoimento da testemunha NN. Analisou ainda o Acórdão do Conselho Superior da Ordem dos Médicos de fls. 1590 a 1631.
No mais, levou-se em conta a restante prova considerada pelo tribunal a quo, tal como foi indicada e examinada na sentença recorrida. Reafirma-se que o recurso não visa a reapreciação de toda a prova produzida, mas apenas aquela com base na qual se pretende infirmar a convicção do julgador. Para o efeito, torna-se, pois, imprescindível que na motivação do recurso a mesma surja como fundamento da pretensão do recorrente e que respeite os pressupostos legais. Caso contrário, não existem razões para ser reapreciada.
Passa-se agora à análise dos factos impugnados. A questão fulcral prende-se com os instrumentos utilizados na administração do produto (como seringa, agulha e outros eventualmente utilizados) e sua eventual não esterilização.
Pois bem.
O arguido referiu que existe um protocolo no procedimento, uma forma de actuar que acaba por ser rotineira, quando se executa uma acção que possa ter algum perigo para a pessoa. Faz parte desse protocolo a desinfecção, a esterilização, utilização das luvas, cuidados de assepsia, tudo o que faz parte da mesoterapia. Protocolo esse que respeitou nesse dia 2 de Julho. Mais disse que foi posto em causa pelo testemunho das duas irmãs e que nenhuma delas assistiu a qualquer sessão de mesoterapia.
Perguntou-lhe, então, o tribunal o seguinte: partindo do que disseram as filhas da falecida, que o Sr. Dr. não desinfectava a pele, explique que tipo de desinfectante usava. Era álcool ou outro tipo de desinfectante? Resposta do arguido: Era etanol e álcool isopropílico. Esse álcool existe em preparados que são comprados precisamente para desinfecção da pele. Pergunta o tribunal: Mas é de quantos graus, de 70? Responde o arguido que é de 90% de etanol e 10% de álcool isopropílico. Aplicava estes dois desinfectantes antes da aplicação do tratamento.
Ora, neste momento, o arguido estava a referir-se à desinfecção da pele, a um preparado que comprava especificamente para a desinfecção da pele e que era composto como referiu - 90% de etanol e 10% de álcool isopropílico.
Mais esclareceu o arguido que usava luvas de compra, seringas individuais e descartáveis. Material que comprava a empresas médicas, esterilizado, de utilização única. Poisa a seringa de transferência num tabuleiro que usa para esse efeito, que é estéril. Todo o material que coloca no tabuleiro é esterilizado. Voltaram a perguntar: O tabuleiro também está desinfectado? Resposta: Sim. O material é borrifado com álcool. Sou eu que faço isso tudo.
Disse ainda o arguido que depois da aplicação, há cuidados de assepsia na zona aplicada. No fim das picadas, caso haja necessidade põe pensos em spray. É uma utilização habitual no hospital.
Tendo-lhe sido perguntado qual a explicação que tem para esta infecção, respondeu que não tenho qualquer dúvida de que a porta de entrada foram as picadas, não tenho qualquer dúvida. Nem nunca tive. No início era uma inflamação e não uma infecção. Admito que as picadas tenham sido a porta de entrada da bactéria, provavelmente. Mas não tenho explicação para isso. Eu sei que se desenvolveu uma infecção mas não sei como foram os mecanismos. Nem posso afirmar em que dia a bactéria se introduziu no corpo da doente.
Por sua vez, a assistente EE, filha da vítima, disse que nunca assistiu aos tratamentos que sua mãe efectuava de mesoterapia. Afirmou que sua mãe lhe dizia que o arguido não desinfectava a pele.
Ora, como já se disse supra, essa é uma questão já decidida e não é objecto do presente reenvio.
Foi-lhe, então, perguntado: relativamente aos instrumentos utilizados, há alguma referência da sua mãe, se os instrumentos eram esterilizados, desinfectados, ou daí não houve qualquer referência? Respondeu: Não. A não ser esta desinfecção (referindo-se à desinfeção da pele). Do que a mãe dizia, a única informação que tinha era que a pele não era desinfectada. Ainda disse que a mãe lhe referiu que o Sr. Dr. não usava luvas, mas isso ela não viu.
Por sua vez, a assistente FF, filha da vítima, disse que nunca assistiu aos tratamentos de mesoterapia que a mãe fez. Disse que a mãe comentou consigo que achava estranho o Dr. não desinfectar na altura a pele, no sítio onde injectava.
Reafirma-se que a desinfecção da pele não é questão do reenvio.
Foi-lhe, então, perguntado: E em relação ao equipamento, seringas, agulhas, alguma vez a sra sua mãe comentou alguma coisa convosco? Resposta: Não. Sobre essa parte não.
A testemunha NN, filha do arguido e assistente do seu consultório, há 17 anos, disse que está a seu cargo a manutenção do espaço, a nível de reposição do material e limpeza e algo mais que eventualmente seja requerido. Não está presente, dentro do gabinete, quando o seu pai faz os tratamentos de mesoterapia, mas é ela que procede à colocação do material antes do doente entrar. Foi-lhe perguntado: Qual o protocolo a nível desse material para a realização dos tratamentos de mesoterapia? Resposta: No que respeita ao material que é reposto, temos desde as agulhas, às luvas e ao material que por norma já está dentro do gabinete para desinfecção da marquesa e recolocação do material que é colocado em cima da marquesa. As agulhas são de uso único, descartáveis, vêm embaladas e esterilizadas. As luvas chegam a nós, também são de uso único, esterilizadas. É assim que é requerido o material e é assim que nós o utilizamos. Todas essas exigências foram-lhe impostas pelo Dr. BB.
Reafirmou que é feita a desinfecção da marquesa, é recolocado o material que é o chamado tecido para cobrir a marquesa, é feita a desinfeção da pele, coloca-se o produto na seringa, faz-se a aplicação e finaliza-se. O seu pai usava luvas. Disse: Não tem dúvidas que o seu pai aplica esse protocolo a todos os doentes, dado que foi assim que me foi ensinado e a ter o cuidado de ter os produtos para que assim seja.
Foi-lhe perguntado: Da mesma embalagem de agulhas usadas para a Dra AA, foram usadas agulhas noutros pacientes? Resposta: Do mesmo lote são usadas várias seringas em várias pessoas. Só se repõe o material quando acaba essa caixa. Pergunta: Não houve nenhum reporte de qualquer efeito secundário? Resposta: Não. É prática recorrente até aos dias de hoje, é gastar e repor e não houve qualquer reporte de problemas.
No que respeita à prova indicada pelo recorrente, cumpre ainda fazer referência ao Acórdão do Conselho Superior da Ordem dos Médicos, junto aos autos pelo arguido a 29.1.2023 e que se encontra de fls. 1590 a 1631. Aí refere-se um Parecer do Colégio de Dermatovenereologia que afirma, nomeadamente, que “Quanto à esterilização do local, esta deve ser efectuada apenas com álcool a 70%”. Ora, uma vez que a expressão utilizada é esterilização, entende-se que não se refere a desinfecção da pele no local onde se aplicaram as injecções. De qualquer forma, mesmo que se referisse à desinfecção da pele, como já se disse, não é questão a tratar neste reenvio. No que respeita à esterilização do local onde é efectuado o tratamento, como foi dito pela testemunha NN, procede-se à desinfecção da marquesa e é recolocado o material que é o chamado tecido para cobrir a marquesa. O arguido referiu que o material é borrifado com álcool, sem que tivesse explicado, porque também não lhe foi perguntado, quais as características deste álcool.
Afirma a recorrente C... que o Parecer do Colégio da Especialidade de Dermatologia da Ordem dos Médicos produzido em sede de processo disciplinar movido ao arguido, não poderá valer como meio probatório nos presentes autos, porque não foi obtido com respeito ao direito ao contraditório previsto no artigo 327º, nº 2, do Código de Processo Penal. Mais afirma que a sua autora não explicita, nem esclarece o que lhe permite chegar à premissa precipitada de que quanto à esterilização do local, esta deve ser efectuada com álcool a 70º, isto é, não cita qualquer fonte, nem concretiza os motivos científicos que levam a tal conclusão. Aliás, considerando que dimana da Especialidade da Dermatologia, julga-se que se referia ao local de injecção do produto, ou seja, a pele da utente, e não ao local físico onde foram realizados os tratamentos. Tal conclusão colhe amparo nas regras da experiência comum e da normalidade do acontecer. De resto, nesse sentido já se pronunciou o Relatório Pericial junto aos autos no volume 3º, a fls. 593, quando refere em resposta ao quesito 13º que o material usado deve ser devidamente esterilizado.
Dispõe o artigo 327º, nº 2, do Código de Processo Penal que “os meios de prova apresentados no decurso da audiência são submetidos ao princípio do contraditório, mesmo que tenham sido oficiosamente produzidos pelo tribunal”. Ora, em relação ao documento junto aos autos pelo arguido (Acórdão do Conselho Superior da Ordem dos Médicos), foi proferido despacho a ordenar a sua notificação, concedendo prazo para contraditório – cfr. acta da sessão de julgamento de 31.1.2023. O contraditório do documento foi cumprido, nada impedindo que o mesmo possa ser valorado como meio de prova. No que respeita às declarações das assistentes, afirma a recorrente C... que apenas é admitido o recurso ao depoimento indirecto, através do disposto no artigo 129º, do Código de Processo Penal, no caso do decesso de testemunha anteriormente ouvida nos autos. Mais afirma que o Código de Processo Penal apenas admite o recurso ao depoimento indirecto no caso do decesso da testemunha anteriormente ouvida nos autos, sucedâneo, como não podia deixar de ser, de pleno respeito ao princípio do contraditório consagrado no artigo 32º, nº 2, da CRP e com consagração no plano infra constitucional no artigo 327º, nº 2, do CPP. Ora, a Dra AA, não fosse o fatídico desfecho do processo infecioso, como ofendida directa dos factos objecto dos presentes autos, teria legitimidade para se constituir assistente e deduzir pretensão ressarcitória, como, de resto, o fizeram as suas filhas. Paulo Pinto de Albuquerque considera proibida as declarações do assistente, bem como das partes civis como fonte originária. Na sua opinião, o legislador diferenciou cada regime relativo à inquirição das testemunhas (artigos 138.º e 348.º do CPP), às declarações do assistente, partes civis (artigos 145.º, 346.º e 347.º do CPP) e ao interrogatório do arguido (artigos 141.º a 143.º e 343.º do CPP). O artigo 129.º do CPP, quando se refere a uma inquirição da pessoa determinada, reporta-se somente às testemunhas, logo não vale como prova o depoimento indirecto de uma testemunha sobre o que se ouviu dizer de um assistente, parte civil ou arguido e, sendo o artigo 129.º uma norma excepcional, não pode ser aplicada analogicamente ao depoimento de uma testemunha sobre o que se ouviu dizer de um arguido, assistente ou partes civis. Damião da Cunha caminha na mesma linha orientadora ao referir que, quanto aos sujeitos processuais, são decisivas apenas as declarações processuais prestadas em audiência de julgamento. Defende uma teoria dos sujeitos processuais, em que se deve definir precisamente os papéis de cada sujeito, pois é completamente irrelevante um testemunho sobre o que se ouviu dizer de um sujeito processual. A necessidade de constituição formal de uma pessoa como sujeito processual distingue a sua participação processual da dos restantes participantes processuais, isto comparando o arguido, assistentes e partes civis, que necessitam dessa constituição formal, em detrimento das testemunhas, em relação às quais isso não se verifica. Assim, para estes dois autores é necessário que a fonte indirecta e a fonte originária sejam testemunhas e que a fonte do conhecimento seja chamada para depor, fixando assim os requisitos necessários para se valorar o depoimento indirecto. Assim, entendemos que o artigo 129º do CPP não pode nunca ser extensível às declarações do assistente, ainda que não formalmente constituído, pois coarcta os direitos de defesa do arguido/demandado, nomeadamente, o direito ao contraditório, previstos no artigo 32º, nºs 1 e 5 da CRP e 327º, nº 2, do CPP. Ao decidir como decidiu, violou a decisão recorrida as normas contidas nos artigos 32º, nºs 1 e 5 da CRP e 129º e 327º, nº 2, ambos do CPP, valorando prova proibida, nos termos do disposto no artigo 125º do CPP, a contrario sensu.
Pois bem.
Estipula o artigo 129º, nº 1, do Código de Processo Penal que, se o depoimento resultar do que se ouviu dizer a pessoas determinadas, o juiz pode chamar estas a depor. Se o não fizer, o depoimento produzido não pode, naquela parte, servir como meio de prova, salvo se a inquirição das pessoas indicadas não for possível por morte, anomalia psíquica superveniente ou impossibilidade de serem encontradas.
No caso concreto, as assistentes relataram o que ouviram dizer a sua mãe, sobre o facto do arguido não desinfectar a pele. Esta questão, reafirma-se, não é objecto do reenvio. Quanto à questão do reenvio, as assistentes nada disseram que a sua mãe tenha relatado. A ser assim, perde relevância a esta questão colocada pela recorrente.
Continuando.
Vejamos agora a motivação da decisão de facto da sentença recorrida nas partes mais relevantes para a decisão: “Aqui chegados, importa agora motivar a redacção dos pontos 49 a 52 dada como assente, objecto do reenvio para este segundo julgamento. … Como resulta da abundante prova (documental, pericial, testemunhal e até por declarações do próprio arguido) a mesoterapia comporta riscos. Tais riscos podem ser atribuídos ao fármaco (como o caso das alergias, de flush localizado ou generalizado, náuseas, vómitos, cefaleias e necrose cutânea), mas também podem ser induzidas pela própria técnica (e nestas contam-se as infecções, como as foliculites, abcessos, celulite). No caso em apreço, de acordo com o objecto do conspecto factual definido pelo Douto Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, não importará já debruçar-se este Tribunal sobre os riscos atribuídos ao fármaco, reiterando-se que, segundo o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, a vexata quaestio que importa dilucidar prende-se com a administração das injecções, e já não com a natureza do produto. Sobre a própria técnica, em declarações, foi o próprio arguido a referir que “existe um protocolo no procedimento que pode ter alguma perigosidade para a pessoa”. Ora, apesar destes riscos sempre existirem, cabe ao médico despender todos os esforços e adotar todas as cautelas no sentido de minimizar a possibilidade da sua ocorrência e de prestar ao doente o tratamento nas condições mais seguras possíveis. Tais condições dependem, nomeadamente, do cumprimento do protocolo médico e regras de higienização do local/material de tratamento e, também, da diligência a adotar pelo próprio médico, com base na experiência e vastos conhecimentos que se confiam que um profissional que, à data, exercia há 34 anos tenha. Cumpre, portanto, ao tribunal analisar o procedimento de administração do silício. Para melhor explanação da fundamentação, importa atender aos seguintes elementos: Como resultou da prova produzida (e se encontra já assente) de entre as técnicas alternativas praticadas na clínica do arguido, e apesar de não ser reconhecida como especialidade médica pela Ordem dos Médicos, o arguido fazia uso de técnicas de Mesoterapia, que consistem em injectar medicamentos em doses muito baixas, entre a epiderme e a derme. … Ora, logo no dia seguinte a esta sessão de mesoterapia, e precisamente nos dois locais em que foi administrada esta técnica, houve aparecimento de inflamação (calor, eritema) para além da manifestação de dor. Ora, este quadro inflamatório e doloroso não deixa qualquer margem para dúvidas de que as queixas se relacionam com o procedimento efetuado. Ao procedimento de administração do produto referiram-se sobretudo as testemunhas com formação médica, KK e II. Assim, II (médica de medicina física e de reabilitação aposentada, que durante cerca de duas décadas praticou esta técnica de mesoterapia no Hospital de S. José, em Lisboa) elucidou o tribunal acerca do procedimento de aplicação desta técnica, referindo que os cuidados são os seguintes: - deve proceder-se à desinfeção da pele, com bétadine ou um soro alcoólico, salientando que se houve uma desinfeção com um dos produtos mencionados, a diferença de temperatura é sentida pelo doente. - não se pode picar em pele lesada, verruga, sinal, mas apenas em pele sã; - deve utilizar-se material esterilizado, costumando a seringa e ampolas virem em embalagens unipessoais que são descartáveis. Mais referiu que no tratamento são aplicadas várias picadas na zona a tratar, de cm a cm, podendo ir de 20 até 60 picadelas (ou mais), dependendo do doente, o que significa o mesmo número de portas de entrada no organismo. Todavia, considerou que se se tiver de aplicar em duas zonas distintas, pode usar-se a mesma agulha. Mais esclareceu que depois da aplicação do tratamento, a zona da pele não tem que ser coberta. Passa-se desinfetante e a “porta fechou”. Não há perigo dessa zona vir a ser uma zona de entrada de bactérias porque a agulha utilizada é muito “fininha”, tendo salientado que o risco de entrada de bactérias ocorre logo na picada (ainda que viesse a admitir mais à frente que, em termos teóricos, esta picada pudesse ser uma porta de entrada, referiu ser ínfimo o risco de tal suceder). De igual forma, o depoimento da testemunha de defesa KK (médico, colega de curso e amigo do arguido de longa data; que já executou esta técnica durante alguns anos em Portugal, após ter frequentado o 1º curso realizado no nosso país, em out/nov. de 1989, ministrado pela sociedade francesa) recaiu sobre o procedimento prévio à aplicação da mesoterapia, esclarecendo que a pele tem que estar limpa, desinfetada com recurso a produtos desinfetantes; as mãos devem estar desinfetadas e preferencialmente devem ser usadas luvas, as quais também devem ser desinfetadas com álcool; e os fármacos devem estar dentro do prazo de validade. Esclareceu que os materiais usados são: (1) seringas com agulhas para a administração directa do tratamento através da pele do paciente, as quais por norma são descartáveis e esterilizadas; (2) seringa de transferência com uma agulha diferente (mais longa) para extracção dos fármacos de cada uma das ampolas para obter a substância a utilizar. … O depoimento das filhas da ofendida, EE e FF, ambas farmacêuticas, relevou sobretudo pelos desabafos que relataram ter ouvido da boca da falecida mãe (atendíveis em face do disposto art. 129º, nº1, in fine, do CPPenal) sobre o não cumprimento escrupuloso por parte do arguido dos cuidados de assepsia necessários à administração injetável do produto, e que, ainda que se prendessem sobretudo com a desinfeção da pele, se crê extensível à desinfeção das mãos do próprio arguido, da utilização de luvas, e bem assim, da desinfeção destas e de todo o material usado não descartável, e assim, não esterilizado de origem. Ambas referiram que a mãe lhes relatou, desde o 1º tratamento de mesoterapia, que o médico não desinfetava a pele, e o incómodo e desconforto que isso lhe causava. … Do cruzamento dos depoimentos destas duas últimas testemunhas, ambas com formação de farmácia (que sublinharam a necessidade de desinfeção da pele com álcool a 70º, seguida de imediato de inoculação), com os depoimentos das duas testemunhas com formação médica supra referidas, e ainda com o teor do Acórdão do Conselho Superior da Ordem dos Médicos de fls. 1590 a 1631 (onde se menciona expressamente que a esterilização deve ser efetuada apenas com álcool a 70%), percebe-se que o arguido estava obrigado à esterilização, quer do local, quer de todos os instrumentos utilizados no tratamento, onde se incluem as habituais luvas de látex, a seringa de transferência e respectiva agulha (mais longa), as ampolas, e o próprio tabuleiro onde aqueles instrumentos são pousados, com álcool de 70%. Com efeito, neste conspecto, o arguido, quando prestou declarações sobre o procedimento, começou por dizer que “há um protocolo no procedimento que pode ter alguma perigosidade para a pessoa”, fazendo parte do mesmo, “a desinfeção e a utilização das luvas”. Todavia, propugnou que efetuou esses procedimentos: esterilização, utilização das luvas, e cuidados de assepsia. Não obstante, o seu relato não se mostrou fluido, espontâneo, coerente, nem convincente. Pese embora se creia que o protocolo de atuação no ato médico seja “rotineiro”, como salientou o arguido, tal não implica que seja necessariamente seguido. O que decorre de juízes de experiência comum é, precisamente, o inverso – a ocorrência de alguma “leveza”, facilitismo e até incúria no seguimento à risca de todo o iter procedimental. Ora, quanto ao facto de ter efetuado a esterilização, não se compreende essa sua afirmação, porque, como alegou, tratando-se de seringas e agulhas descartáveis as mesmas já vêm esterilizadas. Não seria necessário desinfetar material que já viria, à partida, esterilizado de origem (seringas e agulha para a inoculação), a não ser que os invólucros estivessem abertos ou corrompidos. Quanto à adoção dos últimos cuidados (uso de luvas desinfetadas e cuidados de assepsia do local e material), temos que a conjugação das declarações do arguido com a restante prova documental não permite concluir que assim tenha acontecido. Foi evidenciado pela falecida AA o desconforto e estranheza sentidos quanto à falta de desinfeção da pele aquando dos tratamentos de mesoterapia, e desde o seu início, junto das filhas, as aqui assistentes EE e FF (ambas com formação superior em Farmácia). Na verdade, embora não existam testemunhas oculares do tratamento – sendo o arguido a única pessoa viva, neste momento, que nele esteve presente –, e embora o arguido negue a falta de esterilização/desinfeção do local/material utilizado e uso de luvas, a verdade é que é o próprio a admitir que não utilizou, nos cuidados de assepsia do local, material e instrumentos utilizados (não descartáveis, como o caso das ampolas, ou da seringa de transferência, ou do próprio tabuleiro onde pousou o material…) a solução alcoólica exigível: a esterilização do local deveria ter sido efetuada com álcool a 70º e o próprio admitiu que usou álcool a 90º ou Álcool Isopropílico – ambas as soluções alcoólicas não aconselhadas. De fazer notar que o Álcool Isopropílico notoriamente é um produto de limpeza profissional, ideal para a manutenção de componentes eletrónicos, vidros, inox e outros metais, e não para a desinfeção de locais/materiais associados a procedimentos médicos. De notar que ambas as soluções que o arguido diz ter utilizado têm em comum o facto de apresentarem uma secagem rápida, ficando este tribunal com a convicção de que o arguido escolheu mencioná-las, nas suas declarações, por conta da “questão sensitiva” causada na pele, na tentativa de fragilizar os depoimentos das filhas da paciente, apresentando uma explicação para a queixa daquela sobre a não desinfeção (explicação que consistiria na ausência da sensação de frio da aplicação do álcool na pele por conta da sua secagem mais rápida). … Ademais, o arguido quando prestou declarações em sede de julgamento, admite nas que “deu 2 picadas em cada uma das zonas (lombar e perna), e que, ambos os locais desenvolveram o mesmo processo infeccioso que evoluiu”. Portanto, é o próprio arguido, quando presta declarações a admitir também “não ter qualquer dúvida que a porta de entrada da infeção foram as picadas, nem nunca teve”. Ou seja, que a causa da morte esteve nas infecções que AA levou. Embora, não apresente qualquer justificação plausível para tal ocorrência, admitiu que as “picadas” foram a porta de entrada, admitindo assim que quando picou/feriu a pele uma bactéria conseguisse entrar por esse ferimento. Mais admitiu que a seguir à inoculação (introdução do líquido) desinfeta a pele; e que no momento em que dá a picada “pode ter apanhado alguma bactéria”. Aliás, adiantou, num primeiro momento, que não tem explicação para a infeção. Ora, partindo da versão do arguido que procedeu à desinfeção da pele após a inoculação, então o risco de a bactéria ter entrado em momento posterior é praticamente inexistente. Neste conspecto, importa trazer à colação os esclarecimentos prestados pela médica II quando explicou que “passa-se desinfetante e a porta fechou”, que “não há perigo dessa zona vir a ser uma zona de entrada de bactérias porque a agulha utilizada é muito “fininha” e que “o risco de entrada de bactérias é logo na picada”.
Analisando agora, ponto por ponto, os factos controvertidos:
O ponto 50-D apresenta a seguinte redacção:
50.D. A esterilização dos instrumentos utilizados e do local apenas deve ser efectuada com álcool a 70%.
Face ao ter do documento de fls. 1590 a 1631 supra referido, em concreto a fls. 56, quando refere que “quanto à esterilização do local, esta deve ser efectuada apenas com álcool a 70%”, nada há a apontar a tal matéria, entendendo-se que o dito local não se trata do local no corpo da paciente onde se dão as picadas, mas sim o local onde se encontra a paciente, em concreto, a marquesa. A fim de tornar mais explícito o significado da palavra local, o facto 50.D deve passar a ter a seguinte redacção: 50.D. A esterilização dos instrumentos utilizados e do local onde se encontra a paciente, em concreto, a marquesa, apenas deve ser efectuada com álcool a 70%.
O facto 50-E apresenta seguinte redacção:
50-E. O arguido usou álcool a 90% e álcool isopropílico para a desinfeção substâncias não adequadas para esterilização.
Como deixou bem claro o arguido, usou um preparado de etanol e álcool isopropílico para desinfecção da pele, comprou esse preparado existente para esse efeito, composto 90% de etanol e 10% de álcool isopropílico. Quanto ao material disse que era é borrifado com álcool. O arguido não disse que esterilizava o material com o preparado que comprava especificamente para desinfectar a pele. Quanto ao material apenas disse que borrifava com álcool, sem especificar as características desse álcool.
Assim, o ponto 50-E deve passar a ter a seguinte redacção: 50-E. O arguido usou um preparado composto por álcool a 90% e álcool isopropílico na desinfeção da pele, substâncias não adequadas para esterilização do material.
O ponto 50-F apresenta a seguinte redacção:
50-F. Não estavam correctamente esterilizados os instrumentos utilizados e o local do tratamento.
Adiantando, esta matéria terá que ser dada como não provada. Como resulta das declarações do arguido e do depoimento da testemunha NN, as seringas, agulhas e luvas eram adquiridas já esterilizadas e eram de utilização única. A marquesa era borrifada com álcool e aí era recolocado um tecido. No que respeita ao tabuleiro onde eram colocados os instrumentos, o arguido disse que o mesmo era estéril. Não foi produzida qualquer outra prova que infirme a acabada de referir.
Assim, deve ser dado como não provado o ponto 50-F, substituindo este o ponto 3 dos factos não provados. * Como já se disse supra, o ponto 50-I deve ser eliminado da factualidade provada. * Vejamos agora o ponto 49 dos factos provados, que também foi alvo de motivação na sentença recorrida, e que apresenta o seguinte teor:
49. A morte de AA por sépsis adveio, como causa directa, do facto de o arguido ter violado os mais elementares deveres de prudência e cuidado, que, no exercício da sua profissão, podia e devia ter tido.
Ora, por um lado, resulta da prova produzida que não foi o produto em si que desencadeou a infecção mas o processo de administração do produto. Por outro lado, resulta igualmente que foram violadas as legis artis ao injectar o produto, como, aliás, consta da factualidade provada e assente (cfr. poto 47).
Assim, o ponto 49 deve passar a ter a seguinte redacção:
49 – A morte de AA por sépsis adveio do procedimento de administração do produto através de injecções. A aplicação do produto por via injectável é violadora dos mais elementares deveres de prudência e cuidado, que, no exercício da sua profissão, podia e devia ter tido.
O ponto 50 apresenta o seguinte teor:
50. O arguido, ao actuar do modo descrito, sabia que violava as leges artis, contribuindo, assim, de forma directa, para desencadear um quadro infeccioso da pele das pernas e da pele da região lombar de AA, que evoluiu para uma fasceíte necrosante, com choque séptico e consequente morte de AA.
Está assente que: 46. O arguido sabia que, de acordo com as recomendações do fabricante do produto e do Infarmed, tal substância deveria ser usada apenas por via tópica e não por via injectável; 47. O arguido, ao actuar do modo descrito, sabia que violava as leges artis; 48. O arguido, actuando contra as recomendações técnicas de aplicação do referido produto, exerceu a sua profissão preterindo a atenção e o cuidado que o exercício de medicina requer, cuidado e atenção que lhe eram exigíveis e de que era capaz. Por outro lado, como já se disse, não foi o produto em si que desencadeou a infecção mas o processo de administração.
Assim, o ponto 50 deve passar a ter a seguinte redacção:
50 – O arguido, ao actuar do modo descrito, sabia que violava as leges artis. As injecções administradas desencadearam um quadro infeccioso da pele das pernas e da pele da região lombar de AA, que evoluiu para uma fasceíte necrosante, com choque séptico e consequente morte de AA.
O ponto 51 apresenta o seguinte teor: 51. O arguido não podia, enquanto médico que acompanhava AA, deixar de representar como possível que esta viesse a contrair uma infecção, por via da aplicação injectável do produto silício, que lhe viesse a causar infecção generalizada no corpo e consequente morte.
Face aos riscos inerentes aos tratamentos de mesoterapia que o próprio arguido reconhece, é possível que os mesmos venham a desencadear uma inflamação ou até mesmo uma infecção. O que já não é previsível é que, respeitando o médico o protocolo na administração do produto, o doente contraia uma infecção generalizada no corpo que o conduza à morte. Assim, o ponto 51 passará a ter a seguinte redacção:
51 – O arguido não podia, enquanto médico que acompanhava AA, deixar de representar como possível que esta viesse a contrair uma infecção, por via da aplicação injectável do produto silício.
Consequentemente, deve ser dado como não provado que: - o arguido não podia deixar de representar como possível que AA viesse a contrair uma infecção generalizada no corpo e que lhe causasse a morte.
O ponto 52 apresenta o seguinte teor: 52. Ao agir como supra descrito, o arguido criou grave perigo para a vida, corpo e saúde de AA, que veio a morrer em virtude do relatado comportamento do arguido.
Na sequência do que já ficou dito, o ponto 52 deve passar a ter a seguinte redacção:
52 – Ao agir como supra descrito, o arguido criou perigo para o corpo e saúde de AA.
Consequentemente, deve ser dado como não provado que: - ao agir como supra descrito, o arguido criou grave perigo para a vida de AA.
*
Aqui chegados, depois do conhecimento da impugnação da matéria de facto nos dois recursos, para uma melhor compreensão da subsunção jurídica, elencam-se agora os factos provados dos pontos 49 a 52, com as alterações acabadas de efectuar:
49 – A morte de AA por sépsis adveio do procedimento de administração do produto através de injecções. A aplicação do produto por via injectável é violadora dos mais elementares deveres de prudência e cuidado, que, no exercício da sua profissão, podia e devia ter tido.
50-A. Foi efetuada colheita à AA, por exsudação da ferida a 10-07-2013, a fim de ser efectuado exame cultural bacteriológico, sem crescimento bacteriológico ao fim de 5 dias de incubação mas com identificação de staphylococcus aureus em 13-07-2013, pelas 12h35.
50-B. As embalagens utilizadas pelo arguido não estavam contaminadas por agente patológico – fls. 491.
50.C. Os instrumentos que devem ser utilizados na administração da técnica de mesoterapia são seringas e agulhas para a inoculação da solução final na pele (é necessário obter uma mistura de 2/3 fármacos), seringa de transferência e respectiva agulha mais longa e estéril (para efectuar a extracção dos fármacos de cada uma das ampolas para dentro das seringas de inoculação), luvas e marquesa desinfectadas- Facto aditado.
50.D. A esterilização dos instrumentos utilizados e do local onde se encontra a paciente, em concreto, a marquesa, apenas deve ser efectuada com álcool a 70%.
50-E. O arguido usou um preparado composto por álcool a 90% e álcool isopropílico na desinfeção da pele, substâncias não adequadas para esterilização do material.
50 – O arguido, ao actuar do modo descrito, sabia que violava as leges artis. As injecções administradas desencadearam um quadro infeccioso da pele das pernas e da pele da região lombar de AA, que evoluiu para uma fasceíte necrosante, com choque séptico e consequente morte de AA.
51 – O arguido não podia, enquanto médico que acompanhava AA, deixar de representar como possível que esta viesse a contrair uma infecção, por via da aplicação injectável do produto silício.
52 – Ao agir como supra descrito, o arguido criou perigo para o corpo e saúde de AA.
Procede, assim, parcialmente, esta questão suscitada pelos recorrentes. * No que respeita aos elementos subjectivos do crime sub judice, alega a demandada C... que a sentença recorrida enferma do vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada. Afirma que a sentença não descreve, nem imputa ao arguido qualquer facto atinente ao preenchimento do elemento subjectivo. Ou seja, não dá como provado que o arguido, ao proceder às injecções de silício orgânico, sem cabal esterilização dos instrumentos por si utilizados, bem sabia que actuava em violação do dever objectivo de cuidado que se lhe impunha, menosprezando as normas da assepsia a que estava adstrito, não se coibindo, contudo, de agir, procedendo à aplicação subcutânea do silício orgânico. Outrossim, não dá como assente que o arguido, enquanto médico, ao actuar dessa forma, não podia deixar de representar como possível que, por força das “picadas” sem conveniente e adequada esterilização dos instrumentos, a Dra AA pudesse vir a contrair uma infecção com possível produção do resultado morte.
Ora, tendo resultado não provado que não estavam correctamente esterilizados os instrumentos utilizados e o local do tratamento, bem como que o arguido não podia deixar de representar como possível que AA viesse a contrair uma infecção generalizada no corpo e que lhe causasse a morte, e atendendo ainda à redacção que agora se conferiu aos pontos 50-D, 50-E, 49, 50 e 51, esta questão suscitada pela C... fica prejudicada. *
Passa-se agora a apreciar se o tribunal a quo violou o princípio in dubio pro reo (questão suscitada em ambos os recursos)
Alega a C... que o princípio em causa se impõe ao julgador não ao longo da valoração da prova, mas sim findo o cotejo dos meios probatórios produzidos no julgamento; impõe-se ao julgador quando conclui que, da valoração da prova, não pode extrair um juízo conclusivo seguro da culpabilidade do arguido beyond reasonable doubt. Sem embargo, não se exige que o julgador verbalize a existência da dúvida. Basta que, do teor da decisão, mormente do exame crítico da prova, seja detectável que o julgador, aquando da fixação dos factos assentes, viu o seu raciocínio lógico-dedutivo interrompido pela dúvida. Ao optar em detrimento do arguido, viola o decisor o princípio sob escrutínio. O Tribunal recorrido acaba por confessar que cabia ao arguido a prova dos factos por si alegados, em clara violação do princípio da presunção de inocência, consagrado no artigo 32º, nº 2, da Lei Fundamental! De tudo o quanto supra se explanou, resulta a violação do dever de fundamentação previsto no artigo 374º, n,º 2, do CPP, assim como do princípio in dúbio pro reo, por desrespeito do princípio da livre apreciação da prova segundo as regras da experiência e da livre convicção, nos termos do disposto no artigo 127º do CPP, assim como dos princípios da presunção de inocência e do in dúbio pro reo, previstos no artigo 32º, nº 2 da CRP. Também o arguido demonstra a sua discordância no que respeita à motivação de facto e de direito, bem como à relevância e interpretação dada a todo o acervo probatório constante dos autos - mormente à omissão e/ou não alusão de provas existentes no processo e, sobretudo, à notória violação do princípio in dubio pro reo.
Pois bem.
Relacionado com o princípio in dubio pro reo, estipula o artigo 32º, nºs 1 e 2, da CRP que:
1. O processo criminal assegura todas as garantias de defesa, incluindo o recurso. 2. Todo o arguido se presume inocente até ao trânsito em julgado da sentença de condenação, devendo ser julgado no mais curto prazo compatível com as garantias de defesa. É a consagração constitucional do princípio da presunção de inocência que se impõe aos juízes ao longo de todo o processo e diz respeito ao próprio tratamento processual do arguido.
Por sua vez, o princípio in dubio pro reo é exclusivamente probatório e aplica-se quando o tribunal tem dúvidas razoáveis sobre a verdade de determinados factos – cfr. neste sentido o Ac. da RC de 12.8.2018, in www.dgsi.pt.
Assim, “o princípio in dubio pro reo constitui uma imposição dirigida ao julgador no sentido de se pronunciar de forma favorável ao arguido, quando não tiver certeza sobre os factos decisivos para a decisão da causa” – cfr. Ac. do STJ de 12.3.2009, in dgsi.pt.
No mesmo sentido encontra-se o Ac. da RL de 14.2.2010, in www.dgsi.pt, segundo o qual “o princípio in dubio pro reo não é mais que uma regra de decisão: produzida a prova e efectuada a sua valoração, quando o resultado do processo probatório seja uma dúvida, uma dúvida razoável e insuperável sobre a realidade dos factos, ou seja, subsistindo no espírito do julgador uma dúvida positiva e invencível sobre a verificação, ou não, de determinado facto, o juiz deve decidir a favor do arguido, dando como não provado o facto que lhe é desfavorável”. Continua o mesmo aresto dizendo que “um non liquet sobre um facto da acusação recai materialmente sobre o Ministério Público, enquanto titular da acção penal, pois que sobre o arguido não impende qualquer dever de colaboração na descoberta da verdade. O “in dubio pro reo” só vale para dúvidas insanáveis sobre a verificação ou não de factos (objectivos ou subjectivos) relevantes, quer para a determinação da responsabilidade do arguido, quer para a graduação da sua culpa. Não se trata, porém, de “dúvidas” que o recorrente entende que o tribunal recorrido não teve e devia ter tido, pois o “in dubio…” não se aplica quando o tribunal não tem dúvidas. Ou seja, o princípio “in dubio pro reo” não serve para controlar as dúvidas do recorrente sobre a matéria de facto, mas antes o procedimento do tribunal quando teve dúvidas sobre a matéria de facto”.
Revertendo ao caso concreto, vejamos algumas passagens da motivação da decisão de facto:
Da concatenação de toda a prova produzida com todo o conspecto factual já consolidado, parece emergir, com suficiente grau de certeza, que existiu todo um processo anómalo que se iniciou com esta sessão de tratamento de mesoterapia e que terminou no infeliz decesso de AA. … Como inicialmente se sublinhou, sempre caberá ao médico atuar da forma mais diligente possível, o que implica o cumprimento de todos os deveres de cuidado que sobre ele recaem. Da conjugação de toda a prova produzida resultou a convicção do tribunal de que o arguido executou as quatro inoculações (introdução de, pelo menos, quatro agulhas, na pele, partindo da versão do arguido de que teria dado duas injeções em cada um dos dois locais) em condições tais que se deu a introdução da bactéria no corpo da ofendida. Pelo exposto, e em síntese, não se pode afirmar que todos os procedimentos devidos neste tipo de tratamento foram observados no caso concreto, sendo o próprio arguido a admitir, desde logo, duas falhas essenciais: 1º) A utilização do álcool a 90%, quando para a esterilização (do tabuleiro, das ampolas, das luvas, da seringa de transferência… do local) deveria ter utilizado o álcool de 70% Só por aqui, não foram, pois, observados sem falhas os procedimentos que se impunham ao arguido, permitindo a conjugação da prova afirmar que existe uma relação entre as picadas de mesoterapia e o quadro infecioso da ofendida AA, pois foram, inequivocamente, os locais de entrada da infeção. 2º) O arguido era conhecedor do agravamento do quadro, já que foi sendo contactado várias vezes pela ofendida nos dias seguintes (pelo menos, por três vezes), tendo-a mesmo observado no dia 5 de julho e colocado a hipótese de se tratar de infeção cutânea (altura em que optou por a medicar com antibiótico tópico), e de a ter submetido à aplicação de “manga pneumática” (aparentemente contra a vontade da paciente, como admitiu), quando a pressoterapia é uma técnica contra-indicada em local de inflamação. Todavia, o seu relato não se mostrou fluido, espontâneo, desinteressado, nem convincente. Pese embora se creia que o protocolo de actuação no acto médico seja “rotineiro”, como salientou o arguido, tal não implica que seja necessariamente seguido. O que decorre de juízes de experiência comum, é precisamente, o inverso, a ocorrência de alguma “leveza”, facilitismo e até incúria no seguimento à risca de todo o iter procedimental. Aqui chegados, somos a concluir que a prova reunida apreciada segundo os parâmetros de valoração que discorremos inicialmente, nomeadamente levando em conta que as provas não têm forçosamente que criar no espírito do julgador uma absoluta certeza dos factos a provar – certeza essa que, muitas vezes, seria impossível, ou quase impossível de alcançar- permite formular um juízo com um grau de probabilidade tão elevado que é o para as necessidades da vida, de forma a se poder concluir, sem dúvida razoável, que efectivamente, o arguido na sua profissão de médico não despendeu todos os esforços, nem adotou todas as cautelas no sentido de minimizar a possibilidade da ocorrência do quadro infecioso originado com as injecções, nem prestou à doente o tratamento nas condições mais seguras possíveis (cumprimento defeituoso do protocolo médico e regras de higienização do local/material de tratamento e, também, da diligência a adotar pelo próprio médico, com base na experiência e vastos conhecimentos que se confiam que um profissional que exerce há 34 anos tenha.
O tribunal a quo deixou bem claro na motivação da decisão de facto, já supra transcrita, que não teve quaisquer dúvidas de que o arguido praticou os factos sub judice. Descreveu, com rigor, porque razão se convenceu em determinado sentido. Assim, da motivação da decisão de facto da sentença recorrida perpassa que o julgador convenceu-se firmemente da factualidade que deu como provada. A dúvida relevante é a dúvida do julgador após produção da prova e não a dúvida do recorrente ou mesmo a dúvida que o recorrente entende que o tribunal deveria ter tido. Da análise da sentença recorrida, conclui-se que o julgador ficou firmemente convencido da matéria que deu como provada, não lhe restando qualquer dúvida sobre a mesma. Resulta da sentença recorrida um estado de certeza e não de incerteza. Acresce que não se vislumbra que o julgador não tivesse demonstrado dúvidas porque não quis ou porque não as quis considerar relevantes. Simplesmente, convenceu-se firmemente da matéria que deu como provada.
Assim sendo, não existe fundamento para o pretendido recurso ao princípio “in dubio pro reo”, ficando afastada a sua violação pelo tribunal recorrido.
Também neste particular não assiste razão aos recorrentes. *
Próxima questão: - se o arguido deve ser absolvido do crime de homicídio por negligência por que foi condenado, previsto e punido pelo artigo 137º, nº 1, do Código Penal, por não se encontrarem preenchidos os respectivos elementos típicos, objectivos e subjectivos, bem como do pedido de indemnização civil (questão suscitada em ambos os recursos).
Alega o arguido que a sentença recorrida não descreve, nem imputa ao arguido qualquer facto atinente ao preenchimento do elemento subjetivo de acordo com a aludida Acusação, pelo contrário, pois o Tribunal a quo a este propósito refere que “[…] o arguido tinha que ter conhecimento do protocolo médico e das regras mais adequadas de higienização do local/material de tratamento, e, portanto, estava dotado de plena aptidão para cumprir o dever objectivo de cuidado que se lhe impunha [vg abstendo-se, desde logo, de empregar uma solução alcoólica de 90% ou álcool isopropílico em vez do exigível álcool a 70% ], não se descortinando que não pudesse deixar de prever que da falta de adequada esterilização pudesse decorrer o sobredito processo infecioso, e que este pudesse evoluir para uma infecção generalizada no corpo e consequente morte de AA.” (pág. 62 da Sentença). Ora, a não serem dados como provados estes factos jamais se pode concluir pela prática do ilícito aqui imputado, pois é jurisprudência pacífica (vd. Acórdão Uniformizador de Jurisprudência nº 1/2015, proferido pelo S.T.J. e, 27.01.2015) que não é lícito, ao julgador, sanar a deficiência da Acusação Pública no que diz respeito aos factos integradores do elemento subjetivo através do mecanismo previsto no artigo 358º do CPP: «A falta de descrição, na acusação, dos elementos subjectivos do crime, nomeadamente dos que se traduzem no conhecimento, representação ou previsão de todas as circunstâncias da factualidade típica, na livre determinação do agente e na vontade de praticar o facto com o sentido do correspondente desvalor, não pode ser integrada, em julgamento, por recurso ao mecanismo previsto no artigo 358.º do Código de Processo Penal.». Porquanto, também por este prisma o Tribunal a quo, ao condenar o arguido pela prática de um crime de homicídio por negligência (médica) sem a necessária imputação do tipo subjetivo do crime em apreço, violou o disposto no artigo 137º, nº 1 do Código Penal. Mais alega o arguido que jamais se poderá dizer que a morte da Sra. AA por sépsis adveio, como causa direta, da atuação do arguido e, sobretudo, que o arguido descurou a devida assepsia e, como tal, violou deveres de prudência e cuidado no exercício da sua profissão, Posto isto, vistos e analisada toda a matéria probatória aqui produzida, forçoso é de concluir que está justificada a licitude da conduta do aqui recorrente, como (boa) prática médica - do ponto de vista técnico e medicinal -, pelo que toda a matéria probatória constante dos autos impunha necessariamente a absolvição do arguido. Parece-nos óbvio que o arguido não violou a leges artis e nem tão pouco causou a morte de AA, pelo que o Tribunal a quo andou mal ao condená-lo pela prática de um crime de homicídio por negligência. Ora, no caso em preço, a imputação objetiva ao arguido deverá ser linearmente afastada, seja porque não constitui a causa adequada do resultado, seja porque não era previsível, seja pela interrupção no iter causal operada pela vítima quando, por um lado, cessou a medicação ministrada pelo arguido, nos primórdios do quadro inflamatório por si desenvolvido, sem nada dizer a tal respeito, seja por força da queda que sofreu, seja pela desinfeção de água oxigenada e betadine (com compressas e ligaduras) usada e aplicada pela sua filha, ou por qualquer motivo ou fator de risco que de todo se desconhece. Ora, no caso aqui em crise, está patente que inexistiu qualquer violação das leges artis, pois a conduta do arguido não foi causa direta e necessária da morte da falecida AA, o que foi admitido em juízo pelo perito: “Não é possível determinar em concreto quando é que a bactéria infeciosa entrou na paciente nem é possível dizer-se qual a porta de entrada.” (cfr. minutos 57m30ss a 57m40ss do seu depoimento) acrescentando, ainda, que “...a autópsia era muito relevante, sem dúvida nenhuma. Nós não sabemos qual a causa exata da morte...não é possível concluir a causa da morte!”. “Por isso é que a autópsia era muito importante.” (cfr. registo áudio compreendido entre a 1h00m05ss e 1h00m47ss do seu depoimento).
Por sua vez, alega a demandada C... que a acção típica deve ser a causa do resultado, já que a incriminação sob escrutínio consiste num crime de resultado, devendo ser uma condição indispensável do resultado, de acordo com as leis científicas, em obediência à teoria das condições equivalentes restringida pelo critério da conformidade com as leis científicas. Logo, a imputação objectiva supõe um processo causal dominável pela acção humana. Ficam, pois, afastadas as consequências imprevisíveis e acidentais da acção humana, por configurar caso fortuito ou evento adverso não previsível para o esculápio. O julgador deverá proceder a este juízo de acordo com o conhecimento resultante da experiência comum e os conhecimentos especiais do agente, num juízo ex ante. A intervenção do terceiro ou da vítima no processo causal tem o efeito de interromper o processo causal, salvo quando essa intervenção do terceiro ou da vítima fosse previsível para o agente. Ocorrendo interrupção do processo causal por um terceiro ou pela vítima, no quadro da conduta negligente em apreço nos autos, deverá concluir-se pela impunidade da conduta do agente. O arguido não praticou qualquer conduta violadora do dever objectivo de cuidado que sobre si impendia, tendo procedido à esterilização dos instrumentos e local onde praticou o acto médico. Não se logrou demonstrar a prática de qualquer acto que, necessária e directamente, levasse ao desfecho trágico da Dr.ª AA. Sem mais delongas, conclui-se que a conduta do arguido não preenche os elementos típicos do crime de homicídio por negligência pelo qual foi condenado, ressumbrando violados pelo Tribunal a quo os preceitos contidos nos artigos 10º, 15º e 137º, n.º 1, todos do Código Penal, devendo a decisão recorrida ser revogada e substituída por outra que o absolva. Acaso se considere que ocorreu violação das leges artis, a conduta do arguido não foi causa directa e necessária do resultado morte. Sendo resultado morte um elemento objectivo do tipo, a conduta nunca poderá ser subsumível no tipo pelo qual foi o arguido condenado, devendo, como tal, ser absolvido. O consentimento do paciente é um dos requisitos da licitude da atividade médica, atento o preceituado nos artigos 5.º da CEDHBioMed e 3.º, n.º 2 da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, devendo ser livre e esclarecido para gozar de eficácia. Demonstrado nos autos ficou que: - a vítima padecia de patologia osteoarticular degenerativa – fls. 35; - era directora técnica e proprietária de uma farmácia – ponto 80 dos factos provados; - já realizara o mesmo tratamento em vezes anteriores sem qualquer reacção ao produto injectado, do que se extrai, no quadro das regras da normalidade do acontecer e das presunções judicias que o tratamento era eficaz no debelar das dores de que sofria – ponto 67º dos factos provados; - fora informada pelo arguido dos benefícios e riscos da terapêutica aplicada; - a intervenção foi medicamente indicada, tendo conduzido a uma melhoria da saúde da paciente, para afastar as consideráveis dores de que padecida atenta a sua doença degenerativa. Logo, conclui-se que a vítima era sabedora dos riscos em que incorreria, através do tratamento por injecções por micro-agulhas, mas atento o equilíbrio risco/benefício, consentiu na eventual realização da complicação infeciosa. Deveria a sentença recorrida ter absolvido o arguido do crime pelo qual foi acusado, ainda que devesse previamente requalificar juridicamente a conduta, por verificação da causa de exclusão da ilicitude prevista nos artigos 38º e 149º, ambos do CP. Ao não ter decidido desta forma, violou o Tribunal recorrido o disposto nos artigos 38º, 148º e 149º, todos do CP.
Pois bem.
Nos termos do artigo 137º, nº 1 do Código Penal “quem matar outra pessoa por negligência é punido com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa”.
Protege a norma em apreço o bem jurídico vida da pessoa. O tipo legal de ilícito pressupõe um resultado – a morte - que terá de ser imputado à conduta do agente, a título de negligência. De acordo com o disposto no artigo 13º do Código Penal “só é punível o facto praticado com dolo, ou, nos casos especialmente previstos na lei, com negligência”. É, aliás, um dos princípios basilares do Código Penal, residindo na compreensão de que toda a pena tem de ter como suporte axiológico-normativo uma culpa concreta. Estipula o artigo 15º do Código Penal que, age com negligência quem, por não proceder com o cuidado a que segundo as circunstâncias está obrigado e de que é capaz, representar como possível a realização de um facto que preenche um tipo de crime mas actuar sem se conformar com essa realização – negligência consciente – ou não chegar sequer a representar a possibilidade de realização do facto – negligência inconsciente. Assim, na negligência consciente, o agente admite, prevê como possível a realização do resultado típico, mas confia, podendo e devendo não confiar, em que o mesmo não se realiza. Não se conforma com a realização desse resultado, pois caso se conformasse haveria dolo eventual. Na conformação ou não conformação com o resultado está o diferenciador entre o dolo eventual e a negligência consciente. Na negligência inconsciente o agente nem sequer representa a possibilidade da realização do facto.
Da noção legal de negligência, resultante do artigo 15º do Código Penal, ressalta a ideia de um não proceder com cuidado: a negligência é a omissão de um dever objectivo de cuidado, adequado, segundo as circunstâncias concretas de cada caso, a evitar a produção de um evento lesivo. A estruturação do crime como acção típica, ilícita e culposa, elaborada para o paradigma do crime doloso por acção, vale igualmente para o crime negligente por acção. Com efeito, o fundamento de todo o facto punível é um comportamento voluntário, uma conduta humana socialmente relevante e isto vale tanto para o crime doloso como para o crime negligente. Ora, a negligência é um elemento do tipo legal previsto e punido pelo artigo 137.º, nº 1 do Código Penal. Negligência que, como já se referiu, é a violação de um dever de cuidado: não proceder com o cuidado a que, segundo as circunstâncias está obrigado. Dever de cuidado que tem no tipo um sentido objectivo - é o cuidado que o agente deve ter - e que se traduz no dever de representar ou prever o perigo para o bem jurídico tutelado pela norma jurídica e de valorar esse perigo, e o dever de praticar um comportamento externo correcto, com vista a evitar a produção do resultado típico, o dever de agir por forma a evitar que o resultado ocorra. Assim, o tipo de facto negligente é definido por três elementos: o reconhecimento do risco da realização do tipo legal; o cuidado juridicamente exigível; a previsão do resultado típico.
Mas como se determina o grau de diligência exigida ao agente? A sua medida deverá ir procurar-se no cuidado que, segundo a maneira de ser corrente no respectivo meio social se exige a uma pessoa que se encontre nas mesmas condições do agente. A delimitação do dever de cuidado faz-se através de um juízo “ex ante” em que se atende ao cuidado exigível a um homem médio, um homem medianamente conhecedor e diligente, do tipo social do autor, colocado na situação concreta deste e com os conhecimentos especiais que o agente tinha. Assim sendo, a tipicidade da conduta só fica afastada caso o agente tenha actuado em conformidade com o dever objectivo de cuidado. Por outro lado, o dever de cuidado omitido devia ser adequado a evitar a realização do tipo legal de crime. Daqui resulta que a mera omissão dum dever jurídico não implica desde logo a possibilidade objectiva de negligência. É necessário que esse dever vise obstar à produção do evento, isto é, seja adequado a evitá-lo. O nexo de imputação objectiva deve negar-se quando for certo (bastando uma probabilidade próxima da certeza) que o resultado produzido pela conduta descuidada do agente se teria igualmente produzido caso o agente tivesse tido o comportamento conforme ao dever de cuidado. Acresce que o resultado típico e o processo causal que o originou têm que ser previsíveis nos seus elementos essenciais. O agente tem de prever o resultado como consequência normal, típica, da sua conduta. Porém, neste momento, a previsibilidade do resultado não é apreciada subjectivamente uma vez que não se trata de saber se o agente concreto previu ou podia ter previsto o resultado. Trata-se de uma previsibilidade determinada de acordo com as regras gerais da experiência dos homens, de uma apreciação objectiva dos acontecimentos em função da capacidade de conhecer e avaliar que um homem normal do mesmo tipo social do autor teria, munido dos conhecimentos pessoais deste. Este critério objectivo permite afastar do universo dos factos típicos negligentes as condutas que violam um dever de cuidado ocasionando eventos estranhos, anómalos, nunca previsíveis por um homem observador normal. Fazendo um juízo de prognose póstuma vai ver-se se era previsível, para uma pessoa média naquela situação, prever determinado acontecimento. E sempre tendo em atenção o resultado em concreto como se passou; isto é, não se vai saber se poderia ou não, por exemplo, advir o resultado morte por um processo possível, mas vai analisar-se se a morte, como se passou, deverá ou não ser previsível, ou considerada consequência de determinado comportamento. Quer dizer, é um nexo de causalidade adequada que vem a fixar objectivamente os deveres de previsão, que, quando violados, podem dar lugar à negligência, ou seja, que vem dizer quando se deve prever um resultado como consequência duma conduta, em si ou na medida em que se omitem as cautelas e os cuidados adequados a evitá-lo. Nos crimes negligentes a consciência da ilicitude traduz-se em o agente dever conhecer que as medidas de cuidado objectivamente devidas no caso concreto constituem verdadeiros deveres jurídicos e, tratando-se de crimes negligentes de resultado, que o evento produzido constitui um resultado juridicamente desaprovado.
Voltando ao caso concreto, frisa-se a seguinte factualidade provada e não provada (já com as alterações supra mencionadas).
Factos provados: … 42 – AA contraiu uma infecção por via da aplicação injectável do produto silício; 43 – E que lhe veio a causar infecção generalizada no corpo e consequente morte; 44 – O produto MESOESTETIC – X Pprof 013 – Ampolas regeneradoras de silício orgânico – 5ml/017fl. Oz destinava-se, segundo o fabricante, a aplicação por via tópica; 45 – Ao aplicar o referido produto por via injectável, sabia o arguido que agia contra as recomendações do fabricante e do Infarmed; 46 – O arguido sabia que, de acordo com as recomendações do fabricante do produto e do Infarmed, tal substância deveria ser usada apenas por via tópica e não por via injectável; 47 – O arguido, ao actuar do modo descrito, sabia que violava as leges artis; 48 – O arguido, actuando contra as recomendações técnicas de aplicação do referido produto, exerceu a sua profissão preterindo a atenção e o cuidado que o exercício de medicina requer, cuidado e atenção que lhe eram exigíveis e de que era capaz; 49 – A morte de AA por sépsis adveio do procedimento de administração do produto através de injecções. A aplicação do produto por via injectável é violadora dos mais elementares deveres de prudência e cuidado, que, no exercício da sua profissão, podia e devia ter tido. 50-A. Foi efetuada colheita à AA, por exsudação da ferida a 10-07-2013, a fim de ser efectuado exame cultural bacteriológico, sem crescimento bacteriológico ao fim de 5 dias de incubação mas com identificação de staphylococcus aureus em 13-07-2013, pelas 12h35. 50-B. As embalagens utilizadas pelo arguido não estavam contaminadas por agente patológico – fls. 491. 50.C. Os instrumentos que devem ser utilizados na administração da técnica de mesoterapia são seringas e agulhas para a inoculação da solução final na pele (é necessário obter uma mistura de 2/3 fármacos), seringa de transferência e respectiva agulha mais longa e estéril (para efectuar a extracção dos fármacos de cada uma das ampolas para dentro das seringas de inoculação), luvas e marquesa desinfectadas- Facto aditado. 50.D. A esterilização dos instrumentos utilizados e do local onde se encontra a paciente, em concreto, a marquesa, apenas deve ser efectuada com álcool a 70%. 50-E. O arguido usou um preparado composto por álcool a 90% e álcool isopropílico na desinfeção da pele, substâncias não adequadas para esterilização do material. 50 – O arguido, ao actuar do modo descrito, sabia que violava as leges artis. As injecções administradas desencadearam um quadro infeccioso da pele das pernas e da pele da região lombar de AA, que evoluiu para uma fasceíte necrosante, com choque séptico e consequente morte de AA. 51 – O arguido não podia, enquanto médico que acompanhava AA, deixar de representar como possível que esta viesse a contrair uma infecção, por via da aplicação injectável do produto silício. 52 – Ao agir como supra descrito, o arguido criou perigo para o corpo e saúde de AA.
Não provados:
- No dia 02/07/2013, o demandado aplicou as injecções sem desinfectar prévia e devidamente os locais em que aquelas foram administradas; - Não estavam correctamente esterilizados os instrumentos utilizados e o local do tratamento (50.F); - O arguido não podia deixar de representar como possível que AA viesse a contrair uma infecção generalizada no corpo e que lhe causasse a morte; - Ao agir como supra descrito, o arguido criou grave perigo para a vida de AA.
Da análise da factualidade provada, com destaque para a supra mencionada, destacam-se duas situações. Uma delas, o facto de ser recomendado o uso tópico do produto e este ter sido injectado. Neste caso houve violação de leges artis e a consequente violação do dever objectivo de cuidado. Porém, não foi o produto em si, administrado dessa forma injectável, que veio a provocar a infecção sofrida por AA e consequente morte. Outra situação é o procedimento de injecção do produto. Isto é, as picadas com as agulhas na administração do produto, que, como disse o Sr. Perito, eram uma porta de entrada de bactérias. E, de facto, provou-se que na colheita efectuada foi identificada a bactéria staphylococcus aureus. De qualquer forma, em relação a esta situação das picadas das agulhas, resultou não provado que, no dia 02/07/2013, o demandado aplicou as injecções sem desinfectar prévia e devidamente os locais em que aquelas foram administradas e que não estavam correctamente esterilizados os instrumentos utilizados e o local do tratamento (50.F). Provou-se que as embalagens utilizadas pelo arguido não estavam contaminadas por agente patológico. Em relação ao procedimento de administração do produto (picadas das agulhas) não se vislumbra a violação de dever objectivo de cuidado por parte do arguido apesar de resultar provado que a morte de AA por sépsis adveio do procedimento de administração do produto através de injecções. Assim, se por um lado, temos a violação de um dever objectivo de cuidado na administração do produto via injectável, não resultou provado que o produto aplicado dessa forma fosse o causador da infecção. Por outro lado, não temos provada uma violação do dever objectivo de cuidado em relação ao procedimento de administração do produto (picadas das agulhas), que fosse causal da infecção. É certo que o acto de injectar pode sempre provocar uma infecção mas, só por si, com os cuidados indispensáveis de desinfecção e esterilização, não traduz a violação de qualquer dever que tivesse que ser cumprido ou mesmo a violação de dever objectivo de cuidado. Se assim não fosse, então nunca poderiam ser administrados medicamentos por via injectável, mormente a pessoas idosas. Ora, como resulta da factualidade provada, a morte de AA por sépsis adveio do procedimento de administração do produto através de injecções. Procedimento este, repete-se, em relação ao qual não se provou qualquer violação de dever objectivo de cuidado causal da morte. A recomendação do Infarmed e do fabricante do produto, no que respeita à forma de aplicação deste, está relacionada com o próprio produto em si e eventuais efeitos danosos para a saúde, e não com o procedimento de aplicação desse produto, como por exemplo a desinfecção, esterilização, ou falta dela no momento de administração. Daí o Sr. Perito ter afirmado nos esclarecimentos que prestou em sede de julgamento que o nexo de causalidade não tem nada a ver com a informação do Infarmed. É certo que sempre se poderá dizer que se o arguido aplicasse o produto topicamente, não picasse com as agulhas a doente, a morte não teria ocorrido. O que nos encaminha para a teoria da “conditio sine qua non” ou das condições equivalentes, segundo a qual “cada uma das condições, sem a qual se não verificaria o resultado (sine qua non), seria também causa, e, assim, todas as condições seriam equivalentes para o efeito de a cada uma se poder imputar o resultado” – cfr. Eduardo Correia, Direito Criminal, 1971, pág. 253. Teoria esta há muito afastada tanto pela doutrina como pela jurisprudência.
De facto, “para que se possa estabelecer um nexo de causalidade entre um resultado e uma acção não basta que a realização concreta daquele se não possa conceber sem esta: é necessário que, em abstracto, a acção seja idónea para causar o resultado. Para que uma acção se possa dizer causa de um resultado é pois mister que em abstracto seja adequada a produzi-lo. É preciso que este seja uma consequência normal típica daquela” – ob. supra citada, pág. 257.
Ora, não se pode afirmar que a infecção generalizada, tal como ocorreu, seja uma consequência normal, típica, das picadas das agulhas. Mesmo que ocorra, é de verificação rara e também neste caso a causalidade deve considerar-se excluída - ob. supra citada, pág. 258-259.
Ao que fica dito, acresce que para imputar o resultado à acção é necessário que o perigo que se concretizou no resultado seja um daqueles em vista dos quais a acção foi proibida, quer dizer, seja um daqueles que corresponde ao fim de protecção da norma de cuidado. Se tal não sucede deve ter-se por excluída a imputação objectiva – cfr. Figueiredo Dias, in Direito Penal, Parte Geral, Tomo I, 2ª ed., pag. 339. No caso sub judice, as normas de cuidado traduzem-se nas orientações do Infarmed e do fabricante do produto que, como se disse, estão relacionadas com o próprio produto em si e eventuais efeitos danosos para a saúde, sendo que o perigo que se concretizou no resultado (picadas das agulhas na injecção do produto) não se traduz no perigo em vista do qual a acção foi proibida. Isto é, não se traduz num perigo correspondente ao fim de protecção da norma de cuidado. Como se disse, o agente tem de prever o resultado como consequência normal, típica, da sua conduta. A previsibilidade do resultado não é apreciada subjectivamente uma vez que não se trata de saber se o agente concreto previu ou podia ter previsto o resultado. Trata-se de uma previsibilidade determinada de acordo com as regras gerais da experiência dos homens, de uma apreciação objectiva dos acontecimentos em função da capacidade de conhecer e avaliar que um homem normal do mesmo tipo social do autor teria, munido dos conhecimentos pessoais deste.
Ora, resultou não provado que o arguido não podia deixar de representar como possível que AA viesse a contrair uma infecção generalizada no corpo e que lhe causasse a morte e que ao agir como supra descrito, o arguido criou grave perigo para a vida de AA. É certo que qualquer picada pode causar uma infecção e daí ter resultado provado que o arguido não podia, enquanto médico que acompanhava AA, deixar de representar como possível que esta viesse a contrair uma infecção, por via da aplicação injectável do produto silício, criando perigo para o corpo e saúde de AA. Porém, a previsibilidade do facto concreto, tal como se passou, resultou não provada. Como se disse supra, deve fazer-se um juízo de prognose póstuma. Vai ver-se se era previsível, para uma pessoa média naquela situação, prever determinado acontecimento. E sempre tendo em atenção o resultado em concreto como se passou; isto é, não se vai saber se poderia ou não, por exemplo, advir o resultado morte por um processo possível, mas vai analisar-se se a morte, como se passou, deverá ou não ser previsível, ou considerada consequência de determinado comportamento. Previsibilidade essa que não se verifica no caso sub judice.
A ser assim, não se verificam os elementos típicos, objectivos e subjectivos, do crime de homicídio negligente, previsto e punido pelo artigo 137º, nº1, do Código Penal.
Mal andou o tribunal a quo ao condenar o arguido nos termos em que o fez.
Procedendo, nesta parte, a pretensão dos recorrentes C... e arguido, deve ser este absolvido do crime por que foi condenado. * Fica assim prejudicada a questão relativa ao eventual consentimento da paciente. * No que respeita aos pedidos cíveis, começa-se por apreciar se os recorrentes C... e arguido devem ser absolvidos do pedido de indemnização civil formulado.
Na sequência do pedido deduzido pelas ofendidas contra o arguido e C..., entre outros, no pagamento solidário da quantia de 125.000,00 euros, acrescida de juros legais vincendos, a demandada C... e o arguido vieram a ser condenados, solidariamente, a pagar às demandantes, EE e FF, a quantia de € 65,000,00 (sessenta e cinco mil euros), acrescida dos respectivos juros de mora vincendos, desde a presente data, à taxa legal de 4%. Vejamos, então.
Nos termos do artigo 71º do Código de Processo Penal, “o pedido de indemnização civil fundado na prática de um crime é deduzido no processo penal respectivo, só o podendo ser em separado, perante o tribunal civil, nos casos previstos na lei”.
É a consagração do princípio da adesão. Por regra, o direito à indemnização por perdas e danos sofridos com o ilícito criminal só pode ser exercido no próprio processo penal, nele se enxertando o procedimento cível a tal destinado; sem prejuízo de, ao abrigo do disposto no artigo 82º, nº 3, do Código de Processo Penal, o tribunal poder, oficiosamente ou a requerimento, remeter as partes para os tribunais civis quando as questões suscitadas pelo pedido de indemnização civil inviabilizarem uma decisão rigorosa ou forem susceptíveis de gerar incidentes que retardem intoleravelmente o processo penal.
Assim, com a consagração do princípio da adesão resolvem-se no processo penal todas as questões que envolvem o facto criminoso em qualquer uma das suas vertentes, sem necessidade de recorrer a mecanismos autónomos, não necessitando os interessados de despender e dispersar custos quando afinal o tribunal a quem se atribuiu competência para conhecer do crime oferece as mesmas garantias quando ela é alargada ao conhecimento de uma matéria que está intimamente ligada a esse crime – cfr. Ac. do STJ de 10.12.2008, in www.dgsi.pt.
Por sua vez, com a epígrafe Responsabilidade civil emergente de crime, estipula o artigo 129º do Código Penal, que a “a indemnização de perdas e danos emergentes de crime é regulada pela lei civil”. Cumprindo, então, apelar ao disposto nos artigos 483º, 496º, 562º e 566º do Código Civil.
Dispõe o artigo 483º, nº 1, deste diploma legal, que “aquele que com dolo ou mera culpa violar ilicitamente o direito de outrem ou qualquer outra disposição legal destinada a proteger interesses alheios fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação”.
Consagra este preceito legal os vários pressupostos da obrigação de indemnizar imposta ao lesante. É necessário que haja um facto voluntário do agente, uma vez que só o homem é capaz de violar direitos ou de agir contra disposições legais; em segundo lugar, é preciso que o facto do agente seja ilícito; em terceiro lugar, que haja um nexo de imputação do facto ao lesante; depois, que à violação do direito subjectivo ou da lei sobrevenha um dano, uma vez que sem dano não chega a pôr-se qualquer problema de responsabilidade civil; e, por último, que haja um nexo de causalidade entre o facto praticado pelo agente e o dano sofrido pela vítima, de modo a poder afirmar-se que o dano é resultante da violação (cfr. Pires de Lima e Antunes Varela, "Código Civil, anotado, vol.I, pág. 471).
São, pois, pressupostos da responsabilidade civil aquiliana: a) o facto, a ilicitude; b) a culpa ou imputação subjectiva do facto ao agente; c) o dano; d) o nexo de causalidade entre o facto e o dano.
O facto na responsabilidade civil fundada na ilicitude consiste num certo comportamento humano traduzido juridicamente numa violação de direitos alheios ou da lei que protege interesses alheios. O facto surge assim como uma acção ou omissão anti-jurídica. A ilicitude consiste na infracção de um dever jurídico, podendo revestir-se de duas formas de acordo com o constante do artigo 483º do Código Civil: a violação do direito de outrem ou a violação de qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios. No que respeita à violação do direito de outrem, estão em causa direitos subjectivos, ou seja, a ofensa de direitos absolutos como os direitos reais ou os direitos de personalidade. Quanto à segunda vertente da ilicitude está em causa a ofensa de deveres impostos por lei que vise a defesa de interesses particulares (cfr. Mário Júlio de Almeida Costa, Direito das Obrigações, 6ª edição, Almedina, Coimbra, 1994). Quanto ao nexo de imputação, será o mesmo a culpa que liga o facto ao agente por um laço de raiz psicológica onde opera ou pode operar a vontade do agente. Para que o facto ilícito gere responsabilidade exige a lei que o mesmo esteja ligado ao seu agente, de maneira que possa afirmar-se, não só que foi obra sua, mas também que ele podia e devia ter agido diversamente. A culpa implica assim uma ideia de censura ou reprovação da conduta do agente (cfr. Mário Júlio de Almeida Costa, Direito das Obrigações, 6ª edição, Almedina, Coimbra, 1994). O dano consiste num prejuízo, na perda que o lesado sofreu em consequência de certo facto, nos interesses que a norma violada visa tutelar. Na categoria dos danos cabem não só os danos directos, que são os efeitos imediatos do facto ilícito ou a perda directa causada nos bens ou valores juridicamente tutelados, como os danos indirectos, que são as consequências mediatas ou remotas do dano directo. Doutrina e jurisprudência distinguem tradicionalmente os danos patrimoniais dos danos não patrimoniais, consoante sejam ou não susceptíveis de avaliação pecuniária. Os primeiros, porque incidem sobre interesses de natureza material ou económica, reflectem-se no património do lesado, ao contrário dos segundos que se reportam a valores de ordem espiritual, ideal ou moral (cfr. Mário Júlio de Almeida Costa, Direito das Obrigações, 6ª edição, Almedida, Coimbra, 1994). Último requisito da responsabilidade civil extra-contratual é o nexo de causalidade entre o facto e os danos. Por nexo de causalidade entende-se a existência de uma relação causa-efeito entre o facto e o dano produzido pelo mesmo.
Como se pode ler no Ac. do STJ de 5.6.2019, in www.dgsi.pt, os pressupostos da responsabilidade aquiliana, reconduzem-se nos sequentes elementos lógico-materiais e de verificação ou produção natural e físico-psicológicos: i) – o facto voluntário, consubstanciado numa conduta comissiva ou omissiva de um agente traduzido, naturalisticamente, numa alteração ou modificação da realidade existente ante; ii) – a ilicitude, traduzida na violação de normas legais ou de direitos (absolutos) consolidados na esfera individual ou colectiva e infractores dessas normas ou direitos; iii) – a culpa, como nexo de imputação ético-jurídico, de feição e natureza censurável ou reprovável, à luz dos valores eticamente prevalentes numa sociedade historicamente situada; iv) – o dano, lesão ou prejuízo de ordem patrimonial ou não patrimonial, produzido na esfera jurídica de terceiros; v) – e o nexo de causalidade entre o facto e o dano. Verificados que estejam estes pressupostos determinativos da responsabilidade civil, nasce a obrigação de indemnização a cargo do lesante.
No caso concreto, se por um lado temos um facto, que se traduz na administração do produto em causa de forma injectável, por outro, a conduta do arguido já não preenche os pressupostos da ilicitude, da culpa e nexo de causalidade. Da actuação do arguido não se pode concluir pela violação de um direito de outrem. Para que o facto ilícito gere responsabilidade é necessário que o seu autor tenha agido com culpa, que a sua conduta mereça a reprovação ou censura do direito, sendo certo que a conduta do lesante é reprovável quando, pela sua capacidade e em face das circunstâncias concretas da situação, se concluir que ele podia e devia ter agido de outro modo (cfr. Antunes Varela, " Das Obrigações em geral", 7ªed., vol.I, pág. 554). Ora, da análise da factualidade provada e como resulta do que já ficou dito supra, não se pode concluir que a conduta do arguido mereça a reprovação e censura do direito. É certo que, nos termos do artigo 377º, nº 1, do Código de Processo Penal, “a sentença, ainda que absolutória, condena o arguido em indemnização civil sempre que o pedido respectivo vier a revelar-se fundado, sem prejuízo do disposto no n.º 3 do artigo 82.º”. De qualquer forma, sempre se revela imprescindível para a condenação no pedido cível a verificação dos pressupostos da responsabilidade extra-contratual ou aquiliana.
Aliá, o acórdão de Uniformização de Jurisprudência nº 7/99, publicado no DR I – A, de 03.08.1999, fixou jurisprudência nos seguintes termos: se em processo penal for deduzido pedido cível, tendo o mesmo por fundamento um facto ilícito criminal, verificando-se o caso previsto no artigo 377º, nº 1, do Código de Processo Penal, ou seja a absolvição do arguido, este só poderá ser condenado em indemnização civil se o pedido se fundar em responsabilidade extracontratual ou aquiliana, com exclusão da responsabilidade contratual”.
Se é certo que a responsabilidade pelo risco se enquadra na responsabilidade extracontratual, também é verdade que a atividade de prestação de serviços médicos não se enquadra na previsão do artigo 493º, nº 2, do CC, prevendo a responsabilidade pelo risco, por tal atividade não ser, na sua essência, genericamente, perigosa, nem por si nem nas suas consequências, devendo, por isso, o que retira proveito daquela sofrer as consequências da sua prática e prová-las, sendo excessiva a presunção de culpa no caso da atividade médica (cfr. Ac. do TCAS de 27.4.2023, in www.dgsi.pt).
Como se pode ler no Ac. do STJ de 25.2.2015, in www.dgsi.pt, “responsabilidade médica, por negligência, por violação das “leges artis“ tem lugar sempre que por indesculpável falta de cuidado seu, o médico deixa de aplicar os conhecimentos científicos e os procedimentos técnicos que, razoavelmente, lhe eram de exigir, em função da sua qualidade profissional. … A responsabilidade a título de risco pelos serviços médicos não se compatibiliza com a natureza do acto médico, procurados pelo doente para curar ou mitigar o seu sofrimento e não para exposição a riscos daquela dimensão; como regra tal prestação não comporta risco, sem esquecer, no entanto, que, por vezes, concorrem consabidos riscos graves e outros, supervenientemente, de forma imprevisível e absolutamente indominável. A actividade de prestação de serviços médicos não se enquadra na previsão do art. 493.º, n.º 2, do CC, prevendo a responsabilidade pelo risco, por tal actividade não ser, na sua essência, genericamente, perigosa, nem por si nem nas suas consequências, devendo, por isso, o que retira proveito daquela sofrer as consequências da sua prática e prová-las, sendo excessiva a presunção de culpa no caso da actividade médica. A responsabilidade médica só em situações muito excepcionais se deve considerar excepcionalmente perigosa, o que teria a desvantagem, se fosse de assumir como regra, de conduzir a medicina com efeitos defensivos, trazendo o efeito de retardar o progresso em certas especialidades em prejuízo para o próprio doente, além de conduzir a inqualificáveis repercussões na dignidade pessoal e profissional do médico; de nada se lucrando alargar, sem reflexão, as hipóteses de responsabilidade objectiva, sendo salutar que a compensação pelos danos acidentais do acto médico, pelas suas “faults”, se processe por meio de um seguro ou fundo de garantia, com vantagem para o paciente que não tem que arrostar o cansaço do processo e as dificuldades patrimoniais do médico em suportar o montante dos danos”.
Assim, por falta de preenchimento dos pressupostos da responsabilidade civil, o arguido terá que ser absolvido do pedido cível contra si deduzido.
No que respeita à demandada C..., resultou provado que “entre o demandado BB e a C... – COMPANHIA DE SEGUROS, S.A., (naquela data designada D...) foi celebrado contrato de seguro do ramo Responsabilidade Civil, modalidade RC Profissional Médicos – medicina Interna, titulado pela apólice com o n.º ...95, com data de efeito a partir de 09/07/2012 e sucessivamente renovado até ao presente; Este contrato tem por objecto a garantia das coberturas indicadas nas condições particulares, gerais e Condição Especial 21 em conformidade com o teor do documento n.º 1 junto com a contestação da demandada C... – COMPANHIA DE SEGUROS, S.A., que aqui se dá como integralmente reproduzido”. Ora, se o arguido não tem a obrigação de indemnizar, o mesmo acontece em relação à seguradora C... com a qual o arguido celebrou o contrato de seguro acabado de mencionar. A ser assim, também a recorrente C... terá que ser absolvida do pedido cível contra si deduzida. *
Também a Clínica A..., Lda foi condenada, solidariamente, no pagamento da indemnização às demandantes.
Refere a sentença recorrida que “tendo em consideração que o comportamento danoso foi praticado pelo arguido no âmbito da actividade societária desenvolvida pela demandada Clínica A..., L.Da, a mesma será, igualmente, responsável para com as demandantes em decorrência do preceito do art.º 800.º, n.º 1, do Código Civil, epigrafado “actos dos representantes legais ou auxiliares”, segundo o qual “o devedor é responsável perante o credor pelos actos dos seus representantes legais ou das pessoas que utilize para o cumprimento da obrigação, como se tais actos fossem praticados pelo próprio devedor”.
Esta sociedade não recorreu da sentença proferida.
Pois bem.
Estipula o 402º, nº 1, do Código de Processo Penal que “sem prejuízo do disposto no artigo seguinte, o recurso interposto de uma sentença abrange toda a decisão”.
Por sua vez, nos termos do artigo 403º, nº 3, do mesmo diploma legal, “a limitação do recurso a uma parte da decisão não prejudica o dever de retirar da procedência daquele as consequências legalmente impostas relativamente a toda a decisão recorrida”.
Como refere Pereira Madeira, in Código de Processo Penal Comentado de António Gaspar e outros, págs. 1304 e 1311, “o recurso, em princípio, e nada sendo dito em contrário, abrange toda a decisão, ainda que visando a sua interposição, apenas, uma parte específica daquela. Por isso, não obstante seja aquele trecho específico o objecto da disputa do recorrente, o tribunal de recurso pode estender o seu conhecimento aos demais aspectos da causa que, dentro da respectiva esfera de competência, julgue merecerem ser apreciados. … Importa … nunca perder de vista a necessidade de evitar desequilíbrios na decisão emergentes da avaliação autónoma da parcela recorrida”.
Também Paulo Pinto de Albuquerque, in Comentário do Código de Processo Penal, 4ª ed. actualizada, págs. 1057 e 1061, defende que “o poder de cognição do tribunal de recurso é então ampliado ex officio às questões de facto e de direito que estejam indissocialvelmente ligadas com as questões impugnadas pelo recorrente. Este princípio está expressamente consagrado no artigo 403º, nº 2, que deve ser conjugado com o artigo 402º, nº 1. … O tribunal deve conhecer das partes autónomas impugnadas da decisão (de acordo com as conclusões do recurso) e, subsequentemente, da parte não impugnada da decisão. Com efeito, a delimitação do âmbito do recurso pelo recorrente não prejudica o dever do tribunal de recurso retirar oficiosamente da procedência das conclusões de recurso as “consequências” relativamente às partes autónomas da decisão não impugnadas pelo recorrente (artigo 403º, nº 3). O disposto no artigo 403º, nº 3, é limitado pela proibição da reformatio in pejus, pelo que no caso de recurso interposto pelo arguido ou pelo MP em exclusivo interesse do arguido as “consequências” relativamente à parte não impugnada da decisão são apenas as “consequências” que aproveitem ao arguido”.
Simas Santos, Leal Henriques e João Simas Santos, in Noções de Processo Penal, 3ª ed., pág. 599, afirmam que “Em regra, o recurso interposto de uma sentença ou acórdão abrange a totalidade da decisão, conforme prescreve o nº 1 do artigo 402º que consagra o princípio do conhecimento amplo do recurso, partindo da ideia de que o seu objecto legal é a decisão recorrida e não a questão por ela julgada. E, na verdade, através do recurso apenas se abre uma reapreciação da decisão, assente na matéria de facto e de direito que terão servido de base à sua prolação, portanto matéria que pré-existe ao próprio recurso. Daí que os recursos se destinem em exclusivo a provocar o reexame das decisões judiciais impugnadas e, consequentemente, a obter-se a sua modificação, e nunca criar decisões sobre matéria nova, trazendo à colação questões ou matéria alheias à decisão”.
Por último, Simas Santos e Leal Henriques, in Recurso Penais, 8ª ed. 2011, pág. 89, referem que “o âmbito do recurso é dado pelas respectivas conclusões, pelo que o recorrente pode limitar tacitamente o objecto do recurso. Finalmente dir-se-á que, se o princípio dispositivo (que confere às partes a possibilidade de delimitarem o objecto da matéria a apreciar) lhes permite circunscrever o âmbito do recurso, essa circunstância não determina em absoluto o conteúdo da decisão do tribunal superior. Na verdade, deve ter-se em conta que a limitação do recurso a uma parte da decisão, não prejudica o dever de retirar da procedência daquela as consequências legalmente impostas relativamente a toda a decisão recorrida (nº 3 do artigo 403º)”.
Assim, se houver apenas recurso em matéria de facto, a Relação conhece do objecto do recurso, e se modificar a matéria de facto, extrai as consequências jurídicas decorrentes; sendo o recurso de facto e de direito, conhece de ambos.
No caso concreto, o recurso é de facto e de direito. Com a alteração efectuada à matéria de facto, o arguido não pode deixar de ser absolvido do crime e do pedido cível contra si deduzido. Não se provaram os pressupostos da responsabilidade civil e não estamos perante um caso de responsabilidade objectiva ou pelo risco.
Consequentemente, também a sociedade “Clínica A..., L.da não pode deixar de ser absolvida do pedido cível contra si deduzido. * Ficam prejudicadas as demais questões suscitadas pela recorrente C.... * Apreciadas que estão todas as questões suscitadas pelos recorrentes, deve ser concedido provimento aos recursos interpostos pelo arguido e C....
*
C – Decisão
Nestes termos e pelos fundamentos expostos, acordam os juízes deste Tribunal da Relação de Coimbra em conceder provimento aos recursos interpostos pelo arguido BB e “C... – Companhia de Seguros, S.A.” e, em consequência, decidem:
1) Alterar a decisão sobre a matéria de facto, nos seguintes termos:
a) eliminar da factualidade provada os pontos 50.G, 50.H e 50.I;
b) os pontos 49, 50.D, 50-E, 50, 51 e 52 da factualidade provada passam a ter a seguinte redacção:
49 – A morte de AA por sépsis adveio do procedimento de administração do produto através de injecções. A aplicação do produto por via injectável é violadora dos mais elementares deveres de prudência e cuidado, que, no exercício da sua profissão, podia e devia ter tido.
50.D. A esterilização dos instrumentos utilizados e do local onde se encontra a paciente, em concreto, a marquesa, apenas deve ser efectuada com álcool a 70%.
50-E. O arguido usou um preparado composto por álcool a 90% e álcool isopropílico na desinfeção da pele, substâncias não adequadas para esterilização do material.
50 – O arguido, ao actuar do modo descrito, sabia que violava as leges artis. As injecções administradas desencadearam um quadro infeccioso da pele das pernas e da pele da região lombar de AA, que evoluiu para uma fasceíte necrosante, com choque séptico e consequente morte de AA.
51 – O arguido não podia, enquanto médico que acompanhava AA, deixar de representar como possível que esta viesse a contrair uma infecção, por via da aplicação injectável do produto silício.
52 – Ao agir como supra descrito, o arguido criou perigo para o corpo e saúde de AA.
c) julgar não provada a seguinte factualidade: 50-F. Não estavam correctamente esterilizados os instrumentos utilizados e o local do tratamento (substituindo este facto o ponto 3 dos factos não provados);
- o arguido não podia deixar de representar como possível que AA viesse a contrair uma infecção generalizada no corpo e que lhe causasse a morte;
- ao agir como supra descrito, o arguido criou grave perigo para a vida de AA.
No mais, mantém-se a factualidade como consta na sentença recorrida.
2) Revogar a sentença recorrida na parte em que condenou o arguido pela prática, como autor material e na forma consumada, de um crime de homicídio por negligência, previsto e punido pelos artigos 26º e 137º, nº 1, do Código Penal, na pena de 200 (duzentos) dias de multa à razão diária de 25,00 (vinte e cinco euros), o que perfaz o total de € 5.000,00 (cinco mil euros).
3) Absolver o arguido da prática, como autor material e na forma consumada, do crime de homicídio por negligência, previsto e punido pelos artigos 26º e 137º, nº 1, do Código Penal por que foi condenado.
4) Revogar a sentença recorrida na parte em que condenou os demandados BB, “Clínica A..., L.da”, e “C... – Companhia de Seguros de Vida, S.A.”, solidariamente, a pagar às demandantes, EE e FF, a quantia de € 65,000,00 (sessenta e cinco mil euros), acrescida dos respectivos juros de mora vincendos, desde a presente data, à taxa legal de 4 % ou outra que, entretanto, sobrevier, até efectivo e integral pagamento, absolvendo-os do mais peticionado.
5) Absolver os demandados cíveis BB, “Clínica A..., L.da”, e “C... – Companhia de Seguros, S.A.”, do pedido de indemnização civil contra si deduzido pelas demandantes EE e FF.
6) Revogar a sentença recorrida na parte em que condenou o arguido nas custas, com taxa de justiça que se fixa, ponderada a “complexidade da causa”, em 5 UCs, compreendendo, ainda, os respectivos encargos (artigos 513º, nº 1, 514º, nº 1, do Código de Processo Penal, 8º, nº 9, e Tabela Anexa III, do Regulamento das Custas Processuais).
7) Revogar a sentença recorrida na parte em que condenou os demandados cíveis nas custas da instância cível.
No mais, mantém-se a sentença recorrida.
* Sem custas, quanto ao arguido e recorrente C... (artigo 513º, nº 1, do Código de Processo Penal, a contrario, no que respeita ao arguido, 523º do mesmo diploma legal e 527º do Código de Processo Penal, no que respeita à C...).
* Notifique. *
Coimbra, 12 de Março de 2025.
(Elaborado pela relatora, revisto e assinado electronicamente por todos os signatários – artigo 94º, nºs 2 e 3, do Código de Processo Penal).
Rosa Pinto – Relatora Maria Teresa Coimbra – 1º Adjunto Helena Lamas – 2ª Adjunta
[7] Com efeito, o Tribunal da Relação de Coimbra determinou que os factos dos pontos 42 e 43, 44, 45, 46, 47 e 48 se mantivessem como provados, ou seja: “42 – AA contraiu uma infecção por via da aplicação injectável do produto silício; 43 – E que lhe veio a causar infecção generalizada no corpo e consequente morte; 44 – O produto MESOESTETIC – X Pprof 013 – Ampolas regeneradoras de silício orgânico – 5ml/017fl. Oz destinava-se, segundo o fabricante, a aplicação por via tópica. 45 – Ao aplicar o referido produto por via injectável, sabia o arguido que agia contra as recomendações do fabricante e do Infarmed; 46 – O arguido sabia que, de acordo com as recomendações do fabricante do produto e do Infarmed, tal substância deveria ser usada apenas por via tópica e não por via injectável; 47 – O arguido, ao actuar do modo descrito, sabia que violava as leges artis; 48 – O arguido, actuando contra as recomendações técnicas de aplicação do referido produto, exerceu a sua profissão preterindo a atenção e o cuidado que o exercício de medicina requer, cuidado e atenção que lhe eram exigíveis e de que era capaz. [10] Com a seguinte redacção: “45 – Ao aplicar o referido produto por via injectável, sabia o arguido que agia contra as recomendações do fabricante e do Infarmed; 46 – O arguido sabia que, de acordo com as recomendações do fabricante do produto e do Infarmed, tal substância deveria ser usada apenas por via tópica e não por via injectável; 47 – O arguido, ao actuar do modo descrito, sabia que violava as leges artis; 48 – O arguido, actuando contra as recomendações técnicas de aplicação do referido produto, exerceu a sua profissão preterindo a atenção e o cuidado que o exercício de medicina requer, cuidado e atenção que lhe eram exigíveis e de que era capaz.” [16] Referiu KK que, em teoria, qualquer instrumento médico que seja utilizado numa zona com infecção, e depois seja utilizado noutra zona, não é impossível esse transporte. Isto em termos teóricos, na prática nunca se deparou com tal situação. |