Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
80/19.5GASJP.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ANA CAROLINA CARDOSO
Descritores: NOTIFICAÇÃO
ERRO DA SECRETARIA
Data do Acordão: 12/13/2022
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: VISEU (JUIZ DE INSTRUÇÃO CRIMINAL DE VISEU – J2)
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ART. 4.º DO CPP; ART. 157.º, N.º 6, DO CPC
Sumário: I – O princípio geral da confiança jurídica insíto no n.º 6 do art. 157.º do CPC – norma aplicável no âmbito da lei adjectiva penal por força do disposto no artigo 4.º do CPP –, visando evitar que os sujeitos processuais vejam os seus direitos de intervenção processual restringidos em virtude de erro cometido pela secretaria judicial, não tem como efeito a atribuição àqueles de direitos que a lei lhes não confere ou que se mostram já precludidos.

II – Se, aquando da comunicação ao arguido do despacho previsto no artigo 312.º do CPP, aquele for também notificado, por erro da secretaria, da faculdade de requerer, em vinte dias, a abertura da instrução, sendo certo que, anteriormente, na fase processual adequada, já tinha sido regularmente notificado dessa possibilidade, o indicado lapso é juridicamente irrelevante.

Decisão Texto Integral:

Acórdão deliberado em conferência na 5ª seção criminal do Tribunal da Relação de Coimbra



1. Relatório

A arguida/assistente AA interpôs recurso da decisão que rejeitou o requerimento de abertura de instrução no processo n.º 80/19...., do juízo de instrução criminal da Comarca ... (Juiz ...).


1.1. Recurso da arguida (conclusões):

«1. A recorrente foi notificada pelo tribunal via postal registada do conteúdo da acusação e que dispõe do prazo de vinte dias contados a partir da data da notificação e nos termos do art. 287 do CPP, para requerer a abertura de instrução e SE NADA REQUERER DEVERÁ ENTÃO comparecer no juízo de proximidade a fim de ser ouvido em audiência de julgamento;

2. Nestes termos e respeitando a notificação do tribunal, a recorrente requereu nos vinte dias seguintes a ter recebido a mesma, a abertura de instrução que consta dos autos, fê-lo no dia 28.10.2021, pagando multa processual do art. 107-A do CPP, logo tempestivamente- que vai junto.

3. De facto e de direito, a assistente/arguida respeitou o teor e prazo atenta a notificação, pelo que o requerimento de abertura de instrução é tempestivo.

4. Na sentença em crise do Tribunal de instrução que julgou o requerimento de abertura de instrução intempestivo, está aceite que existe lapso na notificação pelo oficial de justiça, e que a mandatária equivocada por tal notificação que a induziu em erro veio a apresentar requerimento de abertura de instrução, mas que tal não confere à recorrente o direito a requerer a abertura de instrução.

5. Ora, o erro é do tribunal, não da assistente ou da mandatária.

6. Nos termos do artigo 157, n.º 6 do CPC os erros e omissões dos atos praticados pela secretaria judicial não podem, em qualquer caso, prejudicar as partes.

7. Esta norma constitui emanação do principio da segurança jurídica e da proteção da confiança e do principio da transparência e da lealdade processuais, indissociáveis de um processo justo e equitativo.

8. A regra do art. 157, n.º6 do CPC aplicasse ao processo penal por força do art. 4.º do CPP, significando que a parte não pode ser prejudicada por erro da secretaria judicial, implica que o ato da parte que cumpriu a notificação que lhe foi dirigida não pode EM QUALQUER CASO ser recusado ou considerado nulo, dado que foi praticado nos termos e prazos indicados pela secretaria judicial, embora em contrariedade com o legalmente estabelecido, pois que essa contrariedade foi ditada pela própria secretaria judicial.

9. Nestas situações é entendimento generalizado da doutrina e jurisprudência (por ex. acórdão do STJ no processo 88/16.... e acórdão do TC n.º 719/04) que o prazo assim indicado para a pratica de um ato processual, se o foi pela secretaria judicial que não o corrigiu sequer em qualquer momento, tem a conformidade de ser permitido à parte apresentar o ato processual ,ademais atento o concreto teor da notificação aqui em causa.

10. A assim não se entender, estar-se-á a violar também o art. 2.º e 20.º da CRP, deve-se confiar nos atos dos funcionários judiciais praticados no processo enquanto agentes que são do tribunal e enquanto os mesmos não forem revogados ou modificados, é o principio da confiança ínsito no principio do Estado de direito democrático.

11. O tribunal a quo fez errada aplicação e interpretação da lei, violando o disposto nos artigos 157, n.º6 do CPC, art. 4.º do CPP e artigos 2.º e 20.º da CRP»


1.2. Na resposta apresentada, o Ministério Público pugna pela manutenção da decisão recorrida, concluindo que: “Apesar de não existir qualquer decisão judicial ou qualquer suporte legal para concessão de novos prazos, como bem sabia a ilustre mandatária da assistente, esta tentou trazer pela janela aquilo que deixou fugir pela porta”.

1.3. O Exmo. Juiz a quo sustentou a decisão recorrida, referindo, nomeadamente: “A recorrente, repete-se, foi oportuna e regularmente notificada do teor do despacho final proferido pelo Ministério Público, conformando-se com o mesmo.
E quando foi notificada, já em fase de julgamento, do recebimento da acusação e nos termos e para os efeitos previstos nos artigos 313.º e 315.º do Código de Processo Penal, é que imaginou que, afinal, o seu direito de requerer a abertura de instrução havia sido repristinado, apenas por que dali se fez constar, por flagrante equívoco, mais alguns dizeres…
O princípio da segurança jurídica ficaria sim abalado se a recorrente, no caso, pudesse requerer a abertura de uma fase processual já ultrapassada.
A recorrente em rigorosamente nada foi prejudicada.

1.4. No parecer a que alude o art. 416º, n.º 1, do Código de Processo Penal, a Exma. Procuradora-geral Adjunta acompanhou a resposta do Ministério Público, rematando da forma que segue:
E assistiria razão à assistente, não se tivesse dado o caso de ter sido notificada uma primeira vez para o fim que agora pretende – a abertura de instrução.
Notificação essa que não continha, então, qualquer lapso ou acrescento indevidos.
Porém, a notificação que põe em causa foi feita no âmbito e para os fins do disposto no artigo 313.º do código de processo penal, sendo que nela se fez incluir, para além do mais, e por manifesto lapso, um primeiro parágrafo onde se indicava um prazo de 20 (vinte) dias para requerer a abertura de instrução.
A assistente bem sabia que o ali escrito a mais estava incorreto, em razão da primeira notificação recebida.
Há, assim, clara intenção de obter benefício, não legítimo, pela via de um lapso evidente.
Nestas circunstâncias, e como bem promovido e decidido no processo, aquele lapso não lhe pode conferir um novo direito a requerer a abertura de instrução.


*


2. Questões a decidir no recurso


O objeto do recurso encontra-se limitado pelas conclusões apresentadas pelo recorrente, sem prejuízo da necessidade de conhecer oficiosamente a eventual ocorrência de qualquer um dos vícios referidos no artigo 410º do Código de Processo Penal (jurisprudência fixada pelo Acórdão do STJ n.º 7/95, publicado no DR, I Série-A, de 28.12.1995).
São as conclusões da motivação que delimitam o âmbito do recurso, pelo que se ficam aquém, a parte da motivação que não consta das conclusões não é considerada, e se forem além também não são consideradas, porque a motivação das mesmas é inexistente (v. Germano Marques da Silva, Direito Processual Penal Português, vol. 3, 2015, págs. 335-336).
Assim, a questão a decidir resume-se a aferir se o requerimento de abertura de instrução foi interposto em prazo.

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3. Fundamentação



 Decisão recorrida (transcrição da parte relevante):

“(…) importa perceber se a abertura da instrução foi requerida tempestivamente.

Nos termos do art. 287.º n.º 1 do Código de Processo Penal, a abertura da instrução pode ser requerida no prazo de 20 dias a contar da notificação da acusação ou do arquivamento.

Compulsados os autos, verifica-se que o Ministério Público proferiu despacho de arquivamento e de acusação no dia 25/1/2021 (fls. 318-333).

Após, como bem salienta o Ex.mo colega no despacho proferido em 1/12/2021 (fls. 601- 602), “a requerente/arguida e assistente, BB, bem como a sua Ilustre Mandatária, foram notificadas do teor de tais despachos, e para as finalidades previstas no artigo 287.º, do Código de Processo Penal (requerimento para abertura da instrução), na data de 07.05.2021 (ref. ª ...03 e ...29 – a arguida/assistente foi notificada por envio de carta postal simples, cujo depósito ocorreu na data de 11.05.2021, na morada constante do TIR por si prestado - ref. ª 17.05.2021).” – ver fls. 373 e 377.

Nenhum dos sujeitos processuais requereu a abertura de instrução.

Os autos prosseguiram e foram remetidos à distribuição em 25/6/2021 (fls. 536).

A acusação foi recebida e foi marcada data para julgamento por despacho proferido em 22/9/2021 (fls. 538-539).

Nesta sequência, a arguida/assistente, por ofício datado de 30/9/2021 (ofício ...24), foi de novo notificada, agora nos termos e para os efeitos previstos nos artigos 313.º e 315.º do Código de Processo Penal.

Todavia, no referido ofício, fez-se incluir um 1º parágrafo, onde se fez constar que teria também um prazo de 20 dias para requerer a abertura de instrução.

Como facilmente se percebe, a inclusão de tal parágrafo resulta de evidente lapso por parte do Sr. Oficial de justiça e não confere à requerente, claro está, em derrogação de uma norma processual penal, como que um “novo” direito para requerer a abertura de instrução.

Aliás, crê-se que só por manifesto equívoco, porventura motivado por tal notificação, veio a ilustre mandatária apresentar um requerimento para abertura de instrução, quando o processo estava já na fase do julgamento.

Neste contexto, e sem necessidade de outras considerações, conclui-se que o requerimento para abertura de instrução foi apresentado para além do prazo legalmente admissível.

Pelo exposto e ao abrigo do disposto no art. 287.º n.º 3 do CPP, rejeita-se o requerimento para abertura da instrução por extemporâneo.

O tribunal apenas não tributa o incidente, porque se entende, como se disse, que a ilustre mandatária, pese embora ter o dever profissional de conhecer os trâmites processuais, terá sido induzida em erro, pelo a taxa de justiça por si suportada entrará oportunamente em regra de custas.

Notifique.

Após trânsito, remeta novamente os autos ao Juízo local de ... – J....”


*

3.1. Conhecimento do recurso:

Resenha de atos processuais relevantes para a decisão:

- A 25.1.2021 foi proferido pelo Ministério Público despacho final no inquérito, tendo sido arquivado o inquérito quanto aos arguidos CC e DD, pela prática de um crime de ofensa à integridade física, p. e p. pelo art. 143º, n.º 1, do Código Penal (no qual a recorrente era ofendida), e a recorrente sido acusada da prática de um crime de ofensa à integridade física grave e qualificada, p. e p. pelos arts. 144º, al. a) e 145º, n.º 1, al. c), e n.º 2, por referência ao art. 132º, n.º 2, als. d) e h), e de um crime de dano, p. e p. pelo art. 212º, n.º 1, todos do Código Penal.

- A 22.4.2021, na sequência de notificação para o efeito, foi pela recorrente deduzida acusação particular e PIC contra DD e EE;

- Com data de 7.5.2021 foi remetida para a recorrente, por esta recebida, uma “notificação por via postal simples com prova de depósito” com o seguinte conteúdo:

Fica V. Exª notificado, na qualidade de Assistente/Arguido, nos termos e para os efeitos a seguir mencionados:

De que foi deduzido despacho de ARQUIVAMENTO E ACUSAÇÃO PUBLICA E PARTICULAR, no Inquérito acima referenciado, nos termos dos art.ºs 277º e 283º do Código de Processo Penal, cuja cópia se junta, e que dispõe do prazo de VINTE DIAS, contados a partir da presente notificação, para requerer, caso queira, a abertura da INSTRUÇÃO, nos termos do disposto no art.º 287º, n.º 1, al. b) do mesmo diploma.

O requerimento deverá ser dirigido ao Juiz de Instrução competente, não estando sujeito a formalidades especiais, devendo conter, em súmula, as razões, de facto e de direito, de discordância relativamente à acusação, bem como, sempre que disso for o caso, meios de prova que não tenham sido considerados no Inquérito e dos factos que através de uns e de outros se espera provar.

- Na mesma data, foi remetida para a sua Exma. Mandatária, e recebida, uma notificação nos seguintes termos: “De que, nos termos dos art.ºs 277º, n.º 3, e 283º, n.º 5, ambos do C. P. Penal, foi proferido despacho de ARQUIVAMENTO E ACUSAÇÃO no Inquérito acima referenciado, cuja cópia se anexa, e para os prazos dele decorrentes - art.ºs 284º e 287º do C. P. Penal”.

- Não foi requerida a abertura da fase de instrução.

- Remetidos os autos para julgamento, foi proferido o seguinte despacho:

(…) Recebo a acusação pública deduzida contra a arguida, AA, melhor identificado nos autos, pela prática dos factos e incriminação aí constantes (ref. ª ...23)

Recebe-se a acusação particular deduzida por AA contra os arguidos, DD e EE, pelos factos e disposições legais aí constantes (ref. ª ...79).


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Para realização da audiência de julgamento designa-se o dia 02.11.2021, pelas 09.30h, no ..., e, em caso de adiamento, nos termos do artigo 333.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, ou para a audição do arguido, nos termos do artigo 333.º, n.º 3, do mesmo diploma legal, o dia 08.11.2020, à mesma hora. (…)

Notifique (artigo 313.º, n.º 2 e 3 do Código de Processo Penal).

No que respeita aos arguidos, faça constar da notificação a advertência correspondente ao artigo 333.º do Código de Processo Penal. (…)”

- Com data de 30.9.2021 foi remetida à recorrente “notificação por via postal simples com prova de depósito” cujo conteúdo é o seguinte:

Fica notificada, na qualidade de Arguida, nos termos e para os efeitos a seguir mencionados:

De todo o conteúdo da acusação proferida nos autos acima referenciados, nos termos do art.º 283º do Código de Processo Penal, cuja cópia se junta e que dispõe do prazo de VINTE DIAS, contados a partir da data da notificação e nos termos do disposto no art.º 287º do mesmo diploma, para requerer, caso queira, a abertura da INSTRUÇÃO.

O requerimento não está sujeito a formalidades especiais, devendo conter, em súmula, as razões, de facto e de direito, de discordância relativamente à acusação, bem como, sempre que disso for o caso, meios de prova que não tenham sido considerados no Inquérito e dos factos que através de uns e de outros se espera provar.

Se nada requerer, deverá então comparecer no ..., no próximo dia 02-11-2021, às 09:30 horas, a fim de ser ouvido em audiência de julgamento, nos autos acima referenciados, sendo advertido de que faltando, esta poderá ter lugar na sua ausência, sendo representado para todos os efeitos possíveis pelo seu defensor; em caso de adiamento, fica desde já designado o dia 08-11-2021, às 09:30 horas, nos termos do art.º 312º, n.º 2 do C.P.P., podendo nesta data ter lugar a sua audição, a requerimento do seu advogado ou defensor nomeado, ao abrigo do disposto no art.º 333º, n.º 3 do mesmo diploma legal.

De todo o conteúdo do despacho que recebe a acusação e designa dia para o julgamento, cuja cópia se junta.

Para no prazo de VINTE DIAS, apresentar, querendo, a sua contestação, juntamente com o rol de testemunhas até ao máximo de VINTE, identificando-as e discriminando as que devam depor sobre a personalidade e condição pessoal, não podendo estas exceder o número de CINCO, e indicar, querendo, os peritos e consultores técnicos que devam ser notificados para a audiência de julgamento.

De que o rol de testemunhas pode ser adicionado ou alterado, por requerimento, contanto que o adicionamento ou alteração possa ser comunicada aos restantes sujeitos processuais até TRÊS DIAS antes da data designada para o julgamento – art.º 316º e 283º, n.º 7 do C.P.P.

Da advertência de que, caso falte e não justifique a falta no prazo legal, (por motivo previsível: com cinco dias de antecedência; por motivo imprevisível: no dia e hora designados – art.º 117º, n.º 2 do C.P. Penal), fica sujeito ao pagamento de uma soma entre 2 e 10 U.C’s (U.C = € 102,00), bem como a detenção pelo tempo estritamente necessário à realização da diligência ou a aplicação da medida de prisão preventiva, se esta for legalmente admissível - art.º 116.º, n.º 1 e 2 do Código de Processo Penal.

Da comunicação deve constar, sob pena de não justificação da falta, a indicação do respetivo motivo, do local onde o faltoso pode ser encontrado e da duração previsível do impedimento. Os elementos de prova da impossibilidade do comparecimento devem ser apresentados com a comunicação referida no número anterior, salvo tratando-se de impedimento imprevisível comunicado no próprio dia e hora, caso em que, por motivo justificado, podem os mesmos ser apresentados até ao 3º dia útil seguinte. Não podem ser indicadas mais de três testemunhas. – nºs 2 e 3, do artº 117º do C.P. Penal. (…)

- Na mesma data de 30.9.2021 à Exma. Mandatária da recorrente foi remetida a seguinte notificação:

Assunto: Artigos 313º, 315º e 78º do C. P. Penal

Fica Vª. Exª notificada, na qualidade de Mandatária da Arguida AA, residente no(a) Rua ..., ..., ... ..., nos termos e para os efeitos a seguir mencionados:

De que foi designado o dia 02-11-2021, às 09:30 horas, para a realização da audiência de julgamento nos autos acima indicados. Em caso de adiamento, nos termos do disposto do art.º 312º, n.º 2 do C. P. Penal, fica desde já designado o dia 08-11-2021, às 09:30 horas, do qual fica também notificado.

De todo o conteúdo do despacho que recebe a acusação/pronúncia e designa dia para julgamento, que se anexam, e para os prazos e obrigações dele decorrentes – artºs 313º, n.º 2 e 315º, ambos do C. P. Penal.

Para todo conteúdo do pedido de indemnização civil formulado, que também se anexa, podendo no prazo de VINTE DIAS, apresentar, querendo, a contestação, nos termos do disposto no art.º 78º do citado diploma. (…)”.

- A 28.10.2021 a Exma. Mandatária da recorrente juntou requerimento de abertura de instrução, na qualidade de assistente, pugnando pela pronúncia de CC e DD primeiro pela prática de um crime de ofensa à integridade física (art. 27º do requerimento) e a final pela prática de um crime de furto (pedido).

- Os autos foram remetidos ao Juízo de Instrução Criminal a 11.4.2022, datando o despacho recorrido de 21.4.2022.

            No sistema processual vigora o princípio de que os erros ou omissões da secretaria judicial não podem, em qualquer caso, prejudicar as partes. Assim, dispõe o atual art. 157º, n.º 6, do Código de Processo Civil que “Os erros e omissões dos atos praticados pela secretaria judicial não podem, em qualquer caso, prejudicar as partes”. Trata-se de uma emanação dos princípios da segurança jurídica, da proteção da confiança e da lealdade processuais, indissociáveis do processo justo e equitativo ([1]).

            Conforme refere Gomes Canotilho ([2]), “A segurança e a proteção da confiança exigem, no fundo: (1) fiabilidade, clareza, racionalidade e transparência dos atos do poder; (2) de forma que em relação a eles o cidadão veja garantida a segurança nas suas disposições pessoais e nos efeitos jurídicos dos seus próprios atos. (…) O princípio geral da segurança jurídica em sentido amplo (abrangendo, pois, a ideia de proteção da confiança) pode formular-se do seguinte modo: o indivíduo tem do direito poder confiar em que aos seus atos ou às decisões públicas incidentes sobre os seus direitos, posições ou relações jurídicas alicerçados em normas jurídicas vigentes e válidas por esse atos jurídicos deixado pelas autoridades com base nessas normas se ligam os efeitos jurídicos previstos e prescritos no ordenamento jurídico.”

A proteção dos direitos das partes em caso de erro ou omissão em atos praticados pela secretaria judicial integra a tutela da confiança. De forma a cumprir as garantias do processo equitativo, a administração da justiça deve conformar a sua atuação de modo a evitar que os seus erros prejudiquem as partes, promovendo deste modo a confiança na atuação das secretarias dos tribunais e salvaguardando a confiança que nessa atuação tenha sido depositada pelas partes ([3]).

Na realidade, as partes contam com a diligência e eficácia das secretarias judiciais, confiando do ponto de vista da cooperação nos seus funcionários para uma melhor administração da justiça, sendo este o fundamento para que as partes não possam ser prejudicadas por erros cometidos pela própria administração da justiça.

Importa, no entanto, considerar que «o processo equitativo, como “justo processo” supõe que os sujeitos do processo usem os direitos e cumpram os seus deveres processuais com lealdade, em vista da realização da justiça e da obtenção de uma decisão justa. (…) A lealdade, a boa-fé, a confiança, o equilíbrio entre o rigor das decisões do processo e as expectativas que delas decorram, são elementos fundamentais a ter em conta quando seja necessário interpretar alguma sequência que, nas aparências, possa exteriormente apresentar-se com algum carácter de disfunção intraprocessual.» ([4]).

Posto isto,

É pacífica a aplicação subsidiária desta norma ao processo penal, por força do art. 4º do Código de Processo Penal, existindo abundante jurisprudência a propósito. Os casos normalmente relatados na jurisprudência, como sucede com os mencionados pela recorrente, reportam-se maioritariamente à referência pela secretaria a prazos ou dilação mais longa que a prevista na lei, sendo pacífico que em caso de disparidade prevalece o prazo mais longo, seja o previsto na lei ou o transmitido pela secretaria judicial.

            Em causa está a concessão de um prazo para requerer a abertura de instrução, simultaneamente com a notificação para apresentação de contestação e da data designada para julgamento (art. 313º do Código de Processo Penal), por parte da secretaria judicial posteriormente ao momento a que se refere o art. 287º, n.º 1, do Código de Processo Penal: a notificação da acusação ou do arquivamento.

            Pretende a recorrente que seja considerado tempestivo o requerimento de abertura de instrução apresentado posteriormente a esta notificação, que inclui os dois momentos processuais: primeiro o da notificação do arquivamento e da acusação, e depois o do recebimento da acusação e designação da data para realização da audiência de julgamento (sendo certo que a notificação remetida à Sra. Mandatária foi a correta).

            O erro da secretaria judicial é manifesto, ao incluir na notificação, para além das normas relativas à fase de julgamento (arts. 311º a 313º do Código de Processo Penal), a notificação que anteriormente havia já tido lugar no final da fase de inquérito, sem que a recorrente tenha exercido o direito de requerer a abertura da fase de instrução (notificação efetuada a 7.5.2021).

            Na prática, o lapso em que a secretaria judicial incorreu, ao notificar de novo a recorrente do despacho final de inquérito e da possibilidade de requerer a abertura de instrução, resulta na concessão de um segundo prazo para efeito que anteriormente lhe havia já sido comunicado.

            Ora, o princípio ínsito no n.º 6 do art. 157º do Código de Processo Civil tem por escopo obstar a que as partes ou sujeitos processuais vejam os seus direitos de intervenção processual restringidos em virtude de erro cometido pela secretaria judicial, mas não tem como efeito a atribuição de direitos às partes que a lei lhes não confere, ou que se mostram já precludidos ([5].

            Interessa que os erros e omissões da secretaria não resultem em prejuízo às partes, pois estas não podem ver a sua posição processual afetada negativamente em virtude de conduta errónea da secretaria. No caso em apreço, o lapso da secretaria não prejudicou a recorrente, pois não lhe retirou nem reduziu qualquer direito ou garantia processual, concretamente o direito de requerer a abertura da fase de instrução. A inclusão na notificação efetuada da faculdade de requerer a abertura de instrução constitui um lapsus calami, um erro grosseiro, insuscetível de induzir em erro a mandatária da recorrente – que, aliás, recebeu de forma correta a notificação.

            O pretendido aproveitamento de tal lapso na notificação da arguida (agora recorrente na qualidade de assistente) traduziria um benefício ilegítimo, que a lei processual não tolera nem protege.

            Em suma, o prazo para requerer a abertura da instrução decorreu posteriormente à notificação do despacho final proferido no inquérito, que havia terminado há muito quanto a assistente juntou aos autos o requerimento de abertura de instrução.       

            Pelo exposto, conclui-se que nenhuma censura merece o despacho recorrido.


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4. Decisão

Nos termos expostos, nega-se provimento ao recurso, e confirma-se integralmente o despacho recorrido.

Custas a cargo do recorrente, fixando em 4 UC’s a taxa de justiça (arts. 513º, n.º 1, do CPP, e tabela III anexa ao RCP).

Coimbra, 13 de dezembro de 2022

Ana Carolina Cardoso (relatora – processei e revi)

João Bernardo Novais (adjunto)

Rui Pedro Lima (adjunto)





[1] Cf. Ac. do Supremo Tribunal de Justiça de 30.11.2017, rel. Cons. Raul Borges, em www.dgsi.pt .
[2] Em Direito Constitucional e Teoria da Constituição, Almedina, 7.ª ed, pág. 257.
[3] Cf. Ac. da Relação do Porto de 23.6.2021, rel. Nelson Fernandes, em www.dgsi.pt. V. ainda José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, “Código de Processo Civil Anotado” – Volume 1º – Artigos 1º a 361º – pág. 316.
[4] Ac. do Supremo Tribunal de Justiça de 3.3.2004, cit. no aresto mencionado na nota anterior.
[5] No mesmo sentido, cf. Acórdãos da Relação de Lisboa de 3.7.2007 (proc. 5850/1007-I) e da Relação de Évora de 28.4.2020 (proc. 398/19.7GESTB-A.E1), em www.dgsi.pt.