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Acordam, em conferência, na 5ª Secção do Tribunal da Relação de Coimbra:
I. Relatório:
No presente processo, a correr termos no Departamento de Investigação e Ação Penal de ...- 1º secção, foi proferido despacho, datado de 10.05.2023, pelo Juiz ... do Tribunal Central de Instrução Criminal, a indeferir o requerimento feito pela pessoa coletiva “A..., Unipessoal, Lda.” para levantamento da apreensão do prédio urbano, sito na Avenida ..., extinta freguesia ..., ..., descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o número ...46, inscrito na matriz sob o artigo ...60, com o valor patrimonial de €109.626,77, mantendo inalterada a anteriormente decretada apreensão do imóvel.
Inconformado com tal decisão, dela interpôs recurso a requerente, extraindo da respetiva motivação as seguintes conclusões (transcrição):
1. A Recorrente A..., Unipessoal, Lda., NIPC ...50, com sede na ..., ..., concelho ... (...), na qualidade de proprietária de bem apreendido nos presentes autos, notificada do despacho ou decisão final proferida no Apenso B do Processo n. P 2026/23...., em que é ofendido AA e arguida BB, interpôs Recurso Ordinário da Decisão proferida- Atos Jurisdicionais em sede de Inquérito sob a referência n. ...66, requerendo que o presente recurso e respetiva Motivação deverá subir imediatamente e em separado, a instruir com o presente Apenso, dirigido ao Tribunal da Relação de Coimbra.
2. A recorrente tem interesse em recorrer, uma vez que é decretada a apreensão judicial de imóvel, prédio urbano, sito na Avenida ..., extinta freguesia ..., ..., descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o número ...46, inscrito na matriz sob o artigo ...60, propriedade foi adquirida pela empresa A... Unipessoal, Lda., NIPC ...50, por permuta, em 23 de Janeiro de 2024, conforme prova doc. n. 2 1 e demais documentação supra referida (docs. n. 2 2 a 7), pelo permuta de 2 imóveis e pelo valor adicional de 55.000€ (cinquenta e cinco mil euros) pagos por transferência bancária.
3. A empresa A... Unipessoal, Lda., NIPC ...50, por apenso aos autos de Inquérito perante o Juiz do Tribunal de Instrução Criminal, requereu a revogação da medida de apreensão, nos termos e para os efeitos do artigo n. 2 178 2 , n. 2 7 e 8 do Código do Processo Penal, pugnando para fosse ser revogado o despacho e a inerente medida judicial de apreensão da referida propriedade, juntando para o efeito 9 documentos, cuja análise se requereu e se requer a V. Exas, com o devido respeito os referidos documentos não foram valorados, pelo JIC.
4. A requerente/recorrente A... Unipessoal, Lda., entregou 2 imóveis e 55.000€ à ora arguida e marido, sendo que a empresa, actuou dentro do objecto da sua actividade empresarial, procedeu a melhoramentos no imóvel para o arrendar o que fez, com total transparência e à vista de toda a gente, sendo alheia aos factos e investigação nos presentes autos, razão da sua discordância com a medida cautelar de apreensão do imóvel, do qual se encontra desapossada e das respectivas rendas, bem como dos 2 imóveis que permutou e da quantia de 55.000€ (cinquenta e cinco mil euros), suportando custos da propriedade, obras e impostos.
5. Assim sendo, em sede de Inquérito, é proferida Decisão de manter, inalterada, a decretada apreensão do imóvel, Decisão com a qual o requerente/recorrente discorda, desconhecendo o teor dos pontos n. 2 1 a 9 e 11 a 13 da Decisão.
6. Atentos o teor dos 9 documentos supra referidos, o facto da empresa adquirente ter transacionado, por permuta, o imóvel em causa, tendo ainda entregue 2 imóveis e quantia de 55.000€ (cinquenta e cinco mil euros), não poderá ser prejudicada por estar de boa fé e ter transacionado um imóvel que se encontra em causa no Inquérito, sendo totalmente alheia ao objecto do Inquérito, não poderá ser prejudicada, o que sucede com o Despacho proferido e que não altera a decretada apreensão do imóvel, Decisão em sentido contrário que se impunha, com o devido respeito, ainda que se trate de uma Decisão que pela sua natureza é naturalmente temporária.
7. A recorrente adquiriu o imóvel em questão nos autos e destinou-o a um contrato conservador do imóvel, ou seja, assinou contratos de arrendamento do imóvel, tanto mais que os arrendatários foram notificados para depositar à ordem dos presentes autos, as respectivas rendas, conforme provam os 9 documentos que juntou e os presentes autos.
8. Na Decisão recorrida não há qualquer referência ao teor ou a análise ainda que sucinta dos documentos juntos pelo proprietário e titular do direito, vício que assiste à Decisão recorrida, com o sempre merecido respeito e que se impunha nos termos e para os efeitos do artigo 178 2, n. 2 7 e 8 do CPP.
9. As medidas cautelares e de garantia patrimonial devem ser adequadas e proporcionais nos termos e para os efeitos dos artigos 191 2 e 196 P do Código Penal, na óptica do arguido, contudo, a requerente/recorrente, terceiro de boa fé, é afectada no seu direito de propriedade, sendo que suportou o preço (2 imóveis e 55.000€), procedeu a obras e arrendou o imóvel, contratos participados perante a Autoridade Tributária e encontra-se privado da/s renda/s suportando as inerentes despesas e impostos, conforme provam os 9 documentos que juntou e cujo teor se dá por reproduzido para todos e devidos efeitos legais.
10. Com o devido respeito, a recorrente considera violadas as regras dos artigos n. 2 196 Q do CPP, 268 2 , n. 2 1, alínea c) e 178 2 , 7, n. 2 8 e n. g 12 todos do CPP e do artigo 1.31 IP do Código Civil, pelo que impunha-se Decisão diferente que não onerasse um terceiro de boa fé, proprietário, devendo do texto da Decisão resultar a análise da documentação junta pela requerente ora recorrente.
11. Face ao exposto requer a V. Exas que seja revogada a Decisão proferida pelo Juiz de Instrução Criminal, em sede de Inquérito, processada no Apenso B, nomeadamente a Decisão que mantém inalterada a decretada apreensão do imóvel, melhor identificado no aludido despacho, após audição do titular do direito, no caso em apreço, proprietário, com o seu direito reconhecido por registo predial, assim se fazendo JUSTIÇA”*
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O recurso foi admitido, com efeito devolutivo, com subida imediata e nos próprios autos ( apenso “B”), nos termos das disposições conjugadas dos arts. 399.º, 400.º, a contrario, 401.º n.º 1 al. c), 406.º n.º 1, 407.º n.º 2 al. a), 408.º, a contrario, 411.º n.º 1 e 427.º, todos do Código de Processo Penal.
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-» O Ministério Público respondeu ao recurso, que motivou, dele extraindo as seguintes conclusões:
1. Nos presentes autos de inquérito, foi proferida decisão a 2 de Abril de 2024, que determinou a apreensão do prédio urbano, sito na Avenida ..., extinta freguesia ..., ..., descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o número ...46, inscrito na matriz sob o artigo ...60, com o valor patrimonial de €109.626,77, por este imóvel estar relacionado com a prática do crime de burla qualificada, previsto e punido pelos artigos 217.0 e 218 n.os I e 2 als. a) e c) do Código Penal, em investigação, dado ser o imóvel doado na sequência do engano astuciosamente criado com o objectivo dos ofendidos cederem a propriedade do mesmo.
2. Verificando-se que o prédio em causa, depois de doado à arguida BB, foi objeto de permuta, foi determinado ainda que se desse cumprimento ao disposto no art. 178. n. 1 do Código de Processo Penal, procedendo à notificação do titular inscrito para, querendo e em 10 dias, se pronunciar.
3. Nessa sequência, veio a empresa A..., Lda pugnar pela alteração da decisão de apreensão daquele imóvel, invocando ter agido de boa fé na celebração daquele negócio.
4. Por decisão proferida a 10 de Maio de 2024, foi indeferido o levantamento da apreensão do prédio urbano, mantendo-se inalterada a decretada apreensão do imóvel.
5. De acordo com os factos indiciados, os ofendidos celebraram escritura de doação daquele imóvel no dia 21 de Dezembro de 2023, a favor da arguida BB, sem compreenderam o que estavam a assinar e sem saberem que, através daquele documento, a propriedade do imóvel.
6. No dia 24 de Janeiro de 2024, a arguida BB, e o marido CC, transmitiram a propriedade do imóvel referido, por permuta com a empresa A..., Unipessoal, Lda, cujo sócio gerente é A..., tendo recebido, nessa permuta, o prédio urbano sito no lugar ..., descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o número ...92, inscrito na matriz sob o artigo ...52, com o valor patrimonial de €2.649,15; o prédio urbano, sito no lugar ..., descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o número ...73, inscrito na matriz sob o artigo ...53, com o valor patrimonial de €6.272,70 e ainda a quantia de € 55.000,00, paga através de transferência bancária para o IBAN ...19 da Banco 1....
7. Logo no dia 28 de Fevereiro de 2004, a arguida BB e o seu marido CC venderam o prédio urbano sito no lugar ..., descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o número ...92, inscrito na matriz sob o artigo ...52, com o valor patrimonial de €2.649,15; e o prédio urbano, sito no lugar ..., descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o número ...73, inscrito na matriz sob o artigo ...53, com o valor patrimonial de €6.272,70, a DD, pelo preço declarado de 610.000,00.
8. As transmissões de propriedade ocorreram após a arguida BB ter sido confrontada pelos familiares do ofendido com a doação realizada, e estes lhe terem pedido a devolução do imóvel, o que esta aceitou, ainda que mediante a exigência de contrapartidas monetárias, a celebração de um contrato de arrendamento com uma renda baixa e a manutenção da prestação de serviços aos idosos, o que estes concordaram, mas que nunca ocorreu.
9. O interessado A..., pouco tempo antes da doação, contactou o ofendido AA, por intermédio da arguida BB, com o objectivo de negociar a compra de uma fábrica de móveis da sua propriedade, negócio que não se realizou devido ao direito de preferência do arrendatário (cfr. fls. 203).
10. O interessado A..., enquanto representante legal da empresa A..., Unipessoal, Lda, desenvolveu ainda diligências imediatas no sentido de obter o pagamento das rendas do imóvel, notificando os arrendatários para o efeito.
I l . Nestes termos, resulta dos factos, ainda em investigação, a suspeita que A... não é um mero terceiro no desenvolvimento da actividade delituosa e que actuou com conhecimento quanto à origem do imóvel, sendo notório que A... agiu a coberto do objecto social da sua empresa para colaborar no desenvolvimento da acção criminosa da arguida BB, em seu próprio beneficio económico e da sua empresa.
12. Assim, carece de fundamento o invocado pelo arguido quanto à existência de boa fé na celebração deste negócio, que consideramos não estar claramente indiciada.
13. Por outro lado, a apreensão de um bem, nos termos do disposto no art. 178.º n.º 1 do C. P. Penal não se confunde com uma medida de garantia patrimonial, sendo certo que, para a decisão de apreensão do bem basta a existência de indícios da prática de um determinado crime e da relação entre o ilícito e os activos que se pretendem acautelar (não sendo necessário a verificação de fumus boni iuris ou periculum in mora).
14. Não obstante, no presente caso, a sucessão de actos de transmissão da propriedade praticados após a doação dos ofendidos (e mesmo após a arguida ter sido confrontada com os familiares do ofendido para a necessidade de devolver o imóvel), bem como a imediata actuação do recorrente para obtenção das rendas do imóvel, evidenciam que existe um sério risco de dissipação destes bens e quantias monetárias, que põem em causa a acção penal, pelo que se impõe a apreensão imediata dos mesmos, conforme determinado pelo Mmo. Juiz de Instrução.
15. No caso dos autos, não há dúvida que o imóvel apreendido constitui o produto do crime de burla qualificada, previsto e punido pelos artigos 217.º e 218.º n.os 1 e 2 als. a) e c) do Código Penal, cuja prática se encontra amplamente indiciada.
16. Por conseguinte, sendo perfeitamente correcta a valoração da prova indiciária efectuada pelo Juízo de Instrução Criminal, e não padecendo a decisão recorrida de qualquer dos vícios referidos, ou de outros de que cumpra ao Tribunal ad quem oficiosamente conhecer, a decisão proferida deverá permanecer intacta.
17. Nestes termos, bem andou o Juízo de Instrução Criminal em manter a decisão de apreensão do imóvel que constituiu o produto dos factos ilícitos em investigação, e que configuram a prática do crime de burla qualificada, previsto e punido pelos artigos 217. e 218. n.os I e 2 als. a) e c) do Código Penal.”
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-» Neste Tribunal, A Ex.ma. Sra. Procuradora-Geral Adjunta emitiu parecer no sentido da improcedência do recurso, concordando com a resposta do Mº Pº na 1ª instância no sentido da manutenção da decisão recorrida, à qual aditou as seguintes notas:
- a pessoa coletiva recorrente adquiriu, por 65.000€, preço muito inferior ao valor de mercado, o prédio que é objeto do crime, retirando benefício indevido do facto ilícito típico que é objeto dos autos.
- a recorrente sabia que o imóvel provinha de negócio gratuito anterior e, sendo pessoa das relações da arguida, conhecia as circunstâncias da doação e tinha razões para suspeitar da origem do negócio.
- é fortemente indiciado que a arguida tratou, com a maior brevidade possível, de transmitir o bem ilegitimamente obtido, assim obviando à reversão do negócio (doação) e os prédios recebidos em permuta foram rapidamente vendidos – precisamente a comprador arregimentado pelo legal representante da aqui recorrente e que já em data anterior aos factos dos autos encetara as negociações para a compra.
Conclui que estão reunidos os indícios necessários para concluir que o imóvel apreendido é suscetível de vir a ser declarado perdido a favor do Estado.
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Cumprido que foi o disposto no art.º 412º, a recorrente apresentou resposta, reiterando os argumentos expostos no recurso.
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Proferido despacho liminar e, colhidos os “vistos”, teve lugar a conferência.
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II – questões a decidir:
Como é pacificamente entendido, o âmbito dos recursos é definido pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respectiva motivação, que delimitam as questões que o tribunal ad quem tem de apreciar, sem prejuízo das que forem de conhecimento oficioso (cf. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, vol. III, 2ª ed., pág. 335, Simas Santos e Leal-Henriques, Recursos Penais, 9ª ed., 2020, págs. 89 e 113-114, e, entre muitos outros, o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 05.12.2007, Processo nº 3178/07, 3ª Secção, disponível in Sumários do STJ, www.stj.pt, no qual se lê: «O objecto do recurso é definido e balizado pelas conclusões extraídas da respectiva motivação, ou seja, pelas questões que o recorrente entende sujeitar ao conhecimento do tribunal de recurso aquando da apresentação da impugnação - art. 412.º, n.º 1, do CPP -, sendo que o tribunal superior, tal qual a 1.ª instância, só pode conhecer das questões que lhe são submetidas a apreciação pelos sujeitos processuais, ressalvada a possibilidade de apreciação das questões de conhecimento oficioso, razão pela qual nas alegações só devem ser abordadas e, por isso, só assumem relevância, no sentido de que só podem ser atendidas e objecto de apreciação e de decisão, as questões suscitadas nas conclusões da motivação de recurso, (...), a significar que todas as questões incluídas nas alegações que extravasem o objecto do recurso terão de ser consideradas irrelevantes.»)
Atentas as conclusões apresentadas, que traduzem as razões de divergência do recurso com a decisão impugnada, a questão a examinar e a decidir é a de saber se a apreensão efetuada deve ser levantada.
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III – Transcrição de partes do processo relevantes para a decisão do recurso e transcrição do despacho recorrido:
1) -» Nos presentes autos de inquérito, por despacho de 19 de março de 2024 pelo M.º P.º foi requerido ao M.mo juiz de instrução criminal o seguinte:
“ Apreensão:
Conforme prescreve o artigo 178.º, n.º 1 do CPP, “(..) são apreendidos os instrumentos, produtos ou vantagens relacionados com a prática de um facto ilícito típico.”.
Nos termos do disposto no artigo 110.º, n.º 1, al. b) do CP, são consideradas vantagens de facto ilícito típico “(…) todas as coisas, direitos ou vantagens que constituam vantagem económica, direta ou indiretamente resultante desse facto, para o agente ou para outrem.”.
Pelo exposto, importa apreender os bens que constituem a vantagem económica decorrente do facto ilícito típico, isto é:
a) O prédio urbano, sito na Avenida ..., extinta freguesia ..., ..., descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o número ...46, inscrito na matriz sob o artigo ...60, com o valor patrimonial de €109.626,77;
b) O prédio urbano sito no lugar ..., descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o número ...92, inscrito na matriz sob o artigo ...52, com o valor patrimonial de €2.649,15;
c) O prédio urbano, sito no lugar ..., descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o número ...73, inscrito na matriz sob o artigo ...53, com o valor patrimonial de €6.272,70;
d) A quantia de € 55.000,00, paga através de transferência bancária para o IBAN ...19 da Banco 1...;
e) O valor das rendas, vencidas e vincendas, que configurem o pagamento dos arrendatários do prédio urbano, sito na Avenida ..., extinta freguesia ..., ..., descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o número ...46, inscrito na matriz sob o artigo ...60.
Refira-se que o estado da investigação ainda não permite estabelecer, com segurança, que A..., enquanto sócio e gerente da empresa A..., Unipessoal, Lda agiu em comunhão de esforços e intenções com a suspeita, ainda que tal se possa indiciar da sucessão temporal de actos praticados e da quase simultaneidade entre o registo de propriedade do imóvel e o contrato de permuta (cfr. fls. 229 e ss. e 255 e ss.).
Verifica-se também que o referido A..., enquanto representante legal da empresa A..., Unipessoal, Lda, se encontra a desenvolver diligências no sentido de obter o pagamento das rendas do imóvel, tendo já notificado os arrendatários para as processarem para o IBAN ...08 da Banco 2... (cfr. fls. 224).
Deste modo, mostra-se claro, pelos actos já praticados até ao momento, que existe um sério risco de dissipação destes bens e quantias monetárias, que põem em causa a acção penal, pelo que se impõe a apreensão imediata dos mesmos.
O registo de propriedade em nome do terceiro não obsta à apreensão do bem, ainda que seja necessário proceder à audição do interessado, tal como dispõe o art. 178.º n.º 9 e 12 do C. P. Penal (e isto sem prejuízo de, a final, ser ponderada a susceptibilidade de virem a ser declarados perdidos a favor do Estado, nos termos do disposto no art. 111.º do C. P. Penal) – neste sentido cfr. Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 27-09-2023, proferido no processo 261/21.1T9ACB-D.C1, disponível em www.dgsi.pt.
Nestes termos, promove-se que a apreensão do prédio urbano, sito na Avenida ..., extinta freguesia ..., ..., descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o número ...46, inscrito na matriz sob o artigo ...60, bem como das respectivas rendas, seja precedida da audição da empresa interessada A..., Unipessoal, Lda.
Em face do que antecede, promovo que se determine a apreensão dos bens, quantias monetárias e direitos referidos, que se encontram na posse da suspeita BB, do seu marido CC e da sociedade A..., Unipessoal, Lda, cujo único sócio e gerente é A..., por constituírem a vantagem dos factos ilícitos aqui em investigação.”
2) Em 2 de abril de 2024, foi proferido pelo juiz de instrução criminal o seguinte despacho (transcrição parcial):
“A apreensão de produtos ou vantagens relacionadas com a prática do crime
O Ministério Público promove que seja determinada a apreensão dos bens que identifica.
Cumpre decidir.
No âmbito dos presentes autos, encontram-se em investigação factos suscetíveis de integrar a prática do crime de burla qualificada, previsto e punido pelos artigos 217.º e 218.º n.os 1 e 2 als. a) e c) do Código Penal.
Na verdade, através da análise dos indícios já recolhidos nos autos, pode dizer-se, com o Ministério Público, que:
1. EE, nascida a ../../1946, e AA, nascido a ../../1938, residem na Avenida ..., em ....
2. EE sofre de doença de Parkinson, apresentando deterioração cognitiva de tipo demencial e sintomatologia depressiva concomitante.
3. AA padece de várias enfermidades que afectam a sua audição, visão e mobilidade, já tendo sido vítima de acidente vascular cerebral no ano de 2021.
4. Desde data não concretamente apurada do mês de Agosto de 2023, este casal passou a ser acompanhado, nas suas actividades diárias, por BB, contratada para fazer face à impossibilidade dos ofendidos realizarem as suas tarefas e cuidados sozinhos.
5. No entanto, em data não concretamente apurada, mas que se sabe ter sido anterior ao dia 21 de Dezembro de 2023, a suspeita BB logrou convencer os ofendidos que seria capaz de os ajudar com a actualização das rendas dos seus imóveis.
6. A suspeita BB transmitiu aos ofendidos que teriam que assinar um documento destinado a conferir validade aos contratos de arrendamento, devido à actualização das rendas, o que estes aceitaram, acreditando no que lhes era transmitido.
7. Deste modo, no dia 21 de Dezembro de 2023, a suspeita BB encaminhou os ofendidos para o cartório notarial ..., convencendo-os que iriam apenas assinar aquele documento para “aumentarem as rendas”.
8. Deste modo, beneficiando da confiança que havia granjeado junto dos ofendidos e das suas vulnerabilidades de saúde, a suspeita BB levou-os a assinar uma escritura de doação do prédio urbano, sito na Avenida ..., extinta freguesia ..., ..., descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o número ...46, inscrito na matriz sob o artigo ...60, com o valor patrimonial de €109.626,77.
9. Os ofendidos não compreenderam o que estavam a assinar nem sabiam que, através daquele documento, transmitiam a propriedade do imóvel para a suspeita.
10. No dia 24 de janeiro de 2024, a suspeita BB, e o marido CC, transmitiram a propriedade do imóvel referido em 8, por permuta com a empresa A..., Unipessoal, Lda, cujo sócio gerente é A..., tendo recebido, nessa permuta, o prédio urbano sito no lugar ..., descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o número ...92, inscrito na matriz sob o artigo ...52, com o valor patrimonial de €2.649,15; o prédio urbano, sito no lugar ..., descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o número ...73, inscrito na matriz sob o artigo ...53, com o valor patrimonial de €6.272,70 e ainda a quantia de € 55.000,00, paga através de transferência bancária para o IBAN ...19 da Banco 1....
11. A suspeita BB actuou com o propósito concretizado de obter aquele imóvel, em benefício próprio e prejuízo alheio, através de meio e artifício enganoso, susceptível de criar nos ofendidos a confiança necessária à realização dos seus objectivos.
12. A suspeita BB, aproveitando dos problemas de saúde dos ofendidos, e do facto de ter passado a acompanhá-los no auxílio diário em virtude da sua situação de dependência, fez crer aos ofendidos que era capaz de os ajudar com a actualização de rendas nos seus imóveis, criando um clima de confiança que, conjugado com os demais elementos, determinaram os ofendidos a aceitar assinar um documento, convencidos que se destinava a resolver essa situação, permitindo deste modo que a arguida se apoderasse do imóvel, sem que alguma vez tivesse sido a intenção dos ofendidos transmitir-lho.
13. Os arguidos agiram deliberada, livre e conscientemente, bem sabendo que as suas condutas eram punidas por lei.
Como se percebe, a suspeita, aproveitando a crescente relação de confiança que estabeleceu com os ofendidos, acabou por formular um plano, determinando que os ofendidos assinassem um documento (escritura de doação), convencidos de que estavam a assinar um qualquer outro documento relacionado com a atualização de rendas relativas a um ou mais contratos de arrendamento de que eram senhorios.
É claro que o circunstancialismo que rodeou a celebração de tal escritura pública melhor será apurado, designadamente com a inquirição do próprio notário ou outro funcionário que tenha presenciado o sucedido, mas o tribunal pode desde já perguntar-se sobre o motivo de alguém doar um imóvel, cujo valor patrimonial tributável ascende a quase €110.000,00, a uma outra pessoa que conhecera há poucos meses, sobretudo quando se sabe que existem herdeiros.
Ou seja, existem indícios de que os ofendidos, que padecem de graves problemas de saúde que comprometem a sua capacidade de discernimento, foram efetivamente ludibriados, pelo que se justificam as requeridas apreensões, procurando desta forma preservar-se os produtos ou vantagens relacionadas com a atividade delituosa em investigação no presente inquérito.
Como é evidente, perante os factos dados a conhecer, apenas o prédio urbano objeto de doação constitui a vantagem imediata do crime, mas a verdade é que, entretanto, a suspeita, acompanhada do seu marido, procedeu já à celebração de permuta com outros dois imóveis, recebendo ainda dinheiro, pelo que importa proceder à apreensão de todos estes bens, evitando que possam ser dissipados e/ou transmitidos novamente a terceiras pessoas.
Como também salienta o Ministério Público, “o estado da investigação ainda não permite estabelecer, com segurança, que A..., enquanto sócio e gerente da empresa A..., Unipessoal, Lda, agiu em comunhão de esforços e intenções com a suspeita, ainda que tal se possa indiciar da sucessão temporal de actos praticados e da quase simultaneidade entre o registo de propriedade do imóvel e o contrato de permuta (cfr. fls. 229 e ss. e 255 e ss.). Verifica-se também que o referido A..., enquanto representante legal da empresa A..., Unipessoal, Lda, se encontra a desenvolver diligências no sentido de obter o pagamento das rendas do imóvel, tendo já notificado os arrendatários para as processarem para o IBAN ...08 da Banco 2... (cfr. fls. 224).”
Seja como for, dúvidas não há de que todos os bens que se pretendem ver apreendidos estão relacionados com a prática do crime.
Todavia, no caso do prédio doado e depois objeto de permuta, antes de proceder ao respetivo registo, importa dar cumprimento ao disposto no art. 178.º n.º 12 do Código de Processo Penal, procedendo à notificação do titular inscrito para, querendo e em 10 dias, se pronunciar.
Nestes termos e ao abrigo do disposto nos arts. 178.º n.º 1, 181.º n.º 1 e 268.º n.º 1 al. c) do Código de Processo Penal, determino a apreensão dos seguintes bens:
a) prédio urbano, sito na Avenida ..., extinta freguesia ..., ..., descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o número ...46, inscrito na matriz sob o artigo ...60, com o valor patrimonial de €109.626,77;
b) prédio urbano sito no lugar ..., descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o número ...92, inscrito na matriz sob o artigo ...52, com o valor patrimonial de €2.649,15;
c) prédio urbano, sito no lugar ..., descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o número ...73, inscrito na matriz sob o artigo ...53, com o valor patrimonial de €6.272,70;
d) quantia de €55.000,00, paga através de transferência bancária para o IBAN ...19 da Banco 1...;
e) valor das rendas, vencidas e vincendas, que configurem o pagamento dos arrendatários do prédio urbano, sito na Avenida ..., extinta freguesia ..., ..., descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o número ...46, inscrito na matriz sob o artigo ...60.
Oportunamente, providenciar-se-á pelo cumprimento do ora decidido.
Na verdade, promovendo-se igualmente a realização de busca domiciliária, qualquer apreensão de bens, ou notificação de terceiro para se pronunciar sobre os factos em discussão, faria imediatamente “soar o alarme”, podendo comprometer a eficácia da diligência.
Assim, sugere-se ao Ministério Público que, em parceria com a Polícia Judiciária, informe da data em que se pretende a realização das apreensões.”
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3) Em 9/4/2024 foi proferido o seguinte despacho pelo M.mo Juiz de Instrução criminal:
“B. A apreensão de bens:
Na sequência do despacho proferido a fls. 305-309, dê cumprimento ao ali determinado.
No entanto, mais se verifica que os prédios urbanos inscritos na matriz sob os artigos ...52 e ...53 foram, entretanto, alienados pela arguida, a qual recebeu o preço de €10.000,00, montante que foi pago através de transferência bancária para a mesma conta bancária.
Assim sendo e dando-se por reproduzidos os fundamentos anteriormente expostos, e em substituição da anterior al. d), determina-se a apreensão, até ao limite de €65.000,00 do saldo da conta bancária com o IBAN ...19 da Banco 1....
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No que concerne às apreensões ordenadas sob as als. a), b) e c), antes de proceder ao respetivo registo, importa dar cumprimento do disposto no art. 178.º n.º 12 do Código de Processo Penal.
Assim, com cópia do despacho, notifique os titulares inscritos A... e DD para, querendo e em 10 dias, se pronunciarem.”
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-» Por requerimento de 23/4/2024, a aqui recorrente requereu a “a revogação do despacho de apreensão do prédio urbano, sito na Avenida ..., extinta freguesia ..., ..., descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o número ...46, inscrito na matriz sob o artigo ...60, com valor patrimonial de €:109626,77”
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4) -» A 10/5/2024 foi proferido o despacho judicial recorrido com o seguinte teor:
“No âmbito dos apensos autos, e ao abrigo do disposto nos arts. 178.º n.º 1, 181.º n.º 1 e 268.º n.º 1 al. c) do Código de Processo Penal, foi determinada, além do mais, a apreensão dos seguintes bens imóveis:
a) prédio urbano, sito na Avenida ..., extinta freguesia ..., ..., descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o número ...46, inscrito na matriz sob o artigo ...60, com o valor patrimonial de €109.626,77;
b) prédio urbano sito no lugar ..., descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o número ...92, inscrito na matriz sob o artigo ...52, com o valor patrimonial de €2.649,15; e
c) prédio urbano, sito no lugar ..., descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o número ...73, inscrito na matriz sob o artigo ...53, com o valor patrimonial de €6.272,70.
O tribunal, realizadas que foram as buscas domiciliárias, deu cumprimento ao disposto no art. 178.º n.º 12 do Código de Processo Penal.
Os titulares inscritos A..., Unipessoal, Ld.ª e DD pronunciaram-se, afirmando estarem de boa fé em todo este processo, mais requerendo o levantamento da apreensão.
II.
Cumpre decidir.
No despacho que ordenou a apreensão, deram-se como fortemente indiciados os seguintes factos:
1. EE, nascida a ../../1946, e AA, nascido a ../../1938, residem na Avenida ..., em ....
2. EE sofre de doença de Parkinson, apresentando deterioração cognitiva de tipo demencial e sintomatologia depressiva concomitante.
3. AA padece de várias enfermidades que afectam a sua audição, visão e mobilidade, já tendo sido vítima de acidente vascular cerebral no ano de 2021.
4. Desde data não concretamente apurada do mês de Agosto de 2023, este casal passou a ser acompanhado, nas suas actividades diárias, por BB, contratada para fazer face à impossibilidade dos ofendidos realizarem as suas tarefas e cuidados sozinhos.
5. No entanto, em data não concretamente apurada, mas que se sabe ter sido anterior ao dia 21 de Dezembro de 2023, a suspeita BB logrou convencer os ofendidos que seria capaz de os ajudar com a actualização das rendas dos seus imóveis.
6. A suspeita BB transmitiu aos ofendidos que teriam que assinar um documento destinado a conferir validade aos contratos de arrendamento, devido à actualização das rendas, o que estes aceitaram, acreditando no que lhes era transmitido.
7. Deste modo, no dia 21 de Dezembro de 2023, a suspeita BB encaminhou os ofendidos para o cartório notarial ..., convencendo-os que iriam apenas assinar aquele documento para “aumentarem as rendas”.
8. Deste modo, beneficiando da confiança que havia granjeado junto dos ofendidos e das suas vulnerabilidades de saúde, a suspeita BB levou-os a assinar uma escritura de doação do prédio urbano, sito na Avenida ..., extinta freguesia ..., ..., descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o número ...46, inscrito na matriz sob o artigo ...60, com o valor patrimonial de €109.626,77.
9. Os ofendidos não compreenderam o que estavam a assinar nem sabiam que, através daquele documento, transmitiam a propriedade do imóvel para a suspeita.
10. No dia 24 de janeiro de 2024, a suspeita BB, e o marido CC, transmitiram a propriedade do imóvel referido em 8, por permuta com a empresa A..., Unipessoal, Lda, cujo sócio gerente é A..., tendo recebido, nessa permuta, o prédio urbano sito no lugar ..., descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o número ...92, inscrito na matriz sob o artigo ...52, com o valor patrimonial de €2.649,15; o prédio urbano, sito no lugar ..., descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o número ...73, inscrito na matriz sob o artigo ...53, com o valor patrimonial de €6.272,70 e ainda a quantia de € 55.000,00, paga através de transferência bancária para o IBAN ...19 da Banco 1....
11. A suspeita BB actuou com o propósito concretizado de obter aquele imóvel, em benefício próprio e prejuízo alheio, através de meio e artifício enganoso, susceptível de criar nos ofendidos a confiança necessária à realização dos seus objectivos.
12. A suspeita BB, aproveitando dos problemas de saúde dos ofendidos, e do facto de ter passado a acompanhá-los no auxílio diário em virtude da sua situação de dependência, fez crer aos ofendidos que era capaz de os ajudar com a actualização de rendas nos seus imóveis, criando um clima de confiança que, conjugado com os demais elementos, determinaram os ofendidos a aceitar assinar um documento, convencidos que se destinava a resolver essa situação, permitindo deste modo que a arguida se apoderasse do imóvel, sem que alguma vez tivesse sido a intenção dos ofendidos transmitir-lho.
13. Os arguidos agiram deliberada, livre e conscientemente, bem sabendo que as suas condutas eram punidas por lei.
O tribunal, que, entretanto, ouviu os ofendidos para memória futura, mantém inalterada a convicção de que os ofendidos, cuja capacidade de discernimento está algo comprometida por força das doenças de que padecem, foram efetivamente ludibriados pela arguida.
O bem imóvel, objeto de doação e posterior permuta, está indiscutivelmente relacionado
com a prática do crime, pelo que, com o devido respeito, não se veem razões para ordenar o levantamento da apreensão, procurando desta forma preservar-se aquela que foi a vantagem direta e imediata decorrente da atividade delituosa.
É claro que esta apreensão, pela sua natureza, é meramente temporária, e só a final será possível ponderar-se sobre o destino a dar ao imóvel.
Neste contexto, será indeferida a pretensão da requerente.
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Quanto aos outros dois bens imóveis que foram objeto de permuta, verifica-se que os mesmos foram já vendidos a terceira pessoa, DD, que rigorosamente nada tem a ver com este problema, procedendo ao pagamento do respetivo preço de aquisição.
Se assim é, afigura-se que aqueles imóveis, agora na sua esfera de propriedade, não constituem vantagem da prática do crime sob investigação, pelo que deve ser determinado o levantamento da respetiva apreensão.
III.
Pelo exposto, ao abrigo do disposto nos arts. 178.º n.os 7 e 12 e 268.º n.º 1 al. c) do Código de Processo Penal, o tribunal decide:
A.
1. Indeferir o levantamento da apreensão do prédio urbano, sito na Avenida ..., extinta freguesia ..., ..., descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o número ...46,
inscrito na matriz sob o artigo ...60, com o valor patrimonial de €109.626,77, mantendo-se inalterada, por conseguinte, a decretada apreensão do imóvel.
2. Proceda à concretização do registo (art. 178.º n.º 11 do Código de Processo Penal).
B.
1. Determinar o levantamento da apreensão do prédio urbano sito no lugar ..., descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o número ...92, inscrito na matriz sob o artigo ...52, com o valor patrimonial de €2.649,15.
2. Determinar o levantamento da apreensão prédio urbano, sito no lugar ..., descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o número ...73, inscrito na matriz sob o artigo ...53, com o valor patrimonial de €6.272,70.
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O tribunal entende que não deve tributar o presente incidente, porquanto os interessados foram, por força da lei, instados a pronunciarem-se sobre a apreensão dos imóveis.
Notifique.”
IV – CONHECIMENTO DO MÉRITO DO RECURSO:
Como acima se assinalou, não está aqui em causa o despacho que determinou a apreensão, sendo objeto do presente recurso tão só sindicar o despacho que, mantendo a apreensão do prédio urbano descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º ...46, inscrito na matriz sob o artigo ...60, indeferiu um pedido de entrega desse mesmo bem.
Vejamos então se a pretensão do recorrente merece proceder.
Sabemos que o art. 178º, nº1 do CPP legitima a apreensão de quaisquer “instrumentos, produtos ou vantagens relacionados com a prática de um facto ilícito típico, e bem assim todos os animais, as coisas e os objetos que tiverem sido deixados pelo agente no local do crime ou quaisquer outros suscetíveis de servir a prova.”
E o n.º 5 diz que: “os órgãos de polícia criminal podem ainda efectuar apreensões quando haja fundado receio de desaparecimento, destruição, danificação, inutilização, ocultação ou transferência de instrumentos, produtos ou vantagens ou outros objetos provenientes da prática de um facto ilícito típico suscetíveis de serem declarados perdidos a favor do Estado”
Já o art.º 186º, do CPP, referente à restituição de objetos apreendidos, dispõe que:
“1- Logo que se tornar desnecessário manter a apreensão para efeito de prova, (…) os objetos apreendidos são restituídos a quem de direito (…).
2- Logo que transitar em julgado a sentença, (…) os objetos são restituídos a quem de direito, salvo se tiverem sido declarados perdidos a favor do Estado.
Diz ainda o artigo 178º, n.º 7, do CPP que “os titulares de instrumentos, produtos ou vantagens ou outros objetos ou coisas ou animais apreendidos podem requerer ao juiz a modificação ou alteração da medida.”
Desta forma, a apreensão poderá ter por objeto todos os instrumentos e/ou produtos do crime que se mostrem essenciais para a sua demonstração, sendo que o que verdadeiramente se visa alcançar com a apreensão não é a obtenção de provas, mas antes, em rigor, a sua segurança. O que vale por dizer que, mais do que um meio de obtenção de provas, estamos perante um meio de conservação das mesmas.
Acresce que a função conservatória da apreensão resulta ainda evidente quando consideramos a relação direta que se estabelece entre aquela e a subsequente perda dos instrumentos e/ou produtos ou vantagens relacionados com a prática do crime.
Ou seja, a medida processual de apreensão regulada no artigo 178º do Código de Processo Penal cumpre a dupla função de conservar, quer os bens apreendidos que servirão como meio de prova do crime (finalidade probatória), quer os bens apreendidos que, embora não assumindo valência probatória, deverão, no final do processo, e porque relacionados com o crime, ser declarados perdidos (finalidade confiscatória).
Estas duas funções são reconhecidas pela jurisprudência, incluindo a constitucional, em inúmeros arestos, bem assim como na doutrina.
Assim, lemos no Ac. TC n.º 294/2008, processo n.º 11/08:
“Por outro lado, a apreensão é também um meio de segurança dos bens que tenham servido ou estivessem destinados a servir a prática do crime, ou que constituam o seu produto, lucro, preço ou recompensa, como forma de garantir a execução da sentença penal, o que também justifica a conservação dos objectos apreendidos à ordem do processo até à decisão final. Assim se compreende que o artigo 186º, ao referir-se aos termos em que se processa a restituição dos bens apreendidos, admita que essa restituição apenas venha a ter lugar após o trânsito em julgado da sentença, mediante a entrega ao seu legítimo proprietário ou a declaração de perda a favor do Estado, o que pressupõe que, nessa circunstância, os bens ou valores apreendidos devam ter o destino que for fixado na própria decisão final do processo (n.ºs 2 e 3).(…) Vimos que a apreensão tem a dupla função de meio de obtenção de prova e de garantia patrimonial do eventual decretamento de perda de valores a favor do Estado (cfr. DAMIÃO DA CUNHA, Perda de bens a favor do Estado, Centro de Estudos Judiciários, 2002, pág. 26), e, nesse sentido, tem pleno cabimento que enquanto providência processual instrutória ela possa manter-se até à fase de julgamento e venha apenas a ser declarada extinta com a sentença final (absolutória ou condenatória), quando nela tenha sido entretanto fixado o destino a dar aos bens apreendidos.”
Na jurisprudência, pronunciaram-se neste sentido, entre outros, os Ac RC de 27-09-2023, Processo: 261/21.1T9ACB-D.C1, da RL de 05-03-2024, Processo: 413/14.0TELSB-S.L1-5 e da RE de 22-10-2019, Processo: 589/15.0JALRA-E.E1 e da RG de 20-11-2017, Processo: 413/14.0IDBRG-T.G1, in www.dgsi.pt.
Na doutrina, em abono desta posiçao, escreve João Conde Correia, in Comentário Judiciário do Código de Processo Penal, Tomo II, 3ª edição, Almedina, 2021, página 640:
“O âmbito objetivo dos bens que podem ser apreendidos para efeitos probatórios deve incluir aquilo que seja necessário para a prova de todos os factos juridicamente relevantes para a existência ou inexistência do crime, a punibilidade ou não punibilidade do arguido e a determinação da pena ou da medida de segurança (…). Tudo aquilo que seja necessário para demonstra o thema probandum deve estar incluído. É, por isso, impossível concretizar melhor os bens que são suscetíveis de apreensão com intuitos probatórios. Só em cada caso concreto, será possível avaliar e dizer se uma determinada coisa é ou não necessária para essa demonstração. Tanto mais que: há bens com interesse exclusivamente probatório (v.g. os documentos de planificação do crime); há bens com interesse probatório e confiscatório (v.g. o suborno exigido pelo funcionário para praticar um ato contrário ao exercício das suas funções) e bens com interesse meramente confiscatório (v.g. os lucros obtidos com o investimento desse suborno inicial).”
A apreensão, como toda a restrição de direitos e liberdades resultantes da aplicação de medidas cautelares em sede criminal, está sujeita aos princípios da proporcionalidade e da necessidade, que se traduzem, no que a esta figura respeita, na respetiva redução (seja em extensão, seja temporal) ao mínimo indispensável à satisfação dos propósitos processuais que a lei visa satisfazer através de tal medida provisoriamente restritiva do ius utendi, fruendi et abutendi inerente, no caso, ao direito de propriedade, sendo de registar que a apreensão não afeta o direito de propriedade em si mesmo, mas tão só os direitos de uso a ele associados. E pelas mesmas razões, a levantamento da apreensão deve ocorrer logo que a apreensão deixe de se justificar em ordem à satisfação de qualquer das suas duas finalidades.
Salientamos que a apreensão poderá deixar de se justificar tendo em consideração o objetivo de conservar uma prova, mas poderá continuar a justificar-se em ordem à satisfação daquela outra finalidade da apreensão, que é a da conservar o bem na disponibilidade do Estado, com vista à sua eventual declaração de perda, no momento processual adequado.
O art. 109.º, nº 1, do CP prevê a perda a favor do Estado dos “instrumentos de facto ilícito típico, quando, pela sua natureza ou pelas circunstâncias do caso, puserem em perigo a segurança das pessoas, a moral ou a ordem públicas, ou oferecerem sério risco de ser utilizados para o cometimento de novos factos ilícitos típicos, considerando-se instrumentos de facto ilícito típico todos os objetos que tiverem servido ou estivessem destinados a servir para a sua prática”.
O art. 110.º do CP estabelece que:
“1 - São declarados perdidos a favor do Estado:
a) Os produtos de facto ilícito típico, considerando-se como tal todos os objetos que tiverem sido produzidos pela sua prática; e
b) As vantagens de facto ilícito típico, considerando-se como tal todas as coisas, direitos ou vantagens que constituam vantagem económica, direta ou indiretamente resultante desse facto, para o agente ou para outrem.
2 - O disposto na alínea b) do número anterior abrange a recompensa dada ou prometida aos agentes de um facto ilícito típico, já cometido ou a cometer, para eles ou para outrem.”
Relativamente à perda de bens de terceiro a favor do Estado, estabelece o art.º 111º do CP o seguinte:
1 - Sem prejuízo do disposto nos números seguintes, a perda não tem lugar se os instrumentos, produtos ou vantagens não pertencerem, à data do facto, a nenhum dos agentes ou beneficiários, ou não lhes pertencerem no momento em que a perda foi decretada.
2 - Ainda que os instrumentos, produtos ou vantagens pertençam a terceiro, é decretada a perda quando:
a) O seu titular tiver concorrido, de forma censurável, para a sua utilização ou produção, ou do facto tiver retirado benefícios;
b) Os instrumentos, produtos ou vantagens forem, por qualquer título, adquiridos após a prática do facto, conhecendo ou devendo conhecer o adquirente a sua proveniência; ou
c) Os instrumentos, produtos ou vantagens, ou o valor a estes correspondente, tiverem, por qualquer título, sido transferidos para o terceiro para evitar a perda decretada nos termos dos artigos 109.º e 110.º, sendo ou devendo tal finalidade ser por ele conhecida.”
No caso em apreço, e como nota o M.º Pº no douto parecer antecedente, tudo se resume a sindicar se, de facto, pode ser feito um juízo de prognose futura da possibilidade de o bem apreendido poder ser declarado perdido a favor do Estado.
Não se trata evidentemente ainda de uma decisão definitiva sobre o destino dos bens, mas de uma medida cautelar baseada em indícios, em prova indiciária.
Ora, os autos encontram -se em fase de inquérito, investigando-se factos suscetíveis de integrar a prática do crime de burla qualificada, previsto e punido pelos artigos 217.º e 218.º n.os 1 e 2 als. a) e c) do Código Penal e o Tribunal a quo entendeu que no inquérito foram reunidos indícios da prática pela arguida BB de factos subsumíveis a tais crimes.
Entendeu ainda que não existem indícios de que A..., enquanto sócio e gerente da empresa A..., Unipessoal, Lda, agiu em comunhão de esforços e intenções com a arguida mas, porque “há que preservar a vantagem direta e imediata decorrente da atividade delituosa”, manteve a apreensão do imóvel, indeferindo a pretensão do aqui recorrente.
Trata-se de uma decisão acertada, já que a factualidade indiciada justifica suficientemente a apreensão do imóvel reclamado pela recorrente, independentemente de ser da sua propriedade, ocorrendo a possibilidade de perdimento constante do art.º 111º n.º 2 do CP.
Vejamos que há indícios reunidos no inquérito (resultantes da prova documental junta) de que o referido imóvel, tendo o valor patrimonial matricial de 109.626,77€ foi adquirido, pela recorrente, mediante “permuta”, com entrega de 55.000€ em dinheiro e de dois imóveis.
Estes imóveis, dados em permuta, não valiam, no seu conjunto, mais de 10.000€ - preço pelo qual, quase de imediato, foram também vendidos (cf. fls. 50 deste Apenso).
Resulta ainda de fls. 12 que o valor matricial do imóvel apreendido nos autos (109.626,77€) é anterior à venda, tendo sido atualizado em 2022.
Ou seja, a requerente adquiriu o imóvel apreendido por um valor muito inferior ao valor matricial, retirando assim dos factos ilícitos típicos em investigação um benefício indevido (art.º 111º n.º 2 al. a) do CP).
Há ainda indícios de que o requerente adquiriu o imóvel após a prática dos facto ilícitos típicos em investigação, conhecendo ou devendo conhecer a proveniência do imóvel apreendido (art.º 111º n.º 2 al. b) do CP), já que:
- o imóvel foi doado à arguida BB em 21.12.2023, o que consta do registo predial, logo do conhecimento do legal representante da recorrente.
- A recorrente adquire o imóvel a 23.01.2024 por um valor muito inferior ao valor matricial.
- de acordo com o depoimento de fls. 203, o legal representante da recorrente já tinha abordado o ofendido para lhe adquirir uma fábrica, não se tendo concretizado este negócio). Esse contacto fora intermediado pela arguida.
E sabendo o legal representante da requerente que o ofendido era uma pessoa idosa e debilitada, pois contactou com ele e conhecendo a arguida, a natureza do relacionamento desta com os ofendidos e conhecendo a natureza do trabalho que esta prestava para os ofendidos, concluímos, num raciocínio lógico, fundado nas regras do normal acontecer, que ele não poderia deixar de suspeitar da ilicitude da origem do negócio
Acresce que de todos os factos que estão indiciados não podem deixar de levar este Tribunal a concluir, num raciocínio lógico e dedutivo, que a venda efetuada pela arguida do imóvel apreendido se destinou a evitar a perda decretada nos termos dos artigos 109.º e 110.º, o que a requerente sabia (art.º 111º n.º 2 al. c) do CP).
Desta forma, tendo o imóvel apreendido a potencialidade de vir a ser declarado perdido a favor do Estado, não poderá neste momento processual equacionar-se a sua restituição.
Esta conclusão a que este Tribunal da Relação chegou – e que foi também a conclusão a que chegou o tribunal a quo – não é minimamente contrariada pelas alegações da recorrente, pois não basta pugnar por inocência e dizer que estava de boa fé aquando da compra.
A circunstância de ter feito obras no imóvel e o ter arrendado em nada abala esta análise dos elementos probatórios juntos aos autos.
Por fim, diremos ainda que é patente de toda a tramitação processual que não se mostra violado o artigo 178º n.º 7, 8 e 12 do CPP.
Relativamente à alegada violação das regras dos artigos 196º do CPP, 268º , n.º 1, alínea c) do CPP e do art.º 1.311 do Código Civil (ação de reivindicação), a recorrente não explica o raciocínio em que assenta esta alegação, não delimita a questão, limitando-se à sua afirmação. Ora, não tem este Tribunal da Relação de adivinhar os meandros do raciocínio dos recorrentes, substituir-se aos recorrentes na procura e enunciação de eventuais razões para sustentar entendimento diferente do seguido pelo tribunal a quo, em matéria que não seja de conhecimento oficioso.
Em suma: o despacho recorrido não padece de nenhum vício e deve ser confirmado.
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V - DECISÃO
Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam as Juízas da 5ª secção do Tribunal da Relação de Coimbra em negar provimento ao recurso interposto pela recorrente “A..., Unipessoal, Lda.”, mantendo o despacho recorrido nos seus precisos termos.
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Condena-se o arguido no pagamento das custas do processo, fixando-se a taxa de justiça em 3 UC.
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Notifique.
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Coimbra, 8 de janeiro de 2025
(texto processado e integralmente revisto pela relatora – artigo 94º, nº 2 do Código de Processo Penal)
Sara Reis Marques
(Juíza Desembargadora Relatora)
Sandra Ferreira
(Juíza Desembargadora Adjunta)
Ana Carolina Cardoso
(Juíza Desembargadora Adjunta)