Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | JTRC | ||
Relator: | ANABELA MARQUES FERREIRA | ||
Descritores: | EXONERAÇÃO DO PASSIVO RESTANTE LIQUIDAÇÃO SUPERVENIENTE BENS DE EXISTÊNCIA DESCONHECIDA À DATA DA DECLARAÇÃO DE INSOLVÊNCIA CESSAÇÃO ANTECIPADA DA EXONERAÇÃO COLISÃO DE INTERESSES SUFICIÊNCIA PARA PAGAMENTO DO REMANESCENTE DO CAPITAL EM DÍVIDA | ||
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Data do Acordão: | 04/29/2025 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Tribunal Recurso: | JUÍZO DE COMÉRCIO DE LEIRIA DO TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE LEIRIA | ||
Texto Integral: | N | ||
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Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
Decisão: | REVOGADA | ||
Legislação Nacional: | ARTIGOS 243.º, N.º 1, AL.ª A), 244.º E 239.º, N.º 4, AL.ª C), DO CÓDIGO DA INSOLVÊNCIA E DA RECUPERAÇÃO DE EMPRESAS | ||
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Sumário: | I – O instituto da exoneração do passivo restante permite ao Insolvente, decorrido que seja um determinado período de tempo e tendo cedido o remanescente do rendimento indisponível que lhe foi fixado, libertar-se das dívidas contraídas até à data da declaração da insolvência (salvo as legalmente não exoneráveis).
II – A liquidação superveniente é um procedimento excecional que atribuiu ao Fiduciário, competências de liquidação, com vista a evitar situações de enriquecimento sem causa do insolvente, quando, depois de encerrada a insolvência, mas estando ainda em curso o procedimento de exoneração do passivo restante, ingressem novos bens na esfera patrimonial do devedor. III – Por maioria de razão, a liquidação superveniente aplica-se também nas situações em que os bens ou direitos suscetíveis de alienação já existiam na data da declaração da insolvência, devendo ter ingressado na massa insolvente, só não o tendo sido por serem desconhecidos à data. IV – Embora sem nunca descurar da necessidade de não beneficiar os devedores de má fé, não merecedores do benefício da exoneração, obtido à custa dos credores, cabe ao julgador ter especial cuidado aquando da decisão de cessação antecipada da exoneração do passivo restante, não permitindo o agravamento do incumprimento, mas ponderando sempre a possibilidade de pagamento da dívida no decurso do período da cessão de rendimentos. V – Na exoneração do passivo restante, há uma colisão entre a proteção geral do património e a proteção da liberdade económica e do direito ao desenvolvimento da personalidade, sendo inevitável ter em conta a função insolvência-exoneração. VI – Quando o produto da liquidação do direito apreendido supervenientemente possa ser suficiente para o pagamento do remanescente do capital em dívida, não obstante os Insolventes não terem entregue uma quantia considerável do rendimento disponível, os autos devem aguardar pelo final do período de cessão de rendimentos, não devendo o respetivo procedimento cessar antecipadamente. (Sumário elaborado pela Relatora) | ||
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Decisão Texto Integral: |
Recorrentes AA e BB Fiduciário CC
Juiz Desembargador Relator: Anabela Marques Ferreira Juízes Desembargadores Adjuntos: Chandra Gracias Catarina Gonçalves
Sumário (da responsabilidade do Relator – artº 663º, nº 7, do Código de Processo Civil) (…).
Acordam os juízes que nestes autos integram o coletivo da 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra: I – Relatório
Nestes autos de insolvência de pessoa singular, que corre termos no Juízo de Comércio de Leiria – Juiz 2, em que são Insolventes AA e BB, foi proferida sentença, decidindo que: Pelo exposto, e ao abrigo do disposto no artigo 243º, nº 1, alínea a) e 239º, nº 4, alíneas c), do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, recuso a exoneração do passivo restante aos devedores e declaro antecipadamente cessado o respectivo procedimento.
Os Insolventes interpuseram recurso de tal decisão, concluindo, nas suas alegações, que: (…).
Não foram apresentadas contra-alegações
II – Objeto do processo Colhidos os vistos legais, prestados contributos e sugestões pelos Exmos. Juízes Desembargadores Adjuntos e realizada conferência, cumpre decidir. Da conjugação do disposto nos artºs 635º, nºs 3 e 4, 637º, nº 1 e 639º, todos do Código de Processo Civil, resulta que são as conclusões do recurso que delimitam os termos do recurso (sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso - artº 608º, nº 2, ex vi artº 663º, nº2, ambos do mesmo diploma legal), não vinculando, porém, o Tribunal ad quem às soluções jurídicas preconizadas pelas partes (artº 5º, º 3, do Código de Processo Civil). Assim: Questões a decidir: Da cessação antecipada da exoneração do passivo restante III – Fundamentação A) De facto
Factos julgados provados na sentença recorrida: a)- Em 12.01.2022, o Srº Fiduciário veio juntar aos autos o relatório referindo que, no período de Setembro de 2018 a Janeiro de 2022, os devedores deviam ter cedido à fidúcia o valor de 50 134,36 € e apenas cederam 557,04. b) – Por requerimento de 17.01.2022 vieram os devedores requerer a alteração do valor fixado como rendimento indisponível alegando que têm despesas mensais no valor de 3.200,00€. c) – Por decisão de 7.04.2022, o rendimento indisponível foi alterado para o valor de 3.200,00 desde Janeiro de 2022. d) - Por requerimento de 7.09.2022, os devedores vieram requerer a prorrogação do período de cessão de rendimentos. e) - Em 4.10.2022, o Srº Fiduciário veio juntar aos autos o relatório referindo que, no período de Setembro de 2018 a Abril de 2022, os devedores deviam ter cedido à fidúcia o valor de 78 840,98€ e apenas cederam 557,04. f) - Por decisão de 13.01.2023 foi prorrogado o período de cessão de rendimentos, por um período de 3 anos. g) - Por requerimento de 10.05.2024 veio o Srº Fiduciário referir que entende que é inexequível a prorrogação do período de cessão uma vez que os devedores no 1º ano de prorrogação do período nada cederam. h) – A 23.08.2024, a Srª Notária do Cartório Notarial ... veio dar conhecimento que se encontra a correr termos naquele cartório um inventário para partilha da herança aberta por óbito de DD, no qual a aqui insolvente consta como herdeira e interessada directa, por vocação testamentária, sendo o outro interessado a massa insolvente de EE, também chamado por vocação sucessória. i) -Na sequência da informação referida em h), ao Srº Administrador procedeu à apreensão do quinhão hereditário da devedora na herança por óbito de DD e que é composta por seis prédios urbanos e dois rústicos. j) - O Banco 1..., SA, o Banco 2..., SA e o Banco 3..., SA vieram requerer a cessação antecipada do procedimento de exoneração do passivo restante por violação do disposto no nº 239º nº 4 c) do CIRE. l) - Em 16.10.2024, o Srº Fiduciário veio juntar aos autos o relatório referindo que, no período de Setembro de 2018 a Março de 2024, os devedores deviam ter cedido à fidúcia o valor de 85.939,54 € e apenas cederam 557,04. m) - O Banco 1..., S.A e Banco 2... S.A. vieram requerer de novo a cessação antecipada do procedimento de exoneração do passivo restante. n) - Os devedores, notificados dos pedidos de cessação antecipada, vieram pronunciar-se nos termos constantes do requerimento de 9.12.2024 alegando que se devia aguardar pelo final do período de cessão de rendimentos, na medida em que há a possibilidade de pagar o valor em dívida à fidúcia com o produto da venda do quinhão hereditário apreendido.
B) De Direito
Da cessação antecipada da exoneração do passivo restante
Dispõe o artº 235º, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, que: Se o devedor for uma pessoa singular pode ser-lhe concedida a exoneração dos créditos sobre a insolvência que não forem integralmente pagos no processo de insolvência ou nos três[1] anos posteriores ao encerramento deste, nos termos do presente capítulo. Não havendo lugar a indeferimento liminar (artº 238º, a contrario), segue-se o período de cessão de rendimentos, ficando o insolvente sujeito às obrigações a que alude o nº 4, do artº 239º, cuja violação pode ser causa de cessação antecipada do procedimento de exoneração ou de recusa final de exoneração (artºs 243º e 244º). O período de cessão pode ser prorrogado nos casos a que alude o artº 242º-A, ainda do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas. No caso em apreço, os insolventes viram a exoneração do passivo restante deferida liminarmente e prorrogada por três anos, tendo o procedimento cessado antecipadamente no decurso do período de prorrogação. Os Recorrentes manifestam-se contra tal decisão, requerendo a revogação da decisão de cessação antecipada do procedimento de exoneração do passivo restante, devendo os autos aguardar pelo final do período de cessão de rendimentos. O instituto da exoneração do passivo restante permite ao Insolvente, decorrido que seja um determinado período de tempo e tendo cedido o remanescente do rendimento indisponível que lhe foi fixado, libertar-se das dívidas contraídas até à data da declaração da insolvência (salvo as legalmente não exoneráveis). Como nos diz Catarina Serra, “Exoneração do passivo restante 20 anos depois” in “20 anos do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas – Congresso comemorativo”, Instituto de Direito das Empresas e do Trabalho, Colóquios, nº 7, Almedina, 2024, págs. 13 e 14: Como é do conhecimento geral, a exoneração do passivo restante é um regime introduzido no ordenamento jurídico português em 2004 e regulado nos arts. 235° a 248º-A do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (CIRE). Teve por modelo a Restschuldbefreiung da lei alemã [cfr. §§ 286 bis a 303a da Insolvenzordnung (InsO)] mas existem instrumentos homólogos em quase todas as leis da insolvência europeias (…) Tal como o regime alemão, o regime português consiste na afectação, durante certo período após a conclusão do processo de insolvência, dos rendimentos do devedor à satisfação dos créditos remanescentes (i.e., que não foram pagos no processo de insolvência), produzindo-se, no final, a extinção daqueles que não tenha sido possível cumprir, por essa via, durante esse período. A principal vantagem da exoneração é a libertação do devedor das dívidas que ficaram por pagar no processo de insolvência, permitindo-lhe recomeçar a sua vida livre das antigas dívidas. Ou como nos diz Maria do Rosário Epifânio, “Exoneração do passivo restante – algumas questões” in “Julgar nº 48, Setembro-Dezembro 2022 – As alterações do CIRE introduzidas pela Lei nº 9/2022, de 11/01”, Almedina, Setembro, págs. 38 e 39: A exoneração do passivo restante foi introduzida no nosso ordenamento jurídico em 2004, inspirada na figura congénere do direito alemão (Restschuldbefreiung), e determinada pela necessidade de conferir ao devedor pessoa singular uma oportunidade de começar de novo (fresh start)1-2. 1 - Tal como resulta expressamente do Ponto 45 do Preâmbulo do D.L. n.° 53/2004, de 18 de março: "O Código conjuga de forma inovadora o princípio fundamental do ressarcimento dos credores com a atribuição aos devedores singulares insolventes da possibilidade de se libertarem de algumas das suas dívidas, e assim lhes permitir a sua reabilitação económica. O princípio do fresh start para as pessoas singulares de boa fé incorridas em situação de insolvência, tão difundido nos Estados Unidos, e recentemente incorporado na legislação alemã da insolvência". 2 - Para PAULO DA MOTA PINTO, na exoneração do passivo restante, há uma "colisão entre direitos ou valores constitucionalmente protegidos: de um lado, a proteção constitucional dos créditos, no quadro [...] da proteção geral do património; do outro lado, a proteção da liberdade económica e do direito ao desenvolvimento da personalidade, e, também, o princípio, próprio do Estado Social de Direito, da proteção social dos mais fracos (neste caso, tendencialmente o devedor insolvente)", sendo a solução alcançada um sacrifício não desproporcionado do interesse do credor na satisfação do respetivo crédito - cfr. «Exoneração do Passivo Restante: Fundamento e Constitucionalidade», III Congresso de Direito da Insolvência, Coimbra: Almedina, 2015, pp. 187 e 194. No caso em apreço, o Tribunal a quo fez cessar antecipadamente o procedimento de exoneração do passivo restante, por entender que os Insolventes, com dolo ou negligência grave, violaram o dever de entrega do remanescente do rendimento indisponível fixado, assim prejudicando os credores. Efetivamente, dispõe o artº 243º, nº 1, al. a), do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, que: 1 - Antes ainda de terminado o período da cessão, deve o juiz recusar a exoneração, a requerimento fundamentado de algum credor da insolvência, do administrador da insolvência, se estiver ainda em funções, ou do fiduciário, caso este tenha sido incumbido de fiscalizar o cumprimento das obrigações do devedor, quando: a) O devedor tiver dolosamente ou com grave negligência violado alguma das obrigações que lhe são impostas pelo artigo 239.º, prejudicando por esse facto a satisfação dos créditos sobre a insolvência; Por seu turno, dispõe o artº 239º, nº 4, al. c): 4 - Durante o período da cessão, o devedor fica ainda obrigado a: c) Entregar imediatamente ao fiduciário, quando por si recebida, a parte dos seus rendimentos objecto de cessão; Os Recorrentes vieram requerer a revogação da cessação antecipada, devendo o procedimento correr os seus termos até final do período de prorrogação concedido, alegando: - Que o prejuízo causado aos devedores é insignificante; - Os Insolventes não agiram com negligência grosseira, uma vez que acreditavam que poderiam pagar a dívida à fidúcia com o produto da venda do quinhão hereditário e agiram com a esperança de saldar a dívida.; - A decisão em crise para além de injusta e desproporcional, face às consequências da mesma, apresenta-se como desconforme, considerando que durante o período de prorrogação, nada os insolventes teriam que entregar, exceto, de facto, os valores respeitantes aos subsídios, mas que foram necessários para as despesas imprevistas que surgiram, não obstante a efetiva omissão em oportunamente terem estes informado e comunicado para o efeito. Vejamos. No que toca à “esperança” de pagamento da dívida à fidúcia com o resultado da liquidação do quinhão hereditário, concordamos integralmente com a sentença recorrida, nomeadamente onde se escreve que: E é obvio que o produto da liquidação do quinhão hereditário nunca podia ser para pagamento do valor em dívida à fidúcia, não fazendo qualquer sentido, salvo o devido respeito, a alegação dos devedores a esse propósito. O quinhão hereditário é património da devedora e destina-se a ser liquidado para ressarcimento dos credores (art. 46º, nº 1 do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas). Não se destina ao pagamento do rendimento disponível que a devedora estava obrigada (art. 239º, nº 4, al. c) do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas), durante o período de cessão, a ceder e não cedeu. Igualmente se concordando com a conclusão a que chegou o Tribunal recorrido no sentido de que os insolventes agiram com dolo ou culpa grave, destacando-se a seguinte passagem: No caso, os devedores incumpriram de forma reiterada a obrigação de entrega no período de cessão de rendimentos, descurando, completamente, o processo e as obrigações que nele lhes foram impostas. Deste modo, tendo os requerentes/devedores durante o período de cessão de rendimentos entregue apenas o valor de 557,04€ quando deviam ter entregue o valor de €85.939,54 sabendo, por força da advertência que lhes foi feita, que essa obrigação lhes estava imposta, a sua omissão revela um comportamento se não intencional pelo menos, grosseiramente negligente, agindo com leviandade grave e censurável e não adoptando na sua conduta a diligência de um bom pai de família- critério que serve de base à apreciação da culpa, nos termos do disposto no artº 487 nº 2 do Código Civil, - revelando um grave desrespeito para com os credores, prejudicando a satisfação dos seus créditos. No que diz respeito ao prejuízo dos credores, também concordamos com o Tribunal a quo quando diz que o mesmo não necessita de ser qualificado como relevante: E de acordo com o nº 2 do art. 244º a exoneração é recusada pelos mesmos fundamentos e com subordinação aos mesmos requisitos por que o poderia ter sido antecipadamente, sendo que para a recusa é irrelevante o grau de satisfação do ressarcimento creditório ao invés da obrigatoriedade que decorre do requisito do prejuízo relevante previsto no art. 246º para a revogação da exoneração (neste sentido LUÍS CARVALHO FERNANDES E JOÃO LABAREDA, CIRE Anotado, em anotação ao art. 244º, pág. 917). Contudo, necessariamente, terá de haver prejuízo para os credores. Como se diz no acórdão proferido por este Tribunal da Relação de Coimbra a 4 de Fevereiro de 2020, no processo nº 695/13.5TBLSA.C1, disponível em www.dgsi.pt: 1. Para que o incumprimento doloso ou com culpa grave do dever de informação sobre os seus rendimentos venha a implicar a cessação antecipada do procedimento de exoneração do passivo restante, necessário se torna que tal omissão prejudique a satisfação dos créditos sobre a insolvência. Ou no acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 11 de Julho de 2024, proferido no processo nº 27560/21.0T8LSB.L1-1, disponível na mesma base de dados: I- A cessação antecipada do procedimento de exoneração, nos termos do disposto no artigo 243.º, n.º 1, alínea a), do CIRE, pressupõe a violação, de forma dolosa ou com grave negligência, das obrigações impostas ao insolvente por força da admissão liminar do pedido de exoneração, prejudicando, com esse comportamento, a satisfação dos créditos sobre a insolvência. II- Preenche os requisitos para aquela cessação a violação pelo insolvente, logo no 1º ano do período da cessão, da obrigação de entregar ao fiduciário o seu rendimento disponível, sem que tenha alegado para o efeito qualquer justificação válida. Como nos diz Luís A. Carvalho Fernandes e João Labareda, "Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado", 3ª edição, Quid Juris, 2015, pág. 868: Em princípio, o juiz, atendendo aos elementos de que disponha, tanto pode decidir no sentido de determinar a cessação antecipada do procedimento de exoneração como no sentido contrário, e, consequentemente, recusar ou não a exoneração. Neste sentido, no caso em apreço, temos ainda de levar em conta duas outras disposições legais, desde logo a que consta do artº 241º-A, nº 1, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, introduzido pela Lei nº 9/2022, de 11 de Janeiro (tal como a possibilidade de prorrogação do período de cessão de rendimentos), o qual dispõe que: 1 - Finda a liquidação do ativo do devedor e encerrado o processo de insolvência nos termos do disposto na alínea e) do n.º 1 do artigo 230.º, caso ingressem bens ou direitos suscetíveis de alienação no património daquele, o fiduciário deverá, com prontidão, proceder à sua apreensão e venda, sendo para o efeito aplicável o disposto no título vi, com as devidas adaptações. Trata-se de um procedimento excecional que atribuiu ao Fiduciário, competências de liquidação, com vista a evitar situações de enriquecimento sem causa do insolvente[2], quando, depois de encerrada a insolvência, mas estando ainda em curso o procedimento de exoneração do passivo restante, ingressem novos bens na esfera patrimonial do devedor. Por maioria de razão, a liquidação superveniente aplica-se também nas situações em que os bens ou direitos suscetíveis de alienação já existiam da data da declaração da insolvência, devendo ter ingressado na massa insolvente, só não o tendo sido por serem desconhecidos à data. Neste sentido, Fernando Taínhas, “Liquidação (Velhos e Novos Problemas)” in “Julgar nº 48, Setembro-Dezembro 2022 – As alterações do CIRE introduzidas pela Lei nº 9/2022, de 11/01”, Almedina, pág. 71. Foi o que aconteceu no caso em apreço quanto ao quinhão hereditário de que a Insolvente é herdeira. Por outro lado, há ainda que ter em conta o disposto no artº 243º, nº 4, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, o qual dispõe que: O juiz, oficiosamente ou a requerimento do devedor ou do fiduciário, declara também encerrado o incidente logo que se mostrem integralmente satisfeitos todos os créditos sobre a insolvência. Os Insolventes justificaram a não entrega atempada do rendimento disponível, para além do mais, com a expectativa de o virem a fazer com o produto do direito à quota hereditária, entretanto apreendido. Como já vimos acima, o produto da liquidação de tal direito não pode servir para pagar a dívida à fidúcia, uma vez que se destinará a pagar os créditos da insolvência. Contudo, convém verificar se poderá ser suficiente para liquidar os créditos remanescentes, o que merece uma resposta de probabilidade positiva. Na verdade, após a liquidação, o remanescente do capital em dívida fixou-se no montante de € 146.218,00[3], sendo que o quinhão hereditário, de uma herança a dividir apenas entre duas pessoas, incluiu seis prédios urbanos e dois rústicos, tudo com o valor patrimonial de € 169.020,98[4]. Ora, como é consabido, o valor patrimonial é, na maioria das vezes, muito inferior ao valor dos bens, pelo que se verifica a probabilidade de a liquidação do quinhão hereditário ser suficiente para liquidar o remanescente do capital em dívida; caso em que, estando ainda em curso o procedimento de exoneração do passivo restante, o mesmo será automaticamente encerrado, independentemente do comportamento dos insolventes no período do seu decurso. É caso para perguntar se, face a tal probabilidade, ainda se justificará a penalização dos insolventes com a cessação antecipada do procedimento de exoneração do passivo restante. Entendemos que não, uma vez o prejuízo se poderá ficar pelo momento de ressarcimento dos credores no montante de 85.939,54€ (a data da liquidação superveniente e não a data de perceção do rendimento auferido no período da cessão). Tanto mais que se vai já questionando da necessidade de existir um período de cessão ou mesmo da prévia liquidação do património (exoneração sem liquidação), já eliminada no direito espanhol. Como nos diz Catarina Serra, ob. cit., pág. 53: Não é absolutamente certo que a exoneração seja já um direito, como pretende o legislador da União Europeia, ou, pelo menos, seja já um direito em todos os Estados-membros. O que é inegável é que existem interesses na exoneração e que, a par dos outros interesses que realizam os processos integrantes do Direito da insolvência, se foi afirmando o interesse da exoneração. Por outras palavras: além da função-liquidação e da função-recuperação, a lei da insolvência desempenha hoje também uma função-exoneração", a que não mais poderá renunciar. Assim, embora sem nunca descurar da necessidade de não beneficiar os devedores de má fé, não merecedores do benefício da exoneração, obtido à custa dos credores, cabe ao julgador ter especial cuidado aquando da decisão de cessação antecipada da exoneração do passivo restante, não permitindo o agravamento do incumprimento, mas ponderando sempre a possibilidade de pagamento no período da cessão de rendimentos. Neste ponto, convém ter sempre me mente os ensinamentos de Paulo da Mota Pinto, supra referidos, no sentido de que, na exoneração do passivo restante, há uma colisão entre direitos ou valores constitucionalmente protegidos: de um lado, a proteção geral do património; do outro lado, a proteção da liberdade económica e do direito ao desenvolvimento da personalidade, e, também, o princípio, próprio do Estado Social de Direito, da proteção social dos mais fracos (neste caso, tendencialmente o devedor insolvente). Deste modo, no caso em apreço, uma vez o produto da liquidação do quinhão hereditário apreendido supervenientemente poderá ser suficiente para o pagamento do remanescente do capital em dívida, não obstante os Insolventes não terem entregue uma quantia considerável do rendimento disponível, os autos devem aguardar pelo final do período de cessão de rendimentos, não devendo o respetivo procedimento cessar antecipadamente. Assim, cumpre julgar procedente o recurso, revogando a decisão recorrida, prosseguindo o período de prorrogação da cessão de rendimentos.
IV - Decisão
Nestes termos, acordam os Juízes Desembargadores da 1ª Secção deste Tribunal da Relação em julgar procedente o recurso, revogando a decisão recorrida e determinando que prossiga o período de prorrogação da cessão de rendimentos.
Sem custas, uma vez que não houve resposta ao recurso.
Coimbra, 29 de Abril de 2025
Com assinatura digital: Anabela Marques Ferreira Chandra Gracias Catarina Gonçalves
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