Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | JTRC | ||
Relator: | SANDRA FERREIRA | ||
Descritores: | DIREITO À INTEGRIDADE FÍSICA - RESTRIÇÕES IMPOSSIBILIDADE DE REALIZAÇÃO DE PESQUISA DE ÁLCOOL NO AR EXPIRADO COLHEITA DE SANGUE RECUSA DO ARGUIDO ERRO SOBRE A EXISTÊNCIA DE UMA CAUSA JUSTIFICATIVA | ||
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Data do Acordão: | 06/11/2025 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Tribunal Recurso: | TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE LEIRIA - JUÍZO DE COMPETÊNCIA GENÉRICA DE PENICHE | ||
Texto Integral: | S | ||
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Meio Processual: | RECURSO CRIMINAL | ||
Decisão: | CONFIRMADA | ||
Legislação Nacional: | ARTS 18º, Nº 2 E 25º, DA CRP; ART. 156º DO CÓDIGO DA ESTRADA; PORTARIA Nº 902-B/2007 DE 13 DE AGOSTO; ART. 16º, Nº 2, DO CÓDIGO PENAL. | ||
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Sumário: | I – Por força, entre o mais, da Portaria nº 902-B/2007 de 13 de agosto, que utiliza expressões como promover e providenciar, impõe-se uma interpretação atualista do disposto no art. 156º do Código da Estrada, no sentido de que a expressão “deve proceder à colheita de amostra de sangue para posterior exame de diagnóstico do estado de influência pelo álcool e ou por substâncias psicotrópicas”, não impõe que essa recolha seja efetuada pelo próprio médico, mas antes que este possa providenciar pela sua efetivação, designadamente através de um enfermeiro.
II – Estando legitimada a intervenção do Enfermeiro na recolha de sangue que se propôs efetuar ao arguido, a conclusão a retirar é que a recusa deste último não está salvaguardada, nesta perspetiva, por qualquer direito e, consequentemente, não se verifica qualquer Causa de Exclusão da Ilicitude. III - Apesar de o Direito à Integridade Física ter consagração constitucional (art. 25º, da CRP), este não constitui um direito absoluto, insuscetível de violação em quaisquer circunstâncias, prevendo a Constituição que a Lei Geral pode restringir os direitos, liberdades e garantias, desde que tais restrições se limitem ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos (art. 18º, nº 2, da CRP), como ocorre na situação presente em que a lei, na impossibilidade de realização de pesquisa de álcool no ar expirado, prevê a realização de colheita de sangue em Estabelecimento Oficial de Saúde. IV – Não resultando da matéria de facto provada qualquer circunstância que permita concluir que o arguido atuou ao abrigo de qualquer erro sobre a existência de uma causa justificativa, não pode aplicar-se o disposto no art. 16º, nº 2 do Código Penal. (Sumário elaborado pela Relatora) | ||
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Decisão Texto Integral: | *
Acordam, em conferência, na 5ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra: I.1 No âmbito do processo comum singular nº 2112/22.0T9LSB, que corre termos pelo Juízo de Competência Genérica de Peniche, do Tribunal Judicial da Comarca de Leiria, a 27.01.2025, foi proferida sentença, no que agora interessa, com o seguinte dispositivo [transcrição]: “V – Decisão: Em face do exposto, o Tribunal decide: a) Condenar o arguido AA, pela prática, em autoria material, de um crime de desobediência, previsto e punível pelos artigos 348.º, n.º 1, alínea a), e 69.º, n.ºs 1, alínea c), e 2, do Código Penal, por referência ao artigo 152.º, n.ºs 1, alínea a), e 3, do Código da Estrada, na pena de 80 (oitenta) dias de multa à taxa diária de € 7,50 (sete euros e cinquenta cêntimos), perfazendo o total de € 600,00 (seiscentos euros); b) Condenar o arguido AA, nos termos do artigo 69.º, n.º 1, alínea c), do Código Penal, na pena acessória de proibição de conduzir veículos a motor pelo período de 4 (quatro) meses; c) Condenar o arguido AA nas custas processuais, fixando-se a taxa de justiça em 2 UC (duas unidades de conta) e demais encargos processuais, nos termos dos artigos 513.º, n.ºs 1 e 3, e 514.º, n.º 1, todos do Código de Processo Penal, e 8.º, n.º 9, do Regulamento das Custas Processuais, por referência à tabela anexa III, sem prejuízo do benefício de apoio judiciário. (…) * * Inconformado com tal decisão, dela interpôs recurso o arguido para este Tribunal da Relação, com os fundamentos expressos na respetiva motivação, da qual extraiu as seguintes conclusões [transcrição]: “CONCLUSÕES: 1.ª Vem o presente recurso interposto da Sentença proferida no dia 27.01.2025 que decidiu Condenar o arguido AA, pela prática, em autoria material, de um crime de desobediência, na pena de 80 (oitenta) dias de multa à taxa diária de € 7,50 (sete euros e cinquenta cêntimos), perfazendo o total de € 600,00(seiscentos euros) e pena acessória de proibição de conduzir veículos a motor pelo período de 4 (quatro) meses; 2.ª No entanto, sem razão, uma vez que os fundamentos de facto e de direito, que suportam a decisão proferida pelo tribunal a quo, não são válidos. 3.ª O Tribunal a quo incorreu em errada valoração da matéria de facto dada como provada e em erro de julgamento, fez errada interpretação e aplicação das normas jurídicas. 4.ª O Tribunal a quo considerou provada a matéria supra dada como provada, porém, no nosso entender, erradamente, uma vez que a prova produzida em audiência decorrente dos depoimentos das testemunhas, conjugada com a prova documental constante dos autos, impunha que não se desse como provada toda a matéria de facto descrita na acusação, e antes se concluísse pela absolvição do arguido como autor do crime de desobediência. 5.ª O preenchimento do tipo de crime de desobediência implica que se provasse que o arguido se recusou a praticar um procedimento legítimo e justificado, o que não foi o caso, 6.ª Para formar tal convicção quanto aos factos provados o tribunal limitou-se a valorar positivamente os depoimentos das testemunhas que, não mostraram uma posição isenta e objetiva, antes optando por descrever de forma mecânica e mimetizada, exatamente os mesmos acontecimentos, inclusive, aqueles que não tinham presenciado. 7.ª No entanto, a verdade é que, não só o Arguido não se recusou a realizar o teste como a recolha de sangue chegou a ser realizada, conforme resulta do boletim clínico com os resultados negativos emitido pelo Hospital das Caldas da Rainha, junto na audiência de julgamento, que o Tribunal desconsiderou totalmente, e que a acusação não pretendeu conhecer na fase de inquérito. 8.ª Ora, resulta antes do depoimento proferido pelas testemunhas, que o Arguido não se recusou a realizar o referido teste, mas apenas solicitou a intervenção de um profissional devidamente habilitado ou seja um médico. 9.ª Assim, do depoimento das testemunhas resulta evidente que o Arguido não se recusou a realizar os referidos teste de despiste de alcoolémia, antes solicitou que os mesmos fossem realizados por profissional habilitado e em estabelecimento com as condições mínimas para a recolha. 10.ª Por outro lado, resulta que o Tribunal não valorou corretamente a prova documental produzida e junta em sede de julgamento, nomeadamente os relatos clínicos das análises realizadas no Hospital das Caldas da Rainha, cujos resultados foram negativos. 11.ª Na verdade, tais relatos clínicos do Hospital das Caldas da Rainha, são a evidência de que o Arguido realizou os exames médicos, pelo que, não poderia o Tribunal concluir pela recusa e, consequentemente, pela prática do crime de desobediência. 12.ª O que igualmente indicia que a real razão da ordem de detenção não se tratou da recusa do Arguido em realizar o teste, nem poderia, porque continuaram a tentativa no Hospital das Caldas da Rainha, mas sim no alegado “comportamento indevido do Arguido de tentativa de agressão da Camarada” do agente de autoridade em causa, como o referido agente refere no seu depoimento. 13.ª Assim, o Tribunal não poderia ter dado como provado, face aos elementos de prova supra referidos - depoimentos de BB e registos Clínicos - os factos constantes do ponto 4 e 5 dos factos provados, ou seja, “4. Em consequência do descrito em 3., o arguido AA foi transportado ao Hospital de Peniche, onde lhe foi ordenado que se submetesse ao exame de pesquisa de álcool no sangue, ao que o arguido se recusou a fazê-lo, dizendo que “não fazia teste nenhum. 5. O arguido AA bem sabia que ao conduzir veículos na estrada estava obrigado a submeter-se às provas estabelecidas para a deteção de álcool no sangue e que, se assim não fizesse, incorreria na prática de um crime de desobediência e, mesmo assim, quis recusar-se a fazê-lo. Devendo considerar os mesmos - ao que o arguido se recusou a fazê-lo, dizendo que “não fazia teste nenhum serem considerados não provados ou substituí-los pelos seguintes factos: O Arguido solicitou que o exame de recolha de pesquisa de álcool ao sangue fosse realizada por médico e não por enfermeiro. 14.ª Por outro lado, importa referir que o Tribunal não valorou convenientemente a “ordem de detenção” dada pelo agente de autoridade, nem dela retirou as devidas consequências. 15.ª Na verdade, e tratando-se de uma ordem de detenção ilegal, porque não respeitante ao delito em causa, deveria a mesma ser considerada abusiva. 16.ª No que respeita à valoração da prova produzida, o Tribunal a quo também fez errada valoração da prova produzida, o que respeita à atuação do Arguido. 17.ª Considerou o Tribunal que o Arguido, não só praticou o ilícito criminal em causa como atuou com dolo, no entanto, resulta claro e evidente, de todos os autos de inquirições das testemunhas, que o Arguido não se encontrava nas suas plenas capacidades intelectuais decorrentes do acidente que foi vítima, pelo que, não é verdade que o mesmo bem sabia que, ao não realizar o teste de pesquisa de álcool no sangue por quem não tinha qualificações médicas, incorria na prática de um crime de desobediência. 18.ª O Arguido, à data da prática dos factos, estava profundamente afetado pelo acidente de viação de que tinha sido vítima, encontrando-se extremamente nervoso e ansioso. 19.ª Ademais, da sua experiência profissional enquanto médico, o Arguido estava na correta convicção de que, por forma a cumprir as desejáveis leges artis, seria obrigatório a presença de um médico no momento da recolha do sangue e não apenas a presença de um enfermeiro – enfermeiro esse que nem sequer ficou provado estar devidamente identificado – pois este é um exame médico-legal. 20.ª Por outro lado, resulta expresso do artigo 7.º da Portaria n.º 903-B/2007 que: “No estabelecimento da rede pública de saúde, o médico que atender o examinado deve providenciar a obtenção de um volume de sangue venoso suficiente para encher por completo o tubo referido na alínea a) do n.º 5.º, recolhido de acordo com os procedimentos habituais, mas sem usar álcool como desinfectante cutâneo”. 21.ª O Tribunal a quo fez errada interpretação e aplicação da Portaria n.º 903-B/2007 ao não considerar que quem procede à realização destes exames é um médico. 22.ª Nesta senda, a sua recusa estava justificada pois, não sendo um médico a realizar o exame, o ato de recolher sangue consubstancia uma ofensa à integridade física cuja dispensa de consentimento não se encontra consagrada na lei. 23.ª O arguido apenas praticou o facto que está descrito na lei penal. No entanto, para que esse facto consubstancie um crime, necessário será que o mesmo seja ilícito. Ora, resulta do exposto, que o facto do arguido se ter recusado, naquele momento, a que o enfermeiro fizesse a recolha, não é um facto ilícito, pois operou, naquele momento, uma causa de exclusão da ilicitude. 24.ª O Tribunal a quo considerou que o agente atuou com dolo direto, o que jamais se pode aceitar, uma vez que a conduta do agente reconduz-se ao artigo 16.º, n.º 2 do CP, pelas mesmas razões invocadas, pelo que está excluído o dolo. 25.ª Em causa está um erro suposição, o Arguido pensava, convictamente, que apenas um médico poderia recolher o sangue para a referida análise ou pelo menos teria que estar presente um médico, e, por isso, percecionou erradamente os elementos de direito do crime de desobediência. 26.ª Também no que respeita à pena concreta de Multa aplicada ao arguido, o Tribunal a quo errou ao considerar valorou a pena mais próxima do seu máximo do que do seu mínimo, sem fundamento. 27.ª Na verdade, o Tribunal a quo acaba por valorar as condenações do Arguido, na determinação da pena concreta, sabendo que não pode atender às mesmas a título de reincidência, quando na verdade, e como bem refere, à data dos factos não tinha sofrido qualquer condenação, nem as mesmas são só por si reveladoras da dessocialização do Arguido. 28.ª Acresce que, quer no que respeita às necessidades de prevenção especial quer às necessidades de prevenção geral, a verdade é que ambas foram erroneamente valoradas. 29.ª Também no que respeita às necessidades de prevenção especial o Tribunal incorreu em erro de valoração, uma vez que a decisão atendeu fundamentalmente às “três condenações entretanto sofridas, pela prática de cinco crimes de diferente natureza (nomeadamente ofensas à integridade física, simples e qualificada, ameaça agravada e dano)” sofridas entretanto pelo Arguido. 30.ª Ora, tais circunstâncias não foram verdadeiramente atendidas na determinação da medida da pena do Arguido, nem suficientemente justificadas as alegadas necessidades especiais elevadas, tendo o Tribunal a quo se limitado a atender, fundamentalmente, às referidas condenações. 31.ª Quando na verdade e face à prova produzida, o Arguido ora Recorrente é uma pessoa bem inserida na sociedade, familiar e profissionalmente integrado, com uma profissão digna e altamente meritória, 31.ª Em face do exposto, o Tribunal incorreu em erro de interpretação e aplicação dos artigos, 69.º, n.º 1, alínea c), do Código Penal, ao determinar a aplicação a pena de 80 dias de multa. 32.ª No que respeita à pena acessória, considerou o Tribunal a quo “adequado, nos termos do artigo 69.º, n.º 1, alínea c), do Código Penal, aplicar ao arguido a pena acessória de proibição de conduzir veículos a motor pelo período de 4 (quatro) meses.” 33.ª Como suprarreferido e na medida em que não houve recusa por parte do Arguido na realização das provas legalmente estabelecidas e as mesmas foram efetivamente realizadas pelo Hospital das Caldas da Rainha, conforme resulta dos registos clínicos do Hospital juntos em sede de audiência de julgamento, não existe fundamento para que a pena de 4 meses de proibição de condução seja aplicada ao Arguido. 34.ª Pelo que, não tendo o Recorrente praticado o crime em que foi condenado, deve o mesmo ser absolvido também da pena acessória de proibição de condução de veículos a motor. 35.ª Ao condenar o Arguido na pena acessória de 4 meses de proibição de condução o Tribunal a quo incorreu em errada aplicação e interpretação do artigo 69.º, n.º 1, alínea c), do Código Penal. 36.ª Por último, sempre se dirá, sem transigir, que a concreta pena acessória aplicada ao Arguido é excessiva e que a ser mantida, que não deve, pela instância superior, sempre deverá ser reduzida ao seu limite mínimo. Termos em que deverá ser dado provimento ao presente recurso e, em consequência, o Arguido ser absolvido da pena principal e da pena acessória aplicada ou, subsidiariamente, ser reduzida a pena de multa e o Arguido absolvido da pena acessória.”
* Foi admitido o recurso, nos termos do despacho proferido a 03.03.2025. * I.3 Resposta ao recurso
Efetuada a legal notificação o Ministério Público respondeu ao recurso interposto pelo arguido, apresentando as seguintes conclusões [transcrição]: “III- Das conclusões 1. Não se nos afigura como adequado e plausível que por alguém ser médico possa querer recusar-se a que lhe seja colhido sangue por um enfermeiro ou impor que a colheita de sangue ocorra por um outro médico por, na sua ótica, tal categoria profissional se encontrar acima e ser superior à categoria profissional dos enfermeiros. 2. Ainda que o recorrente afirme que, ao invés de um enfermeiro, apenas “solicitou a intervenção de um profissional devidamente habilitado ou seja um médico”, tal também se não afigura adequado, pois como que se um enfermeiro não fosse um profissional devidamente habilitado para um ato de recolha de sangue. 3. A partir do momento em que o recorrente se recusou a proceder à colheita de amostra de sangue e, mesmo advertido pelo militar da GNR que incorreria na prática do crime de desobediência, manteve tal conduta, consumado se mostra o crime pelo qual o Tribunal a quo doutamente condenou o arguido. 4. O que resulta claro do depoimento das testemunhas é que perante a presença de um enfermeiro o recorrente se recusou a efetuar a recolha de sangue e, mesmo cominado com a prática do crime de desobediência, manteve tal intenção e recusa. 5. O recorrente encontrava-se no Hospital de Peniche, não se vislumbrando como não teria esta Unidade de Saúde as condições mínimas para a realização de uma colheita de sangue, quando certamente são efetuadas na mesma dezenas e dezenas por ano. 6. O recorrente já estava em estabelecimento de saúde próprio e ainda assim entendia que não lhe servia para o ato de recolha de sangue. Se tal fosse admissível, então estava encontrada a fórmula para os arguidos conseguirem forçar a que decorram algumas horas até ser efetuado o teste e assim deixar que os efeitos do álcool se começassem a esvanecer. Com efeito, a ser colhida tal tese do recorrente, então poderiam os arguidos deslocar-se a um estabelecimento de saúde e pugnarem que o mesmo não possuía condições e, nessa sequência, exigirem que o teste de recolha de sangue fosse efetuado noutro qualquer estabelecimento de saúde. 7. O ato de recolha de sangue em si não oferece qualquer especificidade ou exige um conhecimento que imponha a presença de um médico. Sendo o recorrente médico, bem saberá que em qualquer estabelecimento de saúde (seja público ou privado) quem procede à recolha de sangue não é um médico mas antes um enfermeiro. 8. O que resulta do art. 7.º da Portaria n.º 903-B/2007, de 13 de Abril não é que tenha de ser um médico a efetuar a colheita de sangue, mas sim que o médico que atende deve providenciar, ou seja, pode solicitar a outros profissionais de saúde que realizem a mesma, o que se infere também do art. 9.º “o médico que promover” e como resulta da realidade prática dos nossos hospitais, não se nos afigurando que o legislador quisesse afastar a possibilidade de outro profissional de saúde (mormente enfermeiro) não pudesse efetuar a recolha de sangue. 9. Confunde o recorrente a ordem de detenção que lhe foi dada com a consumação do crime de desobediência. Com efeito, não é pelo simples facto de a ordem de detenção ter sido dada quando o arguido tentou agredir a militar da GNR presente que tal significa que o arguido já não havia incorrido na prática do crime de desobediência em momento anterior, mormente quando se recusou a efetuar a recolha de sangue. 10. Quer pelo crime de desobediência, quer pela tentativa de agressão a militar da GNR – que configura também em si um crime de ofensa à integridade física qualificada, na forma tentada – poderia ser dada a ordem de detenção, a qual, in casu, obedeceu ao legalmente exigido e se afigura legítima, por ter sido dada em situação de flagrante delito. 11. As análise realizadas a posteriori no Hospital das Caldas da Rainha tratam-se de análises a parâmetros gerais e que, de facto, se mostram negativas quanto à presença de estupefacientes, mas em momento algum das mesmas foi analisado um parâmetro de deteção de álcool no sangue, pelo que é bem demonstrativo que as mesmas não correspondem a uma análise como a que o recorrente se havia anteriormente rejeitado a fazer. 12. O recorrente descura que o crime de desobediência já se havia consumado em momento anterior, ainda no interior do Hospital de Peniche, pelo que não é o simples facto de a posteriori se ter deslocado ao Hospital das Caldas da Rainha que tal afasta essa consumação. 13. Não existe qualquer contrariedade no facto de por já existir uma ordem de detenção pela prática do crime de desobediência e o arguido ter sido conduzido ao Hospital das Caldas da Rainha, porquanto não foi conduzido a este Hospital especificamente para realização da recolha de sangue para despistagem da presença de álcool, mas, como bem salientou o Tribunal a quo, por já quando se encontrava no posto da GNR a tratar do expediente relativo à detenção pelo crime de desobediência se ter sentido mal nesse local foi solicitado o encaminhamento ao Hospital das Caldas da Rainha a fim de lhe serem prestados os cuidados necessários, nada tendo a ver com os testes para despistagem de álcool no sangue e em nada contendendo com a consumação do crime de desobediência que havia ocorrido em momento anterior. 14. Embora o recorrente afirme que não tinha consciência de que ao não realizar o teste incorria na prática do crime de desobediência, importa atentar que tal argumentação se queda pela análise de toda a defesa no seu conjunto. 15. O recorrente atuou com consciência da ilicitude e não atuou em erro e, ainda que, atuasse sem consciência da ilicitude e em erro, o que por mera hipótese académica se coloca, tal ser-lhe-ia censurável. Acresce que não se vislumbra um qualquer direito ao abrigo do qual o recorrente tenha atuado. 16. As concretas penas aplicadas ao recorrente – pena principal de multa e pena acessória de proibição de conduzir veículos a motor – mostram-se, dentro das respetivas molduras abstratas, justas e criteriosas, dando expressão acertada às exigências de prevenção, especial e geral, que no caso se faziam sentir. Pelo exposto, deve o presente recurso ser julgado improcedente e, em consequência, manter-se a sentença proferida nos exatos termos em que o foi. Porém, Vossas Excelências melhor decidirão, fazendo, como sempre, a costumada JUSTIÇA!” * Remetidos os autos a este Tribunal da Relação, nesta instância o Exmo. Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer no seguinte sentido [transcrição]: “(…) Apreciação Lida a sentença e vista a prova, não encontramos contradição, insuficiência ou erro de apreciação que permitam considerar verificados quaisquer dos vícios previstos no artigo 410ºdo código penal, de conhecimento oficioso, ou quaisquer outros de que cumpra conhecer. O tribunal procedeu à apreciação da globalidade da prova do processo e da que foi produzida em audiência de julgamento, explicando o raciocínio que levou à condenação do arguido por aquele crime, e fundamentou a sua decisão. Adere-se, portanto, e no essencial, à resposta do Ministério Público na primeira instância. Acrescenta-se o seguinte: A recolha de sangue, prevista na lei para casos como o ora em apreço, não visa lesar qualquer interesse específico do arguido, mas, tão-só, a realização de uma perícia médico-legal. E, nos termos do disposto nos artigos 156º, nº 2, do código da estrada e 4º da Lei nº 18/2007, de 17 de Maio, a realização do exame de pesquisa de álcool no sangue é válida sempre que um condutor sinistrado não se encontre em condições físicas, após o acidente de viação, que lhe permitam realizar o exame regra de pesquisa de álcool no ar expirado, como foi o caso. Essa recolha de sangue para pesquisa de álcool no sangue, nomeadamente para fins de análise toxicológica, deve ser realizada em estabelecimentos de saúde da rede pública ou em locais designados por lei, sendo que tal colheita de sangue pode e deve ser realizada por profissionais de saúde autorizados em estabelecimentos públicos de saúde, não tendo de ser feita, como usualmente não é, por médico. O exame médico para avaliação do estado de influenciado pelo álcool, a que se refere o artigo 7.º do Regulamento de Fiscalização da Condução sob Influência do Álcool ou de Substâncias Psicotrópicas, é que deve ser feito por médico. Tudo isto, que é já sobeja e publicamente conhecido, saberá certamente o arguido, médico de profissão, pelo que, desde logo pela factualidade provada, suportada em prova testemunhal, terá de improceder a invocação de qualquer causa de exclusão da sua responsabilidade criminal, máxime aquela a que alude na motivação. Não se percebe, nem o arguido bem explica, onde está a ilegalidade da ordem de detenção, facto que sequer vem enunciado na factualidade dada como assente na sentença. É acertado o que vem respondido pelo Ministério Público sobre as análises posteriormente realizadas no Hospital das Caldas da Rainha. Sucede que o que está em causa neste processo é a recusa ao exame previsto na lei, que exactamente visava a detecção ou não de álcool no sangue, recusa que configurou crime, pelo que esse resultado das análises que depois juntou ao processo não tem qualquer relevância para a decisão; logo, não tinha de ser considerado pelo tribunal. As penas - principal e acessória - aplicadas Considerada a moldura penal abstracta correspondente e as condições pessoais do arguido, a pena mostra-se adequada e proporcional à gravidade do crime cometido e às sentidas exigências de prevenção geral e especial. Foram consideradas todas as coordenadas legais previstas para a determinação das penas e não foram tidos em conta os averbamentos constante do certificado de registo criminal, porquanto, como bem refere o tribunal, o arguido era primário à data dos factos. A sentença está fundamentada, isenta de vícios e não viola normas legais ou princípios de Direito. Em conclusão, aderindo, no essencial, à resposta do Ministério Público na primeira instância, somos de parecer que o recurso deve ser julgado totalmente improcedente. *
Pese embora tenha sido dado cumprimento ao disposto no artigo 417º, n.º 2, do Código de Processo Penal, não foi apresentada resposta ao sobredito parecer. * I.6. Prosseguiram os autos, após os vistos, para julgamento do recurso em conferência, nos termos do artigo 419.º do Código de Processo Penal. Cumpre, agora, apreciar e decidir.
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Conforme decorre do disposto no n.º 1 do art.º 412.º do Código de Processo Penal, bem como da jurisprudência pacífica e constante, designadamente, do STJ[Indicam-se, a título de exemplo, os Acórdãos do STJ, de 15/04/2010 e 19/05/2010, in http://www.dgsi.pt.], são as conclusões apresentadas pelo recorrente que definem e delimitam o âmbito do recurso e, consequentemente, os poderes de cognição do Tribunal Superior, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso designadamente as que alude o artigo 410º do Código de Processo Penal [Conhecimento oficioso que resulta da jurisprudência fixada no Acórdão do STJ n.º 7/95, de 28 de dezembro, do STJ, in DR, I Série-A, de 28/12/95] e das nulidades previstas no art. 379º do CPP. Assim, face às conclusões extraídas pelo recorrente da motivação do recurso interposto nestes autos, as questões a apreciar e decidir são as seguintes: * “II - Fundamentação de facto A – Matéria de facto provada Após a audiência de julgamento, resultaram provados os seguintes factos: Da Acusação Pública: 1. No dia 3 de Outubro de 2021, cerca das 00h20m, o arguido AA conduzia o veículo automóvel, ligeiro de passageiros, de matrícula ..-..-IU, no Itinerário Principal n.º 6, ao quilómetro 1,700, em Peniche. 2. Nas circunstâncias descritas em 1., o arguido AA foi interveniente em acidente de viação, por despiste. 3. Nessa altura, nesse local, o arguido AA não conseguiu efetuar o exame de pesquisa de álcool no sangue, através do ar espirado. 4. Em consequência do descrito em 3., o arguido AA foi transportado ao Hospital de Peniche, onde lhe foi ordenado que se submetesse ao exame de pesquisa de álcool no sangue, ao que o arguido se recusou a fazê-lo, dizendo que “não fazia teste nenhum.” 5. O arguido AA bem sabia que ao conduzir veículos na estrada estava obrigado a submeter-se às provas estabelecidas para a deteção de álcool no sangue e que, se assim não fizesse, incorreria na prática de um crime de desobediência e, mesmo assim, quis recusar-se a fazê-lo. 6. O arguido AA bem sabia que as ordens que lhe foram dadas provinham de autoridade competente e que, apesar de advertido das consequências dos seus atos, manteve o seu propósito em não se submeter ao exame de deteção de álcool no sangue. 7. O arguido AA agiu voluntária, livre e conscientemente, bem sabendo que a sua descrita conduta era censurada, proibida e punida por lei penal. Da audiência de julgamento: 8. (…) tem atualmente 48 anos de idade. 9. (…) possui, como habilitações literárias, o mestrado em medicina, com especialidade de medicina geral e familiar. 10. (…) trabalha como médico, atualmente como prestador de serviços para o Sistema Nacional de Saúde, auferindo remuneração mensal variável entre € 1.000,00 e € 1.500,00. 11. (…) reside sozinho em casa arrendada, pela qual paga a renda mensal no valor de € 750,00. 12. (…) para fazer face às suas despesas conta com auxílio económico dos seus pais e de rendimentos de poupanças que efetuou quando esteve ligado à função pública com contrato de trabalho. 13. (…) tendo essa relação laboral cessado em 2014 por iniciativa do arguido. 14. O arguido já sofreu as seguintes condenações: 14.1. Por sentença proferida em 2023/06/06, transitada em julgado em 2024/02/01, no âmbito do processo n.º 221/20...., que correu termos no Juízo Local Criminal de Caldas da Rainha – Juiz 2 do Tribunal Judicial da Comarca de Leiria, na pena única de 185 dias de multa à taxa diária de € 25,00, perfazendo o total de € 4.625,00, pela prática, em 2020/10/10, de um crime de ofensa à integridade física simples, previsto e punível pelo artigo 143.º, do Código Penal, e de um crime de ameaça agravada, previsto e punível pelos artigos 153.º, n.º 1, e 155.º, n.º 1, alínea a), do Código Penal, extinta pelo pagamento; 14.2. Por sentença proferida em 2023/09/29, transitada em julgado em 2024/03/06, no âmbito do processo n.º 1856/21...., que correu termos no Juízo Local Criminal de Caldas da Rainha – Juiz 2 do Tribunal Judicial da Comarca de Leiria, na pena única de 6 meses de prisão, substituída por 150 dias de multa à taxa diária de € 5,50, perfazendo o total de € 825,00, substituição essa revogada e determinado o seu cumprimento em estabelecimento prisional por despacho transitado em julgado em 2024/09/09, pela prática, em 2021/10/04, de dois crimes de ofensa à integridade física qualificada, previstos e puníveis pelos artigos 143.º e 145.º, n.º 1, do Código Penal; 14.3. Por sentença proferida em 2023/11/29, transitada em julgado em 2024/01/11, no âmbito do processo n.º 983/20...., que correu termos no Juízo Local Criminal de Lisboa – Juiz 6 do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa, na pena de 130 dias de multa à taxa diária de € 10,00, perfazendo o total de € 1.300,00, pela prática, em 2020/12/11, de um crime de dano, previsto e punível pelo artigo 212.º, do Código Penal. B – Matéria de facto não provada Com relevância para a boa decisão da causa, não se provou, nomeadamente que: a) Nas circunstâncias de espaço, modo, tempo e lugar descritos no ponto 1. da matéria de facto provada, o arguido AA conduzia aquele veículo automóvel, depois de, previamente para o efeito, ter ingerido bebidas alcoólicas em quantidade e qualidade não concretamente apuradas. b) Em consequência da ingestão de bebidas alcoólicas, o arguido foi interveniente em acidente de viação. c) Não obstante o descrito no ponto 4. da matéria de facto provada, o arguido AA foi transportado ao Hospital de Caldas da Rainha, onde lhe voltou a ser ordenado que se submetesse ao exame de pesquisa de álcool no sangue, ao que o arguido se recusou a fazê-lo, dizendo que “não fazia teste nenhum.” C – Motivação da matéria de facto O dever de fundamentação das decisões judiciais decorre diretamente da nossa Lei Fundamental - artigo 205.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa. Um dos seus reflexos ao nível da lei ordinária e no que ao processo penal respeita, encontra-se no artigo 374.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, o qual impõe que da fundamentação da sentença penal conste a enumeração dos factos provados e não provados e uma exposição completa mas concisa, dos motivos, de facto e de direito, que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas que formaram a convicção do tribunal, exigindo ao julgador que desvende o percurso lógico que trilhou na formação da sua convicção, não só para que a decisão se possa impor aos outros, mas também para permitir o controlo da sua correção pelas instâncias de recurso. Seguindo esta linha, a prova produzida foi apreciada de acordo com as regras da experiência e a livre convicção do julgador (artigo 127.º do Código Penal), liberdade que “não é, nem deve implicar nunca o arbítrio ou sequer a decisão irracional, puramente impressionista-emocional que se furte, num incondicional subjetivismo, à fundamentação e à comunicação” . Pelo contrário, a livre apreciação da prova exige uma apreciação crítica e racional, fundada nas regras da experiência comum, mas também nas da lógica e da ciência, e tudo para que dela resulte uma convicção do julgador objetivável e motivável. No entanto, a livre apreciação da prova comporta algumas exceções, integradas no princípio da prova legal ou tarifada, como os documentos autênticos e autenticados, que gozam de força probatória plena, nos termos do artigo 169.º do Código de Processo Penal; a prova pericial, presumindo-se que o juízo técnico, científico ou artístico elaborado está subtraído à livre apreciação do julgador, como dispõe o artigo 163.º do Código de Processo Penal e a confissão integral e sem reservas em audiência de julgamento, ao abrigo do artigo 344.º do Código de Processo Penal. Assim, o Tribunal formou a sua convicção mediante a análise crítica e ponderada da prova produzida em audiência de julgamento, nomeadamente nas declarações do arguido, na prova testemunhal produzida na audiência de julgamento, devidamente concatenadas com a prova documental constante dos autos, designadamente o auto de notícia (de fls. 3 a 6, apenso A, dos autos físicos), participação de acidente de viação e croqui anexo (de fls. 66-67 dos autos físicos) e o teor do certificado de registo criminal do arguido (ref.ª eletrónica 11489334). Concretizando. Os pontos 1. a 4. da matéria de facto provada resultam da conjugação dos depoimentos prestados pelas testemunhas BB, CC, DD e EE (todos eles militares da GNR, sendo os dois primeiros a prestar serviço no Posto Territorial de Peniche à data dos factos e os outros dois no Posto Territorial das Caldas da Rainha, e revelaram conhecerem o arguido apenas do âmbito das suas funções), que confirmando as circunstâncias de tempo, modo e lugar dos factos, narraram, de forma lógica, credível e objetiva, a ocorrência do acidente de viação que motivou a deslocação das patrulhas que integravam àquele local. As testemunhas BB e CC confirmaram as tentativas de sujeição do arguido a teste de despiste de álcool no sangue por ar expirado no local do acidente, por três vezes, que se revelaram infrutíferas, por sopro insuficiente. Explicaram que, nestas situações o procedimento habitual é passar-se para o teste de pesquisa de álcool no sangue por via de colheita de sangue, através de kit de colheita que habitualmente existe nos Postos da GNR, mas que estava em falta no de Peniche, naquele momento. Por esse motivo, solicitaram-no ao Posto das Caldas da Rainha, tendo ainda no local do acidente comparecido os colegas DD e EE. Explicaram todas as referidas testemunhas que BB e DD conduziram o arguido ao Hospital de Peniche, tendo os outros dois militares da GNR permanecido no local do acidente. As testemunhas BB e DD detalharam de forma consentânea que, no Hospital, num primeiro momento o arguido encontrava-se sereno e colaborante, tendo alterando o seu comportamento quando o enfermeiro de serviço se dirigia a ele para proceder à colheita da amostra de sangue, tendo recusado sujeitar-se à recolha de sangue, asseverando a falta de colaboração do arguido e a recusa em ser submetido ao mesmo, não obstante ter sido o arguido advertido por BB de que, com tal conduta, incorria na prática de um crime de desobediência. Mais esclareceram que, perante tal recusa, o arguido foi levado para o Posto da GNR de Peniche para preenchimento do expediente. A testemunha BB relatou ainda que, já no Posto da GNR de Peniche, o arguido se sentiu mal, tendo a testemunha acionado a emergência médica que assistiu o arguido no local e o encaminhou, em ambulância, novamente para o Hospital de Peniche, dali tendo seguido para o Hospital das Caldas da Rainha, onde, em face de factos ocorridos durante o transporte em ambulância, foi acionada a PSP ..., desconhecendo o que se sucedeu. Depoimentos estes em tudo idênticos ao teor do auto de notícia (de fls. 3 a 6, apenso A) e participação de acidente de viação e croqui anexo (de fls. 66-67 dos autos físicos). Também o arguido, nas declarações que prestou em diferentes momentos da audiência de julgamento, admitiu a generalidade dos factos imputados, como sejam a ocorrência do acidente de viação, a sujeição por três vezes a teste de pesquisa de álcool no sangue por ar expirado sem sucesso, a deslocação ao Hospital de Peniche, defendendo, porém, que a sua recusa na colheita de amostra de sangue para realização do referido teste, naquele Hospital se deveu ao facto de não dispor de profissional de saúde com a especialidade de patologia clínica, habilitado para proceder à mesma, tendo solicitado o seu encaminhamento direito para o Hospital das Caldas da Rainha, num discurso desculpabilizante e que não foi corroborado por qualquer elemento probatório, desvalorizando a sua conduta, versão que, pelos fundamentos acima aduzidos, não merece acolhimento pelo Tribunal. Neste âmbito mostrou-se pouco relevante o depoimento prestado pela testemunha FF, empresário e que revelou conhecer o arguido anteriormente à data dos factos, em contexto social, uma vez que apenas confirmou a ocorrência do acidente onde foi interveniente o arguido, prestando-lhe socorro juntamente com outras pessoas, antes da chegada dos militares da GNR ao local, asseverando a sujeição do arguido a teste de pesquisa de álcool do sangue por ar expirado, por várias vezes (detalhando inclusive ter ouvido um militar da GNR solicitar ao arguido que soprasse com mais intensidade) e a necessidade de deslocação ao Hospital para o efeito. Os pontos 5., 6. e 7. da matéria de facto, respeitantes ao conhecimento pelo arguido da ilicitude da sua conduta e a vontade do mesmo em praticá-la, em atuação livre, voluntária e consciente, decorre das regras de experiência comum e dos próprios factos objetivamente apurados, sendo tal necessariamente do conhecimento de um indivíduo mediamente inserido socialmente e com atualização axiológica. No que concerne às condições socioeconómicas do arguido, os pontos 8. a 13. dos factos provados resultam das declarações do mesmo, as quais se mostraram lógicas, sinceras e credíveis e não foram infirmadas pela demais prova, logrando convencer o Tribunal. O ponto 14. da matéria de facto provada resulta do teor do certificado de registo criminal do arguido junto aos autos (ref.ª eletrónica 11489334). * No que respeita à matéria de facto não provada, sob os pontos a), b) e c), a mesma resulta de não se ter produzido prova sobre a mesma, sendo de realçar que nenhuma das testemunhas referiu que o arguido exalava odor a álcool, apenas notando o seu comportamento agitado e desajustado. Ademais, o documento junto pelo arguido em audiência de julgamento, correspondente ao diário clínico do episódio de urgência ocorrido no dia dos factos, e após os mesmos (isto é, entre as 03h53m e as 09h46m), no Centro Hospitalar do Oeste, revela que o arguido foi observado por diferentes profissionais de saúde, realizou diversos exames e análises, inclusive de despiste de fármacos e substâncias psicotrópicas, com resultado negativo. *
Como vem sendo unanimemente defendido na jurisprudência a matéria de facto pode ser sindicada por duas vias: através do âmbito, mais restrito, dos vícios previstos no artigo 410.º, n.º 2, do Código de Processo Penal ou mediante a impugnação ampla da matéria de facto, a que se refere o artigo 412.º, n.ºs 3, 4 e 6, do referido diploma legal. No primeiro caso estamos perante a arguição dos vícios formais, também designados de vícios decisórios, que se encontram previstos no n.º 2 do artigo 410.º do Código de Processo Penal, que, conforme decorre do referido preceito legal, devem resultar do texto da decisão recorrida, por si ou conjugada com as regras da experiência comum, não se estendendo, pois, a outros elementos, nomeadamente que resultem do processo, mas que não façam parte daquela decisão, sendo, portanto, inadmissível o recurso a elementos àquela estranhos para o fundamentar, como por exemplo, quaisquer dados existentes nos autos, mesmo que provenientes do próprio julgamento [Cf. Germano Marques da Silva, in Curso de Processo Penal, Vol. III, Verbo, 2ª ed. Pág. 339 e Simas Santos e Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, 6ª ed., págs. 77 e ss.]. Tratam-se, portanto, de vícios intrínsecos da sentença que visam o erro na construção do silogismo judiciário. No segundo caso estamos perante um erro do julgamento [designadamente na apreciação da prova] cuja apreciação não se restringe ao texto da decisão, alargando-se à análise do que se contém e pode extrair da prova produzida em audiência de julgamento, sempre tendo presente os limites fornecidos pelo recorrente em obediência ao ónus de especificação imposto pelos n.ºs 3 e 4 do artigo 412.º do Código de Processo Penal. Não se poderá esquecer, portanto, que o recurso da matéria de facto não visa a realização de um segundo julgamento sobre aquela matéria, agora com base na audição das gravações, antes constituindo um mero remédio jurídico com vista a colmatar erros do julgamento na forma como apreciou a prova, na perspetiva dos concretos pontos de facto identificados pelo recorrente, sendo, portanto, manifestamente errado pensar que basta ao recorrente formular discordância quanto ao julgamento da matéria de facto para o tribunal de recurso fazer «um segundo julgamento», com base na gravação da prova. Tem sido este o sentido defendido quer pela doutrina, quer pela jurisprudência, designadamente: Assim refere Germano Marques da Silva [In Forum Iustitiae, Ano I, Maio de 1999] que “o poder de cognição do Tribunal da Relação, em matéria de facto, não assume uma amplitude tal que implique um novo julgamento e faça tábua rasa da livre apreciação da prova, da oralidade e da imediação, apenas constitui remédio para os vícios do julgamento em 1ª instância”. No mesmo sentido se pronuncia Damião Cunha [O caso Julgado Parcial, pág. 37], ao afirmar que os recursos são entendidos como juízos de censura crítica e não como «novos julgamentos». “O recurso de facto para a Relação não é um novo julgamento em que a 2ª instância aprecia toda a prova produzida e documentada em 1ª instância, como se o julgamento ali realizado não existisse; antes se deve afirmar que os recursos, mesmo em matéria de facto, são remédios jurídicos destinados a colmatar erros de julgamento, que devem ser indicados precisamente com menção das provas que demonstram esses erros [Cf. neste sentido, Acórdão do STJ de 15-12-2005, Proc. nº 05P2951 e Ac. do STJ de 9-03-2006, Proc. nº 06P461, acessíveis em www.dgsi.pt]. * II.3.1 Da impugnação da matéria de facto – art. 412º do Código de Processo Penal
Alega o recorrente que o Tribunal a quo julgou erradamente os pontos 7 a 14 dos factos provados. Invoca para o efeito as declarações do arguido e o segmento correspondente às 11h15m do depoimento da testemunha GG que teve lugar entre as 11h09m22s e as 11h19m36s. Conforme decorre do artigo 412.º do Código de Processo Penal, sob a epígrafe “motivação do recurso e conclusões”: “1 - A motivação enuncia especificamente os fundamentos do recurso e termina pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do pedido. 2 - Versando matéria de direito, as conclusões indicam ainda: a) As normas jurídicas violadas; b) O sentido em que, no entendimento do recorrente, o tribunal recorrido interpretou cada norma ou com que a aplicou e o sentido em que ela devia ter sido interpretada ou com que devia ter sido aplicada; e c) Em caso de erro na determinação da norma aplicável, a norma jurídica que, no entendimento do recorrente, deve ser aplicada. 3 - Quando impugne a decisão proferida sobre matéria de facto, o recorrente deve especificar: a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados; b) As concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida; c) As provas que devem ser renovadas. [sublinhado nosso]. No nº4 do mesmo artigo prevê-se que: “Quando as provas tenham sido gravadas, as especificações previstas nas alíneas b) e c) do número anterior fazem-se por referência ao consignado na ata, nos termos do disposto no nº 2 do artigo 364º, devendo o recorrente indicar concretamente as passagens em que se funda a impugnação” (sublinhado nosso). E no nº6 “No caso previsto no nº 4 o tribunal procede à audição ou visualização das passagens indicadas e de outras que considere relevantes para a descoberta da verdade e a boa decisão da causa” . Impõe-se, pois, ao recorrente, versando o recurso matéria de facto, especificar os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados e as concretas provas que impõem decisão diversa. Tal ónus tem de ser observado para cada um dos factos impugnados, devendo ser indicadas em relação a cada facto as provas concretas que impõem decisão diversa e bem assim tem de ser referido qual o sentido em que devia ter sido produzida a decisão. A impugnação da decisão da matéria de facto, pela via mais ampla prevista no artigo 412º, do C.P.P., tendo havido documentação da prova produzida em audiência, com a respetiva gravação, impõe ao recorrente, como sobredito, o ónus de proceder a uma tríplice especificação, nos termos dos seus nºs 3, 4 e 6. Exige-se ao recorrente, quando impugna a matéria de facto, a especificação dos concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados, o que só se satisfaz com a indicação do facto individualizado que consta da sentença recorrida e que considera indevidamente julgado. Para além disso, a especificação das concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida, o que se traduz na anotação do conteúdo específico do meio de prova ou de obtenção de prova que acarreta decisão diversa da recorrida, a que acresce a necessidade de explicitação da razão pela qual essa prova implica essa diferente decisão, devendo, por isso, reportar o conteúdo específico do meio de prova por si invocado ao facto individualizado que considere mal julgado. O recorrente terá, pois, de indicar os elementos de prova que não foram tomados em conta pelo tribunal quando o deveriam ter sido ou que foram considerados quando não o podiam ser, nomeadamente por haver alguma proibição a esse respeito, ou então, de pôr em causa a avaliação da prova feita pelo tribunal, assinalando as deficiências de raciocínio que levaram a determinadas conclusões ou a insuficiência (atenta, sobretudo, a respetiva qualidade) dos elementos probatórios em que se estribaram tais conclusões. E, quanto às concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida, resulta do nº 4 do dispositivo legal em análise que havendo gravação das provas, as especificações previstas nas alíneas b) e c) do número anterior fazem-se por referência ao consignado na ata, devendo o recorrente indicar as passagens (das gravações) ou os concretos segmentos de tais depoimentos em que se funda a impugnação e que no seu entender invertem a decisão proferida sobre a matéria de facto, pois são essas que devem ser ouvidas ou visualizadas pelo tribunal, sem prejuízo de outras relevantes (n.º 6 do artigo 412.º). Na situação presente, referindo os pontos 3, 4, 5, 6 e 7 convoca para sustentar o erro de julgamento os minutos 4:12 e 5:38 do depoimento da testemunha HH (que transcreveu), a prova documental e concretamente as análises realizadas no Hospital das Caldas da Rainha (cuja cópia juntou) e as declarações do arguido ao minuto 13:49. Ouvimos as declarações do arguido e bem assim da testemunha HH, na íntegra e analisamos o documento indicado pelo arguido (que foi junto aos autos em audiência de julgamento) - cf. refª Citius 109647883 de 21.01.2025. Ora, analisando estes segmentos e ouvido o depoimento de HH e as declarações do arguido na íntegra, não cremos que se imponha decisão diversa da tomada pelo Tribunal a quo. A testemunha HH foi clara e coerente quando referiu que advertiu expressamente o arguido de que a recusa a efetuar a recolha de sangue para efetivação do teste de álcool no sangue o faria incorrer em crime de desobediência, tendo novamente esclarecido, quando perguntado pela Mmª Juiz a quo, que no Hospital perante a recusa do arguido em permitir a efetivação da recolha do sangue com o Kit que havia vindo do Posto das Caldas da Rainha incorreria em crime de desobediência, que o fez (minutos 8:02 a 8.50 e minutos 16:44 a 17:41). Mais esclareceu a testemunha que, quando não se mostrou viável o exame através do ar expirado, o arguido concordou ir ao Hospital tirar sangue (minuto 18.58 a 19:04), esclarecendo que não houve nenhum pedido do arguido no sentido de ser transportado ao Hospital das Caldas da Rainha e não ao de Peniche (minutos 19:40 a 20:18). E no que concerne à questão de quem se lhe apresentava para recolher o sangue para análise resulta do depoimento que o arguido disse que o “enfermeiro não lhe tocava porque era classe baixa a ele e que não lhe ia tocar”(minuto 18:43 a 18:50). Também a testemunha DD confirmou (minuto 04:26 a 14:41) que foi dito ao arguido “que se não deixasse efetuar a recolha seria punido pelo crime de desobediência” e este disse que não fazia qualquer recolha, que não deixava que lhe fizessem qualquer recolha, altura em que lhe foi dada voz de detenção (minutos 04:20 a 04:41) voltando a esclarecer tais factos no seu depoimento dos minutos 08:45 a 09:57. Do depoimento da testemunha HH resulta ainda claro que a deslocação o arguido ao Hospital das Caldas da Rainha resulta do facto de este se ter sentido mal quando, já após a sua detenção, já haviam regressado do Hospital de Peniche arguido e se encontravam no Posto da GNR. Os elementos clínicos juntos aos autos a 14.06.2022 (Refª Citius 8800820) sustentam esta versão trazida aos autos pela testemunha BB, percebendo-se que o arguido deu entrada no Hospital de Peniche dia 03.10.2021 pelas 02.12:32 onde, na triagem se fez constar “Vem para realização e teste de Alcoolemia acompanhado de agentes da autoridade”, registo efetuado pelo triador: “Enf. II”. Do mesmo documento consta que pelas 02.28:42 é efetuado um registo em Observações Médicas pelo “DR. JJ/ PE URGÊNCIA GERAL, onde consta “M/45ª, trazido para realização de teste de alcoolemia acompanhado por agentes de autoridade. Dnt recusa realizar o teste Fica muito agitados Saiu do SU sem recolha de sangue para teste Saiu acompanhar com GNR detido”. E no campo Destino do doente consta, pelas 02:48:00 pelo mesmo médico a indicação “Abandono”. Consta depois nova entrada na triagem no Hospital de Peniche pelas 03.34.48, novamente triado pelo enfermeiro II e, nas observações médicas pelas 03.53.15 , foi introduzido pelo mesmo médico, para além de outras indicações: “M/45 a, trazido por história de síncope há 1 hora”. Destes elementos clínicos resulta ainda que o arguido foi transferido para o Hospital das Caldas da Rainha onde foi triado pelas 06h.25m.33s pela enfermeira KK e depois assistido pelas 07.12.22 por DR. LL/CR-CIRURGIA URGÊNCIA, onde lhe foram prescritos vários exames entre os quais “TC CE por haver referência a síncope na observação efetuada no SUB- Peniche Rx tórax Análises “ Mais resulta de tal documento os “MCDT Requisitados/procedimentos efetuados”, onde constam as ditas análises clínicas. Estes elementos probatórios contrariam a versão apresentada pelo arguido que não encontra nelas sustentação. As análises efetuadas foram prescritas pela Senhora médica que o assistiu no Hospital das Caldas da Rainha e não abrangeram sequer a pesquisa de álcool no sangue, sendo certo que a sua ida a tal Hospital e a realização de análises e exames complementares de diagnóstico resultaram das queixas e síncope que referia ter sofrido e nenhuma conexão têm com a pesquisa de álcool no sangue. Veja-se que o arguido já estava no Posto da GNR, após a sua detenção, quando se sente mal e são então desencadeados os procedimentos para o seu socorro e não para qualquer fiscalização. Dos depoimentos dos militares da GNR resulta clara a advertência que lhe foi feita de que recusando-se a efetuar a recolha de sangue incorreria na prática de um crime de desobediência e do relatado por estas testemunhas, resultando embora a menção ao Sr. Enfermeiro e de que “este era abaixo dele”, as testemunhas foram claras quando afirmaram que o arguido não solicitou que a recolha fosse efetuada por um médico, ou que tivesse feito alguma menção à falta de habilitações do enfermeiro para a recolha do sangue, resultando destes depoimentos que esse tipo de abordagem do sentido de estarem “abaixo de si” foi também dirigida ao Segurança do Hospital e até aos próprios. Da prova produzida e muito concretamente dos depoimentos das referida testemunha HH e DD resulta ainda que o arguido nunca solicitou que fosse encaminhado para o Hospital das Caldas da Rainha, designadamente quando foi transportado do local do acidente para o Hospital de Peniche, ou que tenha referido a falta de condições do Hospital de Peniche para o efeito, antes resultando dos depoimentos dos militares da GNR que este é um Hospital que lhes é indicado para conduzirem as pessoas que necessitam de efetuar a recolha de sangue para pesquisa de álcool, esclarecendo que já o fizeram várias vezes. Alega ainda o recorrente, concretamente relativamente aos pontos 6 e 7 dos factos provados, que à data estava profundamente afetado pelo acidente de que tinha sido vítima estando bastante nervoso e ansioso e que estava convencido que apenas um médico poderia fazer a recolha do sangue. Revisitando a sentença recorrida vemos que nestes pontos da matéria de facto se escreveu: “ Os pontos 1. a 4. da matéria de facto provada resultam da conjugação dos depoimentos prestados pelas testemunhas BB, CC, DD e EE (todos eles militares da GNR, sendo os dois primeiros a prestar serviço no Posto Territorial de Peniche à data dos factos e os outros dois no Posto Territorial das Caldas da Rainha, e revelaram conhecerem o arguido apenas do âmbito das suas funções), que confirmando as circunstâncias de tempo, modo e lugar dos factos, narraram, de forma lógica, credível e objetiva, a ocorrência do acidente de viação que motivou a deslocação das patrulhas que integravam àquele local. As testemunhas BB e CC confirmaram as tentativas de sujeição do arguido a teste de despiste de álcool no sangue por ar expirado no local do acidente, por três vezes, que se revelaram infrutíferas, por sopro insuficiente. Explicaram que, nestas situações o procedimento habitual é passar-se para o teste de pesquisa de álcool no sangue por via de colheita de sangue, através de kit de colheita que habitualmente existe nos Postos da GNR, mas que estava em falta no de Peniche, naquele momento. Por esse motivo, solicitaram-no ao Posto das Caldas da Rainha, tendo ainda no local do acidente comparecido os colegas DD e EE. Explicaram todas as referidas testemunhas que BB e DD conduziram o arguido ao Hospital de Peniche, tendo os outros dois militares da GNR permanecido no local do acidente. As testemunhas BB e DD detalharam de forma consentânea que, no Hospital, num primeiro momento o arguido encontrava-se sereno e colaborante, tendo alterando o seu comportamento quando o enfermeiro de serviço se dirigia a ele para proceder à colheita da amostra de sangue, tendo recusado sujeitar-se à recolha de sangue, asseverando a falta de colaboração do arguido e a recusa em ser submetido ao mesmo, não obstante ter sido o arguido advertido por BB de que, com tal conduta, incorria na prática de um crime de desobediência. Mais esclareceram que, perante tal recusa, o arguido foi levado para o Posto da GNR de Peniche para preenchimento do expediente. A testemunha BB relatou ainda que, já no Posto da GNR de Peniche, o arguido se sentiu mal, tendo a testemunha acionado a emergência médica que assistiu o arguido no local e o encaminhou, em ambulância, novamente para o Hospital de Peniche, dali tendo seguido para o Hospital das Caldas da Rainha, onde, em face de factos ocorridos durante o transporte em ambulância, foi acionada a PSP ..., desconhecendo o que se sucedeu. Depoimentos estes em tudo idênticos ao teor do auto de notícia (de fls. 3 a 6, apenso A) e participação de acidente de viação e croqui anexo (de fls. 66-67 dos autos físicos). Também o arguido, nas declarações que prestou em diferentes momentos da audiência de julgamento, admitiu a generalidade dos factos imputados, como sejam a ocorrência do acidente de viação, a sujeição por três vezes a teste de pesquisa de álcool no sangue por ar expirado sem sucesso, a deslocação ao Hospital de Peniche, defendendo, porém, que a sua recusa na colheita de amostra de sangue para realização do referido teste, naquele Hospital se deveu ao facto de não dispor de profissional de saúde com a especialidade de patologia clínica, habilitado para proceder à mesma, tendo solicitado o seu encaminhamento direito para o Hospital das Caldas da Rainha, num discurso desculpabilizante e que não foi corroborado por qualquer elemento probatório, desvalorizando a sua conduta, versão que, pelos fundamentos acima aduzidos, não merece acolhimento pelo Tribunal. Neste âmbito mostrou-se pouco relevante o depoimento prestado pela testemunha FF, empresário e que revelou conhecer o arguido anteriormente à data dos factos, em contexto social, uma vez que apenas confirmou a ocorrência do acidente onde foi interveniente o arguido, prestando-lhe socorro juntamente com outras pessoas, antes da chegada dos militares da GNR ao local, asseverando a sujeição do arguido a teste de pesquisa de álcool do sangue por ar expirado, por várias vezes (detalhando inclusive ter ouvido um militar da GNR solicitar ao arguido que soprasse com mais intensidade) e a necessidade de deslocação ao Hospital para o efeito. Os pontos 5., 6. e 7. da matéria de facto, respeitantes ao conhecimento pelo arguido da ilicitude da sua conduta e a vontade do mesmo em praticá-la, em atuação livre, voluntária e consciente, decorre das regras de experiência comum e dos próprios factos objetivamente apurados, sendo tal necessariamente do conhecimento de um indivíduo mediamente inserido socialmente e com atualização axiológica”. E analisada, por este Tribunal ad quem, a prova produzida em audiência, consubstanciada nas declarações do arguido e nos depoimentos das referidas testemunhas e a avaliação que da mesma fez o Tribunal recorrido, espelhada na fundamentação do julgamento de facto, verificamos que foi realizada uma avaliação devidamente ponderada da prova. Na verdade, a ocorrência de processos psíquicos sobre os quais assenta o dolo, levam a que a maioria das situações acabe por se resolver através da chamada prova indiciária, ou circunstancial, plasmada nos juízos de inferência. A conclusão é então imposta pela aplicação das regras da experiência. Quer isto dizer que, na ausência de confissão, em que o arguido reconhece ter sabido e querido os factos que realizam um tipo objetivo de crime e ter consciência do seu carácter ilícito, a prova terá de fazer-se por ilações, a partir de indícios, através de uma leitura do comportamento exterior e visível do agente. Ora, na situação presente da prova produzida e acima analisada ressalta que o arguido quis desobedecer à ordem que lhe fora emanada, e não como o pretende o arguido uma qualquer falta de consciência de que estaria a cometer um crime, porque apenas um médico poderia fazer a recolha de sangue necessária para a realização do exame de despiste de álcool no sangue. O arguido sabia da obrigatoriedade do exame e das consequências do não acatamento da ordem, tendo sido disso informado pelo militar da GNR HH, mas – como já referimos – a prova não nos leva para que a recusa tenha sido tão só de a recolha ser feita por enfermeiro, mas antes a de efetivamente recusar a realização do referido exame. Como deixamos já expresso supra não resulta da prova produzida - devidamente analisada pelo Tribunal a quo - que o arguido tenha manifestado por qualquer meio a convicção de que apenas um médico lhe poderia recolher sangue para efeitos da análise ao teor de álcool no sangue ou que o tenha sequer referido, sendo certo que apesar de a forma como as testemunhas referiram a atuação do arguido e do que resulta dos documentos clínicos este estava agitado, mas estava perfeitamente consciente que estava na presença de um enfermeiro, que na sua ótica estava “ abaixo de si”. Pretendendo e sendo essa a sua convicção tê-la ia manifestado o que não fez, mesmo estando presente um médico que nas observações médicas fez constar que o doente recusa realizar teste. Em suma, os factos objetivamente apurados com base na prova produzida levam-nos à conclusão de que inexistiu qualquer erro de julgamento relativamente a estes pontos 4 a 7 dos factos provados.
Vista a prova e a explanação aduzidas pelo recorrente constata-se que o mesmo se limita a colocar em crise a convicção do tribunal recorrido, e acaba por pretender simplesmente impor a sua própria e subjetiva leitura crítica da prova, em detrimento daquela que alicerçou a convicção adquirida pelo tribunal recorrido e que a sentença explicita de forma clara e cabal. Analisando a sentença recorrida, cremos que ela é suficiente para fundamentar a decisão de direito [encontrando-se provados os elementos do tipo de crime imputado ao arguido recorrente], mas também porque não decorre da sentença recorrida que o tribunal a quo tenha deixado de investigar toda a matéria de facto com interesse para a decisão, com relação aos apontados factos. Do texto da referida sentença não resulta que o tribunal a quo tenha violado as regras da experiência ou que tenha efetuado uma apreciação manifestamente incorreta, desadequada, baseada em juízos ilógicos, arbitrários ou mesmo contraditórios, e, muito menos, que tenha violado qualquer regra sobre prova vinculada. O Tribunal a quo baseou a sua convicção na conjugação de toda a prova produzida, que corretamente identificou e analisou e teve em conta sobretudo Os depoimentos das testemunha HH e DD, explicitando de forma clara e escorreita as razões pelas quais lhe atribuiu credibilidade em detrimento das declarações do arguido, tudo permitindo num percurso lógico e suportado pelas regras da experiência comum perceber e concluir pela imputação feita ao ora recorrente. Repare-se que a alteração da matéria de facto não decorre, por via do recurso, da mera possibilidade de a prova produzida permitir uma decisão de sentido distinto da tomada pelo julgador, mas antes se exige que essa decisão diversa se imponha por ser evidente ou flagrante o erro do tribunal a quo, em função das provas produzidas, no julgamento da matéria de facto. Da motivação de recurso fica-nos apenas um discurso de assumida discordância do recorrente quanto à análise crítica da prova efetuada pelo tribunal recorrido, alicerçada em generalizações probatórias, o que torna inviável a pretensão de sindicar a livre apreciação da prova, tal como vem consagrada no artigo 127º, do Código de Processo Penal. Na verdade, neste tipo específico de recurso “a censura” quanto à forma de formação da convicção do tribunal não pode assentar, de forma simplista, no ataque da fase final da formação de tal convicção, isto é, na valoração da prova; tal censura terá de assentar na violação de qualquer dos passos para a formação de tal convicção, designadamente porque não existem os dados objetivos que se apontam na motivação ou porque se violaram os princípios para a aquisição desses dados objetivos ou porque não houve liberdade de formação da convicção. “Doutra forma seria uma inversão da posição das personagens do processo, como seja a de substituir a convicção de quem tem de julgar pela convicção dos que esperam a decisão” - acórdão do Tribunal Constitucional n.º 198/2004, de24.3.2004, DR, II Série, n.º 129, de2 de Junho. Ora, no caso vertente, o recorrente pretende impor a apreciação que ele próprio faz da prova produzida e muito concretamente das suas declarações sem que as provas que invocou impusessem decisão da matéria de facto distinta (oposta da que foi tomada pelo julgador), isto é, que tornassem, face às regras da experiência comum e da lógica, insustentável a apreciação operada pelo Tribunal a quo. Por todo o exposto, o recorrente não logrou demonstrar que a convicção do tribunal de primeira instância sobre a veracidade dos factos descritos nos pontos 4 a 7 não é sustentada em dados objetivos e que os meios de prova impunham uma convicção diferente. Assim, não padecendo a decisão recorrida de qualquer vício previsto no art.410º, nº2, do Código de Processo Penal, mostra-se também pela via mais ampla do art. 412º, n.º 3, ambos do Código de Processo Penal, inviável a modificabilidade da decisão proferida sobre a decisão da matéria de facto invocada pelo recorrente.
Entende o recorrente que a ordem de detenção que lhe foi efetuada pelo Militar da GNR foi ilegal porque não respeita ao delito em causa, deveria ser considerada abusiva. Não resulta dos autos que o arguido tenha suscitado tal questão ao Tribunal a quo, sendo certo que a este Tribunal não cabe conhecer inovatoriamente questões que não foram posta à apreciação da 1º Instância e objeto da decisão recorrida. Na verdade, se o arguido queria colocar em causa as condições da respetiva detenção deveria tê-lo efetuado em momento adequado, sendo tal questão perfeitamente irrelevante nesta fase. Ademais, sempre se dirá que, como decorre do auto de notícia de fls. 3 a 6 do apenso A, o arguido foi detido na sequência da sua recusa a realizar o exame de despiste de álcool no sangue e após a advertência que lhe foi feita de que estaria a cometer um crime de desobediência, caso recusasse a realização do exame de pesquisa de álcool no sangue, o que efetivamente ocorreu. Assim, os militares da GNR procederam de acordo com a sua competência funcional e em face do disposto no artigo 255º, nº 1, al. a) do Código de Processo Penal, pelo que inexistiu qualquer ilegalidade da referida conduta. *
Defende o arguido que nos termos do disposto no art. 7º da Portaria nº 903-B/2007 (será 902-B/2007 de 13 de abril) o exame teria de ser efetuado por um médico e não por um enfermeiro e, consequentemente, a sua atuação está a coberto de uma causa de exclusão da ilicitude (mencionado na respetiva motivação o art. 32º nº 1 e 2 al. b) do Código Penal, sendo certo que o artigo 32º do Código Penal, não contem alíneas). No entanto, preceitua o art. 31º, nºs 1 e 2, al. b), do Código Penal: “1 – O facto não é punível quando a sua ilicitude for excluída pela ordem jurídica considerada na sua totalidade. 2 – Nomeadamente, não é ilícito o facto praticado: […] b) No exercício de um direito.”
Se bem entendemos, a perspetiva do recorrente a sua recusa a realizar a recolha do sangue estaria a coberto de um direto que lhe é concedido pela Lei, já que esta prevê - nos termos do art. 7º da portaria 903-B/2007 - que a recolha seja efetuada por médico. Vejamos então: Nos termos do disposto no art. 152º do Código da Estrada: 1 - Devem submeter-se às provas estabelecidas para a deteção dos estados de influenciado pelo álcool ou por substâncias psicotrópicas: a) Os condutores; b) Os peões, sempre que sejam intervenientes em acidentes de trânsito; c) As pessoas que se propuserem iniciar a condução. 2 - Quem praticar atos suscetíveis de falsear os resultados dos exames a que seja sujeito não pode prevalecer-se daqueles para efeitos de prova. 3 - As pessoas referidas nas alíneas a) e b) do n.º 1 que recusem submeter-se às provas estabelecidas para a deteção do estado de influenciado pelo álcool ou por substâncias psicotrópicas são punidas por crime de desobediência. 4 - As pessoas referidas na alínea c) do n.º 1 que recusem submeter-se às provas estabelecidas para a deteção do estado de influenciado pelo álcool ou por substâncias psicotrópicas são impedidas de iniciar a condução. 5 - O médico ou paramédico que, sem justa causa, se recusar a proceder às diligências previstas na lei para diagnosticar o estado de influenciado pelo álcool ou por substâncias psicotrópicas é punido por crime de desobediência.” Por seu turno, nos termos do disposto no art. Artigo 153.º do Código da Estrada sob a epígrafe “Fiscalização da condução sob influência de álcool” prevê-se o seguinte: 1 - O exame de pesquisa de álcool no ar expirado é realizado por autoridade ou agente de autoridade mediante a utilização de aparelho aprovado para o efeito. 2 - Se o resultado do exame previsto no número anterior for positivo, a autoridade ou o agente de autoridade deve notificar o examinando, por escrito ou, se tal não for possível, verbalmente: a) Do resultado do exame; b) Das sanções legais decorrentes do resultado do exame; c) De que pode, de imediato, requerer a realização de contraprova e que o resultado desta prevalece sobre o do exame inicial; e d) De que deve suportar todas as despesas originadas pela contraprova, no caso de resultado positivo. 3 - A contraprova referida no número anterior deve ser realizada por um dos seguintes meios, de acordo com a vontade do examinando: a) Novo exame, a efetuar através de aparelho aprovado; b) Análise de sangue. 4 - No caso de opção pelo novo exame previsto na alínea a) do número anterior, o examinando deve ser, de imediato, a ele sujeito e, se necessário, conduzido a local onde o referido exame possa ser efetuado. 5 - Se o examinando preferir a realização de uma análise de sangue, deve ser conduzido, o mais rapidamente possível, a estabelecimento oficial de saúde, a fim de ser colhida a quantidade de sangue necessária para o efeito. 6 - O resultado da contraprova prevalece sobre o resultado do exame inicial. 7 - Quando se suspeite da utilização de meios suscetíveis de alterar momentaneamente o resultado do exame, pode a autoridade ou o agente de autoridade mandar submeter o suspeito a exame médico. 8 - Se não for possível a realização de prova por pesquisa de álcool no ar expirado, o examinando deve ser submetido a colheita de sangue para análise ou, se esta não for possível por razões médicas, deve ser realizado exame médico, em estabelecimento oficial de saúde, para diagnosticar o estado de influenciado pelo álcool. (sublinhado nosso) E nos termos do disposto no art. 156º do Código da Estrada: 1 - Os condutores e os peões que intervenham em acidente de trânsito devem, sempre que o seu estado de saúde o permitir, ser submetidos a exame de pesquisa de álcool no ar expirado, nos termos do artigo 153.º 2 - Quando não tiver sido possível a realização do exame referido no número anterior, o médico do estabelecimento oficial de saúde a que os intervenientes no acidente sejam conduzidos deve proceder à colheita de amostra de sangue para posterior exame de diagnóstico do estado de influência pelo álcool e ou por substâncias psicotrópicas. “4 - O enfermeiro, quando integrado em equipas multiprofissionais, atua em cooperação, articulação, complementaridade e, ou coordenação de outros profissionais, cuja atuação seja funcionalmente interdependente ou complementar à sua. 5 — A relação de subordinação hierárquica e dependência funcional, no exercício profissional, só existe entre enfermeiros, inexistindo em relação a qualquer outro profissional ou grupo profissional.” Aliás, sob a perspetiva da intervenção do enfermeiro na recolha de sangue para efeitos de exame de pesquisa de álcool no sangue o Conselho Jurisdicional da Ordem dos Enfermeiros, no parecer CJ 274/2014, reconheceu tal competência ao Enfermeiro, emitindo parecer no sentido de que “sendo um profissional autónomo quanto às suas decisões e intervenções profissionais a realizar, o enfermeiro, perante uma situação concreta, pode decidir realizar a colheita de sangue ou outro produto biológico para a realização de provas periciais se se encontrar a prestar funções num serviço público de saúde, ao abrigo do dever desta instituição de colaboração com o Instituto Nacional de Medicina Legal e Ciências Forenses.” Ora, resulta do artº 9º do Código Civil que a interpretação não deve cingir-se à letra da lei, mas reconstituir o pensamento legislativo, tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada (nº 1), não podendo, porém, ser considerado pelo intérprete o pensamento legislativo que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso (nº 2); na fixação do sentido e alcance da lei, o intérprete presumirá que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados (nº 3). Partindo, embora, do elemento literal e muito concretamente do seu sentido lógico e correlativo, há que considerar também o elemento sistemático sendo aqui de considerar, como salienta Abílio Neto [in código Civil Anotado pág. 20] que “as leis interpretam-se umas às outras” e o elemento histórico como sejam os trabalhos preparatórios mas também a evolução da regulamentação legal sobre a matéria. Ora, sendo certo que a interpretação atualista deve ser aplicada com a necessária prudência, estando, logo à partida, condicionada pelos factores hermenêuticos, designadamente pela ratio da norma interpretanda e pelos elementos gramatical e sistemático, cremos que a utilização das expressões “providenciar” e “promover”, utilizadas na portaria nº 902-B/2007 de 13 de abril e, bem assim, os normativos invocados relativos às competências e atribuições dos senhores enfermeiros e necessidade evidenciada na Lei 18/2007 de 17 de maio e, sobretudo, da referida portaria nº 902-B/2007 de 13 de abril, designadamente no âmbito da colaboração que é devida entre as organizações de Saúde Pública e o INMLCF, deve reconhecer-se ao enfermeiro a possibilidade de efetuar a dita recolha de sangue, para efeitos de exame de pesquisa de álcool no sangue. Neste sentido se pronunciou o Acórdão do TRG de 05.11.2024 [processo nº 2/24.1GBALJ.G1, disponível in www.dgsi.pt] onde se escreve “O arguido foi interveniente num acidente de viação e em consequência do mesmo foi transportado para o Centro Hospitalar ..., em ..., que é um estabelecimento hospitalar pertencente ao Serviço Nacional de Saúde. Uma interpretação atualista do nº 2 do artigo 156º leva a considerar que este normativo não obriga a que tenha de ser um médico a efetuar os atos materiais de recolha do sangue e o normal é mesmo que o não seja, pois que como é do conhecimento geral, tal tarefa é maioritariamente da competência de outros profissionais de saúde, no caso de enfermeiros, ainda que em contexto hospitalar. Já o mesmo não sucederia se estivéssemos no campo de aplicação previsto no nº 3 desse artigo, pois que nessa hipótese o exame médico de diagnóstico teria de ser efetuado exclusivamente por um médico”. Deste modo, estando legitimada a intervenção do senhor enfermeiro na recolha de sangue que se propôs efetuar ao arguido, a conclusão a retirar é que a recusa deste último não está salvaguardada, nesta perspetiva, por qualquer direito e consequentemente não se verifica qualquer causa de exclusão da ilicitude. Invoca ainda o arguido a superioridade do direito à sua integridade física sobre a autonomia intencional do Estado, como causa de justificação da ilicitude. Como se refere no Acórdão TRC de 14.07.2010 [ processo nº 113/09.3GBCVL.C1, disponível in www.dgsi.pt] : “Nestas situações, ou seja quando não for possível a realização de exame por ar expirado, através de um procedimento próprio, «o médico do estabelecimento oficial de saúde a que os intervenientes no acidente sejam conduzidos deve proceder à colheita da amostra de sangue para posterior exame de diagnóstico do estado de influenciado pelo álcool» (cf. 156º nº 2 do CE e 4º e 5º da Lei nº 18/2007). As necessidades de prevenção que estão na origem deste regime são tão fortes que impõem, inclusive uma cominação criminal ao médico ou paramédico que, sem justa causa, se recusar a proceder ás diligências previstas na lei para diagnosticar o estado de influenciado pelo álcool, ou de substâncias psicotrópicas - é punido por crime de desobediência (cf. artigo 152º n.º 5 do CE). Todo este regime está estabelecido no Código da Estrada e na Lei nº 18/2007 e é, por isso, conhecido pelos cidadãos, quer sejam condutores, quer sejam peões (que no caso, sejam intervenientes em acidentes de viação), quer sejam pessoas que se proponham iniciar a condução. Importa sublinhar que o regime legal dá ao cidadão objecto de fiscalização a total liberdade de não querer efectuar o exame de pesquisa de álcool. Ainda aqui a liberdade individual, «de ir livre e conscientemente para o Inferno», na expressão de Figueiredo Dias, é absolutamente garantida. Essa liberdade individual tem, no entanto, os seus custos. Ou seja, a recusa a submeter-se a exame implica a punição por crime de desobediência – artigo 152º nº 3 do CE. É isso que exigem as razões de prevenção que estão na origem da fixação do regime da proibição de condução sob influência de álcool. Recorde-se que sobre a relevância do exame de colheita de álcool o Tribunal Constitucional e a sua eventual colisão com outros direitos, já se pronunciou, no sentido de que «o exame para pesquisa de álcool (...), destinando-se, não apenas a recolher uma prova perecível, como também a impedir que um condutor, que está sob influência de álcool, conduza pondo em perigo, entre outros bens jurídicos, a vida e a integridade física próprias e as de outros, mostra-se necessário e adequado à salvaguarda destes bens jurídicos e ao fim da descoberta da verdade, visado pelo processo penal» (Ac. nº 319/95). O que importa reter do que se vem dizendo é que o cidadão, desde que esteja em condições de o fazer, pode recusar-se sempre a submeter-se ao exame de detecção, assuma este a forma de colheita por ar expirado ou por exame ao sangue. Não há testes coercivos, nesta como noutras matérias.” Na verdade, apesar de o direito à integridade física ter consagração constitucional no artigo 25º, da Constituição da República Portuguesa, tal não constitui um direito absoluto, insuscetível de violação em quaisquer e todas as circunstâncias, prevendo a Constituição que a lei geral pode restringir os direitos, liberdades e garantias, desde que tais restrições se limitem ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos, artigo 18º, nº 2, da Constituição da República, como ocorre na situação presente, em que a lei na impossibilidade de realização de pesquisa de álcool no expirado prevê a realização de colheita de sangue em estabelecimento oficial de saúde como ocorreu na situação presente. [Neste sentido ainda o acórdão do TRE de 28.01.2014 - Processo nº 314/12.7GTABF.E1, disponível in www.dgsi.pt]. Improcede assim igualmente o recurso interposto neste segmento. * Invocou o arguido/recorrente a ocorrência de erro nos termos do disposto no art. 16º, nº 2 do Código Penal. Decorre do artigo 16.º, n.º 1 do Código Penal, que “O erro sobre elementos de facto ou de direito de um tipo de crime (...) exclui o dolo.” E nos termos do nº 2 do mesmo artigo também excluirá o dolo “ o erro sobre um estado de coisas que a existir, excluiria a ilicitude do facto ou a culpa do agente”. Trata-se de uma situação em que o agente atua erroneamente convencido da existência de uma situação de justificação”. O erro sobre a factualidade típica, ou sobre a ocorrência de uma causa de exclusão da ilicitude é um erro intelectual e um erro-representação. Quando tal erro resulta da falta de atuação com a diligência que lhe é devida, o agente é punido a título de negligência nos termos dos artigos 16.º, n.º 3 e 15.º do Código Penal. No direito penal português encontramos dois tipos de erro jurídico-penalmente relevante, com duas formas de relevância e diferentes efeitos sobre a responsabilidade do agente: uma exclui o dolo da culpa, ficando ressalvada a negligência nos termos gerais (artigo 16.º, do Código Penal); a outra, exclui a culpa, se for não censurável, constituindo causa de exclusão da culpa, mantendo-se a punição a título de dolo se for censurável, embora com pena especialmente atenuada (artigo 17.º, do Código Penal). Como refere Figueiredo Dias [Direito Penal - Parte Geral, Tomo I, pág. 466]:Aquele que erra sobre a factualidade típica (ou sobre o decurso do acontecimento ou mesmo sobre proibições legais, na medida em que estes erros sejam relevantes ) atua sem dolo do tipo, enquanto quem aceita erroneamente elementos que, a existir, excluiriam a ilicitude, atua com dolo do tipo. Isto significa que, sendo embora a consequência jurídica num caso e no outro a mesma – e exclusão da punição do agente a título de dolo – na hipótese e de erro sobre os elementos do tipo a exclusão dá-se logo a nível do ilícito típico: o facto não é tipicamente doloso. Diferentemente, em caso de errónea aceitação dos pressupostos de uma causa justificativa o dolo do tipo persiste; o que sucede é que o dolo, pelas razões sumariamente apontadas acima, virá a ser negado em definitivo em sede de culpa: O tipo (incriminador) é dolosamente realizado pelo agente , mas este atua sem culpa dolosa e, por isso, não pode, em definitivo, punido a título de dolo. Ora, não resulta da matéria de facto provada qualquer circunstância que permita concluir que o arguido atuou ao abrigo de qualquer erro sobre na existência de uma causa justificativa. No caso presente apurou-se, com recurso à prova indiciária – como acima se referiu - que os atos foram praticados com consciência, e com inerente capacidade de querer e entender, isto é, de avaliar a ilicitude dos factos e de se determinar de acordo com essa avaliação, sem qualquer tipo comprovado de erro e, como tal, não há como fazer operar a exclusão do dolo da culpa. Deste modo, cai por terra a possibilidade de fazer operar na situação em apreço o invocado erro do art. 16º, nº 2 do Código Penal ou mesmo do art. 17º do mesmo diploma legal. Deste modo, considerando os factos que resultaram provados, nenhuma censura merece o enquadramento jurídico que deles foi feito pelo Tribunal a quo, que merece a nossa total concordância. Ali se escreveu, após a convocação de outros pertinentes normativos do Código da Estrada e da Lei 18/2007, de 17 de maio, já acima referidas o seguinte: “No caso sub judice, atenta a factualidade provada, concluímos que o arguido preencheu o tipo objetivo, uma vez que ficou demonstrado que no dia 2021/10/03, na sequência de acidente de viação no qual foi o único interveniente, após várias tentativas de teste de despistagem de álcool no sangue por ar expirado, já no Hospital de Peniche, foi-lhe dada ordem regularmente comunicada e proveniente de autoridade competente para se submeter ao teste de pesquisa de álcool no sangue, ordem que o arguido compreendeu e à qual sabia que devia obediência, ainda assim recusando-se a fazê-lo. Note-se que a ordem de sujeição do arguido a testes de despistagem de álcool no sangue é legítima, porque emanada de militar da Guarda Nacional Republicana, força de segurança que tem como atribuição “velar pelo cumprimento das leis e regulamentos relativos à viação terrestre e aos transportes rodoviários, e promover e garantir a segurança rodoviária, designadamente, através da fiscalização, do ordenamento e da disciplina do trânsito” (artigo 3.º, n.º 1, al. f), da Lei n.º 63/2007, de 6 de novembro - Lei Orgânica da GNR). O arguido agiu com dolo direto, atuando de forma livre, voluntária e consciente, quando sabia que a prática dos factos comportava a prática do crime em apreço (artigo 14.º, n.º 1, do Código Penal). Deste modo, reunidos que estão os elementos objetivo e subjetivo do tipo legal de crime imputado e dado que não se verificam quaisquer casos de justificação da ilicitude ou de exclusão da culpa, deve o arguido ser condenado pela prática, em autoria material, do crime de desobediência, previsto e punível pelo artigo 348.º, n.º 1, alínea a), do Código Penal, por referência ao artigo 152.º, n.ºs 1, alínea a), e 3, do Código da Estrada.” Inexistiu, pois, qualquer erro de direito no enquadramento jurídico efetuado e, por isso, improcede igualmente neste segmento o recurso interposto. *** Insurge-se o arguido quanto à medida da pena aplicada, entendendo que o número de dias foi excessivo e desproporcional entendendo que o tribunal valorou as condenações sofridas a título de reincidência, quando à data o arguido não tinha antecedentes criminais. Mais entende que as exigências de prevenção geral e especial foram erroneamente valoradas, não sendo justificadas as alegadas exigências de prevenção especial, limitando-se o tribunal a mencionar as condenações entretanto sofridas. Mais invoca, para fundamentar o excesso, ser pessoa bem inserida na sociedade, familiar e profissionalmente integrado com uma profissão digna e altamente meritória. Vejamos: No que respeita à apreciação das penas fixadas pela 1.ª instância, cumpre, antes do mais, atentar, no referido no Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 05.04.2017 [disponível in www.dgsi.pt], onde se escreve: “Fixada a pena é suscetível de revista a correção das operações de determinação ou do procedimento, a indicação de factores que devam considerar-se irrelevantes ou inadmissíveis, a falta de indicação de factores relevantes, o desconhecimento pelo tribunal ou a errada aplicação dos princípios gerais de determinação. Relativamente à determinação do quantum exacto de pena será objecto de alteração se tiver ocorrido violação das regras da experiência ou se se verificar desproporção da quantificação efectuada”. A censura que o tribunal de recurso pode fazer sobre a decisão respeitante à determinação da sanção, incide sobre todos os elementos fornecidos pelo tribunal que, não tendo sido considerados para a questão da culpabilidade, são relevantes para a determinação da sanção, bem como sobre todos os elementos que considerou “adquiridos” (e porque considerou adquiridos uns e outros não) e ainda sobre a forma, fundamentada, porque valorou esses fatores na decisão final. É função do recurso - antes de tudo, analisar criticamente, os “parâmetros” da determinação de sanções. Os poderes deste Tribunal abrangem nesta matéria, entre outras, a avaliação dos fatores que devam considerar-se relevantes para a determinação da pena: a questão do limite ou de moldura da culpa, a atuação dos fins das penas no quadro da prevenção, e também o quantum da pena, quando se encontrarem violadas regras de experiência ou quando a quantificação operada se revelar de todo desproporcionada. Assim, é forçoso concluir que o Tribunal de 2ª Instância apenas deverá intervir alterando o quantum da pena concreta quanto ocorrer manifesta desproporcionalidade na sua fixação ou os critérios de determinação da pena concreta imponham a sua correção, atentos os parâmetros da culpa e as circunstâncias do caso. Deste modo, o Tribunal de recurso deverá intervir modificando a pena concreta quanto ocorrer desproporcionalidade na sua fixação ou os critérios de determinação da pena concreta imponham a sua correção, atentos os parâmetros da culpa e as circunstâncias do caso. IV.1 - Da pena principal
Na análise desta matéria, importa ter em conta o disposto no artigo 40.º, nº 1 do Código Penal do qual decorre que “a aplicação de penas e de medidas de segurança visa a proteção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade”, decorrendo, por sua vez, do seu n.º 2 que “em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa”. Decorre do artigo 71.º, n.º 1, do Código Penal que a determinação da pena concreta, dentro da moldura penal cominada nos respetivos preceitos legais, far-se-á “em função da culpa do agente e das exigências de prevenção” geral e especial, determinando o n.º2 do mesmo preceito legal que, para o efeito, se atenda a todas as circunstâncias que deponham contra ou a favor do agente, desde que não façam parte do tipo legal de crime (para que não se viole o princípio “ne bis in idem”, uma vez que tais circunstâncias já foram tomadas em consideração pela própria lei para a determinação da moldura penal abstrata), “considerando, nomeadamente: a) O grau de ilicitude do facto, o modo de execução deste e a gravidade das suas consequências, bem como o grau de violação dos deveres impostos ao agente; b) A intensidade do dolo ou da negligência; c) Os sentimentos manifestados no cometimento do crime e os fins ou motivos que o determinaram; d) As condições pessoais do agente e a sua situação económica; e) A conduta anterior ao facto e a posterior a este, especialmente quando esta seja destinada a reparar as consequências do crime; f) A falta de preparação para manter uma conduta lícita, manifestada no facto, quando essa falta deva ser censurada através da aplicação da pena.”. Decorre, por fim, do n.º3 do citado preceito legal, que “na sentença são expressamente referidos os fundamentos da medida da pena”. Anabela Miranda Rodrigues [A Determinação da Medida da Pena Privativa de Liberdade”, Coimbra Editora, pág. 570 e 571] escreve: “Entendida a prevenção geral com o sentido que lhe vimos dando – isto é, a protecção de bens jurídicos alcançando-se mediante a estabilização das expectativas comunitárias na validade da norma jurídica violada, postula ela, já o dissemos, a proporcionalidade entre a medida da pena e a gravidade do facto praticado.” Acrescentando “É, pois, o próprio conceito de prevenção geral de que se parte que justifica que se fale aqui de uma «moldura» de pena. Esta terá certamente um limite definido pela medida de pena que a comunidade entende necessária à tutela das suas expectativas na validade das normas jurídicas: o limite máximo da pena. Que constituirá, do mesmo passo, o ponto óptimo de realização das necessidades preventivas da comunidade. Mas, abaixo desta medida de pena, outras haverá que a comunidade entende que são ainda suficientes para proteger as suas expectativas na validade das normas - até ao que considere que é o limite do necessário para assegurar a protecção dessas expectativas. Aqui residirá o limite mínimo da pena que visa assegurar a finalidade de prevenção geral; definido, pois, em concreto, pelo absolutamente imprescindível para se realizar essa finalidade de prevenção geral e que pode entender-se sob a forma de defesa da ordem jurídica” . Adindo, relativamente à prevenção especial que: “o desvalor do facto é agora valorado à luz das necessidades individuais e concretas de socialização” E prosseguindo refere “resta acrescentar que, também aqui, é chamada a intervir a culpa a desempenhar o papel de limite inultrapassável de todas e quaisquer considerações preventivas...” [Ob cit., pág. 574 e 575]. Assim sendo, atribui-se à culpa a função única de determinar o limite máximo e inultrapassável da pena; à prevenção geral (de integração positiva das normas e valores) a função de fornecer uma moldura de prevenção cujo limite máximo é dado pela medida ótima da tutela dos bens jurídicos - dentro do que é considerado pela culpa - e cujo limite mínimo é fornecido pelas exigências irrenunciáveis de defesa do ordenamento jurídico e à prevenção especial a função de encontrar o quantum exato da pena, dentro da referida moldura de prevenção, que melhor sirva as exigências de socialização do agente [Cf. Figueiredo Dias, “Direito Penal Português - As consequências jurídicas do crime” pág. 227 e ss.]. Conclui-se, portanto, que estaremos perante uma pena justa e proporcional quando esta satisfizer as exigências de prevenção geral e especial que o caso concreto impõe e não exceder a medida da culpa do agente. Analisando o caso concreto, à luz dos considerandos acabados de expor, constata-se que o arguido foi condenado: - na pena de 80 (oitenta) dias de multa à taxa diária de 7,50€, pela prática de um crime de desobediência, previsto e punível pelo art. 348º, nº 1 al. a) do Código Penal, por referência aos arts. 152º, nº 1, al. a) e nº 3 do Código da Estrada, cuja moldura abstrata se situa entre 1 (um) mês e 1 (um) ano de prisão ou entre 10 (dez) e 120 (cento e vinte) dias de multa [cfr. a conjugação do preceito legal acabado de citar e o disposto nos artigos 41.º, n.º1 e 47.º, n.º1, ambos do Código Penal]. O Tribunal a quo optou pela aplicação da pena de multa e na sua graduação considerou que as necessidades de prevenção geral são medianas, remetendo para o crescente e preocupante desrespeito que se vem verificando quanto às ordens emanadas pelas autoridades públicas. E esta asserção não merece crítica pois, na verdade, a sociedade reclama já uma resposta adequada em face da necessidade da salvaguarda da vigência de normas essenciais à vida societária e em particular contra os comportamentos denunciadores de uma certa degradação da autoridade pública. Quanto às exigências de prevenção especial ali se escreveu: “Por sua vez, as necessidades de prevenção especial terão de considerar-se igualmente medianas a elevadas, uma vez que o arguido, não obstante as três condenações entretanto sofridas, pela prática de cinco crimes de diferente natureza (nomeadamente ofensas à integridade física, simples e qualificada, ameaça agravada e dano), à data da prática dos factos ainda não tinha sofrido qualquer condenação, não podendo as mesmas relevar como antecedentes criminais, mas revelando a crescente dessocialização do arguido.” Estas condenações ainda que posteriores, como salientou o tribunal a quo, pelo seu número e diferentes tipos de crime pelos quais foi condenado (ofensa à integridade física simples, e qualificadas ameaça agravada e dano) levam a que não se possam considerar os factos que ora se apreciam como um evento isolado na vida do arguido e, consequentemente, parece-nos correto afirmar que transmitem a carência de socialização por parte do arguido e, nessa medida, exigências de prevenção especial, como o afirmou o tribunal a quo. A culpa, limite da pena, assume já alguma intensidade pela ação desvaliosa querida e mantida pelo arguido, nos termos acima descritos. No que se refere aos factores da determinação concreta da medida da pena escreveu-se na decisão recorrida: “Assim, militam em desfavor do arguido as seguintes circunstâncias: - O grau de ilicitude manifestado pela conduta do arguido é elevado, atendendo às circunstâncias da sua atuação; - O dolo com que atuou foi direto; - A falta de contrição e assunção da responsabilidade pela sua conduta; - A sua progressiva dessocialização revelada pelas condenações entretanto sofridas. E em favor do arguido: - A sua idade atual; - A inserção social e profissional, mantendo-se laboralmente ativo; - A inexistência de antecedentes criminais à data da prática dos factos.
Face ao exposto, ponderadas todas as circunstâncias agravantes e atenuantes, bem como as necessidades de prevenção geral e especial acima mencionadas, entende o Tribunal ser adequado, proporcional e suficiente aplicar ao arguido, pela prática, em autoria material, de um crime de desobediência, previsto e punível pelo artigo 348.º, n.º 1, alínea a), do Código Penal, uma pena de 80 (oitenta) dias de multa.
Afirma o arguido que está inserido familiar e profissionalmente, mas tais circunstâncias foram valoradas pelo tribunal a quo. Importa salientar que todos os fatores mencionados, associados às exigências de prevenção geral, fazem com que a pena se distancie já com algum relevo do mínimo legal previsto para o tipo legal de crime. Em suma, atentando nas circunstâncias supra enunciadas, na moldura penal abstrata prevista para o tipo de crime em apreço e nos referidos critérios de determinação da pena concreta, entendemos ajustada e proporcional à culpa do recorrente e às necessidades de prevenção geral e especial, a pena concretamente fixada de 80 dias de multa. Esta pena encontrada no quadro formado pela culpa e pela prevenção, é justa, adequada e proporcional, pelo que improcede, nesta parte, o recurso interposto, mostrando-se compatível “com as exigências de preservação da dignidade da pessoa e de garantia do livre desenvolvimento da sua personalidade nos quadros próprios de um Estado de Direito Democrático [Cf. Figueiredo Dias, Temas Básicos da Doutrina Penal, Coimbra Editora, 2001, p. 109 e ss.].
IV.2 - Da pena acessória
Insurge-se o recorrente contra a pena acessória fixada em 4 (quatro) meses alegando que não tendo cometido o crime esta pena não se deve manter ou, assim não se entendendo, sempre esta é excessiva e deve ser reduzida ao mínimo legal. Estabelece o Artigo 69.º n.º 1 al. a) do CP, com a epígrafe “Proibição de conduzir veículos com motor”, o seguinte: 1 - É condenado na proibição de conduzir veículos com motor por um período fixado entre três meses e três anos quem for punido: A pena acessória é uma censura adicional pelo facto cometido pelo agente, revestindo a natureza de uma verdadeira pena, indissoluvelmente ligada ao facto praticado e à culpa do agente [cf. Figueiredo Dias, in Direito Penal Português As Consequências Jurídicas do Crime, p. 165 e ss..] Acrescentando [ob. cit., p. 158]: “Condição necessária, mas nunca suficiente, de aplicação de uma pena acessória e, assim, a condenação numa pena principal; (…) Para além deste requisito torna-se, porém, sempre necessário ainda que o juiz comprove, no facto, um particular conteúdo do ilícito, que justifique materialmente a aplicação em espécie da pena acessória”. A aplicação da pena acessória tem, pois, uma “função preventiva adjuvante da pena principal”, não sendo de aplicação automática mas estando, ao invés, submetida aos princípios gerais da pena, como os da legalidade e proporcionalidade. Aliás, nos crimes relacionados com o tráfego automóvel, à pena acessória de proibição de conduzir é, muitas vezes, associado um efeito mais penalizante do que à pena principal, de multa – que, sendo esta a imposta, os infratores pagam, normalmente, sem grande inconformismo – ou de prisão suspensa na sua execução – que é vista até como menos onerosa que aquela. Daí que a pena acessória seja encarada como um importante instrumento para restabelecer a confiança da comunidade na validade da norma infringida com o cometimento do crime cometido no exercício da condução. A pena acessória possuindo essa função preventiva adjuvante da pena principal, tem subjacente um juízo de censura global pelo crime praticado, daí que para a sua concreta determinação se imponha, igualmente, o recurso aos critérios estabelecidos no artigo 71.º do Código Penal, o que vale dizer que dada a paridade de critérios para a determinação da medida concreta da pena principal e da pena acessória, na respetiva definição haverá, em princípio, que atentar numa certa proporcionalidade entre a medida da pena principal e da sanção acessória que cabem ao caso, pese embora nada na lei imponha que as penas acessórias tenham de ter, no que respeita à sua duração, correspondência com as penas principais [Neste sentido, vide Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 19.12.2017, e Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 28.02.2018, ambos disponíveis in www.dgsi.pt.]. Tratando-se de verdadeiras penas criminais e estando ligadas a considerações de culpa e de prevenção, como acima se referiu, a determinação da medida concreta das penas acessórias e concretamente da prevista no art.º 69 do CP, efetua-se segundo os critérios orientadores gerais contidos no artigo 71.º do Código Penal, já acima mencionados.
No caso são impostas as já referidas necessidades de prevenção geral e especial, encontrando-se o arguido laboralmente ativo e integrado socialmente. A ilicitude é elevada, como mencionamos quanto à pena principal, assim como é de algum relevo já a culpa do arguido. Havendo a referida “tendencial proporcionalidade” entre a pena principal e a pena acessória - até porque os critérios da sua aplicação são tendencialmente os mesmos - estas não têm de ser matematicamente equivalentes, desde logo, pela diversidade dos objetivos de política criminal e finalidades que lhe estão subjacentes. Deste modo, considerando as exigências de prevenção geral e as restantes circunstâncias supramencionadas, designadamente as exigências de prevenção especial e a culpa e ilicitude verificadas e apesar da inserção familiar e profissional do arguido – tendo por base uma moldura que vai dos três meses aos três anos de proibição de conduzir veículos com motor – levam-nos a concluir que a pena acessória de 4 (quatro) meses é a adequada a satisfação das finalidades da punição – situada apenas 1 mês acima do limite mínimo e até abaixo da graduação fixada para a pena principal.
* III- DISPOSITIVO
Pelo exposto, acordam as juízas da 5.ª Secção do Tribunal da Relação de Coimbra em negar provimento ao recurso interposto pelo arguido e, consequentemente, manter a sentença recorrida nos seus precisos termos. Custas pelo recorrente, fixando a taxa de justiça em 4 UC [artigos 513º, n.ºs 1 e 3 e 514.º, n.º 1, do Código de Processo Penal e artigo 8º, nº 9, do RCP, com referência à Tabela III]. Notifique. Texto processado pela primeira subscritora (art. 94º, nº 2 do CPP)
Coimbra, 11 de junho de 2025 As Juízas desembargadoras Sandra Ferreira Maria Alexandra Guiné Sara Reis Marques |