Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
994/19.2T8CLD.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: PAULO CORREIA
Descritores: ALIMENTOS A FILHO MENOR
CRITÉRIO DA PROPORCIONALIDADE
ATUALIZAÇÃO DO VALOR DA PRESTAÇÃO
ÍNDICE DE PREÇOS NO CONSUMIDOR
Data do Acordão: 09/13/2022
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: JUÍZO DE FAMÍLIA E MENORES DE ALCOBAÇA DO TRIBUNAL JUDICIAL DE LEIRIA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA EM PARTE
Legislação Nacional: ARTIGO 2004.º DO CÓDIGO CIVIL
Sumário: I – Face ao disposto no art. 2004.º do Código Civil o valor da prestação a suportar pelos progenitores a título de alimentos a filho menor deve, em princípio, ser distribuído entre ambos em igual medida, salvo se o critério “meios” vinculado nesse normativo, exigir alguma diferenciação.

II – Destinando-se a atualização do valor fixado a título de alimentos exclusivamente à manutenção do poder aquisitivo do alimentando (por forma a evitar a sua depreciação entre o momento da fixação e o do pagamento), o indexante a fixar para essa atualização deve corresponder à taxa de variação do índice total de preços no consumidor.

(Sumário elaborado pelo Relator)

Decisão Texto Integral:
Apelação n.º 994/19.2T8CLD.C1

Juízo de Família e Menores de Alcobaça

_________________________________

Acordam os juízes que integram este coletivo da 1.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra[1]:

I-Relatório

AA, residente na ...., ...

requereu contra

BB, residente na ...., ...

nova regulação das responsabilidades parentais relativamente à menor, filha de ambos,

CC, nascida a .../.../2020.


*

Realizado o julgamento, foi, a 23.04.2022, proferida sentença, na qual, entre o demais, no que interessa ao presente recurso, se decidiu:
m) A título de alimentos, o progenitor contribuirá com a quantia de 200,00€ (duzentos euros) devida à menor CC, a entregar à progenitora até ao dia 8 de cada mês, com início no mês de maio de 2022, através de depósito/transferência bancária para o respetivo IBAN;
n)A pensão de alimentos será atualizada anualmente em janeiro de cada ano, à taxa anual de 3%”.

*

Inconformado, o Requerido interpôs recurso dessa decisão, fazendo constar nas alegações apresentadas as conclusões que se passam a transcrever:

“1. A Douto Sentença recorrido decidiu que o progenitor terá que participar com uma pensão de alimentos no valor de 200,00€/mês à sua filha Menor;

2. Bem como decidiu, só porque sim, que a pensão de alimentos será atualizada anualmente em janeiro de cada ano, à taxa anual de 3%;

3. A errada apreciação da matéria de facto é contínua ao longo dos presentes autos;

4. A errada apreciação da prova por parte do Tribunal a quo é geradora de promoções, decisões e acontecimentos desproporcionais, caindo na figura do Erro Judiciário;

5. Verifica-se ainda a errada aplicação do Direito na decisão ora recorrida;

6. No processo tutelar cível, qualquer alteração da regulação das responsabilidades parentais, na vertente da atribuição do quantum da prestação de alimentos e demais despesas,

7. Os critérios ou pressupostos de fixação dos alimentos e demais despesas traduzem-se nas necessidades do alimentado Menor, nas possibilidades do Progenitor alimentante;

8. O critério da proporcionalidade a que alude o artigo 2004.º do Código Civil releva para efeitos de fixação do montante de alimentos;

9. Nunca excluindo das possibilidades financeiras do progenitor que houver prestar alimentos;

10. Não sujeitar ou obrigar o ora Recorrente a uma situação de endividamento patrimonial;

11. Dúvidas não restam que o Tribunal a quo errou na determinação da norma aplicável;

12. A decisão ora recorrida manifestamente viola as disposições constantes no artigo 67.º da Constituição da República Portuguesa, artigo 27.º da Convenção sobre os Direitos da Criança e artigo 2004.º do Código Civil;

13. Não pode, nem deve o ora Recorrente ser responsabilizado pelo pagamento daquele valor a título de pensão de alimentos, fazendo prova que não tem meios financeiros para tal;

14. “Decorre do exposto, nos termos no douto Acórdão da RC de 05.11.2013 – Relator Carvalho Martins, Proc. N.º 1339/11.5TBTMR.A.C1 – [...] que a medida da prestação alimentar determina-se, então, pelo binómio: possibilidades do devedor e necessidade do credor, devendo aquelas possibilidades e outras necessidades serem actuais. Na fixação dos alimentos há que ter em conta em cada caso concreto, não só as necessidades primárias do alimentado, mas também as exigências decorrentes do nível de vida e posição social correspondentes à sua situação familiar, sendo que a falta de possibilidades, perfila uma excepção[...]”;

15. E neste contexto, o nível de vida e posição social da Menor é determinado mais pela capacidade económico-financeira da Requerente do que pelas condições ainda conjunturais do Requerido.

16. Estando por isso a Douta Decisão “ferida” de nulidade ou anulabilidade;

17. Deverá ser revogada a decisão recorrida, fixando-se outrossim uma prestação de alimentos que o ora Recorrente possa suportar.

18. Provado que está o Erro Judiciário aqui arguido;

19. Deverá o mesmo ser aplicado”.

Concluiu pugnando no sentido de dever ser revogada a decisão recorrida.


*

O Ministério Público e a Requerente não ofereceram resposta.

   *

Foram colhidos os vistos, realizada conferência, e obtidos os votos dos Exmos. Juízes Desembargadores Adjuntos.


*

II-Objeto do recurso

Como é sabido, ressalvadas as matérias de conhecimento oficioso que possam ser decididas com base nos elementos constantes do processo e que não se encontrem cobertas pelo caso julgado, são as conclusões do recorrente que delimitam a esfera de atuação deste tribunal em sede do recurso (arts. 635, n.ºs 3 e 4, 639.º, n.ºs 1, 2 e 3 e 640.º, n.ºs 1, 2 e 3 do CPC).

No caso, perante as conclusões apresentadas, são as seguintes as questões a apreciar e decidir:
a) Saber se o tribunal incorreu em erro de julgamento no tocante à matéria de facto
e
b) Saber se a sentença, face aos rendimentos auferidos pelo requerido, ao fixar a prestação de alimentos no montante mensal de duzentos euros, atualizada anualmente em 3%,
i) desrespeitou o critério da proporcionalidade,
ii) incorreu em erro na determinação da norma aplicável;
iii) violou as disposições constantes no artigo 67.º da Constituição da República Portuguesa, artigo 27.º da Convenção sobre os Direitos da Criança e artigo 2004.º do Código Civil;
iv) encontra-se ferida de nulidade ou anulabilidade.

                                                                                  *

III-Fundamentação

Com vista à incursão nas questões objeto de recurso, importa, antes de mais, transpor a factualidade que na decisão recorrida foi dada como provada e não provada.

Assim, na decisão recorrida consta a este propósito o seguinte:

encontram-se provados os seguintes factos, com relevo para a decisão da causa quanto à revisão da pensão de alimentos:
1. No seguimento do Processo de Mediação Familiar, que correu termos sob o número 51/2013, nos Serviços de Mediação Familiar de ..., Requerente e Requerido estabeleceram, em 17-06-2013, Acordo de regulação das responsabilidades parentais, relativamente à sua filha, CC, nascida a .../.../2010, atualmente com 11 anos.
2. Ficou estabelecido que o Requerido pagaria 100,00€, a título de pensão de alimentos para a menor, a liquidar até ao dia 8 de cada mês por depósito ou transferência bancária, atualizável anualmente em 3%, sendo o valor atual de 127,00€, decorrente das respetivas atualizações.
3. Mais ficou estabelecido que as despesas médicas e medicamentosas, na parte não comparticipada por sistema de saúde, e escolares seriam a suportar na proporção de metade para cada progenitor.
4. Quando a menor iniciou a frequência no ensino básico, a Requerente manifestou ao Requerido que pretendia que a menor frequentasse o método de ensino do DD, tendo este concordado com a frequência, mas recusado pagar qualquer quantia, alegando que não tinha condições económicas para fazer face ao pagamento.
5. A menor encontra-se a frequentar atualmente o 6.º ano de escolaridade em estabelecimento público de ensino.
6. O agregado familiar da Requerente é composto pela própria e pela menor CC.
7. A progenitora exerce atividade como gestora de alojamento local, auferindo, à data de 09-2020, rendimentos laborais de cerca de 565,15€, rendimentos de rendas de lojas 1.262,50€ e rendimentos variáveis decorrentes da atividade de gestão hoteleira.
8. À data de 09-2020, o agregado familiar da Requerente suportava encargos mensais específicos com a menor de cerca de 350,00€, correspondentes a:
- Atividades extracurriculares (piano) de 55,00€;
- Livros e Material Escolar (média) de cerca de 34,00€;
- Vestuário e Calçado de cerca de 100,00€;
- Saúde de cerca de 35,00€;
- Alimentação da criança de cerca de 125,00€.
9. À data de 09-2020, o agregado familiar da Requerente suportava encargos mensais gerais de cerca de 1.135,00€, correspondentes a:
- Renda de casa de 250,00€;
- Água/luz/gás/internet de cerca de 125,00€;
- Seguros (carro e imóvel e IMI) de cerca de 135,00 €;
- Alimentação do agregado de cerca de 350,00€;
- Vestuário/ Calçado de cerca de 200,00€; - Saúde de cerca de 75,00€.
10. Atualmente, o agregado familiar da Requerente suporta encargos mensais específicos com a menor de cerca de 188,00€, correspondentes a:
- Atividades extracurriculares (música) de 55,00€;
- Atividades extracurriculares (inglês) de 56,00€;
- Carregamento do telemóvel
- Vestuário e Calçado de cerca de 50,00€.
11. Atualmente, o agregado familiar da Requerente suporta encargos mensais gerais de cerca de 1.120,00€, correspondentes a:
- Renda de casa de 250,00€;
- Água/luz/gás/internet de cerca de 210,00€;
- Alimentação do agregado de cerca de 470,00€;
- Combustível de cerca de 100,00€;
- Seguros (carro) e IUC de cerca de 25,37€ (mês) e 21,62€ (mês);
- Seguros (saúde) de cerca de 42,00€;
12. A Requerente assegura o transporte diário da menor para escola e para casa num trajeto diário de cerca de 15km.
13. A Requerente declarou rendimentos de trabalho no valor de 9.880,55€ e prediais no valor de 16.400,00€ relativos ao ano de 2018.
14. A Requerente declarou rendimentos de trabalho no valor de 10.681,40€ e prediais no valor de 17.500,00€ relativos ao ano de 2019.
15. A Requerente declarou rendimentos de trabalho no valor de 9.172,72€ e prediais no valor de 14.800,00€ relativos ao ano de 2020.


*
16. O agregado familiar do Requerido é composto pelo próprio, pelos seus progenitores, reformados e por um sobrinho de 24 anos, que se encontra a trabalhar.
17. À data de 12-2020, o Requerido exercia ocupação como bolseiro de investigação na Associação do Instituto ..., auferindo bolsa no valor de 1.500,00€ de maio a 2020 a julho de 2021.
18. Os progenitores do Requerido auferem pensões de velhice no valor de cerca de 800,00€ e auferiam rendimentos de renda comercial de cerca de 800,00€.
19. Os progenitores do Requerido suportam os encargos mensais com a habitação.
20. O Requerido suporta atualmente encargo mensal com a pensão de alimentos à menor e despesas de deslocação entre ... e ... para as visitas quinzenais (4 viagens por fim de semana), em automóvel próprio.
21. Desde 22-11-2021, o Requerido encontra-se a prestar trabalho como investigador para a Faculdade de ..., auferindo rendimento mensal de cerca de 2.134,00€.
22. Desde 11-2021, o Requerido encontra-se a prestar trabalho como Técnico Superior para a Câmara Municipal ..., auferindo rendimento mensal cerca de 1.200€
23. O requerido tem como habilitações licenciatura, mestrado e doutoramento.
24. O Requerido é sócio gerente da sociedade F..., LDA.
25. A sociedade F..., LDA. não tem atividade comercial.
26. O Requerido não auferiu pagamentos, remunerações ou outros da sociedade F..., LDA.
27. O Requerido declarou rendimentos de trabalho no valor de 7.636,32€ e relativos ao ano de 2019.
28. O Requerido declarou rendimentos de trabalho no valor de 29.846,75€ e relativos ao ano de 2020”.

*

A – Do invocado erro na apreciação da prova.

Nas conclusões 3 e 4 o recorrente manifestou o entendimento que “A errada apreciação da matéria de facto é contínua ao longo dos presentes autos (…) é geradora de promoções, decisões e acontecimentos desproporcionais, caindo na figura do Erro judiciário”.

Como é sabido, nos termos dos arts. 639.º, n.º 2 e 640.º do CPC, o recurso pode versar sobre matéria de direito e/ou sobre a matéria de facto (impugnação).

Estando em causa a impugnação sobre a matéria de facto, nos termos do art. 640.º, n.º 1 do CPC, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição
a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;
b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida
c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.

O cumprimento deste ónus (a satisfazer em sede de alegações de recurso) deve ser compatibilizado ainda com o disposto no art. 639.º, n.º 1 do CPC “O recorrente deve apresentar a sua alegação, na qual conclui, de forma sintética, pela indicação dos fundamentos por que pede a alteração ou anulação da decisão”.

Ou seja, quando se impugne a matéria de facto, as conclusões devem conter os elementos que permitam identificar o objeto do recurso.

Tal como se decidiu, entre outros, no Ac. do STJ de 29.10.2015 (processo 233/09.4TBVNG.G1.S1, disponível in www.dgsi.pt), no regime relativo à impugnação da matéria de facto é possível distinguir dois tipos de ónus:

- “um ónus primário ou fundamental de delimitação do objecto e de fundamentação concludente da impugnação - que tem subsistido sem alterações relevantes” e consta do transcrito n.º 1 do art.º 640.º; e

“um ónus secundário – tendente, não tanto a fundamentar e delimitar o recurso, mas a possibilitar um acesso mais ou menos facilitado aos meios de prova gravados relevantes para a apreciação da impugnação deduzida – que tem oscilado, no seu conteúdo prático, ao longo dos anos e das várias reformas – indo desde a transcrição obrigatória dos depoimentos até uma mera indicação e localização das passagens da gravação relevantes”.

O ónus primário refere-se à exigência da concretização dos pontos de facto incorretamente julgados, da especificação dos concretos meios probatórios convocados e da indicação da decisão a proferir, conforme previsto nas alíneas a), b) e c) do n.º 1 do citado artigo 640.º, visa fundamentar a impugnação da decisão da matéria de facto e tem por função delimitar o objeto do recurso.

O ónus secundário consiste na exigência da indicação exata das passagens da gravação dos depoimentos que se pretendem ver analisados, contemplada na alínea a) do n.º 2 do mesmo artigo, e visa possibilitar um acesso aos meios de prova gravados relevantes para a apreciação da impugnação deduzida.

Transcrevendo, também a este propósito, o referido no Ac. do STJ de 02.02.2022 (processo 1786/17.9T8PVZ.P1.S1, disponível no mesmo sítio) “Relativamente ao ónus primário, nem sequer é possível recorrer às alegações para suprir deficiências das conclusões, uma vez que são estas que enumeram as questões a decidir e delimitam o objecto do recurso, devendo, quanto à impugnação da decisão de facto, identificar os concretos pontos de facto impugnados e a decisão pretendida sobre os mesmos, bem como os concretos meios de prova que imponham tal decisão.

Daí que, quando falte a especificação, nas conclusões, dos concretos pontos de facto que o recorrente considera incorretamente julgados, deva ser rejeitado o recurso respeitante à impugnação da decisão da matéria de facto, o mesmo sucedendo quanto aos restantes dois requisitos, nomeadamente a falta de indicação da decisão pretendida sobre esses mesmos factos”.

Este entendimento vem, de resto, na linha do defendido por Abrantes Geraldes (Recursos no Novo Código de Processo Civil, Almedina, 2013) quando sustenta:
“a) Em quaisquer circunstâncias, o recorrente deve indicar sempre os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados, com enunciação na motivação do recurso e síntese nas conclusões;
b) Deve ainda especificar, na motivação, os meios de prova constantes do processo ou que nele tenham sido registados que, no seu entender, determinam uma decisão diversa quanto a cada um dos factos;
c) Relativamente a pontos de facto cuja impugnação se funde, no todo ou em parte, em provas gravadas, para além da especificação obrigatória dos meios de prova em que o recorrente se baseia, cumpre-lhe indicar com exatidão, na motivação, as passagens da gravação relevantes e proceder, se assim o entender, à transcrição dos excertos que considere oportunos;
d) O recorrente pode sugerir à Relação a renovação da produção de certos meios de prova, nos termos do art. 662.º, n.º 2, al. a), ou mesmo a produção de novos meios de prova nas situações referidas na al. b).(…);
e) O recorrente deixará expressa, na motivação, a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas, tendo em conta a apreciação crítica dos meios de prova produzidos, exigência nova que vem na linha do reforço do ónus de alegação, por forma a obviar à interposição de recursos de pendor genérico ou inconsequente.
(...)”
A verificação do cumprimento destas exigências deve ser feita à “luz de um critério de rigor”, pois “trata-se, afinal, de uma decorrência do princípio da autorresponsabilidade das partes, impedindo que a impugnação da decisão da matéria de facto se transforme numa mera manifestação de inconsequente inconformismo”, e na medida em que tais exigências devem ser o “contraponto dos esforços de todos quantos, durante décadas, reclamaram a atenuação do princípio da oralidade pura e a atribuição à Relação de efetivos poderes de sindicância da decisão da matéria de facto como instrumento de realização de justiça”.
Ainda a propósito da interligação entre o cumprimento das exigências relativas à impugnação da matéria de facto e à formulação das conclusões vale o entendimento expresso no Ac. do STJ de 23.02.2010 em que se escreveu: “Não se exige que o recorrente, nas conclusões, reproduza o que alegou acerca dos requisitos enunciados no art. 690º-A, nº 1, a) e b) e nº 2, do Código de Processo Civil, o que tornaria as conclusões, as mais das vezes, não numa síntese, mas uma complexa e prolixa enunciação repetida do que afirmara no corpo alegatório. Mas esta consideração não dispensa o recorrente de fazer alusão àquela questão que pretende ver apreciada, mais não seja pela resumida indicação dos pontos concretos que pretende ver reapreciados, de modo que ao ler as conclusões das alegações resulte inquestionável que o recorrente pretende impugnar o julgamento da matéria de facto”.
Dito isto para se evidenciar que a recorrente não indicou nas conclusões quais os concretos pontos da matéria de facto que considera incorretamente julgados, quer por referência à numeração ínsita na sentença recorrida, nem por reprodução desses concretos pontos.
Na verdade, a esse propósito, a recorrente limitou-se a apontar que ao longo do processo existiu uma errada apreciação da prova por parte do tribunal sem especificar minimamente esses mesmos erros.
Assim, no caso, não é possível apreender com certeza e segurança quais os concretos pontos da matéria de facto que a recorrente entende terem sido incorretamente julgados, incorrendo numa omissão absoluta e indesculpável do cumprimento do dever de nas conclusões especificar esses concretos pontos de factos incorretamente julgados, tal como exigido na conjugação do disposto nos arts. 639.º, n.º 1 e 640.º, n.º 1, a) do CPC.
É certo que no corpo das alegações o recorrente efetuou alguns desenvolvimentos na concretização das divergências quanto à matéria de factos, concretização que, todavia, não transpôs para as conclusões.
Todavia, como tem vindo a decidir o STJ, ao que se crê com uniformidade (por todos o acórdão de 18.01.2022, processo 243/18.0T8PFR.P1.S1)
 “II - Em virtude do estipulado no art. 639.º, n.º 1, do CPC, as conclusões delimitam a área de intervenção do tribunal ad quem, exercendo uma função semelhante à do pedido, na petição inicial, ou à das exceções, na contestação.
III - Assim, uma total omissão, nas conclusões do recurso, da referência à impugnação da matéria de facto não pode ser suprida pela circunstância de no corpo das alegações constarem alegadamente os elementos exigidos pelo art. 640.º do CPC”.
Acresce que a omissão não pode ser suprida, nomeadamente com convite ao aperfeiçoamento das conclusões, pela simples razão de a lei o não consentir (“sob pena de rejeição”).
Uma última nota para se deixar consignado que não se ignora que o STJ tem vindo a entender que a propósito da exigência constante do art. 640.º, n.º 2, a) do CPC deve ser interpretada e aplicada em termos funcionalmente adequados e em conformidade com o princípio da proporcionalidade e que, como tal, não se justificará a imediata e liminar rejeição do recurso quando, apesar de a indicação do recorrente não ser, porventura, totalmente exata e precisa, não exista dificuldade relevante na localização pelo Tribunal dos excertos da gravação em que a parte se haja fundado[2].
No entanto, ainda que assim se deva entender, será sempre necessário o cumprimento mínimo (ainda que em termos deficientes) da exigência legal, o que, no caso, não aconteceu, uma vez que nesta parte a recorrente não indicou quais os concretos pontos da matéria de facto que considera incorretamente julgados, quer por referência à numeração ínsita na sentença recorrida, nem por reprodução desses concretos pontos; assim como não indicou concretos factos por si alegados na petição inicial, que entenda terem sido incorretamente julgados.
Em conformidade com o exposto, rejeita-se o recurso interposto no tocante ao invocado “erro na apreciação da matéria de facto”.

B – Saber se a sentença errou ao fixar a prestação de alimentos no montante mensal de 200€ (duzentos euros), atualizada anualmente em 3% (três por cento).

Com os fundamentos que constam na decisão recorrida, a ação foi julgada parcialmente procedente, e, em consequência, decidido que:

- o progenitor contribuirá com a quantia de 200,00€ (duzentos euros) devida à menor CC

- A pensão de alimentos será atualizada anualmente em janeiro de cada ano, à taxa anual de 3%.

A esse propósito o recorrente, nas conclusões 5 a 19, aponta vícios, ilegalidades e inconstitucionalidades à decisão, matéria que se passa a apreciar, com a simplificação que o caso justifica.

Começaremos pela invocação na conclusão 16 de que a decisão recorrida  “está ferida de nulidade ou anulabilidade”.

Diga-se, aprioristicamente, que o nosso regime processual não contempla a figura da “anulabilidade” da sentença, reservando este instituto para o domínio substantivo, enquanto vício (menor) que pode afetar os negócios jurídicos.

As causas da nulidade da sentença encontram-se previstas no art. 615.º, n.º 1 do CPC e reconduzem-se a vícios formais decorrentes de erro de atividade ou de procedimento (error in procedendo) respeitante à disciplina legal; tratam-se de vícios de formação ou atividade (referentes à inteligibilidade, à estrutura ou aos limites da decisão) que afetam a regularidade do silogismo judiciário, da peça processual que é a decisão e que se mostram obstativos de qualquer pronunciamento de mérito.

Como ensinou Alberto dos Reis existem “dois tipos de sentença viciada: a sentença injusta e a sentença nula. A primeira enferma de erro de julgamento; a segunda enferma de erro de actividade (erro de construção ou formação” (Código de Processo Civil Anotado, Vol. V, Coimbra Editora, Coimbra, 1984, pág. 122).

No caso, o recorrente faz decorrer a nulidade arguida não de vícios formais mas de erros de julgamento (conclusões 11 a 16), não tendo invocado qualquer dos fundamentos enunciados no normativo citado.

Assim, não tendo sido invocado qualquer vício recondutível aos casos tipificados no art. 615.º, n.º 1, do CPC, não existe fundamento para declarar a sentença nula.

O recorrente sustentou também que o tribunal recorrido incorreu em erro na determinação da norma aplicável (querendo referir-se à necessidade de aplicação dos critérios para a fixação de alimentos que emergem do art. 2004.º do Cód. Civil, que, a seu ver, não foram considerados).

Ora esta invocação só é justificável pela menor atenção dedicada ao texto da decisão recorrida, na medida em que nesta, para efeitos de quantificar o valor da prestação a suportar pelo Requerido, se fez apelo expresso a tal normativo, aí se lendo “Os critérios legais para a concretização da obrigação de alimentos ao menor (carecidos de determinação objetiva) devem ser os seguintes: as possibilidades do alimentante; as necessidades do alimentando e a possibilidade do alimentando proceder à sua subsistência (artigo 2004.º do C.C. e artigo 27.º, nº 2 da C.D.C. de 89). A fixação dos alimentos dependerá então, prima facie, do binómio possibilidades do obrigado/necessidades do alimentando, que deve ser encontrada com recurso à equidade, segundo o critério de um bom pai de família, dada a inexistência de regras legais de quantificação precisas”.

Tendo sido essa precisamente a norma aplicada para efeitos da fixação do valor da prestação alimentícia, carece de sentido a afirmação da existência de erro na determinação da norma aplicável.

Poderá ter existido erro na interpretação e aplicação da norma ao caso concreto – matéria cuja apreciação se reserva para o momento seguinte – mas não já erro na determinação (escolha, indicação com precisão) da norma aplicável (!).

O mais significativo inconformismo do recorrente assenta, como resulta notório, no pressuposto de que, face aos seus rendimentos, de acordo com os critérios que emergem do art. 2004.º do Código Civil, não se justifica a alteração do valor da prestação de alimentos para o montante mensal de € 200, nem que se proceda à sua atualização anual em 3%.

Inconformismo que, antecipadamente se diga, se apresenta totalmente injustificado.

Relativamente aos menores o nosso sistema legal, reflete em toda a plenitude o Princípio IV da Declaração dos direitos da Criança - a criança tem direito a alimentação, alojamento, distração e cuidados médicos apropriados - ao preceituar no n.º 2 do art. 2003.º do C.C. que os alimentos compreendem também a sua instrução e educação.

Como se expendeu no Ac. do STJ de 22.05.2013 (disponível em www.dgsi.pt), o fundamento sociológico e jurídico da obrigação de alimentos radica na natureza vital e irrenunciável do interesse, juridicamente, tutelado, que tem subjacente a responsabilidade dos pais pela conceção e nascimento dos filhos, independentemente da relação afetiva e do convívio realmente existente entre o progenitor e os filhos, a ponto de permanecer intacta, na hipótese do mais grave corte da relação entre ambos, como acontece com a situação de inibição do exercício das responsabilidades parenhtais, que em nenhum caso isenta os pais do dever de alimentarem o filho.

A obrigação de alimentos é, igualmente, de interesse e ordem pública, de carácter indisponível, irrenunciável, intransmissível e impenhorável.

A obrigação de alimentos dos pais para com os filhos menores representa um exemplar manifesto da catalogação normativa dos deveres reversos dos direitos correspondentes, dos direitos-deveres ou poderes-deveres, com dupla natureza, em que se assiste à elevação deste dever elementar, de ordem social e jurídico, a dever fundamental, no plano constitucional, de modo a assegurar, dentro das suas possibilidades e disponibilidades económicas, as condições de vida necessárias ao desenvolvimento da criança, como estabelece o artigo 27º, nº 2, da Convenção sobre os Direitos da Criança.

Evidenciando o dever irrefragável e inafastável que recai sobre os pais de contribuírem para o sustento dos filhos, a lei estabelece o dever de prestação alimentar, como uma obrigação legal, que decorre do estabelecimento de uma relação natural e biológica constituída e tutelada pelo direito, isto é, a relação parental da paternidade/maternidade.

Por outro lado, a expressão legal - sustento - não pode ser encarada strictu sensu como alimentação, mas sim como tudo o que é indispensável à vida (cfr. Maria da Nazareth Lobato Guimarães, Reforma do C.C. 1981, pág. 210, nota 19).

O valor da prestação há de ser encontrado através de uma apreciação objetiva que tome em conta não apenas as possibilidades do alimentando prover à sua subsistência mas também aos meios de quem tem de prestá-los (cfr. M. N. L. Guimarães, obra citada, Pereira Coelho, Lições de Direito da Família, pág. 360, L.P. Moitinho de Almeida, Os alimentos no C.C. de 66, Rev. Ord. Adv., 1968, 97, Abel P. Delgado, Divórcio, pág. 200, v.g.).

Nessa análise objetiva há ainda a considerar o circunstancialismo do caso concreto, as suas particularidades como sejam por exemplo as condições sociais do alimentando, o teor da vida familiar dos progenitores e dos filhos, etc.

Mas é na avaliação das possibilidades do obrigado que o cálculo assume maiores perplexidades. Quando e em que medida é que o obrigado tem possibilidades de prestar alimentos?

Naturalmente, “quando tem meios de sobra” (L. da Cunha Gonçalves), sobra das receitas sobre as despesas, excedentes dos rendimentos sobre as despesas necessárias. De modo que não há obrigação alimentar de quem não tenha "sobras" e de quem não possa prestar alimentos sem pôr em perigo a sua própria manutenção, num estado conforme à sua condição”, porquanto seria uma violência que o obrigado tivesse que sacrificar todos ou grande parte dos seus rendimentos, devendo apenas sacrificá-los na medida do possível e razoável.

No caso, em 17 de junho de 2013, quando então a menor CC estava prestes a completar os 4 anos de idade, a prestação de alimentos a suportar pelo pai foi fixada em € 100, atualizável anualmente em 3%.

Decorreram entretanto 9 anos, sendo que, como resulta da experiência da vida, e emerge dos factos apurados, se ampliou o custo com as suas despesas em termos de alimentação, vestuário, calçado, produtos de higiene pessoal, consumos individuais com eletricidade, com os atividades de desenvolvimento geral, etc.

Assim, o mínimo conhecimento da realidade da vida, olhado a partir do lastro dos factos apurados, implica a aceitação de que no presente, retirados os valores específicos despendidos com a educação e a saúde, se mostra necessário, com uma criteriosa gestão racional, o valor mensal de € 400 para suportar as despesas relativas à menor.

Valor que, em princípio, deve ser suportado em igual medida pelos progenitores, salvo se o critério “meios” vinculado pelo art. 2004.º do Código Civil, exigir alguma diferenciação.

No presente, de acordo com a factualidade apurada, os rendimentos da mãe, aferidos em função do recebido no ano de 2000 (últimos elementos obtidos), são de cerca de € 2.000€ por mês.

Já os rendimentos do pai – assinalando-se que este, ao contrário da mãe, não tem despesas com a habitação – orçam em cerca de 2487€ por mês (29.846,75:12).

Não existe, como tal, qualquer fundamento para afastar o princípio da divisão igualitária pelos progenitores das despesas da menor, mostrando-se adequado e proporcional que o recorrente contribua, a título de alimentos para a filha (atualmente com 12 anos), com o valor de 200€.

Não se verifica, como tal, qualquer desrespeito pelo critério da proporcionalidade ínsito ao art. 2004.º do Cód. Civil, sendo absolutamente seguro que, face aos rendimentos auferidos pelo recorrente, o valor ampliado (de 73€ por mês) não implicará que, como afirmou, tenha que se endividar para dar cumprimento à sua obrigação parental.

Muito pelo contrário, o valor fixado mostra-se totalmente razoável, e a coberto das exigências legais de satisfação das específicas necessidades de alimentos da filha, com respeito pelas possibilidades de ambos os progenitores.

Por outro lado, não vemos em que medida, nem o recorrente o diz, a decisão desrespeitou o art. 67.º da CRP ou o art. 27.º da Convenção sobre os Direitos da Criança; ao contrário, uma total observância desses dispositivos.

Finalmente, o recorrente insurgiu-se também quanto aos termos da atualização anual da prestação – 3%, defendendo que o tribunal decidiu “só porque sim”.

Antes de mais, não pode afirmar-se que o tribunal tenha decidido “só porque sim”, mas replicando o critério que os progenitores haviam acertado no acordo celebrado em 2013.

Refere-se, e bem, na sentença recorrida, que o “direito a alimentos tem ínsito um princípio de atualidade,        pelo que (…) deve estar indexado a uma cláusula que permita a adaptação anual, de forma automática, ao custo de vida e às necessidades crescentes da criança”.

A atualização automática visa essencialmente a prossecução e a prevalência do interesse da criança ou do jovem alimentando para que a organização da sua vida e o seu desenvolvimento se processem em condições de estabilidade e garantindo em qualquer situação a sua subsistência.

Trata-se no fundo, tão só, tendo em vista a flutuação do valor da moeda, a manutenção do poder aquisitivo do alimentando, por forma a compensar a erosão monetária que ocorra entre o momento da fixação da prestação e o do pagamento.

Ora, salvaguardado o devido respeito, sendo esse o objetivo, afastando-nos aqui do decidido na primeira instância, o critério de atualização de 3% não se configura como o mais adequado, consentindo, nos anos em que a flutuação do valor da moeda se situa abaixo dessa taxa (como sucedeu em Portugal desde 2012 até 2021), uma subida real da prestação, e, nos anos em que a depreciação da moeda exceda os 3% (como presumivelmente irá ocorrer no corrente ano e seguintes), a sua diminuição real.

A esse propósito e para suprir quaisquer variações que afetem substancialmente o valor da prestação, que é o que se pretende, considera-se ser antes de recorrer ao indexante da inflação anual (taxa de variação do índice total de preços no consumidor), aferido pelo INE.

Por tudo o exposto, o recurso procede tão só quanto ao critério fixado na sentença recorrida quanto aos termos da atualização da prestação de alimentos, indo a mesma confirmada no demais.


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Sumário[3]:
I – Face ao disposto no art. 2004.º do Código Civil o valor da prestação a suportar pelos progenitores a título de alimentos a filho menor deve, em princípio, ser distribuído entre ambos em igual medida, salvo se o critério “meios” vinculado nesse normativo, exigir alguma diferenciação.
II – Destinando-se a atualização do valor fixado a título de alimentos exclusivamente à manutenção do poder aquisitivo do alimentando (por forma a evitar a sua depreciação entre o momento da fixação e o do pagamento), o indexante a fixar para essa atualização deve corresponder à taxa de variação do índice total de preços no consumidor.              

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IV - DECISÃO.

Nestes termos, sem outras considerações, acorda-se em:
a) rejeitar o recurso na parte respeitante ao invocado erro na apreciação da matéria de facto
e
b) julgar parcialmente procedente o recurso, revogando-se a decisão recorrida na parte em que determinou que a prestação de alimentos será atualizada anualmente em janeiro de cada ano, à taxa anual de 3% (alín. n) do dispositivo), devendo essa atualização anual ser efetuada de acordo com a taxa de variação do índice total de preços no consumidor, relativa ao ano imediatamente anterior (aferida pelo Instituto Nacional de Estatística), indo, no demais, confirmada a decisão recorrida.


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Custas pelo apelante e pela apelada na proporção de 8/10 e 2/10, respetivamente (arts. 527.º, n.ºs 1 e 2, 607.º, n.º 6 e 663.º, n.º 2 do CPC).

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Coimbra, 13 de setembro de 2022

(Paulo Correia)

(Helena Melo)

(José Avelino)



[1] Relator – Paulo Correia
Adjuntos – Helena Melo e José Avelino
[2] - Cfr. Acórdãos do STJ de 29/10/2015 (processo n.º 233/09.4TBVNC.G1.S1); 31/05/2016 (processo n.º 889/10.5TBFIG.C1-A.S1); 02/06/2016 (processo n.º 725/12.8TBCHV.G1.S1) e 21/03/2019 (processo n.º 3683/16.6T8CBR.C1.S2), todos disponíveis em http://www.dgsi.pt.
[3] - Da exclusiva responsabilidade do relator (art. 663.º, n.º 7 do CPC).