Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
965/22.1T8LRA.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: FELIZARDO PAIVA
Descritores: ACIDENTE DE TRABALHO
MORTE DA SINISTRADA
AGRAVAMENTO DA RESPONSABILIDADE DO EMPREGADOR
INOBSERVÂNCIA DE REGRAS DE SEGURANÇA
NEXO DE CAUSALIDADE
PROTETORES DE EQUIPAMENTOS DE TRABALHO
MÁQUINA TRAÇADEIRA DE MADEIRA
PENSÕES ANUAIS
OBRIGATORIEDADE DE REMIÇÃO
Data do Acordão: 04/30/2025
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: JUÍZO DO TRABALHO DE LEIRIA DO TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE LEIRIA
Texto Integral: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA EM PARTE
Legislação Nacional: ARTIGOS 14.º, AL.ªS A) E B), 18.º, N.ºS 1 E 4, AL.ª A), E 75.º, N.º 1, DA LAT
Sumário: I – Nos termos do nº 1 do artº 18º da LAT – agravamento da responsabilidade por atuação culposa do empregador, verifica-se quando haja por parte deste a inobservância de regras concretas sobre segurança, higiene e saúde no trabalho (e não a violação de regras genéricas ou programáticas sobre esta segurança) havendo, no entanto de ter em conta que a ausência de normas concretas que especificamente regulem a atividade em causa não conduz, necessariamente, ao vazio normativo e, consequentemente à impossibilidade da imputação da responsabilidade agravada por esse facto, havendo neste caso que indagar junto dos normativos de maior generalidade e amplitude regulativa acerca da capacidade e possibilidade de neles se enquadrar o circunstancialismo em causa.

II – Exige-se, ainda, que se possa estabelecer um nexo de causalidade entre essa inobservância e o sinistro de modo a que, nas circunstâncias do caso concreto, tal inobservância ou violação se traduza em um aumento da probabilidade de ocorrência do acidente, tal como ele efetivamente veio a verificar-se, embora não seja exigível a demonstração de que o acidente não teria ocorrido sem a referida inobservância.

III – Quando os elementos móveis de um equipamento de trabalho possam causar acidentes por contacto mecânico devem dispor de protetores que impeçam o acesso às zonas perigosas ou de dispositivos que interrompam o movimento dos elementos móveis antes do acesso a essas zonas.

IV – É responsável pela reparação (agravada) do acidente nos termos do nº1 artº 18º da LAT o empregador que mantém em funcionamento uma máquina traçadeira de madeira sem a colocação de proteção no veio de transmissão que faz avançar uma tela transportadora, o qual no seu movimento de rotação pegou o cabelo da sinistrada enrolando-o e levando a que sinistrada ficasse empalada entre esse veio e a estrutura da máquina quando, por motivos não apurados, aquela se debruçou por baixo da máquina, o que lhe causou a morte.

V – No caso de responsabilidade agravada as pensões anuais são iguais à retribuição.

VI – Não são obrigatoriamente remíveis as pensões cujo valor seja superior a seis vezes o valor da RMMG em vigor no dia seguinte à data da morte.


(Sumário elaborado pelo Relator)
Decisão Texto Integral:

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Acordam os Juízes da Secção Social do Tribunal da Relação de Coimbra

I –AA residente na Rua ..., ..., ..., ..., na qualidade de único beneficiário legal (marido) da sinistrada de morte BB, instaurou a presente ação especial emergente de acidente de trabalho contra:

1 - A... COMPANHIA DE SEGUROS S.A., com Sede no Largo ..., ...;

2 – B... LDª , com Sede em ..., nº 8 ...;

Pedindo:
I- Sejam as 1ª e 2ª rés condenadas a reconhecerem o acidente dos autos como sendo de trabalho, bem como o nexo de causalidade entre a morte da sinistrada e o acidente;
II- Seja a 1ª ré, A... – Companhia de Seguros, S.A., condenada a:
a) pagar ao autor o capital de remição calculado com base na pensão anual no montante de € 3.465,00, reportada a 08.03.2022, calculada com base em 30% da retribuição auferida pela sinistrada, no montante anual ilíquido de € 11.370,00, nos termos do disposto nos arts 57º, nº 1 alínea a), 59º, nº1 alíena a) e 75º, nº 1 da Lei nº 98/2009, de 04 de setembro, e de acordo com a base técnica de cálculo de remição de pensões de acidentes de trabalho, anexa à Portaria nº 11/2000, de 13 de janeiro;
b) pagar ao autor a quantia de € 5.850,24 referente ao subsídio por morte, nos termos do art 65º, nºs 1 e 2 alínea b) da Lei nº 98/2009, de 04 de setembro;
c) pagar ao autor a quantia de € 150,00 referentes a despesas de deslocação obrigatória entre ... e ... para vir ao tribunal;
d) pagar ao autor a quantia de € 1.655,00 relativas ao pagamento do funeral, que pagou ao pai da sinistrada CC, por este ter liquidado tal despesa àquele.
ou
III- A provar-se que o acidente resultou de falta de observância de regras de segurança e saúde no trabalho por parte do empregador, deverá a 2ª ré B..., Lda, entidade empregadora, ser condenada a:
e) pagar ao autor o capital de remição calculado com base na pensão anual no montante de € 3.465,00, reportada a 08.03.2022, calculada com base em 30% da retribuição auferida pela sinistrada, no montante anual ilíquido de € 11.550,200, nos termos do disposto nos arts 57º, nº 1 alínea a), 59º, nº1 alínea a) e 75º, nº 1 da Lei nº 98/2009, de 04 de setembro, e de acordo com a base técnica de cálculo de remição de pensões de acidentes de trabalho, anexa à Portaria nº 11/2000, de 13 de janeiro;
f) pagar ao autor a quantia de € 150,00 referentes a despesas de deslocação obrigatória entre ... e ... para vir ao tribunal;
g) pagar ao autor a quantia de € 1.655,00 relativas ao pagamento do funeral, que pagou ao pai da sinistrada CC, por este ter liquidado tal despesa àquele.
h) pagar ao autor a título de danos morais, atento o disposto no art 18º da Lei nº 98/2009, de 04 de setembro, a quantia de € 20.000,00.
IV- As 1ª e 2ªrés condenadas ao pagamento dos juros vencidos e vincendos à taxa legal sobre as quantias em dívida desde 08.03.2022 até efetivo e integral pagamento.
V- As 1ª e 2ª rés condenadas nas custas do processo nos termos legais.

Para o efeito alegou, em síntese, tal como consta da sentença impugnada que a sua esposa faleceu em virtude de acidente ocorrido no dia 07.03.2022 quando, no final da tarefa com a máquina traçadora (máquina de cortar tábuas para fazer paletes), quando procedia à limpeza da envolvente, conforme instruções do seu encarregado, se debruçou por baixo da máquina e o veio de transmissão que faz avançar a tela transportadora, pegou o seu cabelo, enrolou este, puxando-o, empalando-a entre o veio e a estrutura da máquina.

Que desse acidente resultaram, direta e necessariamente, as lesões descritas no relatório de autópsia, as quais foram causa da sua morte, ocorrida nesse mesmo dia.

Que o acidente resultou de falta de observância de regras sobre segurança e saúde no trabalho por parte da empregadora, o que dá lugar à reparação por esta de todos os prejuízos patrimoniais e não patrimoniais.

Que, à data da morte, ela auferia a remuneração total anual ilíquida da € 11.550,20.

Que a entidade empregadora tinha a sua responsabilidade infortunística transferida para a ré seguradora pelo valor total anual ilíquido de € 11.370,90.

Que é o único beneficiário legal da sinistrada.


+

Contestou a seguradora alegando que o acidente resultou da falta de observação de regras sobre segurança e saúde no trabalho por parte do empregador.

Que existe nexo de causalidade entre a violação/inobservância das condições de segurança e o acidente. Se tivessem sido adotadas as medidas de prevenção o acidente não teria ocorrido, dado que essas regras eram adequadas e suficientes para impedir a sua ocorrência.

Que se verifica, portanto, a responsabilidade do empregador, nos termos do disposto no art 18º da Lei nº 98/2009, de 04 de setembro, por não ter ministrado à sinistrada a formação adequada, não ter apresentado planeamento e implementado as medidas de SST, tendo sido a empresa notificada para montar proteções no veio de transmissão da máquina.

Caso se venha a apurar a responsabilidade da empregadora, a seguradora apenas responde pelas prestações normais, nos termos do nº 3 do art 79º da LAT, sem prejuízo do direito de regresso.


+

Também a empregadora contestou, impugnado os factos, nomeadamente negando a sua responsabilidade pela ocorrência do sinistro. Que o acidente foi causado pela própria sinistrada.

***

II – Saneado o processo, organizados os factos assentes, identificado o objeto do litígio com enunciação dos temas da prova, prosseguiram os autos os seus regulares termos acabando, a final, por ser proferida sentença de cujo dispositivo consta o seguinte:

“Declaramos a presente ação especial emergente de acidente de trabalho parcialmente procedente por provada pelo que:

I- Condenamos as rés a reconhecerem o acidente supra descrito como sendo acidente de trabalho, bem como o nexo de causalidade entre a morte da sinistrada e o acidente;

II- Condenamos a empregadora B..., Lda ao pagamento ao beneficiário do seguinte:

a) a pensão anual e vitalícia no montante de € 11.550,20 (onze mil quinhentos e cinquenta euros e vinte cêntimos), reportada a 08.03.2022, atualizada de acordo com os coeficientes anuais em vigor para os anos de 2023 e 2024 para os montantes, respetivamente de € 12.520,42 (doze mil quinhentos e vinte euros e quarenta e dois cêntimos) e de € 13.271,64 (treze mil duzentos e setenta e um euros e sessenta e quatro cêntimos), a pagar mensalmente até ao 3º dia de cada mês, correspondendo cada prestação a 1/14 da pensão anual, sendo os subsídios de férias e de natal, no valor cada um de 1/14 da pensão anual, a pagar nos meses de junho e novembro respetivamente.

b) o subsídio por morte no montante de € 5.850,24 (cinco mil oitocentos e cinquenta euros e vinte e quatro cêntimos).

c) a indemnização por danos morais no montante de € 20.000,00 (vinte mil euros).

d) os juros vencidos e vincendos, à taxa legal de 4%, até efetivo e integral pagamento.

III- Condenamos a seguradora A... – Companhia de Seguros, S.A., nos termos do disposto no art 79º nº 3 da LAT, sem prejuízo do direito de regresso, a pagar ao autor o seguinte:

a) o capital de remição de uma pensão anual no montante de € 3.411,27 (três mil quatrocentos e onze euros e vinte e sete cêntimos);

e) o subsidio por morte no montante de € 5.850,24 (cinco mil oitocentos e cinquenta euros e vinte e quatro cêntimos).

f) os juros vencidos e vincendos, à taxa legal de 4%, desde 08.03.2022 até efetivo e integral pagamento.

IV- No mais, vão as rés absolvidas.

V- Condenamos as rés no pagamento das custas, na devida proporção”.


***

III – Não se conformando com esta decisão dela a ré B... LDª veio apelar, concluindo:

(…).


+

Inconformada, também a seguradora veio apelar, concluindo:

(…).


+

O autor beneficiário e a seguradora responderam ao recurso da empregadora.

+

O Exmº PGA emitiu fundamentado parecer no sentido da procedência da apelação da seguradora devendo a sentença recorrida “ser revogada, na parte que condena a seguradora-apelante a pagar ao beneficiário o capital de remição de uma pensão anual de € 3.411,27, e, neste segmento, substituída por outra, que a condene a pagar ao A. a pensão anual e vitalícia de € 4.548,36, reportada a 8 de março de 2022, atualizada de acordo com os coeficientes anuais em vigor para os anos de 2023 e 2024, a pagar mensalmente até ao 3º dia de cada mês, em frações de 1/14 da pensão anual, sendo a fração do subsídio de férias e de Natal pago nos meses de junho e novembro de cada ano, respetivamente”.

Mais é do parecer que a apelação da empregadora deve ser julgada improcedente por estarem verificados os pressupostos da sua responsabilidade (agravada) por ter inobservado regras sobre segurança no trabalho.


***

IV – A 1ª instância considerou provada a seguinte matéria:

1. Em 07.03.2022, BB, casada com AA, ora autor, tinha a categoria profissional de selecionadora de madeira e trabalhava por conta, sob a autoridade e fiscalização de “B..., Lda”, com sede em ... – ... ....

2. BB faleceu no dia 07.03.2022, na localidade de ... – DD, sendo autopsiada no GML ....

3. No dia suprarreferido a falecida encontrava-se a trabalhar na serração da 2ª ré, sua empregadora, com uma máquina traçadeira (cortar tábuas para fazer paletes).

4. Quando terminou a tarefa que estava a desempenhar, por a madeira ter acabado, recebeu instruções do encarregado para desligar a máquina proceder à limpeza do local.

5. O encarregado, após dar essa ordem, dirigiu-se a outro setor da serração, abandonando o local onde a sinistrada se encontrava.

6. Por motivos não apurados, a sinistrada debruçou-se por baixo da máquina e o veio de transmissão que faz avançar a tela transportadora, pegou o seu cabelo e enrolou-o, puxando-o, empalando a sinistrada entre o veio e a estrutura da máquina.

7. A causa direta e necessária da sua morte foram as lesões descritas no relatório de autópsia de fls 64 a 70, causadas pelo evento suprarreferido.

8. Consta das Conclusões do referido relatório:

“1ª A morte de BB foi devida às lesões traumáticas epicranianas descritas, associada a asfixia mecânica por constrição extrínseca do pescoço – por componentes da máquina.

2ª Estas lesões traumáticas constituem causa adequada de morte.

3ª Estas e a generalidade das restantes lesões traumáticas, denotam haver sido produzidas por instrumento de natureza contundente ou atuando como tal, podendo ter sido devidas ao acidente de trabalho como consta da informação.

4ª A análise toxicológica feita ao sangue apenas revelou a presença de Norsertralina, Sertralina e de Mirtazapina, em doses consideradas terapêuticas, e de Alprazolam em quantidades vestigiais, de acordo com listas de valores de referência para substâncias tóxicas e terapêuticas, tendo-se revelado negativo para presença das restantes substâncias pesquisadas (álcool etílico e drogas de abuso).”

9. A entidade empregadora da falecida tinha a sua responsabilidade infortunística transferida para a seguradora A...-Companhia de Seguros, S.A. através da apólice nº ...04, pelo menos pela retribuição anual de 705,00 x 14 meses + 48,90 x 1 + € 6,00 x 242 dias de subsídio de alimentação, num total anual ilíquido de € 11.370,90.

10. À data, para além da quantia referida em 9., a sinistrada auferia ainda a quantia mensal de € 16,30€ a título de diuturnidades, sendo a sua retribuição total anual ilíquida de € 11.550,20.

11. O funeral foi realizado em ..., para onde o corpo foi trasladado.

12. As despesas de funeral orçaram em € 1.655,00 e foram pagas pelo pai da falecida, CC, residente em Rua ..., ..., ..., ... ....

13. BB não tinha qualquer familiar a seu cargo ou a que estivesse a pagar pensão de alimentos.


*

14. O empregador não adaptou a máquina onde ocorreu o acidente com medidas de prevenção, nomeadamente a colocação de proteção no veio transmissor da máquina traçadeira.

15. O empregador não tinha feito o planeamento e não tinha implementado medidas de segurança e saúde no Trabalho, não existia Plano de Segurança nem Plano de Execução de Trabalhos.

16. O empregador não proporcionou à sinistrada formação para as funções que ela executava na fábrica.

17. O encarregado que deu a ordem para a sinistrada fazer a limpeza, ausentou-se do local por cerca de 15 minutos sem ter desligado a máquina.


*

18. A morte da sinistrada provocou profunda angústia e desgosto ao autor, já que a sinistrada era uma esposa dedicada.

19. O autor é constantemente confrontado com o sofrimento que a esposa passou nos minutos que antecederam a sua morte, ao ter ficado empalada entre o veio e a estrutura da máquina.

20. Sofrendo ao imaginar as lesões que a sinistrada sofreu e que lhe terão causado um sofrimento físico intenso.

21. A morte da esposa causou ao autor profunda dor, abalo moral, desgostos e angústias.

22. Vive agoniado e angustiado, com profunda tristeza e mágoa.

23. Sente revolta pelo sucedido, que o afeta do ponto de vista psicológico.


*

24. No dia 07 de março de 2022, a sinistrada entrou ao serviço às 08.00horas e foi colocar madeira de palete na máquina traçadeira.

25. Cerca das 09h15/09h30m o encarregado, EE, deslocou-se ao local onde a sinistrada estava e disse-lhe que não havia mais madeira daquela e nem iria haver.

26. Tendo-lhe dito para desligar a máquina e aproveitar para fazer a limpeza do chão, retirando os bocados sobrantes de madeira e a serradura do chão.

27. Dadas estas instruções o encarregado saiu do local.

28. Sensivelmente 15 minutos depois, o encarregado voltou ao local e constatou que a sinistrada estava morta.

29. Na hora do acidente a sinistrada já não se encontrava a trabalhar na máquina traçadeira, tendo terminado o trabalho que ali fazia.

30. A sinistrada entrou ao serviço da ré em 10.07.2018.

31. Quando a sinistrada começou a trabalhar para a ré foi-lhe dada informação sobre como trabalhar na máquina pelos seus superiores, nomeadamente pelo gerente da ré.

32. Esteve de Incapacidade Temporária Para o Trabalho de 08.01.2019 a 16.01.2029 por acidente de trabalho.

33. Esteve de baixa médica entre 21.02.2020 a 01.03.2020; 12.03.2020 a 13.03.2020; 23.03.2021 a 02.06.2021;

34. Esteve em situação de Incapacidade Temporária de 11.06.2021 a 12.11.2021. em virtude de acidente de trabalho.

35. A ré não efetuara o planeamento e implementação de medidas de segurança e saúde no trabalho.

36. Nunca foi ministrada formação profissional à sinistrada.

37. A ré não tinha montado proteções no veio de transmissão da máquina que impedissem o contacto do corpo da sinistrada com o elemento móvel da máquina.


*

Não se provou:

- que não competisse ao encarregado desligar a máquina, mas unicamente à sinistrada, e que esta sempre o tenha feito.

- que a sinistrada já tivesse iniciado a tarefa de limpeza do local.

- que a sinistrada estivesse a proceder à limpeza da máquina.

- que tivesse sido ministrada formação à sinistrada.

- que tivessem sido dadas ordens expressas à sinistrada para não se aproximar da máquina em causa


***

V - Conforme decorre das conclusões das alegações que, como se sabe, delimitam o objeto do recurso, as questões a dilucidar e a decidir residem em saber se:

1. Se a matéria de facto deve ser alterada.

2. Se o acidente resultou da inobservância por parte da empregadora de regras sobre segurança no trabalho.

3. Se a pensão anual a cargo da seguradora é suscetível de remição.

Da alteração da matéria de facto:

(…).

Da inobservância por parte da empregadora de regras sobre segurança no trabalho:

Na fase conciliatória do processo não se logrou obter acordo das partes porquanto a seguradora não aceitou qualquer responsabilidade pela reparação do acidente, por entender que o mesmo resulta da violação das regras de segurança e saúde do trabalho por parte da entidade empregadora.

Por sua vez, esta declinou a sua responsabilidade pela reparação por entender não ter a sinistrada obedecido às ordens que recebeu do seu encarregado em representação da entidade patronal para não se aproximar da máquina enquanto esta estivesse em funcionamento, aquando da limpeza a realizar à mesma ou nas suas imediações, não tendo desligado a máquina conforme expressamente lhe foi comunicado.

A não ser assim, entende que o acidente foi causado por culpa da própria sinistrada, estando o acidente descaraterizado.

Na contestação, a empregadora volta a declinar a sua responsabilidade porque, na sua ótica, o sinistro ocorreu devido à violação injustificada das condições de trabalho por parte da sinistrada e a negligência grosseira desta..

Na sentença entendeu-se que o acidente não se encontra descaraterizado, dando lugar à reparação, por não verificarem as causas de descaraterização referidas nas alíneas a) e b) do artº 14º da LAT[1].

Mais se entendeu que o sinistro ocorreu devido à inobservância pela empregadora de regras de segurança previstas na lei e, nessa sequência, entendeu ser a empregadora responsável pela reparação agravada.

Vejamos.

Comece por se dizer que a negligência grosseira do sinistrado tem de ser exclusiva em relação à eclosão do acidente. Se outras causas concorrerem para esta eclosão, a negligência grosseira, a ocorrer, deixará de ser causa de descaracterização por não se verificar o requisito da exclusividade.

Por isso, comecemos por analisar se o acidente se ficou a dever à violação, sem causa justificativa, das condições de segurança estabelecidas pelo empregador ou previstas na lei.

Relativamente ao fundamento de descaracterização previsto na segunda parte da alínea a), do nº 1, do art. 14º, exige-se que: a) as condições e regras de segurança estabelecidas pelo empregador ou pela Lei se mostrem conexionadas com o risco decorrente da atividade profissional exercida, ligadas à própria execução do trabalho que o sinistrado se obrigou a prestar no exercício da sua atividade laboral; b) o sinistrado tenha conhecimento de tais condições e regras de segurança; c) que se verifique o nexo de causalidade entre o ato ou omissão cometida pelo trabalhador e o acidente de que este foi vítima, ocasionado por violação das referidas regras; e d) inexistência de causa justificativa tal como esta se encontra definida no nº 2 do citado artº 14º.

O ónus da prova da descaracterização, como facto impeditivo do direito do trabalhador à reparação, cabe à entidade responsável por essa mesma reparação.

Para que esta causa de descaraterização opere é necessário ainda que a violação das regras de segurança pelo sinistrado se fique a dever a um comportamento subjetivamente grave, a uma culpa grave do sinistrado.

Com feito, conforme escreve o agora Conselheiro Júlio Gomes na obra “O Acidente de Trabalho, O acidente de trabalho in itinere e a sua descaraterização” (pgªs 240 a 242) “..não pode ser o mero facto da violação das regras de segurança que opera a descaraterização, devendo exigir-se um comportamento subjetivamente grave, ao que acresce que outras “justificações” poderão ser relevantes. Terá, por conseguinte, que verificar-se, também aqui, uma culpa grave do trabalhador, tão grave que justifique a sua exclusão, mesmo que ele esteja a trabalhar, a executar a sua prestação, do âmbito da tutela dos acidentes de trabalho. Essa culpa deve ser aferida em concreto e não em abstrato e não poderá deixar de atender a fatores como o excesso de confiança induzido pela própria profissão, a eventual passividade do empregador perante condutas similares no passado – até porque muitos especialista sublinham que o desrespeito por regras de segurança resulta muitas vezes, de o trabalhador tentar encentrar “atalhos” para produzir mais rapidamente, sobretudo quando lhe são impostos ritmos de produção muito elevados ou de o trabalho ter sido, anteriormente, elogiado ou apreciado, apesar do empregador bem saber que tinha sido prestado com violação de regras de segurança – e simplesmente, fatores fisiológicos e ambientais, como o cansaço, o calor ou o ruído existentes no local de trabalho”

No caso que nos ocupa, a sinistrada recebeu instruções/ordem do encarregado para desligar a máquina e proceder à limpeza do local (factos 4 e 5).

Ou seja, foi-lhe comunicado que a limpeza devia ser feita com a máquina parada, o que não pode deixar de se considerar como uma regra de segurança estabelecida pelo empregador[2].

Mas terá a sinistrada ouvido e compreendido essa comunicação?

Não se pode esquecer que o local onde ocorreu o acidente é naturalmente um local barulhento. Quem já foi a uma serração sabe bem que é assim.

Por isso, à míngua de outros elementos, sempre subsistem dúvidas sobre se a autora terá ouvido a ordem, sendo certo que incumbia à empregadora provar ter aquela ouvido e percebido tal ordem.

Sem prescindir, ainda que dando por certo que a sinistrada ouviu e compreendeu a ordem, o ter-se debruçado por baixo da máquina com esta a funcionar não pode ser caracterizado como um comportamento subjetivamente grave, como tendo atuado com uma culpa grave na medida em que a ré não efetuou o planeamento e implementação de medidas de segurança e saúde no trabalho, nem nunca ministrou formação profissional à sinistrada.

Por outro lado, não se pode descartar a hipótese do comportamento da sinistrada se ficar a dever a excesso de confiança da sua parte.

A sinistrada trabalhava com aquela máquina (embora nem todos os dias, é certo) há cerca de 3 anos e meio, e quantos vezes não se terá debruçado por baixo da máquina em funcionamento sem que nada de anormal tenha ocorrido.

Por último, desconhecendo-se em concreto qual a razão de se ter debruçado por debaixo da máquina em movimento, obviamente que inexistem elementos para que se possa caraterizar o seu comportamento como subjetivamente grave.

O acidente não se encontra, assim, descaracterizado por efeito do disposto na 2ª parte da alínea b) do nº 1 do artº 14º da LAT

Quanto à descaracterização por alegadamente a sinistrada ter tido um comportamento grosseiramente negligente.

A resposta a dar esta questão já se antevê, considerando a solução encontrada para a questão que se acabou de analisar.

Por isso, mais não temos a acrescentar ao que, a propósito, se escreveu na sentença e que passamos a citar “era às rés que cabia o ónus de provar que a sinistrada agiu com negligência grosseira, indesculpável, por ato temerário, ou a violação por parte da mesma das regras de segurança e que essa violação ocorreu sem causa justificativa, para além do nexo causal entre aquela violação e o acidente sofrido, nos termos do artigo 342º, nº 2 do CCivil.

No caso dos autos não se apurou que a sinistrada tenha violado as regras de segurança impostas legalmente e em vigor na entidade empregadora, por ato voluntário, de forma dolosa ou com culpa temerária e grosseira, dado que não se apurou qual o ato que se encontrava a praticar, se se tinha debruçado por baixo do veio para ir buscar alguma coisa que caiu ou para apanhar restos de madeira, por se ter desequilibrado ou tropeçado, etc. Ninguém assistiu ao acidente. Cabia à seguradora/empregadora, querendo eximir-se de responsabilidade, o ónus de provar factos de onde se retirasse a ilação de que a sinistrada havia atuado de forma culposa e violadora de regras de segurança que lhe houvessem sido transmitidas e que lhe coubesse observar e que tivesse sido esse seu comportamento a única causa do acidente.

Essa prova não foi produzida, não podendo concluir-se pela responsabilidade exclusiva da sinistrada, pelo que nesta parte falece a argumentação expendida pela ré”.

Nos termos do nº 1 do artº 18º da LAT[3] a responsabilidade (agravada) do empregador funda-se numa de duas causas:

1. No comportamento culposo (ou do seu representante ou entidade por aquele contratada); ou

2. Na inobservância das regras concretas sobre segurança, higiene e saúde no trabalho (e não a violação de regras genéricas ou programáticas sobre esta segurança) havendo, no entanto de ter em conta que a ausência de normas concretas que especificamente regulem a atividade em causa não conduz, necessariamente, ao vazio normativo e, consequentemente à impossibilidade da imputação da responsabilidade agravada por esse facto, havendo neste caso que indagar junto dos normativos de maior generalidade e amplitude regulativa acerca da capacidade e possibilidade de neles se enquadrar o circunstancialismo em causa (Ac. do STJ de 19.6.2013, procº nº 3592/04.8TTLSB.L2.S1, citado e seguido, designadamente, no Ac do mesmo tribunal de 15.09.21 procº 559/18.6T8VIS.C1.S1, consultável em www.dgsi.pt).

No que se refere à prova da culpa (que impende sobre quem pretenda tirar proveito da responsabilidade agravada), a mesma tem-se por indispensável relativamente ao primeiro fundamento, sendo desnecessária no segundo.

A responsabilidade agravada do empregador pressupõe ainda que se possa estabelecer um nexo de causalidade entre o aludido comportamento culposo ou a falta de observação das ditas regras e a produção do acidente.

Relativamente a este nexo haverá que aplicar o que o STJ decidiu no AUJ6/2024, de 13 de maio (Diário da República n.º 92/2024, Série I de 2024-05-13) segundo o qual «Para que se possa imputar o acidente e suas consequências danosas à violação culposa das regras de segurança pelo empregador ou por uma qualquer das pessoas mencionadas no artigo 18.º, n.º 1, da LAT, é necessário apurar se nas circunstâncias do caso concreto tal violação se traduziu em um aumento da probabilidade de ocorrência do acidente, tal como ele efetivamente veio a verificar-se, embora não seja exigível a demonstração de que o acidente não teria ocorrido sem a referida violação.».

Sobre sinistrado/beneficiário ou sobre a seguradora que pretenda desonerar-se da sua responsabilidade pela reparação do sinistro, recai o ónus de alegar e provar os factos que determinam que o acidente de trabalho ocorreu em consequência da inobservância de regras sobre segurança e saúde no trabalho.

No caso, foi pela empregadora inobservada a regra (concreta) sobre segurança prevista no artº16º do Decreto-lei nº 50/2005, de 25 de fevereiro, “Riscos de Contacto Mecânico”, que estabelece no nº 1 que: “Os elementos móveis de um equipamento de trabalho que possam causar acidentes por contacto mecânico devem dispor de protetores que impeçam o acesso às zonas perigosas ou de dispositivos que interrompam o movimento dos elementos móveis antes do acesso a essas zonas.

Ora, a traçadeira onde a sinistrada se vitimou não tinha qualquer proteção no elemento móvel – veio de transmissão - que evitasse o contacto e o acesso à zona da máquina onde ocorreu o sinistro

E ainda que essa traçadeira fosse antiga, não estando equipada, à data da sua aquisição com o protetor, tal não dispensava o empregador de ter procedido à sua adaptação em conformidade com o exigido por lei em termos de segurança de forma a evitar os riscos de acidente inerentes à sua utilização.

Pelo que se conclui, como concluiu a 1ª instância, que foi por falta de adaptação da máquina com a introdução de um mecanismo que impedisse o contacto do corpo dos trabalhadores com o veio de transmissão (elemento móvel) que ocasionou o acidente.

Se, por hipótese, não fosse exequível a colocação de um mecanismo de proteção, então, a máquina teria de ser substituída[4].

Por fim, considerando as circunstâncias do caso concreto, não temos dúvidas de que a falta de proteção do veio de transmissão se traduziu em um aumento da probabilidade de ocorrência do acidente, tal como ele efetivamente veio a verificar-se.

Aliás, atentas as circunstâncias pode concluir-se, fora que quaisquer dúvidas, estar demonstrado que se o veio estivesse protegido o acidente não teria ocorrido.

Encontra-se, por isso, verificado o imprescindível nexo de causalidade e a responsabilidade agravada nos termos do artº 18º da LAT.

No que concerne ao valor da pensão da responsabilidade da empregadora, determina a alínea a) do nº 4 do artº 18º da LAT que, no caso de agravamento da responsabilidade, como é o caso, a pensão a fixar é, ocorrendo a morte, igual à retribuição.

Por isso, não é de aplicar o artº 59º da LAT, mostrando-se corretamente fixada a pensão da responsabilidade (agravada) da recorrente empregadora.

Da remição da pensão da responsabilidade da seguradora:

Entende a seguradora que a pensão da sua responsabilidade não é remível.

Assiste-lhe razão.

À data do acidente, o beneficiário encontrava-se reformado por velhice por ter 73 anos de idade.

É-lhe devida uma pensão anual correspondente a 40% da retribuição anual transferida para a segurado €11.370,90 (facto 9) x 40% = €4.548,36.

No dia seguinte à data da morte da sinistrada, mulher do Apelado, a remuneração mensal mínima garantida era de €705,00 por força do D.L. 109-B/2021 de 7 de dezembro.

A pensão anual a que o beneficiário tem direito não é suscetível de remição por ser superior a seis vezes a retribuição mensal mínima garantida (nº 1 do artº 75º do da LAT).


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IV - Termos em que, se delibera julgar a apelação da B... LDª totalmente improcedente e a apelação da A... COMPANHIA DE SEGUROS S.A., totalmente procedente em função do que se decide alterar a alínea a) do ponto III da parte dispositiva da sentença que passará a terá seguinte redação:

“Condenamos a seguradora a pagar ao beneficiário a pensão anual e vitalícia de € 4.548,36, reportada a 8 de março de 2022, atualizada de acordo com os coeficientes anuais em vigor para os anos de 2023 e 2024, a pagar mensalmente até ao 3º dia de cada mês, em frações de 1/14 da pensão anual, sendo a fração do subsídio de férias e de Natal pago nos meses de junho e novembro de cada ano, respetivamente”.

No mais se mantendo a sentença impugnada.


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Custas em ambos os recursos a cargo da B... Ldª.

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Sumário[5]:

(…).


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Coimbra, 30 de abril de 2025

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(Joaquim José Felizardo Paiva)

(Paula Maria Mendes Ferreira Roberto)

(Mário Sérgio Ferreira Rodrigues da Silva)



[1] “1 - O empregador não tem de reparar os danos decorrentes do acidente que:a) For dolosamente provocado pelo sinistrado ou provier de seu acto ou omissão, que importe violação, sem causa justificativa, das condições de segurança estabelecidas pelo empregador ou previstas na lei; b) Provier exclusivamente de negligência grosseira do sinistrado;
[2]  Entendemos que as instruções e determinações da entidade patronal relativamente a tais condições não têm de ser dadas por escrito, podendo sê-lo por forma verbal ou por outros meios de comunicação e não apenas, por exemplo, em regulamento de empresa, ordem de serviço ou outra forma escrita de transmissão.
[3] Artigo 18.º Actuação culposa do empregador “1 — Quando o acidente tiver sido provocado pelo empregador, seu representante ou entidade por aquele contratada e por empresa utilizadora de mão -de -obra, ou resultar de falta de observação, por aqueles, das regras sobre segurança e saúde no trabalho, a responsabilidade individual ou solidária pela indemnização abrange a totalidade dos prejuízos, patrimoniais e não patrimoniais, sofridos pelo trabalhador e seus familiares, nos termos gerais”.
[4] Se, por hipótese, não fosse exequível a colocação de um mecanismo de proteção (o que até não se verificou pois, posteriormente ao acidente, foi colocado um protetor no veio), então, a máquina traçadeira teria de ser substituída.
[5] Da exclusiva responsabilidade do relator.