Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | JTRC | ||
Relator: | PAULO GUERRA | ||
Descritores: | CRIMES DE FURTO QUALIFICADO ERRO DE JULGAMENTO CRIME CONTINUADO QUALIFICAÇÃO JURÍDICA DOS FACTOS | ||
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Data do Acordão: | 06/07/2023 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Tribunal Recurso: | TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE LEIRIA – JUÍZO LOCAL CRIMINAL | ||
Texto Integral: | N | ||
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Meio Processual: | RECURSO DECIDIDO EM CONFERÊNCIA | ||
Decisão: | NEGADO PROVIMENTO AO RECURSO | ||
Legislação Nacional: | ARTIGOS 30.º E 204.º, N.º 1, ALÍNEA F), E N.º 2, ALÍNEA E), DO CÓDIGO PENAL ARTIGOS 124.º, 125.º, 126.º, 127.º E 412.º, N.º 3, DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL | ||
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Sumário: | 1. Deve constar do elenco de factos provados a prova da circunstância exterior que, nos termos do artigo 30º do CP, poderia diminuir consideravelmente a culpa do arguido, invocando a existência de um crime continuado.
2. Não faz sentido invocar tal continuação criminosa quando o agente, mesmo que actuando de modo relativamente homogéneo, o faz sempre no quadro de circunstâncias não a si exteriores, mas ligadas à sua pessoa (próprias dele), não tendo sido qualquer condicionalismo externo, criados por terceiros que não ele, que o determinou à prática destes crimes. 3. O conceito de “espaço fechado”, empregue na al. f) do nº 1 do artigo 204º do CP, não é equivalente ao que corresponde a essa mesma constante da al. e) do nº 2 do mesmo artigo 204º, uma vez que, enquanto na alínea e) do n.º 2, esse conceito tem de ser interpretado e conjugado com as definições legais de arrombamento e de escalamento que constam das alíneas e) e d) do artigo 202º do CP, já na alínea f) do nº 1 tal não acontece. 4. Para a aplicação da qualificativa do artigo 204º, nº 1, al. f), do CP não é imprescindível que o “espaço fechado” esteja em conexão com uma habitação ou um estabelecimento comercial ou industrial, pois estes elementos agravantes típicos não são cumulativos. 5. O “espaço fechado”, tipicamente agravante, para efeitos da al. f) do nº 1 do artigo 204º, identifica-se com a noção de “espaço vedado ao público” do artigo 191º do CP, sendo assim fechado todo o espaço que se encontra vedado ou cercado e que não é de acesso livre. 6. O elemento “espaço fechado” não exige que uma vedação que transforma um espaço em fechado se encontre totalmente íntegra ou incólume, tendo em conta, designadamente, a própria extensão do espaço vedado. Sumário elaborado pelo relator | ||
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Decisão Texto Integral: | RECURSO Nº 220/19.4T9ACB.C1 Processo Comum Singular Crimes de furto qualificado Erro de julgamento Crime continuado Qualificação jurídica dos factos Juízo Local Central Criminal ... Tribunal Judicial da Comarca de Leiria Acordam, em conferência, na 5ª Secção - Criminal - do Tribunal da Relação de Coimbra: I - RELATÓRIO 1. A CONDENAÇÃO RECORRIDA No processo comum singular nº 220/19.... do Juízo Local Criminal ... - Comarca de Leiria, por sentença datada de 17 de Janeiro de 2023, foi decidido: 1. … 2. Condenar o arguido AA pela prática, em autoria material, de dois crimes de furto qualificado, p. e p. pelos artigos 203º, nº 1 e 204º, nº 1, al. f) do CP, na pena de 200 (duzentos) dias de multa por cada um deles; 3. Em cúmulo jurídico, condenar o arguido AA na pena única de 260 (duzentos e sessenta) dias de multa, à taxa diária de €7,00 (sete euros), o que totalizou uma multa global de €1820. 2. O RECURSO Inconformado, o arguido … recorreu da sentença condenatória, finalizando a sua motivação com as seguintes conclusões: 0. «… 1. Foi incorrectamente julgada a parte final do facto provado 1., na qual se devia ler “embora junto à casa do arguido a vedação esteja tombada em alguns pontos e inexista noutros” (em itálico a parte que deve ser acrescentada), o que se impõe pela análise dos fotogramas juntos à contestação como Doc. 1, 2 e 9 a 13 (os quais correspondem às suas reproduções inexactas a fls. 367, 368 e 375 a 379 dos autos) e minutos 18:40 a 30:05 das declarações do arguido, de 10 Janeiro de 2023 (constando na respectiva acta que foram “gravadas através do sistema integrado de gravação digital, disponível na aplicação informática em uso neste Tribunal, consignando-se que o seu início ocorreu pelas 9 horas e 58 minutos e o seu termo pelas 10 horas e 51 minutos.”). 2. A sentença concluiu que não se verificou facto que o auto de fls 57 e 58, documento com força probatória reforçada, diz ter efectivamente ocorrido (presenciado directamente pelo OPC), facto que foi confirmado a minutos 2:20 a 3:00 do depoimento de 10 Janeiro de 2023 do cabo da GNR BB … 3. A conjugação do facto que se acaba de referir com os elementos probatórios que se indicam infra em 4. e 5. impõem que se lance mão das regras de experiência comum para, através de prova por presunção judicial, se dar como provado o facto vii da lista de factos não provados e se dar como não provados os factos 3., 6., 7., 8 e 9. 4. O comportamento do arguido foi sempre compatível com o de quem pensa agir legitimamente e sempre absolutamente incompatível com o de quem comete furto qualificado: i. o arguido sabia que necessariamente a sua actividade ia ser detectada pelos trabalhadores do parque … ao usar motosserra (factos provados 2. e 5.), instrumento extremamente ruidoso, em vez de uma silenciosa serra manual; ii. o arguido nunca mostrou qualquer intenção de escapar quando os representantes do parque a ele se dirigiram e desde o início invocou perante eles que a sua actuação era legítima … iii. após abandonar o local para a sua residência adjacente ao local, o arguido apresentou-se voluntariamente perante a GNR quando deu pela presença da mesma no local (como supra referido). 5. Não se fez prova de que o arguido tenha feito sua qualquer madeira, pelo que os factos provados 3. e 6. devam ser considerados não provados. Isto porque: i. Os fundamentos da sentença apresentam contradição interna, pois sustentam-se em duas declarações incompatíveis entre si, … ii. O excerto da fundamentação supra transcrito não corresponde sequer ao que CC disse … iii. … 6. O arguido foi condenado por dois crimes de furto qualificado, mas ao invés devia ter sido condenado por um único crime na forma continuada, uma vez que a situação se manteve precisamente homogénea, nomeadamente, pela circunstância de o local não ter sido fechado no tempo entre o facto provado 1. e o facto provado 4., não tendo sido essa circunstância causada pela acção do arguido, mas também pelo facto de os factos provados 4. a 6. serem quase iguais aos factos provados 1. a 3., assim se violando o artigo 30º, nº 2 do Código Penal, questão não considerada sequer pela sentença. 7. A sentença recorrida aplicou incorrectamente o artigo 204º, nº 1 al. f) do Código Penal, pois considerou que o facto de existir uma vedação no tempo presente … bastava para aferir da verificação do elemento de “espaço fechado” previsto na norma, quando a norma deve antes ser interpretada no sentido de exigir que o espaço se encontre fechado não no presente, mas no momento da introdução ilegítima, a qual ocorreu em 2019, … 8. E não se conteste que há um mero lapso: i. Tal sempre seria inviabilizado por já assim constar na acusação, e o Tribunal só poder ir além dos factos na contestação em determinados casos que aqui não se colocam, sendo que nesta situação seria violado o art. 359º, nº 1 do Código de Processo Penal, uma vez que, não dizendo a acusação que o local era fechado na altura dos factos, apenas há lugar ao crime de furto simples. ii. E a prova testemunhal em que o Tribunal se baseou … situa a questão no presente e não quanto a Março de 2019. 9. Ainda que a sentença tivesse indicado que, em Março de 2019, a vedação assumia as características descritas na 2.ª parte do facto provado 1., ainda assim não poderia ter considerado, como considerou, que se verifica o elemento “espaço fechado” do art. 204º, nº 1, al. f) do CP, visto que a mera indicação de que há uma vedação e a mesma está tombada (facto provado 1.), sem indicar a extensão da parte em que está tombada e a extensão da parte em que não está tombada, não permite aferir se a introdução nesse ponto deve ser considerada como introdução em espaço fechado, pois não permite perceber nem a extensão da parte efectivamente vedada nem a extensão da parte tombada. Para mais quando, segundo a fundamentação, a vedação esteve tombada vários anos. 10. … como considerou o Assento 7/2000, a expressão «espaço fechado» que consta da alínea f) do nº 2 do artigo 204º do CP “tem, forçosamente, de ser entendida com o restrito sentido de lugar fechado dependente de uma casa”, sendo que não há na sentença qualquer facto considerado provado que mostre que o espaço estava conexionado a uma casa, mesmo no sentido muito amplo de «casa» que é utilizado por esse aresto, tendo a sentença considerado incorrectamente que não se impunha a ligação a qualquer casa, mesmo no sentido de espaço comercial ou industrial. O que impõe que o arguido não seja punido por essa norma. … 3. Respondeu[1] ao recurso o Ministério Público, concluindo que se deve manter na íntegra a decisão do tribunal a quo. 4. Admitido o recurso e subidos os autos a este Tribunal da Relação, o Exmº Procurador-Geral Adjunto neles se pronunciou, sendo seu parecer no sentido da improcedência do recurso. 5. Cumprido o disposto no artigo 417º, nº 2, do CPP, foram colhidos os vistos, após o que foram os autos à conferência, por dever ser o recurso aí julgado, de harmonia com o preceituado no artigo 419º, nº 3, alínea c) do mesmo diploma. II – FUNDAMENTAÇÃO 1. Poderes de cognição do tribunal ad quem e delimitação do objecto do recurso … Desta forma, balizados pelos termos das conclusões formuladas em sede de recurso, as questões a resolver consistem no seguinte: o Houve erro de julgamento? o Deveria ter sido aplicada a unidade criminosa do artigo 30º, nº 2 do CP? o Foi mal qualificado o crime de furto, à luz do artigo 204º, nº 1, alínea f) do CP? 2. DA SENTENÇA RECORRIDA 2.1. O tribunal a quo considerou provados os seguintes factos, com interesse para a decisão deste recurso (transcrição): 1. «No dia 10 de Março de 2019, a hora não concretamente apurada, o arguido dirigiu-se ao Parque dos ..., sito na Quinta ..., ..., ..., ... que se encontra inteiramente vedado, embora junto à casa do arguido a vedação esteja tombada. 2. Ali chegado, munido de uma motosserra, cortou 3 cedros, designados Leylandis, que ali se encontravam plantadas, de valor individual não inferior a €300,00. 3. Acto contínuo, juntou parte da madeira proveniente do corte e abandonou o local fazendo a mesma sua. 4. No dia 30 de Março de 2019, o arguido dirigiu-se ao Parque dos ..., sito na Quinta ..., ..., ..., .... 5. Ali chegado, munido de uma motosserra, cortou 2 árvores identificadas como “Leylandis” e “Acers”, cujo valor individual é não inferior a €300,00 e que ali se encontravam plantadas, 6. Acto contínuo, juntou parte da madeira proveniente do corte e abandonou o local fazendo a mesma sua. 7. Ao entrar no interior das instalações do Parque dos ..., o arguido agiu com o intuito de se apoderar da madeira resultante do corte de árvores e fê-lo sempre sem autorização e contra a vontade do respectivo proprietário. 8. Com efeito, o arguido agiu bem sabendo que os objectos (madeira) acima referidos não lhe pertenciam e, no entanto, quis integrá-los na respectiva esfera patrimonial, o que conseguiu. 9. Ao praticar os factos descritos, o arguido actuou, em todos os momentos, de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que a sua conduta era e é proibida e punível por lei. 10. No CRC do arguido não se mostra averbada qualquer condenação. 11. O arguido trabalha como mecânico automóvel efectuando reparações de máquinas agrícolas, actividade que lhe rende cerca de €750,00 mensais. 12. A companheira do arguido trabalha com ele na sua oficie auferindo mensalmente €600,00. 13. Residem em casa própria, despendendo na amortização do empréstimo contraído para a sua aquisição €220,00 mensais. 14. O Casal tem dois filhos, de 8 e 11 anos». 2.2. São estes os FACTOS NÃO PROVADOS (transcrição): i. «O referido em 1 ocorreu pelas 10h20. ii. Em 2 o arguido de modo concretamente não apurado cortou a vedação ali colocada. iii. Em 2 o arguido tenha cortado 5 árvores no valor global de €2.000,00. iv. Em 5 o arguido de modo concretamente não apurado, cortou a vedação ali colocada. v. Em 5 o arguido tenha cortado 6 (seis) árvores identificadas como “Leylandis” e 5 (cinco) árvores identificadas como “Acers”, cujo valor total é de 3.337,30€ vi. O arguido sabia que com o comportamento atrás descrito (art.2º e 5º) estragava, como estragou um bem que não lhe pertencia, em concreto, a vedação existente no local supra indicado, actuando contra a vontade do respectivo proprietário e, todavia, quis actuar da forma descrita. vii. O arguido cortou as árvores supra mencionadas por entender que tinha o direito de o fazer». 2.3. Motivou-se a matéria dada como provada e não provada da seguinte forma (transcrição): «…». 3. APRECIAÇÃO DO RECURSO 3.1. DA IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO a)- É sabido que o Tribunal da Relação pode conhecer da questão de facto por duas formas: - pela impugnação alargada (com apelo à prova gravada), se tiver sido suscitada´- cfr. artigo 431º do CPP; - pela análise dos vícios do nº 2 do art. 410º do CPP. Na 1ª situação estamos perante um típico erro de julgamento – ínsito no artigo 412º/3 – que ocorre quando o tribunal considere provado um determinado facto, sem que dele tivesse sido feita prova pelo que deveria ter sido considerado não provado ou quando dá como não provado um facto que, face à prova que foi produzida, deveria ter sido considerado provado. Aqui, nesta situação de erro de julgamento, o recurso quer reapreciar a prova gravada em 1ª instância, havendo que a ouvir em 2ª instância. Neste caso, a apreciação não se restringe ao texto da decisão, alargando-se à análise do que se contém e pode extrair da prova (documentada) produzida em audiência, mas sempre dentro dos limites fornecidos pelo recorrente no estrito cumprimento do ónus de especificação imposto pelos nºs 3 e 4 do art. 412º do CPP. Nos casos de impugnação ampla, o recurso da matéria de facto não visa a realização de um segundo julgamento sobre aquela matéria, agora com base na audição de gravações, antes constituindo um mero remédio para obviar a eventuais erros ou incorrecções da decisão recorrida na forma como apreciou a prova, na perspectiva dos concretos pontos de facto identificados pelo recorrente. Como bem acentua o Juiz Desembargador Jorge Gonçalves nos seus acórdãos desta Relação e da Relação de Lisboa, «o recurso que impugne (amplamente) a decisão sobre a matéria de facto não pressupõe, por conseguinte, a reapreciação total do acervo dos elementos de prova produzidos e que serviram de fundamento à decisão recorrida, mas antes uma reapreciação autónoma sobre a razoabilidade da decisão do tribunal a quo quanto aos “concretos pontos de facto” que o recorrente especifique como incorrectamente julgados. Para esse efeito, deve o tribunal de recurso verificar se os pontos de facto questionados têm suporte na fundamentação da decisão recorrida, avaliando e comparando especificadamente os meios de prova indicados nessa decisão e os meios de prova indicados pelo recorrente e que este considera imporem decisão diversa (sobre estas questões, cfr. os Acórdãos do STJ, de 14 de Março de 2007, Processo 07P21, e de 23 de Maio de 2007, Processo 07P1498, a consultar em www.dgsi.pt)». E é exactamente porque o recurso em que se impugne (amplamente) a decisão sobre a matéria de facto não constituiu um novo julgamento do objecto do processo, mas antes um remédio jurídico que se destina a despistar e corrigir, cirurgicamente, erros in judicando ou in procedendo que o recorrente deverá expressamente indicar, é que se impõe a este o ónus de proceder à tríplice especificação prevista no artigo 412º, nº 3, do CPP. A dita especificação dos «concretos pontos de facto» traduz-se na indicação dos factos individualizados que constam da sentença recorrida e que se consideram incorrectamente julgados, só se satisfazendo tal especificação com a indicação do conteúdo especifico do meio de prova ou de obtenção de prova e com a explicitação da razão pela qual essas «provas» impõem decisão diversa da recorrida. … E se é certo que perante um recurso sobre a matéria de facto, a Relação não se pode eximir ao encargo de proceder a uma ponderação específica e autonomamente formulada dos meios de prova indicados, não é menos verdade que deverá fazê-lo com plena consciência dos limites ditados pela natureza do recurso como remédio e pelo facto de se tratar de uma apreciação de segunda linha, a que faltam as importantes notas da imediação e da oralidade de que beneficiou o tribunal a quo. Já a segunda situação se refere a vícios intrínsecos ao texto literal do sentenciado. Deixemos, por ora, esse erro de julgamento e cuidemos dos vícios que podem levar a um reenvio para novo julgamento, ao abrigo do artigo 426º do CPP. De facto, estabelece o art. 410º, nº 2 do CPP que, mesmo nos casos em que a lei restringe a cognição do tribunal, o recurso pode ter como fundamentos, desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum: · A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada; · A contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão; · Erro notório na apreciação da prova. Assim, começamos por concluir que inexistem os vícios – não alegados, sequer – do artigo 410º/2 do CPP, tendo a sentença toda a coerência interna que se lhe exigia. b)- E há erro de julgamento? O recurso defende que sim, quanto aos factos 1 (parte final), 3, 6, 7, 8 e 9. E invoca prova documental e pessoal (cumprindo suficientemente o ónus de impugnação especificada do artigo 412º, nºs 3 e 4 do CPP) Ou seja: - para a defesa, o facto 1 deveria antes ter dado como provado do seguinte modo: «1. No dia 10 de Março de 2019, a hora não concretamente apurada, o arguido dirigiu-se ao Parque dos ..., sito na Quinta ..., ..., ..., ... que se encontra inteiramente vedado, embora junto à casa do arguido a vedação esteja tombada em alguns pontos e inexista noutros» (aditamento a bold e sublinhado). - para a defesa, não houve prova da consumação furtiva do arguido (factos 3 e 6); - para a defesa, não houve prova do dolo furtivo do arguido (factos 7, 8 e 9). Alega ainda que se deveria dado como provado que o arguido compareceu voluntariamente perante a GNR aquando do facto 1. Invoca, para tal desiderato, o teor dos fotogramas exarados a fls 367, 368 e 375 a 379, bem como o teor do depoimento do arguido. A sentença recorrida justificou esta parte final do facto 1 – deu-se como provado que o parque em causa «se encontrava[2] inteiramente vedado, embora junto à casa do arguido a vedação esteja tombada» (alterado relativamente ao texto literal da acusação do MP que referia que o parque da queixosa «estava vedado na sua extensão», o que corresponde totalmente à fórmula escolhida na sentença, consubstanciada na frase «que se encontrava inteiramente vedado») … …[3], … Quanto ao mais, diremos que é indiferente o facto que a defesa reclama como relevante – ou seja, considerar-se como provado que «o arguido compareceu voluntariamente perante a patrulha da GNR no local descrito no facto provado nº 1 após esta ter chegado ao local». Desse facto não se retira a falta da consciência da sua ilicitude, como é bem de ver, assente que a GNR foi logo chamada ao local e só muito dificilmente este vizinho do parque se poderia eximir ao contacto com as autoridades policiais, atenta a denúncia feita, sendo despicienda essa sua «apresentação voluntária», não contendo em si qualquer assunção de não culpabilidade (tanto mais que ele assume que cortou as árvores). Tal facto não consta da acusação ou da contestação. E a verdade é que o tribunal não tal deu como provado ou não provado (desmentindo-se assim a defesa quando refere que o tribunal «entendeu que tal não sucedeu») – apenas não o refere no acervo da factualidade. Sabemos que o tribunal, como resulta nomeadamente do disposto nos artigos 339º, nº 4, 368º, nº 2 e 374º, nº 2, do CPP, deve indagar e pronunciar-se sobre todos os factos que tenham sido alegados pela acusação, pela contestação ou que resultem da discussão da causa e se mostrem relevantes para a decisão. Ou seja, ainda que para a solução de direito que o tribunal tem como adequada para o caso, se afigure irrelevante a prova de determinado facto, o tribunal não pode deixar de se pronunciar sobre a sua verificação/ não verificação — o que pressupõe a sua indagação —, se tal facto se mostrar relevante num outro entendimento jurídico plausível. Ora, no nosso caso, tal factualidade é absolutamente irrelevante para a prova da tese da defesa, sendo apenas um facto instrumental que nada adiante à dinâmica da factualidade do dia 10/3/2019 … … c)- Uma palavra sobre PROVA. O artigo 127º do CPP consagra o princípio da livre apreciação da prova, o que não significa que a actividade de valoração da prova seja arbitrária, pois está vinculada à busca da verdade, sendo limitada pelas regras da experiência comum e por algumas restrições legais. Tal princípio concede ao julgador uma margem de discricionariedade na formação do seu juízo de valoração, mas que deverá ser capaz de fundamentar de modo lógico e racional. Os poderes do tribunal na procura da verdade material estão limitados pelo objecto do processo definido na acusação ou na pronúncia, guiado pelo princípio das garantias de defesa do artigo 32º da CRP. Sobre o tribunal recai o dever de ordenar a produção da prova necessária à descoberta da verdade material, tanto relativamente aos factos narrados na acusação ou na pronúncia, como aos alegados pela defesa na contestação e aos que surgirem no decurso da audiência de julgamento em benefício do arguido. Quanto à fundamentação da PROVA, há que atentar em certos princípios: – os dos artigos 124º, 125º e 126º do CPP (princípio geral da legalidade das provas); – A convicção sobre a realidade de certo facto existirá quando, e só quando, o tribunal tenha logrado convencer-se da verdade dos factos, para além de toda a dúvida razoável; – Não se procura uma verdade ontológica e absoluta mas apenas a verdade judicial e prática – não pode ser uma verdade obtida a qualquer preço mas apenas a que assenta em meios de prova que sejam legais; – A livre apreciação da prova (ou do livre convencimento motivado) não se pode confundir com a íntima convicção do juiz, assente numa apreciação arbitrária da prova, impondo-lhes a lei que extraia delas um convencimento lógico e motivado, avaliadas as provas com sentido da responsabilidade e bom senso; – Não satisfaz a exigência de fundamentação da decisão sobre Matéria de Facto a mera referência genérica aos meios de prova produzidos, importando fazer a indicação dos fundamentos que foram decisivos para a convicção do juiz, ou seja, os meios concretos de prova e as razões ou motivos que dos meios de prova relevaram ou que obtiveram credibilidade no espírito do julgador – não basta indicar o concreto meio de prova gerador do convencimento, urgindo expressar a razão pela qual, apoiando-se nas regras de experiência comum, o julgador adquiriu, de forma não temerária, a convicção sobre a realidade de um determinado facto. A liberdade das provas não é, pois, absoluta, estando condicionada pela prudente convicção do julgador e temperada pelas regras da lógica e da experiência Porém, nessa tarefa de apreciação da prova, é manifesta a diferença entre a 1.ª instância e o tribunal de recurso, beneficiando aquela da imediação e da oralidade e estando este limitado à prova documental e ao registo de declarações e depoimentos. A imediação, que se traduz no contacto pessoal entre o juiz e os diversos meios de prova, podendo também ser definida como “a relação de proximidade comunicante entre o tribunal e os participantes no processo, de modo tal que aquele possa obter uma percepção própria do material que haverá que ter como base da sua decisão” (Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, Coimbra, 1984, Volume I, p. 232), confere ao julgador em 1.ª instância certos meios de apreciação da prova pessoal de que o tribunal de recurso não dispõe. É essencialmente a esse julgador que compete apreciar a credibilidade das declarações e depoimentos, com fundamento no seu conhecimento das reacções humanas, atendendo a uma vasta multiplicidade de factores: as razões de ciência, a espontaneidade, a linguagem (verbal e não verbal), as hesitações, o tom de voz, as contradições, etc. As razões pelas quais se confere credibilidade a determinadas provas e não a outras dependem desse juízo de valoração realizado pelo juiz de 1.ª instância, com base na imediação, ainda que condicionado pela aplicação das regras da experiência comum. Assim, a atribuição de credibilidade, ou não, a uma fonte de prova testemunhal ou por declarações, tem por base uma valoração do julgador fundada na imediação e na oralidade, que o tribunal de recurso, em rigor, só poderá criticar demonstrando que é inadmissível face às regras da experiência comum (cf. Acórdão da Relação do Porto, de 21 de Abril de 2004, Processo: 0314013, www.dgsi.pt). Quer isto dizer que a ausência de imediação determina que o tribunal de 2.ª instância, no recurso da matéria de facto, só possa alterar o decidido pela 1.ª instância se as provas indicadas pelo recorrente impuserem decisão diversa da proferida [al. b) do nº3 do citado artigo 412º] – neste sentido, o Ac. da Relação de Lisboa, de 10.10.2007, proc. 8428/2007-3, disponível para consulta em www.dgsi.pt). A operação intelectual em que se traduz a formação da convicção não é, assim, uma mera opção voluntarista sobre a certeza de um facto, e contra a dúvida, nem uma previsão com base na verosimilhança ou probabilidade, mas a conformação intelectual do conhecimento do facto (dado objectivo) com a certeza da verdade alcançada (dados não objectiváveis), e para ela concorrem as regras impostas pela lei, como sejam as da experiência, da percepção da personalidade do depoente – aqui relevando, de forma muito especial, os princípios da oralidade e da imediação – e da dúvida inultrapassável que conduz ao princípio “in dubio pro reo” (cf. Ac. do T. Constitucional de 24/03/2003, DR. II, nº 129, de 02/06/2004, 8544 e ss. e Prof. Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, 1ª Ed., 1974, Reimpressão, 205). Ora, no nosso caso, o tribunal recorrido, usando métodos lícitos de valoração da prova produzida, criou uma convicção. E explicou-a devidamente em sentença. Assim, podemos dizer que a argumentação expendida pelo recorrente esbarra naquilo que foi o conjunto da prova (directa e indirecta) produzida, e com eco na decisão proferida. Decorre, pois, de todo o exposto, que não demonstra o recorrente que a decisão recorrida tenha incorrido em ilógico ou arbitrário juízo na valoração da prova, ou se tenha afastado das regras da normalidade do acontecer, ou da experiência comum, … Assim, o que se pede à Relação (o que se pode pretender por via do recurso) não é que se proceda à reapreciação das provas na medida em que o fez o juiz de julgamento. E há que aceitar a existência de uma margem de insindicabilidade da decisão (da matéria de facto) do juiz de primeira instância, resultado da impressão causada no julgador que só a imediação, em primeira instância, possibilita ao nível mais elevado. Visa-se, pois, por via do recurso, identificar, demonstrar e conseguir reparar erros de decisão. No nosso caso, esses erros não são detectáveis, constatando-se uma correspondência total entre a prova efectivamente produzida em julgamento e a realmente percebida pelo tribunal de julgamento e mostrando-se esta correctamente apreciada na sentença de acordo com todas as regras legais e princípios de prova. Cai por terra, assim, esta impugnação de facto, ficando o acervo de factos provados e não provados tal como consta da sentença recorrida, não havendo ainda qualquer indício de que foi violado o princípio constitucional de presunção da inocência do arguido. 3.2. DO DIREITO a) – Antes de mais, a questão do crime continuado invocado. De forma muito sintética, apenas se dirá que não consta do elenco de factos provados a prova da tal circunstância exterior que, nos termos do artigo 30º do CP, poderia diminuir consideravelmente a culpa do arguido. E para se lançar mão da figura do crime continuado (afastando o concurso efectivo homogéneo proclamado na sentença), teria de haver a prova dessa situação – ela não consta dos factos, nem sequer a defesa do arguido trouxe aos autos suficiente argumentação que possa agora levar este tribunal de recurso a considerá-la. De facto: São requisitos da existência de uma continuação criminosa: · realização plúrima do mesmo tipo de crime (ou de vários tipos que protejam fundamentalmente o mesmo bem jurídico); · homogeneidade da forma de execução (unidade do injusto objectivo da acção); · lesão do mesmo bem jurídico (unidade do injusto de resultado); · unidade de dolo (unidade do injusto pessoal da acção) - as diversas resoluções devem conservar-se dentro de uma "linha psicológica continuada"; · persistência de uma situação exterior que facilita a execução e que diminui consideravelmente a culpa do agente. Ora, para a verificação do crime continuado é essencial que se demonstre que as condutas levadas a cabo pelo arguido foram executadas de forma essencialmente homogénea e no quadro de solicitação de uma mesma situação exterior que diminuiu consideravelmente a sua culpa. No nosso caso, face ao elenco de factos provados, mesmo que se aceite que o arguido actuou de modo relativamente homogéneo, fê-lo sempre no quadro de circunstâncias não a si exteriores, mas ligadas à sua pessoa (próprias dele), não tendo sido qualquer condicionalismo externo, criados por terceiros que não ele, que o determinou à prática destes crimes. Basta pensar que, mesmo depois de ter visto a GNR no local dos factos do dia 10/3, sabendo perfeitamente do levantamento de um auto de notícia contra si, o arguido voltou a prevaricar, agora a 30/3, renovando a resolução criminosa. Como tal, improcede esta pretensão do recurso. b) – E foi correcta a qualificação destes dois crimes autónomos à luz do artigo 204º/1 f) do CP? Assente que a conduta descrita integra a prática de um crime de furto simples (subtracção de madeira alheia, agindo com ilegítima intenção de apropriação para si), p. e p. no art. 203º CP, importa agora determinar se a mesma é ou não subsumível à circunstância agravante ou modificativa prevista na alínea f), do nº 1, do art. 204º, como se conclui na sentença recorrida. A defesa entende que não. Vejamos. O art. 204º do CP parte do conceito de furto simples, utilizando para isso, simplesmente, a palavra «furtar» (talvez de forma pouco jurídica). Enumera, de forma taxativa, as circunstâncias agravantes que qualificam o furto e que, consequentemente, modificam a pena aplicável. Determina o art. 204º, nº 1, al. f), do CP que: «Quem furtar coisa móvel ou animal alheio: - introduzindo-se ilegitimamente em habitação, ainda que móvel, estabelecimento comercial ou industrial ou espaço fechado, ou aí permanecendo escondido com intenção de furtar, será punido com pena de prisão até 5 anos ou com pena de multa até 600 dias». Não ignoramos que o conceito de “espaço fechado” empregue nessa alínea f) do nº 1 do artigo 204º do CP tem gerado controvérsia na doutrina e na jurisprudência, discutindo-se se é ou não equivalente ao que corresponde a essa expressão que consta da al. e) do n.º 2 do mesmo artigo 204º (aí exige-se o escalamento, arrombamento ou uso de chaves falsas, circunstâncias inexistentes no nosso caso). Para os que defendem a equivalência do conceito, numa e noutras das referenciadas alíneas, o elemento que as diferencia é a forma como se dá a introdução do agente nesse “espaço fechado”: se ocorrer por arrombamento ou por escalamento, estará preenchida a al. e) do nº 2 do artigo 204º; se não ocorrer por qualquer dessas formas, a qualificativa a aplicar será a da al. f) do n.º 1 do artigo 204º. Perfilhamos o entendimento de que o conceito de “espaço fechado”, empregue na al. f) do nº 1 do artigo 204º do CP, não é equivalente ao que corresponde a essa mesma constante da al. e) do nº 2 do mesmo artigo 204º, uma vez que, enquanto na alínea e) do n.º 2, esse conceito tem de ser interpretado e conjugado com as definições legais de arrombamento e de escalamento que constam das alíneas e) e d) do artigo 202º do CP, já na alínea f) do nº 1 tal não acontece. Seguimos, assim, a orientação defendida no Acórdão da Relação de Évora, de 14/04/2020, proferido no proc. n.º 1258/16.9T9LSB.E1, in www.dgsi.pt. , no sentido de que para a aplicação da qualificativa do artigo 204º, nº 1, al. f), do CP não é imprescindível que o “espaço fechado” esteja em conexão com uma habitação ou um estabelecimento comercial ou industrial, pois estes elementos agravantes típicos não são cumulativos (cfr. ainda Acórdão da Relação do Porto de 21/2/2018, Pº 784/14.9GBVNG.P1)[4]. De facto, e contrariamente ao alegado pelo recorrente nas suas conclusões, salvo melhor opinião, a norma legal não faz depender que o mencionado “espaço fechado” seja anexo ou integrante de qualquer habitação, estabelecimento comercial ou industrial, desde logo pelo elemento linguístico “ou”. Efectivamente, para o preenchido da alínea em apreço basta a introdução “em habitação, ainda que móvel”, em “estabelecimento comercial”, em “estabelecimento industrial” ou “em espaço fechado”. No mesmo sentido, cfr., entre outros, Ac. da RE de 06/11/2018, proc. 39/14.9GDSTC.E1 e de 10/12/2009, proc. 43/07.3GEELV.E1; Ac. da RP de 20/11/2013, proc.1308/11.5GAMAI.P1, in www.dgsi.pt[5]. O “espaço fechado”, tipicamente agravante, para efeitos da al. f) do nº 1 do artigo 204º, identifica-se com a noção de “espaço vedado ao público” do artigo 191º do CP, sendo assim fechado todo o espaço que se encontra vedado ou cercado e que não é de acesso livre. Se assim é, no caso vertente, considerando que o espaço físico onde o arguido ilegitimamente se introduziu, com a intenção concretizada de subtrair e se apropriar de lenha de árvores alheias, estava (tendencialmente) vedado e o respectivo acesso fechado, entendemos estar preenchida, em qualquer das duas situações – com referência, respectivamente, aos factos 1 a 6 – a qualificativa agravante do furto, prevista na al. f) do nº 1 do artigo 204º do CP. Nem releva o facto de o arguido ter entrado na propriedade da lesada aproveitando uma vedação tombada perto do seu prédio. Provou-se que a área em causa está vedada (facto 1), adiantando-se que o espaço fechado abrange o espaço meramente cercado ou vedado. Mas também se provou que junto à casa do arguido tal vedação estava tombada. E foi por aí que o arguido se introduziu ilegitimamente em tal parque alheio, não aberto ao público senão mediante o pagamento de um bilhete. Fazemos aqui apelo à doutrina exarada no Acórdão da Relação de Évora, datado de 14/4/2020, atrás citado, e que se debruça sobre caso muito paralelo ao nosso: «Tendo resultado ainda demonstrado que a vedação em causa se encontrava algo danificada, do modo consignado na sentença, cumpre referir que o elemento “espaço fechado” não exige que a vedação que transforma um espaço em fechado se encontre totalmente íntegra ou incólume[6], tendo em conta, designadamente, a própria extensão do espaço vedado. Independentemente de essa vedação ou cerca se poder encontrar parcialmente danificada, decisivo é o saber se dessa danificação, em concreto, resulta ou não, globalmente, alguma “alteração de sentido”. E não resulta, no caso presente. Como bem refere o Ministério Público na resposta ao recurso, “tendo em conta o bem jurídico tutelado pela norma incriminadora (a propriedade), tem entendido a jurisprudência ser de recorrer ao conceito de espaço fechado nos moldes previstos no art. 191.º CP, pelo que o objecto da acção tem de assumir a forma de um espaço fisicamente delimitado, em termos de a entrada arbitrária só ser uma paliçada, uma rede, um portão, fiadas de arame, barras horizontais, podendo mesmo tratar-se de uma barreira descontínua desde que não perca o carácter de uma protecção física, desde que para qualquer pessoa seja possível a percepção de que aquele espaço não é de livre acesso e tem uma barreira a limitar tal acesso”. Também no Acórdão da Relação do Porto de 23/02/2005 (rel. Élia São Pedro), se considerou preenchida a qualificativa da al. f) no caso de uma garagem colectiva de prédio em que as portas estavam abertas, referindo-se que “o que diferencia um “espaço fechado” de um espaço aberto é a existência de sinais (ou signos) que toda gente entende como demarcando a propriedade privada e o acesso não livre. Não está em causa, na referida qualificativa, a dificuldade no acesso ao espaço fechado. Não é a especial forma de penetração no espaço fechado (arrombamento, escalamento, etc.) que recorta a qualificação (para estes casos a lei prevê qualificativas específicas – al. e) do art. 204 CP), mas sim a existência de um espaço que, pelas suas características, dá privacidade e segurança aos seus titulares (utilizando-os, nomeadamente, como locais de recolha a guarda de objectos valiosos, como automóveis ou outros). É a violação dessa privacidade (e segurança que a mesma implica) que o legislador pretende proteger, ao agravar o furto. Daí que a mera existência de portões ou portas (ainda que momentaneamente abertos), numa garagem colectiva, seja um signo que toda a gente entende como demarcando o espaço dentro do qual só tem acesso quem estiver autorizado». A situação é, pois, típica. Improcede, assim, a argumentação jurídica do recurso, estando bem subsumidos ambos os crimes de furto à qualificativa mencionada. 3.3. Improcede, assim, na sua totalidade este recurso, assente ainda que, nem de forma subsidiária é contestada a pena aplicada, a qual temos por correcta (assente a elevada ilicitude do arguido que não se coibiu de reiterar o corte das árvores, mesmo depois de interpelado pela GNR para não o poder fazer). 3.4. Diremos em sumário: 1. Deve constar do elenco de factos provados a prova da circunstância exterior que, nos termos do artigo 30º do CP, poderia diminuir consideravelmente a culpa do arguido, invocando a existência de um crime continuado. 2. Não faz sentido invocar tal continuação criminosa quando o agente, mesmo que actuando de modo relativamente homogéneo, o faz sempre no quadro de circunstâncias não a si exteriores, mas ligadas à sua pessoa (próprias dele), não tendo sido qualquer condicionalismo externo, criados por terceiros que não ele, que o determinou à prática destes crimes. 3. O conceito de “espaço fechado”, empregue na al. f) do nº 1 do artigo 204º do CP, não é equivalente ao que corresponde a essa mesma constante da al. e) do nº 2 do mesmo artigo 204º, uma vez que, enquanto na alínea e) do n.º 2, esse conceito tem de ser interpretado e conjugado com as definições legais de arrombamento e de escalamento que constam das alíneas e) e d) do artigo 202º do CP, já na alínea f) do nº 1 tal não acontece. 4. Para a aplicação da qualificativa do artigo 204º, nº 1, al. f), do CP não é imprescindível que o “espaço fechado” esteja em conexão com uma habitação ou um estabelecimento comercial ou industrial, pois estes elementos agravantes típicos não são cumulativos. 5. O “espaço fechado”, tipicamente agravante, para efeitos da al. f) do nº 1 do artigo 204º, identifica-se com a noção de “espaço vedado ao público” do artigo 191º do CP, sendo assim fechado todo o espaço que se encontra vedado ou cercado e que não é de acesso livre. 6. O elemento “espaço fechado” não exige que uma vedação que transforma um espaço em fechado se encontre totalmente íntegra ou incólume, tendo em conta, designadamente, a própria extensão do espaço vedado. III – DISPOSITIVO Em face do exposto, acordam os Juízes da 5ª Secção - Criminal - deste Tribunal da Relação em: · julgar improcedente o recurso interposto pelo arguido AA, mantendo na íntegra a decisão recorrida. Custas pelo arguido recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 4 UCs [artigos 513º, no 1, do CPP e 8º, nº 9 do RCP e Tabela III anexa], sem prejuízo do benefício do apoio judiciário de que goza (cfr. fls 491). Coimbra, _________________________ (Consigna-se que o acórdão foi elaborado e integralmente revisto pelo primeiro signatário, sendo ainda revisto pelo segundo e pelo terceiro – artigo 94º, nº 2, do CPP -, com assinaturas electrónicas apostas na 1.ª página, nos termos do artº 19º da Portaria nº 280/2013, de 26-08, revista pela Portaria nº 267/2018, de 20/09) Relator: Paulo Guerra Adjunto: Alcina da Costa Ribeiro Adjunto: Cristina Pêgo Branco [1] Ao recurso respondeu ainda a lesada B..., Ldª. Contudo, entendemos que a lesada, nunca nos autos constituída como assistente ou demandante civil, não pode ser considerada, para os efeitos de aferição de legitimidade para poder dar uma resposta a um recurso, a que alude o artigo 413º do Código de Processo Penal, doravante CPP, um «sujeito processual afectado pela interposição do recurso», o que significa que esta resposta não vai ser por nós considerada. Repare-se até que no despacho de fls 498 nem sequer o tribunal de 1ª instância ordena a notificação dessa resposta ao arguido, apenas o fazendo quanto ao recurso do MP (é verdade que a secção o fez – cfr. fls 499 - mas não tinha ordem para isso). [2] Inexistindo quaisquer dados seguros de que essa situação da vedação não fosse uma realidade em Março de 2019, aquando dos eventos narrados na acusação – a defesa insinua que essa era a situação aquando da prolação da acusação e da sentença mas nada nos é trazido aos autos que inculce a ideia de que a acusação e a sentença tenham dado um imagem da vedação não consentânea com o seu real estado em 2019 (assim se contestam as conclusões 7ª e 8ª). [3] … [4] É verdade que o Assento do STJ nº 7/2000, profusamente usado pela defesa, deixa escrito na sua fundamentação que: “A expressão «espaço fechado» que consta da alínea e) do n.º 2 do artigo 204.º do Código Penal [e também referida na alínea f) do n.º 1 do mesmo preceito] tem, forçosamente, de ser entendida com o restrito sentido de lugar fechado dependente de uma casa, entendimento este reforçado pelo facto de o conceito definido na alínea d) do artigo 202.º do Código haver sido alvo, relativamente ao que se estipulava no n.º 1 do artigo 298.º do Código Penal de 1982, de uma redução no seu âmbito, por virtude da supressão do segmento «ou de outros móveis destinados a guardar quaisquer objectos». Contudo, a decisão do assento não incidiu sobre essa questão mas sobre outra, a saber: «Não é enquadrável na previsão da alínea e) do n.º 2 do artigo 204.º do Código Penal a conduta do agente que, em ordem à subtracção de coisa alheia, se introduz em veículo automóvel através do rompimento, fractura ou destruição, no todo ou em parte, de dispositivo destinado a fechar ou impedir a entrada no interior daquele veículo». Nenhuma obediência devemos, assim, à fundamentação – que não dispositivo – de um assento do STJ, algo datado no tempo e até já contrariado, de forma assaz convincente, por muitas decisões jurisprudenciais posteriores. [5] Já José António Barreiros, no seu «Crimes contra o Património», Universidade Lusíada, 1996, a pp. 60 opina, a propósito da versão anterior do CP: «Cotejando a formulação da alínea d) do nº 2 do artigo 297º do CP de 1995 encontramos uma diferença relevante: é que na segunda – que está formulada no singular – desapareceu o pronome «outros» que na primeira integrava a expressão «outros espaços fechados», assim se acentuando a ideia de que se tratava de situação não restritamente referente a espaços habitacionais. Dúvida que se mantém é o saber se a noção de espaço fechado abrange ou não o espaço meramente cercado ou vedado, por muro, cerca ou mero fio que o isole e delimite. Propendemos a aceitar tal inclusão». [6] Independentemente da extensão da destruição da vedação – o que releva é que toda a gente, por ali, logo, o arguido também (cfr. seu depoimento por nós ouvido, no qual foi claro em afirmar que sabia quais os limites do seu terreno e do parque em causa), sabia que o espaço de quase 20 hectares não era público (haveria sempre de se pagar bilhete para entrar) e que existia, mesmo que com parte mais ou menos extensa deitada abaixo, uma vedação que demarcava aquela propriedade privada, não sendo livre o acesso a esse Parque. E note-se que as próprias fotos juntas pela defesa em contestação mostram claramente essa vedação. |