Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
2642/22.4T8VIS.C2
Nº Convencional: JTRC
Relator: EMÍDIO FRANCISCO SANTOS
Descritores: EXONERAÇÃO DO PASSIVO RESTANTE
EXISTÊNCIA DE PEDIDO ANTERIOR
CESSAÇÃO ANTECIPADA
INDEFERIMENTO LIMINAR
Data do Acordão: 09/12/2023
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: JUÍZO DE COMÉRCIO DE VISEU DO TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE VISEU
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGO 238.º, N.º 1, AL.ª C), DO CIRE
Sumário: I – Se o devedor, há menos de 10 anos à data do início do atual processo de insolvência, beneficiou, em anterior processo de insolvência, de um despacho inicial de exoneração do passivo restante, mas lhe foi então recusada tal exoneração antes de terminado o período da cessão, é de concluir que não foi beneficiário dos efeitos da exoneração do passivo restante.
II – Somente a concessão ao devedor, com efetivo benefício, da exoneração do passivo restante, nos 10 anos anteriores ao início do processo de insolvência, integra o fundamento de indeferimento liminar previsto na al.ª c) do n.º 1 do art.º 238.º do CIRE.
Decisão Texto Integral: Processo n.º 2642/22.4T8VIS.C1

Acordam na 1.ª secção cível do Tribunal da Relação de Coimbra

Em 13-06-2022, AA, residente na Rua ..., ..., ..., apresentou-se à insolvência. No requerimento de apresentação à insolvência fez o pedido de exoneração do passivo restante.

Por sentença proferida em 19 de Outubro de 2022, o requerente foi declarado em situação de insolvência.

A... DAC opôs-se à concessão da exoneração do passivo restante.

Por despacho proferido em 28-06-2023, o Meritíssimo juiz do tribunal a quo indeferiu liminarmente o pedido de exoneração do passivo restante.

O requerente não se conformou com a decisão e interpôs o presente recurso de apelação, pedindo se revogasse o despacho recorrido e se concedesse a exoneração do passivo restante.

Os fundamentos do recurso expostos nas conclusões foram os seguintes:
1. O despacho recorrido viloa os princípios do CIRE;
2. Pois o recorrente em nada tentou lesar a massa;
3. O recorrente não pode entregar algo que não possui;
4. Ao recorrente não se pode aplicar o artigo 238.º,
5. O recorrente beneficiou da exoneração, mas foi-lhe retirada;
6. O recorrente deve ser beneficiado com a exoneração;
7. O recorrente não deve ser punido como está a ser,
8. Os 10 anos mencionados no artigo 238.º não são de aplicação ao recorrente;
9. Pois a sua situação é diferente do mencionado artigo;
10. E se é possível nova insolvência porque não pode ser possível nova exoneração no caso vertente.

Não houve resposta ao recurso.


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Síntese das questões suscitadas pelo recurso:

Saber se o despacho recorrido é de revogar e de substituir por outro que admita liminarmente a exoneração do passivo restante.


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Não tendo sido impugnada a decisão relativa à matéria de facto e não havendo razões para a alterar oficiosamente, consideram-se provados os seguintes factos discriminados na sentença:
1. O insolvente, AA, nascido no dia .../.../1974, é divorciado.
2. Vive sozinho em habitação arrendada pela qual paga a renda mensal de € 300,00.
3. Trabalha por conta de outrem, recebendo o salário líquido de € 855,61 e não tem outros rendimentos.
4. Nos anos de 2019, 2020 e 2021, o insolvente declarou fiscalmente os seguintes rendimentos: € 4.526,64, € 11.013,19 e € 12.726,93, respectivamente.
5. Na petição inicial de apresentação à insolvência, o insolvente declarou que “não possui móveis além arrendamento” e, na sequência da notificação para juntar aos autos a relação de bens a que alude a alínea e) do n.º 1 do artigo 24.º do CIRE, declarou que o “único bem que possui é um arrendamento conforme doc. 3”, correspondendo este documento ao recibo de renda do imóvel da sua habitação.
6. Na sequência da notificação efectuada para apresentar a relação de todos os credores o devedor indicou os seguintes credores:
· “AT ... (…), valor débito de 12.000,00 euros, débito desde maio de 2021 sem garantias reais;
· B..., S.A. (…), valor débito de 5.000,00 euros, débito desde maio de 2021 sem garantias reais;
· C..., I.P. (…) valor débito de 12.000,00 euros, débito desde maio de 2021 sem garantias reais”.
7. O administrador da insolvência apresentou a seguinte relação de credores, que não foi impugnada, incluindo em relação à data de constituição dos créditos:
· Autoridade Tributária e Aduaneira, crédito comum, no montante total de € 13.524,73:
i. € 59,73, constituídos entre Outubro e Dezembro de 2013 e vencidos a 19-03-2014, relativos a taxas de portagem e custos administrativos, relativos ao veículo de matrícula ..-LG-..;
ii. € 513,03, constituídos em Novembro de 2016 e vencidos a 01-03- 2017, relativos a coimas e juros reportados ao veículo de matrícula ..-LG-..;
iii. €2 4,08, constituídos em Junho de 2014 e vencidos em 04-04-2016, relativos a taxas de portagem e custos administrativos, referentes ao veículo de matrícula ..-MR-..;
iv. € 190,94, constituídos em Dezembro de 2016 e vencidos em 19-06- 2017, relativos a coimas;
v. € 191,33, constituídos em Junho de 2017 e vencidos a 11-09-2017, relativos a coimas e juros reportados ao veículo de matrícula ..- MR-..;
vi. € 219,63, referentes a IUC do veículo de matrícula ..-LG-.., relativo ao período de tributação compreendido entre Janeiro e Dezembro de 2017 e vencido em 10-11-2017;
vii. € 53,92, constituídos em Abril de 2017 e vencidos a 28-12-2017, relativos a liquidação de taxas de portagem e custos administrativos reportados ao veículo de matrícula ..-RN-..;
viii. € 189,81, constituídos em Outubro de 2017 e vencidos em 20-12- 2017, relativos a coimas, juros e custas;
ix. € 409,30, constituídos em Dezembro de 2017 e vencidos a 07-03- 2018, relativos a coimas, juros e custas reportados ao veículo de matrícula ..-RN-..;
x. € 40,72, constituídos em Abril de 2017 e vencidos a 08-05-2018, relativos a liquidação de taxas de portagem e custos administrativos reportados ao veículo de matrícula ..-..-IN;
xi. € 217,76, referentes a IUC referente ao veículo de matrícula ..-LG.., relativo ao período de tributação compreendido entre Janeiro e Dezembro de 2018 e vencido a 17-05-2018;
xii. € 70,42, constituídos em Setembro de 2017 e vencidos a 26-06-2018, relativos a liquidação de taxas de portagem e custos administrativos reportados ao veículo de matrícula ..-SU-..;
xiii. € 188,17, constituídos em Abril de 2018 e vencidos em 17-07-2018, relativo a coimas, juros e custas;
xiv.  € 399,59, constituídos em Maio de 2018 e vencidos a 27-08-2018, relativos a coimas, juros e custas referentes ao veículo de matrícula ..-..-IN;
xv. € 387,35, constituídos em Junho de 2018 e vencidos em 10-09-2018, relativos a coimas, juros e custas referentes ao veículo de matrícula ..-SU-..;
xvi. € 66,26, constituídos em Maio de 2018 e vencidos a 08-02-2019, relativos a liquidações de taxas de portagem e custos administrativos reportados ao veículo de matrícula ..-UG-..;
xvii. € 209,28, referentes a IUC do veículo de matrícula ..-LG-.., relativo ao período de tributação compreendido entre Janeiro e Dezembro de 2019 e vencido em 10-05-2019;
xviii. € 326,48, constituídos em Fevereiro de 2019 e vencidos a 27-05- 2019, relativos a coimas, juros e custas referentes ao veículo de matrícula ..-UG-..;
xix. € 184,62, constituídos em Maio de 2019 e vencidos em 06-08-2019, relativos a coimas, juros e custas;
xx. € 525,57, constituídos em Fevereiro de 2019 e vencidos a 01-02- 2019, relativos a custas;
xxi. €47,86, constituídos em Setembro de 2017 e vencidos em 20-09-2018;
xxii. € 122,89, constituídos em Setembro de 2017 e vencidos a 19-10-2018;
xxiii. € 203,41, referentes a IUC do veículo de matrícula ..-LG-.., relativo ao período compreendido entre Janeiro e Dezembro de 2020 e vencido a 20-05-2020; xxiv;
xxiv. € 430,26, constituídos em Fevereiro de 2020 e vencidos a 06-08- 2020, relativos a coimas, juros e custas referentes ao veículo de matrícula ..-SU-..;
xxv. € 62,30, constituídos em Maio de 2018 e vencidos em 22-04-2019, relativos a liquidações de taxas de portagem e custos administrativos reportados ao veículo de matrícula ..-UG-..;
xxvi. € 32,82, constituídos em Maio de 2018 e vencidos a 21-02-2021, relativos a liquidações de taxas de portagem e custos administrativos reportados ao veículo de matrícula ..-UG-..;
xxvii. € 81,52, constituídos em Março de 2017 e vencidos a 26-05-2020, relativos a liquidações de taxas de portagem e custos administrativos reportados ao veículo de matrícula ..-RN-..;
xxviii. € 266,01, constituídos em Abril de 2017 e vencidos a 26-05-2020, relativos a liquidações de taxas de portagem e custos administrativos reportados ao veículo de matrícula ..-RN-..;
xxix.  € 61,50, constituídos em Maio de 2017 e vencidos em 26-05-2020, relativos a liquidações de taxas de portagem e custos administrativos reportados ao veículo de matrícula ..-RN-..;
xxx. € 181,45, constituídos em Outubro de 2020 e vencidos a 07-12- 2020, relativos a coimas, juros e custas;
xxxi. € 622,96, constituídos no período compreendido entre Outubro e Dezembro de 2020 e vencidos em 12-10-2020;
xxxii. € 1.536,97, constituídos em Outubro de 2020 e vencidos em 07-01-2021, relativos a coimas, juros e custas reportados aos veículos de matrículas ..-RN-.. e ..-UG-..;
xxxiii. € 155,10, constituídos em Outubro de 2020 e vencidos a 11-01- 2021, relativos a coimas, juros e custas reportados ao veículo de matrícula ..-UG-..;
xxxiv. € 211,18, relativos a IUC do veículo de matrícula ..-LG-.., referente ao período compreendido entre Janeiro e Dezembro de 2021 e vencido a 18-06-2021;
xxxv. € 4.163,07, constituídos entre Outubro e Novembro de 2020 e vencido a 03-11-2020, relativo a custas;
xxxvi. € 270,01, constituídos entre Maio e Junho de 2021 e vencido a 17-05- 2021;
xxxvii. € 202,41, referentes a IUC do veículo de matrícula ..-LG-.., relativo ao ano civil de 2022 e vencido a 08-06-2022;
xxxviii. € 110,82, constituídos em Novembro de 2021 e vencido a 14-06- 2022, relativos a liquidações de taxas de portagem e custos administrativos reportados ao veículo de matrícula ..-VO-..;
xxxix. € 173,89, constituídos em Junho de 2022 e vencido a 28-06-2022, relativo a custas;
xl. € 120,29, constituídos entre Junho e Outubro de 2022 e vencido a 20- 06-2022, relativo a custas.
· A Câmara Municipal ..., crédito comum, no montante total de € 29,86, relativo a facturas emitidas em 24-09-2014 (€9,72), 17-12-2014 (€7,35) e (€7,35) 20-01-2015, vencidas, respectivamente, em 10-10-2014, 12-01-2015 e 10-02-2015;
· Companhia de Seguros D..., S.A., crédito comum, no montante total de € 6.606,09, relativo à condenação em 05-05-2022 no processo crime n.º 1003/16.... do Juízo Local Criminal ..., Juiz ..., no pedido de indemnização civil no valor de € 6.048,62 (seis mil e quarenta e oito euros e sessenta e dois cêntimos), acrescido de juros de mora legais, contados desde a notificação e até integral pagamento, cuja condenação está relacionada com o facto de a credora ter liquidado a quantia global de €6.048,62 a BB, por esta reclamada, correspondente aos valores apropriados pelo arguido, nos anos de 2012 a 2014 (art.º 23.º dos factos provados), estando em causa “a prática, pelo arguido, do crime de burla, em concurso efetivo com o crime de falsificação de documentos”, tendo sido considerado que “atuou com culpa”, que existiu “prejuízo correspondente ao ressarcimento da cliente BB dos valores indevidamente apropriados pelo arguido agindo em representação da demandante (€ 6.048,62)” e, bem assim, que estavam verificados todos os pressupostos da responsabilidade civil extracontratual; em relação à parte criminal foi considerado que estava verificada a excepção de caso julgado relativamente aos factos apurados, por integrarem a continuação criminosa apurada no processo n.º 194/14...., do Juízo Central Criminal ..., Juiz ..., tendo sido mantida a pena aí aplicada (págs. 58 e 59 da sentença);
· A... Dac, crédito comum, no montante total de € 15.718,06, constituído em 07-07-2016, data constante da livrança subscrita no âmbito do contrato de financiamento que o insolvente celebrou em 26- 09-2013 com o B..., S.A., para aquisição a crédito da viatura da marca ..., modelo ...01... STYLE, com matrícula ..-LG-..;
· Instituto da Segurança Social, I.P. – Centro Distrital ..., crédito no valor total de € 4.730,33, sendo o valor de €213,68 considerado como crédito privilegiado e o restante como crédito comum, a título de contribuições referentes aos meses de Outubro de 2013, Janeiro a Outubro de 2014, Abril de 2015 a Maio de 2016 e Outubro de 2016, no montante de € 3.496,82, respectivos juros de mora no valor de €1.019,83 e no montante de € 213,68, estes últimos constituídos entre Outubro de 2021 e Outubro de 2022.
8. O insolvente apresentou-se à insolvência em 13 de Junho de 2022 e requereu apoio judiciário na modalidade de dispensa de taxa de justiça e demais encargos com o processo.
9. A propriedade do veículo de matrícula ..-LG-.. foi registada em 23-10-2013, a favor do insolvente, com reserva de propriedade a favor do B..., S.A., tendo o insolvente declarado ao administrador da insolvência que a viatura foi entregue a este Banco em 2017.
10. O insolvente foi notificado, em 23-01-2023, na pessoa do seu Ilustre mandatário, para remeter documento comprovativo da entrega do veículo de matrícula ..-LG-.. ao B..., S.A. e, bem, assim, para indicar o valor que paga a título de pensão de alimentos ao filho e juntar aos autos certidão da regulação do exercício das responsabilidades parentais, sem que tenha respondido à notificação efectuada.
11. Em 22 de Fevereiro de 2023, foi remetida carta ao insolvente para a morada fixada na sentença de declaração de insolvência, notificando-o nos mesmos termos mencionados no número anterior, mas a carta foi devolvida com a indicação de não reclamada (notificação de 22-02-2023 e carta junta aos autos em 24-03-2023).
12. Em 21 de Abril de 2023, foi notificado o insolvente e o seu Ilustre mandatário para aquele remeter documento comprovativo da entrega do veículo de matrícula ..-LG-.. ao B..., S.A., sem que tenha sido dada resposta à notificação efectuada, tendo sido devolvida a carta enviada ao insolvente, para a morada fixada na sentença de declaração de insolvência, com a indicação de não reclamada, não tendo sido indicada qualquer alteração de residência.
13. Em 9 de Agosto de 2018, o insolvente já se tinha apresentado à insolvência e foi declarado insolvente por sentença proferida em 27 de Agosto de 2018, no processo n.º 3725/18.... deste Juízo de Comércio, Juiz ....
14. No processo mencionado no número anterior:
· Em 7 de Janeiro de 2019, foi admitido liminarmente o pedido de exoneração do passivo restante e o processo de insolvência foi declarado encerrado, por insuficiência da massa insolvente;
· Em 7 de Janeiro de 2019 foi proferida sentença de verificação e graduação de créditos, tendo sido julgado verificado o crédito de B..., S.A., pelo montante de € 13.290,07, e homologada a relação de créditos reconhecidos apresentada pelo Sr. administrador da insolvência onde constam os seguintes créditos: 1) Autoridade Tributária e Aduaneira - Direcção de Finanças de ... € 1.983,87; 2) CC €2.307,27; 3)Instituto da Segurança Social, I.P.  €4.326,53; 4)E... € 579,97;
· Em 28 de Abril de 2020 foi recusada antecipadamente a concessão da exoneração do passivo restante do insolvente, por falta de entrega dos documentos necessários para aferir do cumprimento das obrigações do insolvente.
· No registo criminal do insolvente não está averbada qualquer condenação.

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Descritos os factos, passemos à resolução das questões suscitadas pelo recurso.

A decisão sob recurso indeferiu liminarmente a exoneração do passivo restante ao abrigo das alíneas c), d) e g) do n.º 1 do artigo 238.º do CIRE.

Nos termos destas alíneas, o pedido de exoneração é liminarmente indeferido se, respectivamente:
· O devedor tiver já beneficiado da exoneração do passivo restante nos 10 anos anteriores à data do início do processo de insolvência;
· O devedor tiver incumprido o dever de apresentação à insolvência ou, não estando obrigado a se apresentar, se tiver abstido dessa apresentação nos seis meses seguintes à verificação da situação de insolvência, com prejuízo em qualquer dos casos para os credores, e sabendo, ou não podendo ignorar sem culpa grave, não existir qualquer perspectiva séria de melhoria da sua situação económica;
· O devedor, com dolo ou culpa grave, tiver violado os deveres de informação, apresentação e colaboração que para ele resultam do presente Código no decurso do processo de insolvência.

A decisão recorrida justificou a verificação destas hipóteses dizendo em síntese o seguinte.

Em relação à verificação da hipótese prevista na alínea c), começou por dar conta das divergências jurisprudenciais e doutrinais quanto à respectiva interpretação. Em concreto, segundo uma interpretação, de que citou como exemplo a afirmada em 3 acórdãos do Tribunal da Relação do Porto (acórdãos proferidos em 23-03-2021, 29-09-2021 e 12-09-2022 nos processos, respectivamente, n.ºs 7804/19.9T8VNG-B.P1, 451/21.7T8VNG.P1 e 2046/21.6T8STS.P1), só era de considerar que o devedor já havia beneficiado da exoneração do passivo restante quando a ele tivesse sido concedido tal benefício no termo do período da cessão. Segundo outra, de que citou como exemplo a afirmada no acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa proferido em 9-02-2021, no processo n.º 2632/19.4T8BRR.L1-1, era de considerar que o devedor já havia beneficiado da exoneração do passivo restante não apenas quando lhe tivesse sido concedido, no termo do período da cessão, a exoneração do passivo, mas também quando tal pedido tivesse sido admitido liminarmente, ainda que no termo do período da cessão ou antes de tal período a exoneração tivesse sido recusada.

A decisão recorrida, tomando partido nesta querela, seguiu a segunda interpretação, considerando que a efectiva obtenção do benefício da exoneração do passivo restante não era condição de aplicação da norma em análise, pois, se fosse essa a intenção do legislador, certamente teria mencionado o devedor a quem nos 10 anos anteriores foi concedida a exoneração do passivo restante. Partindo desta interpretação da alínea c) e do facto de, há menos de 10 anos à data do início do presente processo de insolvência, o ora recorrente ter beneficiado de um despacho liminar de exoneração do passivo restante no âmbito de um outro processo de insolvência (processo n.º 3725/18.... do Juízo de Comércio do tribunal judicial da comarca ...), considerou verificada a hipótese da alínea c).

Em relação à hipótese da alínea d), a decisão sob recurso também começou por enunciar os requisitos da sua verificação. De seguida, entendeu que estavam preenchidos dizendo, em síntese, que, depois de ter sido declarado em situação de insolvência no processo n.º 3725/18...., o ora recorrente nunca deixou de estar em situação de insolvência e que, nos anos de 2019, 2020 e 2021, foi acumulando dívidas relativas a IUC, dívidas fiscais e dívidas provenientes de taxas de portagem, o que reduzia as possibilidades de os credores recuperarem os seus créditos, causando, este aumento das dívidas, prejuízos aos credores. Acrescia que o devedor, ora recorrente, face à sua situação económica e ao que ele próprio alegou na petição, sabia ou não podia ignorar que não existia qualquer perspectiva séria de melhoria da sua situação económica. Contraiu, no entanto, novas dívidas, bem sabendo que não tinha meios para as liquidar, sem que tenha explicado a necessidade de aumentar o passivo. Segundo a decisão recorrida, o devedor agravou a sua situação de insolvência nos últimos 3 anos anteriores ao início do processo de insolvência.

Em relação à verificação da hipótese da alínea g), a decisão sob recurso também procedeu à sua interpretação. Entendeu que ela estava preenchida dizendo que o insolvente, apesar de ter comunicado ao administrador da insolvência que havia entregado ao B... em 2017 a viatura com a matrícula ..-LG-.., notificado, várias vezes, para apresentar documento comprovativo da entrega de tal viatura, não o apresentou, sendo que o destino da viatura era relevante para o processo.

Sendo estas, em síntese, as razões que levaram a decisão sob recurso a julgar preenchidas as hipóteses de indeferimento do pedido de exoneração do passivo restante previstas nas alíneas c), d) e g) do n.º 1 do artigo 238.º do CIRE, e pedindo o recorrente a revogação e a substituição dela por outra que admitisse liminarmente o pedido, seria de esperar que ele imputasse à decisão recorrida ou erros na interpretação de tais alíneas ou a inexistência dos pressupostos de facto necessários à sua aplicação.

Sucede que o recorrente limitou-se a contestar vagamente os fundamentos da decisão recorrida. Em relação à verificação da alínea c), alegou que ela não podia aplicar-se a ele, recorrente; que os 10 anos mencionados no artigo 238.º não lhe eram aplicáveis, pois que a sua situação era diferente da mencionada artigo; e que se era possível nova insolvência não podia deixar de ser possível nova exoneração.

Não explicou, no entanto, nem no corpo da alegação nem nas conclusões por que que razão é que tal alínea não lhe pode ser aplicada.

No que diz respeito à verificação das hipóteses das restantes alíneas, o recorrente nunca se referiu expressamente a elas. O mais que se pode dizer é que a sua alegação compreende afirmações que podem ser interpretadas no sentido de visarem os segmentos que as julgaram verificadas. É o caso da afirmação de que “o recorrente em nada tentou lesar a massa” (2ª conclusão)” e a de que “o recorrente não pode entregar algo que não possui” [3.ª conclusão]. A primeira pode ser interpretada como visando a decisão de julgar verificada a hipótese alínea d), visto que o tribunal a quo, quando se pronunciou a tal propósito, afirmou que o recorrente causou prejuízos aos credores em virtude de ter aumentado o seu passivo após ter sido declarado insolvente no processo n.º 3725/18.... segunda é susceptível de ser interpretada como tendo em vista o segmento da decisão que julgou verificada a hipótese da alínea g) pois, quando o tribunal se pronunciou a propósito de tal questão, afirmou que o recorrente não apresentou ao administrador da insolvência qualquer documento justificativo da entrega da viatura com a matrícula ..-LG-.., ao B....

Apesar de resultar com clareza do n.º 1 do artigo 639.º do CPC que impende sobre o recorrente o ónus de indicar as razões por que pede a revogação da decisão, não cabendo, pois, ao tribunal de recurso, entrar em suposições ou conjecturas sobre tais razões, nem sindicar oficiosamente a legalidade da decisão, sempre se dirá o seguinte sobre a alegação do recorrente.

Em primeiro lugar, não havia razões para indeferir liminarmente o pedido de exoneração do passivo restante ao abrigo da alínea c) do n.º 1 do artigo 238.º do CIRE. Vejamos.

Como bem refere a decisão recorrida, a alínea c) do n.º 1 do artigo 238.º do CIRE, tem sido objecto de interpretações divergentes. Segundo uma interpretação, afirmada por exemplo no acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 9-02-2021, proferido no processo n.º 2632/19.4T8BRR.L1.1, publicado em www.dgsi.pt., para efeitos da citada alínea, considera-se que o devedor já beneficiou da exoneração do passivo restante não só quando esta lhe foi concedida no fim do período da cessão, mas também quando ela foi admitida liminarmente, embora posteriormente tenha sido recusada. Segundo outra interpretação, afirmada nos acórdãos do Tribunal da Relação do Porto proferidos em 23-03-2021, 29-09-2021 e 12-09-2022, nos processos, respectivamente, números 7804/19.9T8VNG-B.P1, 451/21.7T8VNG.P1 e 2046/21.6T8STS.P1, todos publicados em www.dgsi.pt., para efeitos da alínea c), considera-se que o devedor já beneficiou da exoneração apenas quando esta lhe tenha sido concedida no fim do período da cessão. De acordo com esta interpretação, estão fora do alcance do preceito os casos em que a exoneração foi admitida liminarmente, mas em que, no termo do período da cessão ou antes do termo, a exoneração do passivo restante foi recusada.

No entender deste tribunal, considerando os critérios de interpretação da lei enunciados no artigo 9.º do Código Civil, é com este último sentido e alcance que deve valer a alínea c).

Em primeiro lugar, este sentido cabe sem qualquer esforço na letra desta alínea. 

Em segundo lugar, este sentido mostra-se compatível com a finalidade, com a razão de ser da alínea c), que é a de obstar a que um devedor que, num passado relativamente recente (10 anos anteriores à data do início do processo), já foi declarado em situação de insolvência e nesse processo beneficiou dos efeitos da exoneração do passivo restante, venha a beneficiar desses mesmos efeitos em novo processo de insolvência. Ora, um devedor só beneficia dos efeitos da exoneração do passivo restante, no caso de esta lhe ser concedida no termo do período da cessão. É o que resulta de modo claro do n.º 1 do artigo 248.º do CPC. Na hipótese de a exoneração lhe não ser concedida no termo do período da cessão ou na de, antes do termo de tal período, ser recusada a concessão (hipótese prevista no artigo 243.º do CIRE), o devedor não beneficiará de tais efeitos.

Em terceiro lugar, o sentido e alcance acima expostos são os que melhor têm em conta a unidade do sistema jurídico. Socorrendo-nos das palavras de Manuel de Andrade, na interpretação da lei, o intérprete deve presumir que ele tenha seguido uma linha de coerência na execução da sua tarefa, que ele não tenha pensado a lei como puro acervo ocasional de normas justapostas, mas como um sistema devidamente articulado. Daí que, prossegue o citado autor, cada texto legal deve ser relacionado com aqueles que lhes estão conexos por contiguidade ou por outra causa, tomando o seu lugar no encadeamento de que faz parte unidade do sistema jurídico [Sentido e Valor da Jurisprudência, Coimbra 1973, páginas 27 e 28].

Guiados por esta critério, cabe perguntar se, olhando para as normas do CIRE relativas à exoneração do passivo restante, (artigos 235.º a 248.º-A], elas consideram que o devedor já beneficia da exoneração do passivo restante quando vê o seu pedido liminarmente deferido ou só consideram que ele beneficia de tal exoneração quando ela for concedida após termo do período de cessão.

No nosso entender, a norma do artigo 237.º, ao dispor que a concessão efectiva da exoneração do passivo restante pressupõe não apenas que não exista motivo para indeferimento liminar do pedido (alínea a)), mas que após o período da cessão, o juiz emita despacho decretando a exoneração definitiva (alínea c)), aponta claramente no sentido de que o devedor só beneficia da exoneração do passivo restante quando tal benefício lhe é concedido no termo do período de cessão. Aponta igualmente neste sentido o n.º 2 do artigo 239.º do CIRE, ao dispor que o deferimento liminar do pedido de exoneração do passivo restante determina tão só que, durante os três anos subsequentes ao encerramento do processo de insolvência, designado por período de cessão, o rendimento disponível que o devedor venha a auferir se considere cedido ao fiduciário.

Estes elementos interpretativos convergem no sentido de que a alínea c), na parte em que dispõe se “o devedor tiver já beneficiado da exoneração do passivo restante…”, deve ler-se assim: se “o devedor tiver já beneficiado dos efeitos da exoneração do passivo restante…”.

Interpretando a alínea c) com o sentido e o alcance expostos e considerando os factos provados, é de afirmar que não estavam reunidas as condições para a sua aplicação no caso. Com efeito, embora esteja provado que, há menos de 10 anos à data do início do presente processo de insolvência, o ora recorrente beneficiou, num outro processo de insolvência, de um despacho inicial de exoneração do passivo restante, também está provado que, antes de terminado o período da cessão, foi recusada a exoneração do passivo restante. Daqui resulta que não há prova de que, nos 10 anos anteriores ao início do presente processo de insolvência, o devedor ora recorrente, beneficiou dos efeitos da exoneração do passivo restante.

Em consequência, não poderá subsistir a decisão de indeferir liminarmente a exoneração do passivo restante ao abrigo da alínea c) do n.º 1 do artigo 238.º do CIRE.

Como se escreveu acima, o indeferimento liminar não teve por base apenas a mencionada alínea. Assentou também nas hipóteses previstas nas alíneas d) e g). Em relação a estes segmentos da decisão, o recurso é manifestamente improcedente. Vejamos.

Como se escreveu acima, na sua alegação, o recorrente nunca se referiu expressamente ao indeferimento do pedido de exoneração do passivo fundado nestas alíneas. Procurando dar algum sentido útil ao que foi alegado, o mais que se pode dizer é que a alegação compreende afirmações que podem ser interpretadas no sentido de visarem os segmentos que as julgaram verificadas. É o caso da afirmação de que “o recorrente em nada tentou lesar a massa” (2ª conclusão)” e a de que “o recorrente não pode entregar algo que não possui” [3.ª conclusão].

Nenhuma delas procede, no entanto, contra a decisão recorrida.

Comecemos pela afirmação de que o recorrente em nada tentou lesar a massa.

Em primeiro lugar, cabe dizer que a decisão sob recurso não justificou o indeferimento do pedido de exoneração do passivo restante com o facto de o ora recorrente ter tentado lesar a massa insolvente. O que a decisão afirmou foi que, depois de ter sido declarado em situação de insolvência em 2018, o ora recorrente continuou em tal situação e que, nos anos de 2019, 2020 e 2021, contraiu novas dívidas (dívidas provenientes do Imposto Único de Circulação, dívidas provenientes de coimas, juros e custas e dívidas provenientes de taxas de portagem e custos administrativos) e que a contracção de novas dívidas reduzia a possibilidade de os credores recuperarem o valor dos seus créditos, causando, o aumento do valor das dívidas, prejuízos aos credores.

A continuação de insolvência do devedor após ter sido declarado em situação de insolvência no processo n.º 3725/18.... do Juízo de Comércio do tribunal judicial da comarca ... é atestado pelo que ele próprio alegou quando se apresentou à insolvência nos presentes autos e pelo facto de ter continuado em situação de incumprimento quanto às suas obrigações.

A contracção de dívidas, nos anos de 2019, 2020 e 2021, provenientes de Imposto Único de Circulação, de coimas, juros e custas e taxas de portagem é facto que está provado.

Que a contracção de novas dívidas agravou a situação de insolvência em que o ora recorrente se encontrava é conclusão que não merece qualquer reparo. E que o agravamento da situação de insolvência prejudica os credores é conclusão que se tem por acertada. Na verdade, se o ora recorrente já não tinha meios para pagar as dívidas antigas, é bom de ver que, ao contrair novas dívidas, irá prejudicar os novos credores, pois estes não irão ver satisfeitos os seus créditos.

Apreciemos, de seguida, a alegação de que o recorrente não podia entregar algo que não possuía.

Esta alegação só seria pertinente como fundamento de recurso se a decisão recorrida tivesse indeferido liminarmente a exoneração do passivo com fundamento no facto de o recorrente não ter entregado algo, provando-se que ele não a podia entregar. Não foi, no entanto, o que sucedeu. A decisão recorrida deu relevância, para indeferimento do pedido ao abrigo da alínea g), ao facto de o recorrente não ter apresentado ao administrador da insolvência o documento comprovativo de que havia entregado a um dos seus credores uma viatura automóvel que adquirira com reserva de propriedade. É certo que não está provado que o ora recorrente possuía tal documento. Sucede que o indeferimento do pedido de exoneração do passivo restante ao abrigo da citada alínea não se baseou no facto de o ora recorrente não ter entregado tal documento ao administrador, apesar de o ter na sua posse. O indeferimento baseou-se no facto de, notificado várias vezes para apresentar tal documento, o ora recorrente não só o não ter entregado, como não ter dado quaisquer respostas às notificações que lhe foram feitas, faltando, assim, senão com dolo, pelo menos com culpa grosseira, aos seus deveres de colaboração para com o administrador da insolvência e para com o tribunal.

Pelo exposto, é de manter a decisão na parte em que indeferiu liminarmente o pedido de exoneração do passivo restante ao abrigo das alíneas d) e g) do n.º 1 do artigo 238.º do CIRE.


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Decisão:

Julga-se improcedente o recurso e, em consequência, mantém-se a decisão recorrida.


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Responsabilidade quanto a custas

Considerando a 1.ª parte do n.º 1 do artigo 527.º do CPC e o n.º 2 do mesmo preceito e o facto de o recorrente ter ficado vencido no recurso, caberia ao mesmo suportar as custas do recurso. Não se condena, no entanto, o mesmo nas custas, visto que ele beneficia de apoio judiciário, na modalidade de dispensa de taxa de justiça e demais encargos com o processo.

Coimbra, 12-09-2023