Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1142/22.7JACBR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ALCINA DA COSTA RIBEIRO
Descritores: DEPOIMENTO INDIRECTO
VALIDADE E VALORAÇÃO DO DEPOIMENTO INDIRECTO
PRINCÍPIO DA LIVRE CONVICÇÃO
RESERVA DO CONHECIMENTO DA IDENTIDADE DA TESTEMUNHA
VALORAÇÃO DO DEPOIMENTO DE TESTEMUNHA COM IDENTIDADE OCULTADA
EXIGÊNCIA DE CORROBORAÇÃO
Data do Acordão: 10/09/2024
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE COIMBRA - JUÍZO CENTRAL CRIMINAL DE COIMBRA - JUIZ 4
Texto Integral: N
Meio Processual: RECURSO DECIDIDO EM CONFERÊNCIA
Decisão: NEGADO PROVIMENTO AOS RECURSOS
Legislação Nacional: ARTIGOS 127.º, 129.º, N.º 1, E 355.º DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL
ARTIGOS 10.º, 16.º, 17.º E 19.º DA LEI N.º 93/99, DE 14 DE JULHO/LEI DE PROTECÇÃO DAS TESTEMUNHAS
Sumário: I - Ocorre depoimento indirecto quando a testemunha não invoca o seu conhecimento directo do facto objecto de prova, mas reproduz factos que ouviu dizer a determinadas pessoas.

II - A validade do depoimento indirecto depende da identificação da pessoa a quem se ouviu dizer e da chamada desta depor, excepto nos casos em que a inquirição do chamado não é possível por morte, anomalia psíquica superveniente ou impossibilidade de ser encontrado.

III - Ocorre proibição de prova quando o depoimento indirecto não obedece aos pressupostos enunciados no artigo 129.º, n.º 1, do C.P.P.

IV - A livre convicção é o principio máximo, a base transversal de toda a valoração probatória, só assim não sendo quando a lei dispuser de maneira diferente, tem de delinear-se sob a égide dos princípios da imediação, oralidade e contraditório e com observância das regras de procedimento, devendo, primeiro, alicerçar-se em raciocínios objectivos, lógicos, consonantes com as regras da experiência comum e, depois, revelados na decisão de facto, por observância do dever de fundamentação, e o seu corolário consta do artigo 355.º do C.P.P.

V - O legislador não previu para a valoração do depoimento indirecto regime diverso da regra geral, isto é, não vinculou a sua valoração por referência ao conteúdo das declarações prestadas pela testemunha fonte, pois se assim fosse tê-lo-ia consagrado expressamente, exigindo a confirmação pela testemunha-fonte do conteúdo do depoimento indirecto.

VI - Prestado que seja o depoimento da testemunha-fonte, cumpre-se a condição de validade do depoimento indirecto, ficando a sua valoração sujeita aos princípios gerais da valoração da prova, mormente o principio da livre apreciação, imediação e oralidade.

VII - A reserva do conhecimento da identidade da testemunha integra o conjunto das medidas de protecção das testemunhas em processo penal, reguladas na Lei n.º 93/99 de 14 de Julho, tem carácter excepcional e depende da verificação cumulativa das condições enunciadas no artigo 16.º, obedecendo a regras especificas de admissibilidade, que ajustam os interesses da perseguição criminal e do direito a um processo equitativo, aqui em confronto.

VIII - O controlo da formação da convicção pelo tribunal e pela defesa inicia-se no momento da produção da prova, com o conhecimento da identificação da testemunha, das características da sua personalidade e memória, com a apreciação dos elementos pessoais reveladores da credibilidade da testemunha, por exemplo a liberdade e espontaneidade do depoimento ou das declarações, a prontidão e espontaneidade das respostas, a segurança e hesitações, vedados no caso ao julgador e à defesa, e, por isso, a valoração do depoente anónimo está subtraída à livre apreciação, carecendo de corroboração, de um complemento, que conforme a declaração.

IX - A valoração dos testemunhos anónimos exige a corroboração por outros meios probatórios, os chamados elementos corroborantes, cujo fundamento é não apenas a fiabilidade dos testemunhos anónimos, em razão dos desvios das regras de processos inerentes à prova testemunhal, mas também, e sobretudo, as dificuldades objectivas do arguido e do próprio decisor na fiscalização da fonte probatória.

X - A exigência de corroboração do testemunho anónimo integra uma das excepções à livre convicção, impedindo que o convencimento do julgador se possa fundamentar em declarações das testemunhas anónimas quando sejam única fonte de prova ou quando não sejam suportadas por outros elementos idóneos a confirmá-los no plano da atendibilidade.

XI - Os elementos corroborantes «são factos que por si só nada têm a ver com o histórico do processo, mas de cuja existência (adquirida no processo mediante qualquer meio de prova: documento, testemunho, perícia, inspecção judicial), se conclui que o autor da declaração a verificar foi verdadeiro» e podem ser quaisquer factos com potencialidade para sustentar a consideração da testemunha, não se exigindo, porém, que a prova corroborante demonstre todos os factos declarados, sob pena de tornar inútil a utilização deste tipo de declarações.

Decisão Texto Integral: *


Recurso n.º 1142/22.7JACBR.C1

Acordam, em conferência, na 5ª Secção do Tribunal da Relação de Coimbra

I. RELATÓRIO                                                

1. Por acórdão datado de 23 de abril de 2024, deliberou o Colectivo do Juízo Central Criminal de Coimbra – Juiz 4, julgar a pronúncia parcialmente provada e procedente e, por consequência: 

– Condena o arguido AA …, como co-autor material de um crime consumado de homicídio qualificado, p. e p. nos termos conjugados dos arts. 131º e 132º/n.ºs 1 e 2-e), h) e j), ambos C.P., na pena de 19 (dezanove) anos de prisão;

– Condena o mesmo arguido AA …, como co-autor material de um crime consumado de profanação de cadáver ou de lugar fúnebre, p. e p. no art. 254º/n.º 1-a) e b) C.P., na pena de 1 (um) ano e 9 (nove) meses de prisão;

– Operando o cúmulo jurídico pertinente, de acordo com os critérios previstos nos arts. 30º/n.º 1 e 77º/n.ºs 1 e 2 C.P. (tomando-se em conta, em conjunto, os factos e a violenta personalidade revelada pelo mesmo), condena o arguido AA … na pena única de 20 (vinte) anos de prisão;

– Condena o arguido BB …, como autor material de um crime consumado de detenção de arma proibida, p. e p. no art. 86º/n.º 1-d), por referência aos arts. 2º/n.º 1-s), ar), aj) e 3º/n.º 6-c), todos da Lei n.º 5/2006, na pena de 2 (dois) anos de prisão, que, nos termos do art. 58º C.P., substituída pela prestação de 480 (quatrocentos e oitenta) horas de trabalho a favor da comunidade;

– Absolve o arguido BB … de um crime de omissão de auxílio, p. e p. no art. 200º/n.º 1 C.P., por que vinha pronunciado nos presentes autos como autor material;

– Absolve o arguido CC … de um crime consumado de homicídio qualificado, p. e p. nos termos conjugados dos arts. 131º e 132º/n.ºs 1 e 2-d), e), h) e j), ambos C.P., por que vinha pronunciado nos presentes autos como co-autor material;

– Absolve o arguido CC … de um crime consumado de profanação de cadáver ou de lugar fúnebre, p. e p. no art. 254º/n.º 1-a) e b) C.P., por que vinha pronunciado nos presentes autos como co-autor material;

– Absolve o arguido DD … de um crime consumado de homicídio qualificado, p. e p. nos termos conjugados dos arts. 131º e 132º/n.ºs 1 e 2-d), e), h) e j), ambos C.P., por que vinha pronunciado nos presentes autos como co-autor material;

– Absolve o arguido DD … de um crime consumado de profanação de cadáver ou de lugar fúnebre, p. e p. no art. 254º/n.º 1-a) e b) C.P., por que vinha pronunciado nos presentes autos como co-autor material;

– Condena o arguido EE …, como co-autor material de um crime consumado de homicídio qualificado, p. e p. nos termos conjugados dos arts. 131º e 132º/n.ºs 1 e 2-e), h) e j), ambos C.P., na pena de 14 (quatorze) anos de prisão;

– Condena o mesmo arguido EE …, como co-autor material de um crime consumado de profanação de cadáver ou de lugar fúnebre, p. e p. no art. 254º/n.º 1-a) e b) C.P., na pena de 1 (um) ano de prisão;

– Operando o cúmulo jurídico pertinente, de acordo com os critérios previstos nos arts. 30º/n.º 1 e 77º/n.ºs 1 e 2 C.P. (tomando-se em conta, em conjunto, os factos e a violenta personalidade revelada pelo mesmo), condena o arguido EE … na pena única de 14 (quatorze) anos e 6 (seis) meses de prisão;

2. Inconformados com a condenação, dela recorrem, os arguidos AA … e EE …, formulando as seguintes Conclusões:

1. …

2. …

3. …

4. Na boa verdade os recorrentes entendem que não se fez prova alguma da autoria dos factos que foram dados como provados e, assim, consideram que foram incorrectamente julgados todos os pontos em que o Tribunal recorrido dá como provado que foram os recorrentes os autores dos mesmos, a saber pontos: 7 a 25, 29 a), 33, 36, 38 a 46.

31. Diz o Tribunal que a autoria dos factos por parte dos recorrentes resultou da conjugação do depoimento das duas testemunhas oculares (testemunhas com o nº 246810 e 135710), com o relatório técnico-pericial constante de fls. 474 a 476, relativo à mancha hemática recolhida, em 3 de outubro de 2022, com o depoimento …

33.Começa o Tribunal recorrido por dizer que as duas testemunhas não identificadas (as tais com os números 246810 e a 135710) foram “de uma valia inestimável quanto ao desenho objectivo (e, portanto, também  subjectivo, por aquilo que a objectividade dos factos tão patentemente induziu) do thema probandum.”

34.Estas duas testemunhas são as únicas testemunhas do processo que o Tribunal recorrido chamou de testemunhas oculares. …

37.Desde logo parece-nos estranho que, segundo estas testemunhas, pelo menos segundo uma

40.No que diz respeito às testemunhas com o nº 246810 e 135710 resulta da prova produzida que as mesmas quando assistiram a alguém ser agredido e colocado dentro de uma carrinha, estas encontravam-se em local distante onde ocorreram os factos, de tal modo que não lhes foi possível identificar todas as pessoas que estavam no local, …, não conseguindo identificar quem estaria a ser agredido.

44.Por outro lado, as testemunhas ditas oculares não referiram que os factos que assistiram tinham ocorrido no dia 22 de agosto de 2022.

66.Note-se que nenhuma destas duas testemunhas conseguiu identificar o dia em que assistiram às agressões de que falaram, nem tão pouco conseguiram identificar a pessoa agredida.

69.Diz o Tribunal que o depoimento destas duas testemunhas oculares foi valorado em conjugação com o depoimento das testemunhas …

70.Do depoimento da testemunha … resultam várias incongruências inexplicáveis …

82.Assim, a testemunha apresentou duas versões completamente diferentes e inconciliáveis entre si.

128. VALORAÇÃO DO DEPOIMENTO INDIRECTO (do que se ouviu outra pessoa declarar que ouviu dizer de terceira pessoa) no caso em que a testemunha Fonte é chamada a depor e não confirma o depoimento indirecto, sendo este contraditório entre si e sem qualquer apoio na restante prova produzida.

130.      Exige-se a confirmação pela testemunha-fonte da existência da conversa com a testemunha indirecta ou reconhecimento de que prestara (perante esta ou por forma que esta pudesse ter ouvido) as declarações cuja autoria lhe é atribuída, o que no caso em apreço não aconteceu – ao ter valorado tais depoimentos indirectos o Tribunal violou o disposto nos artºs 128º n.º1, 129.º n.º1 e 134.º nº 1 al. b), todos do Código de Processo Penal,  tendo sido utilizada qualquer prova nula, ocorrendo produção de prova proibida.

131. Isto ainda é mais assim, quando o depoimento da testemunha de ouvir dizer não é corroborado com nenhum outro elemento de prova, sendo tal depoimento contraditório mesmo entre si quer se atendermos apenas ao seu depoimento em julgamento, quer se compararmos este com o que prestou em inquérito perante MP.

132. Quando o próprio depoimento da testemunha que ouviu dizer não é um só, e é desmentido pela testemunha Fonte, entendemos, que o mesmo não merece qualquer credibilidade.

133. VALORAÇÃO DA PROVA TESTEMUNHAL Nº 246810 E 135710 Os depoimentos das testemunhas identificadas sob os nºs.246810 e 135710, com identidades ocultadas no âmbito da denominada lei de protecção de testemunhas em processo penal (Lei 93/99 de 14 de julho), a identificação feita por tais testemunhas foi, pois, decisiva para o Tribunal recorrido para imputar aos recorrentes a participação nos factos.

134. Porém, neste conspecto, não podemos perder de vista o disposto no art.º 19º, nº 2, da Lei 93/99 de 14 de julho, segundo o qual “nenhuma decisão condenatória poderá fundar-se, exclusivamente, ou de modo decisivo, no depoimento ou nas declarações produzidas numa ou mais testemunhas cuja identidade não foi revelada”.

135. Mais concretamente, a manter-se oculta a identidade das referidas testemunhas, não poderá haver uma decisão condenatória dos arguidos recorrentes, tal apenas podendo vir a correr se a sua identidade tivesse sido revelada

3.  Em resposta ao recurso, o Digno Procurador, em primeira instância sustenta a conformação do Acórdão recorrido, no que é secundado pela Digna Procuradora Geral Adjunta neste Tribunal da Relação.

4. Colhidos os vistos, nada obsta ao conhecimento de mérito do recurso.

II. FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

A primeira instância julgou a matéria de facto, como segue:

«Após a realização da audiência de discussão e julgamento, entende o Tribunal provado, com relevância para a decisão a proferir, o seguinte conjunto de factos (que se pretende expurgado de matéria conclusiva ou imbricado de quaisquer considerações jurídicas):

1 – o arguido AA, conhecido pelos nomes de “FF” e “GG”, é pai dos arguidos BB, CC, DD e EE;

2 – no entanto, o arguido AA e a sua companheira HH são também progenitores de II (nascido em ../../1983), JJ (nascido em ../../1998), KK (nascida em ../../1993), LL (nascida em ../../1989) e MM (nascido em ../../1991);

3 – os arguidos AA, CC, DD e EE residem – e residiam, à época da factualidade em questão nos presentes autos – na Rua ..., ..., ..., concelho ...;

4 – por seu turno, o arguido BB reside na Rua ..., ..., ..., concelho ...;

5 – também quase todos os demais filhos do arguido AA, identificados no ponto 2 (desta factualidade provada), residem no mesmo Bairro ..., mantendo constantes contactos entre si e com os pais;

6 – NN era consumidor de substâncias estupefacientes, deslocando-se por diversas vezes ao aludido Bairro ..., para adquirir tais substâncias ao arguido AA;

7 – cerca de dois meses antes do mês de Agosto de 2022, havia desaparecido produto estupefaciente, em qualidade e quantidade não concretamente apuradas, e algumas armas que o arguido AA guardava em um terreno rústico que adquirira na localidade de ..., na Rua ..., em frente do cemitério, concelho ...;

8 – porque o referido NN, que já anteriormente tinha trabalhado para o arguido AA no terreno acabado de aludir e lhe adquirido droga para o respectivo consumo, sabia que o mesmo arguido AA escondia naquele local as ditas armas e o produto estupefaciente em causa, o referido arguido AA e alguns dos seus filhos, de entre os quais o arguido EE, convenceram-se de que fora o NN que deles se tinha apossado;

9 – então, como forma de se vingarem do NN pelo desaparecimento do produto estupefaciente e das armas, o arguido AA e alguns dos seus filhos, de entre os quais o arguido EE, após plano previamente elaborado entre si e que obteve a concordância e a adesão de todos, decidiram matar o aludido NN quando tivessem oportunidade para tal;

10 – em circunstâncias não concretamente apuradas, no dia 22 de Agosto de 2022, cerca das 22 horas, o NN chegou às imediações da residência do arguido AA, no Bairro ...;

11 – então, e em cumprimento do plano gizado em momento não concretamente apurado (mas situado para além da véspera da data a seguir referida), no aludido dia 22 de Agosto de 2022, o arguido AA e alguns dos seus filhos, de entre os quais o arguido EE, em comunhão de esforços e intentos, actuando de comum acordo, agrediram aquele NN na zona lateral do prédio onde reside o arguido AA, com pontapés e murros, com intenção de o matar, junto da viatura de matrícula ..-..-IB, de cor branca, de marca “Mercedes” e modelo ..., propriedade do arguido AA, gritando o NN, em consequência das agressões que então sofria, aflito, “ajudem-me!”, “acudam-me!”, e pedia socorro e que chamassem a polícia;

12 – com o propósito de retirar o NN daquele local, o arguido EE entrou na viatura de marca “Mercedes” e cor branca melhor identificada no ponto 11 (desta factualidade assente), sentando-se no banco traseiro da carrinha, atrás do condutor, e o arguido AA sentou-se no lugar do condutor;

13 – outros dois filhos do arguido AA que ainda se encontravam no exterior da viatura, em cumprimento do plano gizado, agarraram o NN e, através da força que empreenderam contra o corpo deste, forçaram-no a entrar no interior da dita carrinha “...” pela porta lateral de correr, do lado direito;

14 – o aludido NN, aflito, gritava por socorro;

15 – tentou ele fugir do local, saindo do interior da carrinha pela janela da frente, do lado do “pendura”, caindo desamparado no chão;

16 – então, foi o NN agarrado pelos mencionados dois filhos do arguido AA, que se encontravam no exterior da viatura “...”;

17 – acto contínuo, esses dois filhos do arguido AA abriram a porta traseira daquela carrinha e colocaram no seu interior NN, que, aflito, continuava a gritar por socorro e tentava libertar-se daqueles;

18 – nessa sua tentativa, o referido NN ainda conseguiu sair do interior do veículo pela dita porta de trás, caindo e ficando aos pés dos dois filhos do arguido AA, que o tinham enfiado por aquela mesma porta, passando eles novamente a bater-lhe com murros e pontapés;

19 – o arguido EE saiu do interior da carrinha e, munido de um objeto não concretamente apurado, com características idênticas a um pau, bateu no NN, atingindo-o por diversas vezes na cabeça e nas costas;

20 – de seguida, dois dos filhos do arguido AA agarraram o NN pela parte de trás das costas e colocaram-no novamente no interior da referida viatura de matrícula ..-..-IB, de marca “Mercedes” e modelo ..., através da porta traseira, entrando aqueles também por tal porta, ficando o NN na zona posterior do encosto do banco central do conjunto dos bancos traseiros;

21 – após, os arguidos AA e EE e os outros dois filhos do arguido AA abandonaram o Bairro ..., todos no interior da referida carrinha de cor branca, de marca “Mercedes” e modelo ..., com o corpo de NN no seu interior, na parte traseira da viatura, na direção de uma zona isolada no ..., ..., ..., junto de uma vala que ramifica do Rio ...;

22 – ali chegados, em comunhão de esforços e intentos, e na prossecução do plano entre eles delineado, os arguidos AA e EE e os outros dois filhos do arguido AA, uma vez o NN já morto em consequência da agressões sofridas, decidiram ocultar esta morte e esconder o respectivo cadáver;

23 – assim, os arguidos AA e EE e os outros dois filhos do arguido AA, amarraram o corpo do aludido NN a um tijolo salobro maciço de cerca de 23 quilogramas, com uma corda de nylon à cintura do falecido, e afundaram-no em uma vala de regadio, no ..., ..., ...;

24 – os arguidos AA e EE e os outros dois filhos do arguido AA retornaram, depois, ao Bairro ..., na mencionada carrinha de cor branca, de marca “Mercedes” e modelo ...;

25 – o corpo do NN, apesar da intenção dos arguidos AA e EE e dos outros dois filhos do arguido AA de o fazer desaparecer, afundando-o no regadio, emergiu parcialmente, em 27 de Agosto de 2022, ficando com o seu braço direito fora de água;

26 – o falecido NN vestia com frequência t-shirts, com diversos padrões, geralmente escuros, calças de ganga pretas, e botas do tipo “tropa” ou sapatilhas da marca ...”;

27 – usava também habitualmente uma bolsa à cintura e deslocava-se em uma bicicleta de montanha de cor vermelha;

28 – o cadáver do NN foi encontrado vestindo uma t-shirt com padrão de banda desenhada em tons bege, preto e amarelo, de marca “Bershka”, uma t-shirt cavada, preta, com um escorpião estampado, e umas calças de ganga pretas, não tendo nada calçado;

29 – no dia 3 de Outubro de 2022, foi dado cumprimento ao mandado de busca para a residência ocupada pelos arguidos AA, EE, DD e CC, na Rua ..., ..., ..., ..., e à viatura automóvel de matrícula ..-..-IB, de marca “Mercedes” e modelo ..., tendo sido encontrado e apreendido:

a) no exterior da dita habitação, contígua à zona da sala, a bicicleta de montanha vermelha, embora pintada de preto e azul, do falecido NN;

b) no interior da viatura de matrícula ..-..-IB, foi detectada uma mancha acastanhada na área de carga, na zona posterior do encosto do banco central do conjunto de bancos traseiros, sendo que, realizados os exames comparativos a tais vestígios hemáticos, se constatou a presença de um perfil genético individual masculino, coincidente com o perfil do NN;

30 – no dia 3 de Outubro de 2022, foi igualmente apreendido um par de sapatilhas, de marca ...”, semelhantes às usadas pela vítima NN, na residência do arguido AA e seus filhos;

31 – no dia 3 de Outubro de 2022, foi dado cumprimento ao mandado de busca para a residência ocupada pelo arguido BB, no n.º ...2, ..., ..., ..., tendo sido encontrada e apreendida, no quarto de tal arguido, na zona superior do roupeiro, uma espingarda de um cano, de marca “Falco”, de calibre .410;

32 – o falecido NN tinha um caderno que guardava no seu quarto, no qual descrevia alguns dos acontecimentos dos seus dias, fazendo alusão a vários trabalhos que realizou para o “FF de ...”, “na quinta dele” (sic.);

33 – referia-se o NN ao arguido AA e ao terreno rústico sito na localidade de ..., na Rua ..., em frente ao cemitério de onde haviam desaparecido produtos estupefacientes, em qualidade e quantidade não concretamente apuradas, e quatro caçadeiras e uma carabina, pertencentes ao arguido AA;

34 – da realização da autópsia médico-legal ao cadáver do mencionado NN resultou, de entre o mais:

- na cabeça:

a) área de afundamento e deformidade da face, interessando as regiões frontal, nasal, orbitária direita e zigomática direita, medindo 180 milímetros de maior eixo por 90 milímetros de menor eixo e 28 milímetros de profundidade;

b) quatro soluções de continuidade, de bordos regulares, na metade direita da região frontal, na contiguidade da área de afundamento acabada de aludir, duas mais superiores e contíguas entre si no mesmo plano (de características superficiais), a mais lateral com 8 milímetros de maior eixo por 4 milímetros de menor eixo, e a mais medial com 3 milímetros de maior eixo por 2 milímetros de menor eixo, e duas mais inferiores, igualmente contíguas entre si no mesmo plano, a mais lateral com visualização de fragmento ósseo, medindo 27 milímetros de maior eixo por 10 milímetros de menor eixo e a mais medial 8 milímetros de maior eixo por 7 milímetros de menor eixo;

c) duas soluções de continuidade, de bordos regulares, com visualização de fragmentos ósseos, na metade esquerda da região frontal, na contiguidade da área de afundamento há pouco descrita, próximas entre si no mesmo plano, a mais lateral com 10 milímetros de diâmetro e a mais medial com 4 milímetros de maior eixo por 3 milímetros de menor eixo;

d) quatro soluções de continuidade de bordos irregulares na região frontonasal, a maior com 8 milímetros de maior eixo por 3 milímetros de menor eixo;

e) solução de continuidade de bordos irregulares, de características superficiais, na região infraorbitária direita, medindo 6 milímetros de maior eixo por 3 milímetros de menor eixo;

f) solução de continuidade de bordos irregulares, de orientação sagital, na região parietal esquerda, com 18 milímetros de maior eixo por 4 milímetros de menor eixo;

- no abdómen:

g) sulco único, completo, transversal, com fundo de padrão estriado, interessando a região umbilical (metade inferior), os flancos e a região lombar, apresentando a maior profundidade e largura na região lombar, com 10 milímetros e 16 milímetros, respectivamente, encontrando-se tal sulco em correspondência com a corda de nylon acima mencionada;

- no membro inferior direito:

h) duas áreas violáceas no terço médio da face anterior da perna, a mais superior com 60 milímetros de maior eixo por 30 milímetros de menor eixo e a mais inferior com 40 milímetros de maior eixo por 30 milímetros de menor eixo, com maceração plantar;

- nos ossos do crânio, abóbada e face:

i) fractura multiesquirolosa com afundamento, interessando os ossos frontal, zigomático direito, maxilar direito, lacrimal direito, nasais, e ramo direito da mandíbula (ao nível do processo coronoide), condicionando destruição da órbita direita, e da qual irradiavam múltiplos traços de fractura dirigindo-se para a abóbada e para a base, intersectando os ossos parietal esquerdo, occipital e os ossos da órbita esquerda, determinando perda da integridade anatómica do crânio;

j) fractura linear, longitudinal, do processo temporal do osso zigomático esquerdo;

l) fractura multiesquirolosa de todos os ossos da base do crânio, condicionando a destruição da fossa anterior e a perda da integridade anatómica do crânio;

35 – concluiu-se, na autópsia médico-legal, conjugando a informação circunstancial com os dados autópticos:

- ser de admitir que a morte do referido NN tenha sido devida a lesões traumáticas crânio-meningo-encefálicas, lesões essas que constituíram causa adequada do decesso;

- as lesões traumáticas descritas denotam haver sido produzidas por instrumento de natureza contundente ou actuando como tal, não sendo possível determinar o objeto concreto;

- médico-legalmente, nada impede a existência de uma etiologia homicida;

- os procedimentos analíticos toxicológicos efectuados revelaram a presença de substância medicamentosa (paracetamol) no estômago e conteúdo gástrico, bem como de substância opióide na bílis, estômago e conteúdo gástrico (morfina);

36 – as fracturas observadas na zona da cabeça do NN foram produzidas devido aos murros, pontapés e ao objecto de natureza contundente utilizado pelo arguido AA e três dos seus filhos, de entre os quais o arguido EE;

37 – as descritas fracturas foram a causa adequada da morte do NN;

38 – com efeito, tais lesões, causadas pela actuação conjunta do arguido AA e três dos seus filhos, de entre os quais o arguido EE, em comunhão de esforços e intentos e na prossecução do plano que delinearam e obteve a concordância de todos, determinaram, como consequência directa e necessária, a morte do NN, o que pretenderam e alcançaram;

39 – assim, ao actuarem da forma descrita, o arguido AA e três dos seus filhos, de entre os quais o arguido EE, agiram com o propósito de tirar a vida ao aludido NN, o que queriam e conseguiram, causando-lhe sofrimento, em cumprimento do plano que delinearam em conjunto e que obteve a concordância de todos;

40 – para alcançarem o seu propósito, o arguido AA e três dos seus filhos, de entre os quais o arguido EE, utilizaram as mãos, os pés e objectos contundentes, idênticos a um pau, tendo aproveitado a circunstância de serem quatro e o NN se encontrar sozinho, sem capacidade de se defender, tirando-lhe, assim, a vida;

41 – agiram, ainda, com o propósito de esconder o corpo do NN, ocultando, assim, o facto de em comunhão de esforços lhe terem tirado a vida e pretendendo escapar à atuação das instâncias estatais;

42 – actuaram em comunhão de esforços e na prossecução do plano que delinearam e obteve a concordância de todos, desferindo com um objecto contundente pancadas na cabeça do NN e assim lhe causando, como pretenderam, as lesões descritas nos pontos 34 e 35 (da presente factualidade provada), que conduziram à sua morte;

43 – agiram o arguido AA e três dos seus filhos, de entre os quais o arguido EE, de modo a não permitirem qualquer reacção defensiva ao NN, e pretendendo, como conseguiram, causar a morte a este último;

44 – actuaram igualmente com a intenção de ocultar e fazer desaparecer o cadáver do NN, amarrando-o a um tijolo salobro maciço de cerca de 23 quilogramas, com uma corda de nylon à cintura daquele, afundando-o em uma vala de regadio, no ..., ..., ..., não sentindo qualquer respeito ou piedade pela condição de defunto do NN;

45 – pretenderam, ainda, ocultar que a bicicleta apreendida na residência dos arguidos AA, CC, DD e EE pertencia ao NN, pintando-a de preto e azul;

46 – o arguido AA e três dos seus filhos, de entre os quais o arguido EE, agiram de forma livre, deliberada e consciente, em cumprimento de um plano delineado entre todos e a que todos aderiram, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas pela lei penal;

47 – por outro lado, desde data não concretamente apurada, mas até ao dia 3 de Outubro de 2022, o arguido BB detinha no quarto da sua residência uma espingarda de um cano, de marca “Falco” e calibre .410;

48 – o arguido BB não é titular de licença de uso e porte de qualquer arma de fogo ou possuidor de outro documento com força legal equivalente que o habilitasse a deter, conservar e manusear aquela arma;

49 – mais sabia o arguido BB que a arma de fogo não se encontrava registada ou manifestada em seu nome na entidade oficial competente;

50 – o arguido BB agiu livre, voluntária e deliberadamente, com intenção de deter aquela arma, bem sabendo que a mesma estava sujeita a registo e manifesto obrigatórios e que era necessário ser possuidor de documento habilitador da sua detenção e emitido pelas entidades oficiais competentes;

51 – mais actuou o arguido BB cônscio de que a sua conduta era proibida e punida pela lei penal;

52 – o arguido AA é o terceiro de 12 irmãos, filhos de um casal que sempre se debateu com dificuldades de cariz económico e cujo processo socioeducativo foi pautado pelos padrões de cultura do grupo – de etnia cigana – de pertença, sem priorizar a promoção de competências escolares e formativas, assim levando a que o arguido não integrasse o sistema de ensino nem adquirisse, em idade côngrua, competências ao nível da leitura e da escrita, antes acompanhando desde cedo os pais nas vendas ambulantes e nas feiras;

53 – após alguma mobilidade residencial, o agregado familiar de origem do arguido fixou-se na zona da ...;

54 – aos 16 anos de idade, encetou o arguido uma relação marital com aquela que é ainda hoje a actual companheira, começando a residir primeiramente em um acampamento de etnia cigana e em contentores, até lhes ser atribuída uma habitação camarária em 2020, no Bairro ..., onde viviam já à época dos factos em causa nos presentes autos;

55 – ao longo da sua vida, o arguido AA dedicou-se às vendas ambulantes de artigos de vestuário, juntamente com a companheira, dependendo igualmente de subsídios e apoios sociais, designadamente do denominado “Rendimento Social de Inserção”;

56 – há cerca de três anos atrás, sofreu um acidente vascular cerebral, que lhe aportou algumas dificuldades de audição e de visão;

57 – à época dos factos em causa nos presentes autos, para além do valor inerente ao “Rendimento Social de Inserção” atribuído à família, no montante de cerca de € 600 mensais, auferia o arguido rendimentos relativos a algumas vendas ambulantes (sobretudo levadas a cabo pela sua companheira) e aos trabalhos que realizava por conta própria na limpeza de terrenos e de mato para vizinhos no período do Verão, percebendo, por vezes, cerca de € 1.000 por mês;

58 – a família também se dedicava à prática de uma agricultura de subsistência, no terreno acima mencionado no ponto 7 (desta factualidade provada);

59 – com a reclusão do arguido AA no âmbito dos presentes autos, a sua companheira passou a perceber de “Rendimento Social de Inserção” o montante mensal de € 193,60, beneficiando também do apoio dos restantes filhos (que não arguidos neste processo) e respectivas companheiras em termos de refeições diárias, assim como de despesas nas deslocações e visitas prisionais realizadas aos arguidos AA, CC, DD e EE;

60 – o arguido AA já foi condenado, pela prática de um crime de tráfico de estupefacientes, referente a factos ocorridos em 1 de Janeiro de 1996, por decisão proferida em 23 de Outubro de 2002, transitada em julgado em 12 de Novembro de 2002, na pena de 9 anos de prisão, no âmbito do processo comum colectivo n.º 113/99...., da ... Secção das Varas de Competência Mista ..., vindo o arguido a cumprir tal pena de prisão em efectividade;

61 – e foi igualmente condenado, pela prática de um crime de tráfico de estupefacientes, referente a factos ocorridos em 14 de Julho de 2009, por decisão proferida em 16 de Novembro de 2011, transitada em julgado em 12 de Dezembro de 2011, na pena de 7 anos de prisão, no âmbito do processo comum colectivo n.º 109/09...., do ... Juízo do Tribunal Judicial ..., vindo o arguido a cumprir tal pena de prisão em efectividade;

62 – no seio prisional, no qual se encontra actualmente no âmbito dos presentes autos, vem adoptando um padrão comportamental consonante com as normas institucionais aí vigentes;

63 – recebe, com regularidade, as visitas da sua companheira e de outros familiares próximos;

64 – o arguido BB, tal como os seus irmãos (quer os co-arguidos no presente processo, quer os que o não são), abandonou o sistema escolar precocemente, concluindo o ensino básico já na idade adulta;

65 – passou, então, a acompanhar os pais nas vendas ambulantes;

66 – em termos afectivos, manteve vários relacionamentos, dos quais nasceram quatro filhas, três delas institucionalizadas;

67 – com 16 anos de idade, iniciou o consumo de substâncias estupefacientes, tendo sido acompanhado na Equipa de Tratamento da ..., em 2001, com períodos de recidiva, consumindo novamente heroína e outras substâncias aditivas;

68 – desde há alguns anos que se autonomizou da residência dos pais, vivendo em um apartamento de habitação social com a actual companheira, mãe de duas filhas, já maiores de idade, fruto de uma sua relação anterior, e dela autónomas, tendo o casal em comum um filho de nove meses, com eles convivente;

69 – beneficiam, o arguido BB e a sua actual companheira, do “Rendimento Social de Inserção”, acrescido de uma prestação familiar referente ao filho menor;

70 – está integrado em um programa de substituição opiácea com metadona, vindo a cumprir os objectivos terapêuticos de tal programa;

71 – o arguido BB já foi condenado, pela prática de um crime de condução sem habilitação legal, referente a factos ocorridos em 3 de Dezembro de 1999, por decisão proferida em 4 de Dezembro de 1999, depois transitada em julgado, na pena de 120 dias de multa, à taxa diária de Esc. 500$00, no âmbito do processo sumário n.º 525/99, do ... Juízo Criminal de ..., vindo o arguido a pagar tal multa;

72 – foi igualmente condenado, pela prática de um crime de condução sem habilitação legal, referente a factos ocorridos em 31 de Março de 2000, por decisão proferida em 1 de Abril de 2000, depois transitada em julgado, na pena de 9 meses de prisão, suspensa na respectiva execução, mediante regime de prova, pelo período de 1 ano e 6 meses, no âmbito do processo sumário n.º 213/00, do ... Juízo Criminal de ..., vindo depois a suspensão a ser revogada e o arguido a cumprir a mencionada pena de prisão;

73 – foi também condenado pela prática de um crime de condução sem habilitação legal e um crime de roubo simples, referente a factos ocorridos em 1 de Julho de 2000, por decisão proferida em 25 de Outubro de 2002, transitada em julgado em 11 de Julho de 2003, na pena única de 2 anos e 6 meses de prisão, no âmbito do processo comum colectivo n.º 528/00...., do ... Juízo do Tribunal Judicial ..., que o arguido cumpriu efectivamente;

74 – foi ainda condenado, pela prática de um crime de condução sem habilitação legal, referente a factos ocorridos em 20 de Setembro de 2006, por decisão proferida em 25 de Setembro de 2006, transitada em julgado em 10 de Outubro de 2006, na pena de 5 meses de prisão, suspensa na respectiva execução pelo período de 2 anos, no âmbito do processo sumário n.º 977/06...., do ... Juízo Tribunal Judicial ..., vindo depois a pena de prisão a ser declarada extinta, pelo normal decurso do respectivo prazo suspensivo;

75 – foi igualmente condenado, pela prática de um crime de condução sem habilitação legal, um crime de dano qualificado e um crime tráfico de estupefacientes de menor gravidade, referente a factos ocorridos em 24 de Janeiro de 2007, por decisão proferida em 22 de Novembro de 2007, transitada em julgado em 12 de Dezembro de 2007, na pena única de 4 anos de prisão, suspensa na respectiva execução, mediante regime de prova, pelo mesmo período temporal, no âmbito do processo comum colectivo n.º 3/07...., do ... Juízo Tribunal Judicial ..., vindo depois a pena de prisão a ser declarada extinta, pelo normal decurso do respectivo prazo suspensivo;

76 – foi ainda condenado, pela prática de um crime de condução sem habilitação legal, referente a factos ocorridos em 18 de Janeiro de 2007, por decisão proferida em 29 de Maio de 2008, transitada em julgado em 18 de Junho de 2008, na pena de 1 ano e 2 meses de prisão, suspensa na respectiva execução, mediante regime de prova, pelo mesmo período temporal, no âmbito do processo comum singular n.º 2/07...., do ... Juízo Criminal de ..., vindo depois a suspensão a ser revogada e o arguido a cumprir a mencionada pena de prisão;

77 – foi também condenado, pela prática de um crime de condução sem habilitação legal, referente a factos ocorridos em 8 de Agosto de 2013, por decisão proferida em 9 de Agosto de 2013, transitada em julgado em 5 de Novembro de 2013, na pena de 10 meses de prisão, substituída por 300 horas de trabalho a favor da comunidade, no âmbito do processo sumário n.º 32/13...., do Juízo Local Criminal ..., da Comarca de Coimbra, que o arguido cumpriu;

78 – foi igualmente condenado, pela prática de um crime de ofensa à integridade física simples, referente a factos ocorridos em 11 de Março de 2014, por decisão proferida em 30 de Outubro de 2015, transitada em julgado em 30 de Novembro de 2015, na pena de 1 ano e 6 meses de prisão, suspensa na respectiva execução, pelo mesmo período temporal, no âmbito do processo comum singular n.º 30/14...., do Juízo Local Criminal ..., da Comarca de Coimbra, vindo depois a pena de prisão a ser declarada extinta, pelo normal decurso do respectivo prazo suspensivo;

79 – e, por fim, foi ainda condenado, pela prática de um crime de violência doméstica, referente a factos ocorridos em 7 de Setembro de 2015, por decisão proferida em 28 de Abril de 2016, transitada em julgado em 30 de Maio de 2016, na pena de 3 anos e 3 meses de prisão, no âmbito do processo comum colectivo n.º 398/15...., do Juízo Central Criminal – Juiz ... – de ..., da Comarca de Leiria, vindo o arguido a cumprir tal pena em efectividade;

80 – o arguido CC concluiu o segundo ano de escolaridade do ensino básico, em um contexto de desinteresse e abstencionismo pelas actividades lectivas;

81 – passou, então, a ajudar os pais nas actividades de vendas ambulantes e de agricultura de subsistência;

82 – à época da ocorrência dos factos em causa nos presentes autos, frequentava um curso técnico-profissional de operador de distribuição, auferindo a esse título o valor mensal de cerca de € 200;

83 – vem sendo acompanhado hospitalarmente a um diagnóstico de estado depressivo;

84 – o arguido CC não conta antecedentes criminais;

85 – o arguido DD concluiu, também ele, o segundo ano de escolaridade do ensino básico, em idêntico contexto de desinteresse e abstencionismo pelas actividades lectivas;

86 – passou, então, a ajudar os pais nas actividades de vendas ambulantes e de agricultura de subsistência;

87 – à época da ocorrência dos factos em causa neste processo, frequentava um curso técnico-profissional de operador de distribuição, auferindo a esse título o valor mensal de cerca de € 200;

88 – é consumidor de substâncias estupefacientes;

89 – o arguido DD não conta antecedentes criminais;

90 – o arguido EE iniciou a escolaridade na idade regulamentar, embora, devido a dificuldades endógenas de aprendizagem e a desinteresse e abstencionismo, haja reprovado por diversas ocasiões, acabando por abandonar o sistema de ensino sem adquirir as competências básicas de leitura e escrita;

91 – passou, então, a ajudar os pais nas actividades de vendas ambulantes e de agricultura de subsistência;

92 – já em idade adulta, no ano lectivo de 2021-2022, frequentou um curso de educação e formação de cariz técnico-profissional, que o habilitou com o primeiro ciclo de ensino básico, contexto no qual apresentou já uma adaptação satisfatória às exigências de aprendizagem;

93 – à época da factualidade ora em causa nos presentes autos frequentava, também ele, um curso técnico-profissional de operador de distribuição, com equivalência ao segundo ciclo do ensino básico, auferindo a esse título o valor mensal de cerca de € 200;

94 – é consumidor de substâncias estupefacientes (cannabis e heroína) desde a adolescência;

95 – é visto, no respectivo meio de residência, como uma pessoa dotada de alguma debilidade e fragilidade pessoal;

96 – chegou a praticar a mendicidade durante alguns anos, tendo em vista a obtenção de recursos que lhe permitissem sustentar as suas necessidades de consumo;

97 – em sede prisional, vem adoptando um comportamento globalmente consentâneo com as regras institucionais ali vigentes;

98 – está inserido em um programa de substituição opiácea com metadona e beneficia de consultas de psiquiatria e psicologia;

99 – o arguido EE não apresenta antecedentes criminais.

*

Não se provaram outros factos com interesse para a decisão da causa.

*

O Tribunal alicerçou a sua convicção judicativo-decisória na análise crítica do conjunto da prova produzida – e não produzida –, “peneirada” à luz das regras normais da experiência da vida (art. 127º C.P.P.), ou seja, das «(…) definições ou juízos hipotéticos de conteúdo genérico, independentes do caso concreto sub judicio, assentes na experiência comum, e por isso independentes dos casos individuais em cuja observação se alicerçam, mas para além dos quais têm validade» (Prof. Manuel Cavaleiro de Ferreira, “Curso de processo penal”, volume II, Lisboa, 1988, pág. 30). E tais regras da experiência da vida (não desacompanhadas, como é evidente, de elementos probatórios consistentes, nos termos abaixo expostos) foram, pois, importantes no caso para a formação da convicção quanto a alguns pontos factuais.

In casu, e desde logo, nenhum dos arguidos – aliás, no exercício de um seu direito processualmente cabido [art. 61º/n.º 1-d) C.P.P.] – prestou declarações quanto aos factos que lhes eram imputados no despacho de pronúncia, pelo que ficámos sem saber qual a tese que, a propósito do tema de prova, poderiam eles veicular.

Começou, assim, o Colectivo por tomar em consideração os depoimentos – essenciais – de duas testemunhas oculares de uma parte bastante significativa da violenta actuação ocorrida sobre a vítima …, atendeu o Tribunal igualmente a toda uma outra panóplia de elementos – testemunhais, mas não só – que, na sua concatenação e conjugação recíprocas, e à luz das mencionadas regras da experiência comum, nos inculcaram a convicção – pelo menos essa – de que os arguidos AA … e … EE … podem e devem ser individualizados e destacados da mole de pessoas …

Vejamos, pois.

Desde logo, as aludidas duas testemunhas oculares dos factos – ouvidas no âmbito do programa normativo da protecção de testemunhas, depondo em audiência por meio de videoconferência, com ocultação de imagem e distorção de voz (cf. arts. 4º e ss., maxime arts. 9º a 15º da Lei n.º 93/99, de 14/7) – foram de uma valia inestimável quanto ao desenho objectivo (e, portanto, também subjectivo, por aquilo que a objectividade dos factos tão patentemente induziu) do thema probandum. Tratam-se, como as mesmas revelaram, de pessoas residentes no Bairro ..., e que se encontravam nas proximidades do local onde as violentas agressões físicas à vítima … ocorreram, conseguindo obter, dos respectivos pontos onde se encontravam, uma perspectiva relativamente privilegiada (e ainda que uma das testemunhas de um modo mais abrangente e directo do que a outra) daqueles mesmos eventos.

Assim, a testemunha com a identificação de código 246810 relatou …

Por seu turno, a testemunha com a identificação de código 135710 foi, também ela, como já dissemos acima, bastante útil para a conjugação e melhor compreensão de algumas das afirmações veiculadas pela anterior testemunha. Em concreto, a testemunha de código 135710 não teve dúvidas em afirmar que …

Importa, aliás, a este último propósito completar o que temos de prova directa (ou seja, decorrente, neste caso, das duas mencionadas testemunhas oculares) com os outros elementos de prova indirecta, e que com a primeira (prova directa), como dissemos, houve que conjugar.

Não sendo a prova indiciária proibida pela regra geral da liberdade dos meios de prova (vide arts. 125º e 126º C.P.P.), sempre exigirá, portanto, um especial cuidado na sua mobilização e apreciação, por forma a que apenas possa ser extraído o facto probando do facto indiciário quando tal seja corroborado por outros elementos de prova, assim afastando também diversas hipóteses factuais igualmente possíveis, mas descabidas em cada situação decidenda.

Então, na hipótese com que nos confrontamos, não poderemos deixar de referir, pela sua profundidade, clareza e exaustividade, o conteúdo (ora dado por inteiramente reproduzido) do relatório técnico-pericial constante de fls. 474 a 476, relativo à mancha hemática recolhida … vindo esse mesmo relatório a confirmar tratar-se a dita mancha de sangue coincidente com o perfil biológico da vítima ….

O aspecto acabado de realçar e, sobretudo, a zona, no interior do veículo, no qual foi recolhida a mancha hemática, mostram-nos, de modo bastante evidente, como aquilo que as testemunhas de códigos 246810 e 135710 afirmaram em audiência se reveste de todo o sentido, verosimilhança e credibilidade, mostrando-se, pois, compatível com o que conseguiram vislumbrar naquela noite. Desde logo, a vítima a ser introduzida na parte traseira do dito veículo, no contexto de uma evidente violência levada a cabo por repetidos murros, pontapés e, mais tarde, como sabemos, até com algo de semelhante a um pau… sendo, pois, impossível, à luz da normalidade das regras da experiência da vida e da ciência tentar conceber toda aquela violência sem derramamento de sangue por parte do agredido…

Depois, tivemos igualmente em atenção o depoimento de …

Apesar da leitura em audiência, nos termos do art. 356º C.P.P., dos depoimentos prestados em inquérito pelos referidos … e …, e do dissídio depois mantido por ambos os depoentes em juízo, não nos pareceu de desprezar, no entanto, um aspecto relativamente ao qual ambos estiveram mais ou menos de acordo em sede de depoimentos produzidos em inquérito: acontecer algumas vezes o … deslocar-se ao … de bicicleta …

O que ganhará também coerência com os aludidos depoimentos das testemunhas de códigos 246810 e 135710, com a recolha hemática efectuada na “… “ do arguido AA …, e ainda com os seguintes aspectos.

III. QUESTÕES A CONHECER

As questões submetidas à nossa apreciação, são as seguintes:

- Saber se a valoração do depoimento indirecto e dos testemunhos anónimos é proibida;

- Saber se o Tribunal recorrido errou na decisão sobre a matéria de facto;

- Saber se a pena aplicada aos recorrentes pela prática do crime de homicídio é excessiva

IV .APRECIAÇÃO DO RECURSO

1.  O depoimento indirecto

Na audiência de discussão e julgamento, afirmou a testemunha … ter ouvido de …  que  o “… estavam a malhar no …”. Aquele, por seu turno, contou a … que ouviu do … que … estava a levar a “bordoada”. Chamado a depor, … nega que tenha tido aquela conversa com o …, versão que mantiveram depois de lidas as declarações que um e outro prestaram no inquérito e realizada a acareação.

Estamos, assim, no âmbito dos depoimentos indirectos, já que as testemunhas … e …, contrariamente ao que é exigido para a regra da prova testemunhal[1] não invocaram o conhecimento directo[2], ou seja, que presenciaram o facto objecto de prova – o arguido … e os … a agrediram o falecido ….  

Quando a testemunha reproduz factos que ouviu dizer a determinadas pessoas, presta um depoimento indirecto. Este não incide sobre os factos, objecto da prova, mas sobre o depoimento de um terceiro que os contou à testemunha inquirida[3], podendo, simplificadamente, dizer-se que o depoimento indirecto não versa factos objecto do processo, mas antes, um depoimento ouvido a terceiro, que versa tais factos[4].

«A prova testemunhal caracteriza-se pela sua imediação com o acontecimento que se presenciou visual e auditivamente, não admirando as reservas suscitadas pelo depoimento indirecto em que está ausente a relação de imediação entre a testemunha e o objecto por ele percebido»[5].

 Para estes casos, estatui o artigo 129.º, n.º 1, do Código de Processo Penal:

Se o depoimento resultar do que se ouviu dizer a pessoas determinadas, o juiz pode chamar estas a depor. Se o não fizer, o depoimento produzido não pode, naquela parte, servir como meio de prova, salvo se a inquirição das pessoas indicadas não for possível por morte, anomalia psíquica superveniente ou impossibilidade de serem encontradas.

Como se assinala no Acórdão da Relação de Guimarães[6], «na fase de transição que mediou entre a entrada em vigor da Constituição de 1976 e a entrada em vigor do novo Código de Processo Penal, os textos nacionais que estiveram na génese do novo regime apontavam genericamente para a proibição do testemunho de ouvir dizer (…). A proscrição de testemunhos de outiva ou de ouvir dizer, na linha dos direitos de raiz anglo-saxónica que proibiam a “hearsey evidence”, não foi, porém, consagrada de forma absoluta, [mas condicionada]. É hoje unânime o entendimento segundo o qual o Código Português consagrou um regime de admissibilidade condicionada (…)

Na síntese de Dá Mesquita, o regime português do depoimento indirecto não compreende uma política preventiva que obste à admissão do ouvir dizer, o depoimento faz emergir os deveres procedimentais do tribunal (determinação da fonte e chamamento a depor da mesma) e as proibições não derivam do processo inferencial gerado pelo ouvir dizer, mas traduzem restrições por força do procedimento adoptado. Proibição irrestrita, no caso da fonte indeterminada e dependente do achamento a depor no caso da fonte determinada que não foi inquirida, admitindo-se excepções em que aquela não tem que ser chamada (…)

Costa Pinto (…) sintetizou este tema do seguinte modo : «Se a fonte for chamada a depor, a prova do facto indirectamente conhecido acabará provavelmente por se fazer através do depoimento desse terceiro, que é a fonte primária do conhecimento directo relevante para o processo: o depoimento da testemunha de-ouvir-dizer é, neste caso, fundamentalmente um conhecimento de investigação que permite chegar à fonte primária da informação e, além disso, um factor de credibilidade das declarações prestadas por esta (pela possível congruência dos dois depoimentos».

A validade do depoimento indirecto depende [7], assim, da identificação da pessoa a quem se ouviu dizer e da chamada desta depor. Só assim não será nos casos em que a inquirição do chamado não é possível por morte, anomalia psíquica superveniente ou impossibilidade de serem encontradas 

Não tendo o depoimento indirecto obedecido aos pressupostos enunciados, o artigo 129º, nº 1 do Código de Processo Penal, estamos perante uma proibição de prova.

No caso em apreço, não se questionado a validade do depoimento indirecto prestado por … relativamente ao que ouviu dizer de … e … em relação ao que ouviu dizer a … e, sendo, os dois primeiros contraditórios, a questão prende-se não com a validade dos depoimentos – são legalmente admissíveis -  mas com a valoração dos mesmos.

A questão não é nova e tem merecido da doutrina e jurisprudência posições divergentes.

Os recorrentes, ancorados na posição defendida, por Paulo Pinto de Albuquerque[8]  defendem que, existindo contradição entre o depoimento indirecto e o depoimento da pessoa chamada a depor, deve prevalecer somente este.

E isto, porque, para aquele autor, a valoração do depoimento indirecto, as exigências do principio da imediação impõem não só que a testemunha-fonte seja chamada a depor, mas que deponha efectivamente e ainda, que confirme tal depoimento indirecto, considerando, por isso, que não pode ser valorado o depoimento indirecto quando a testemunha-fonte contradiz aquele.

Com o devido respeito por esta opinião, não a sufragamos.

Uma vez prestado o depoimento da testemunha-fonte, cumpre-se a condição de validade do depoimento indirecto, nada impedido que seja valorado conforme os princípios gerais da valoração da prova, mormente o principio da livre apreciação, imediação e a oralidade.

A apreciação ou valoração da prova – o processo de decisão do Tribunal sobre a prova produzida em audiência de julgamento – é, como sabemos, no sistema penal português, de livre apreciação.

O que quer dizer que, ao contrário do sistema de prova legal, vinculada ou tarifada, o julgador, na valoração da prova, não está sujeito a normas e regas fixadas.

Mas tão só. A livre apreciação apenas se traduz em libertar o juiz de critérios preestabelecidos pela lei para formar a sua convicção, mas não [de] isentar de obediência às regras da experiência e aos critérios da lógica. Neste sentido, um elemento de legalidade entra de novo no problema da apreciação da prova. Ainda que não fixadas pela lei, ele implica, na verdade, que certas regras de direito (nas quais podem transformar-se as leis da lógica e da experiência) presidam à avaliação da prova pelo juiz, mesmo onde falamos de livre convicção. Ideia que implica, por um lado, a possibilidade de apreciar em via de recurso a violação de tais leis na apreciação da prova e, por outro lado, (…) conduz à necessidade de motivar as decisões em matéria de facto.»[9]

«[A] liberdade que aqui importa é a liberdade para a objectividade, aquela que se concede e que se assume em ordem a fazer triunfar a verdade objectiva, isto é, uma verdade que transcende a pura subjectividade e que se comunique e imponha aos outros. Isto significa, por um lado, que a exigência de objectividade é ela própria um princípio de direito, ainda no domínio da convicção probatória, e implica, por outro lado, que essa convicção só será válida se for fundamentada, já que de outro modo não poderá ser objectiva.»[10]

Como corolário do principio da livre convicção, releva especialmente o artigo 355º do Código de Processo Penal, ao prever que, para a formação da convicção, ressalvadas as excepções aí referidas, só valem em julgamento as provas produzidas ou examinadas em audiência, o acto processual onde a oralidade e imediação na produção e recepção da prova assumem especial importância.

Costuma dizer-se que a aceitação dos princípios da oralidade e da imediação traduzem um dos «dos progressos mais efectivos e estáveis na história do direito processual penal. Já de há muito, na realidade, que em definitivo se reconheciam os defeitos de processo penal submetido predominantemente ao principio da escrita, desde a sua falta de flexibilidade até à vasta possibilidade de erros que nele se continha, e que derivava sobretudo de com ele se tomar absolutamente impossível avaliar da credibilidade de um depoimento. (...). Só estes princípios, com efeito, permitem o indispensável contacto vivo e imediato com o arguido, a recolha da impressão deixada pela sua personalidade. Só eles permitem, por outro lado, avaliar o mais correctamente possível a credibilidade das declarações prestadas pelos participantes processuais»[11].

«A oralidade permite que as relações entre os participantes no processo sejam mais vivas e mais directas, facilitando o contraditório e, por isso, a defesa, e contribuindo para alcançar a verdade material através de um sistema de prova objectiva, atípica, e de valoração pela intima convicção do julgador (prova moral), gerada em face do material probatório e de acordo com a sua experiência de vida e conhecimento dos homens"[12]

Deste modo, deve a livre convicção revelar-se objectiva, logica e racionalmente alicerçada em meios de prova validamente produzidos, e como tal constar na decisão de facto, por observância do principio do dever de fundamentação inscrito na lei fundamental -  artigo 205.º da Constituição da República Portuguesa – e concretizado, entre outros, nos artigos 97.º e 374.º, n.º 2, do Código de Processo Penal.

«A prova não é um mero instrumento retórico [contrariamente ao que é próprio de um sistema de íntima convicção] mas sim um instrumento epistémico, ou seja, o meio com o qual, no processo, se adquirem as informações necessárias para a determinação da verdade dos factos».[13]

Ou como ensina Cavaleiro Ferreira[14], livre convicção «é um meio de descoberta da verdade, não uma afirmação infundada da verdade» - até porque nela desempenha um papel de relevo não só a actividade puramente cognitiva mas também elementos racionalmente não explicáveis (v.g. a credibilidade que se concede a um certo meio de prova) e mesmo puramente emocionais – (…) é, também ela uma convicção objectivável e motivável, portanto capaz de impor-se aos outros. Uma tal convicção existirá quando e só quando … o tribunal tenha logrado convencer-se da verdade dos factos para além de toda a dúvida razoável».[15]

Assim sendo, pode afirmar- se que a livre convicção é o principio máximo, a base transversal a toda a valoração probatória. Só assim não será quando a lei dispuser de maneira diferente.

É este o sentido da livre convicção estatuída no artigo 127.º, do Código de Processo Penal, segundo o qual, excepcionados os casos previstos na lei, o julgador aprecia a prova segundo a sua própria convicção, formada à luz das regras da experiência comum.

O processo da formação da livre convicção tem de delinear-se, sob a égide dos princípios da imediação, oralidade e contraditório e com observância das regras de procedimento (v.g. os artigos 348.º e 349.º Código de Processo Penal), devendo, primeiro, alicerçar-se em raciocínios objectivos, lógicos, consonantes com as regras da experiência comum e, depois revelados na decisão de facto, através da fundamentação. 

Por outro lado, é condicionado pelo legislador, nos casos em que se requer maior prudência e cuidado, como sucede no regime legal de admissibilidade dos meios de prova - afasta a prova do elenco das legalmente admissíveis e sanciona a inobservância, com a proibição de prova (artigos 125.º e 126.º, do Código de Processo Penal) e nas regras impostas na valoração da prova (a legal, vinculada ou tarifada).

Ora, para a valoração do depoimento indirecto não preveniu o legislador valoração diversa da regra geral para o depoimento indirecto, mas tão só as condições em que é legalmente admissível, isto é, condicionou a admissibilidade do depoimento indirecto, mas não vinculou a valoração do mesmo quanto ao conteúdo das declarações prestadas pela testemunha fonte. Não se trata de prova vinculada, mas de livre apreciação, nos termos gerais da valoração da prova.

Se o legislador pretendesse restringir a valoração do depoimento indirecto à confirmação do mesmo pela fonte, de certo, tê-lo-ia consagrado expressamente. Isto é, para além da indicação da testemunha-fonte e seu chamamento a depor, preceituaria como condição de validade, «a confirmação pela testemunha-fonte da existência da conversa com a testemunha indirecta ou reconhecimento de que prestara (perante esta ou por forma que esta pudesse ter ouvido) as declarações cuja autoria lhe é atribuída, havendo muitas situações reais em que a testemunha-fonte não se recorda ou não está em condições de garantir ter feito o relato à testemunha indirecta; terceira, exigir a confirmação pela testemunha-fonte do conteúdo do depoimento indirecto no sentido de se tornar necessário estabelecer uma sobreposição coerente e perfeita entre ambos os depoimentos, sendo certo que, as mais das vezes, ocorrerão imprecisões, incoerências e contradições. »[16].

«Validamente produzido o depoimento indirecto, a sua valoração é feita segundo o principio geral previsto no artigo 127.º do Código de Processo Penal, devendo ser avaliado conjuntamente com a demais prova produzida, incluindo o respectivo depoimento directo, quando prestado, tudo conforma livre apreciação e as regras da experiência comum»[17]

Daqui resulta que o artigo 129.º do Código de Processo Penal apenas exige que a testemunha-fonte preste depoimento sempre que possível, e não já a confirmação do conteúdo do depoimento indirecto.

A audição da testemunha-fonte em audiência de julgamento em nada belisca os princípios do contraditório e da imediação, como foi o caso, em que as duas testemunhas foram inquiridas e acareadas.

E isto porque, com o devido respeito por opinião contrária, a aplicação daqueles princípios, não «implica a sobrevalorização de determinada prova em detrimento de outra e, bem, pelo contrário, pode suceder que a credibilidade do depoimento indirecto ofereça uma manifesta superioridade de convencimento em relação ao depoimento da testemunha-fonte chamada, o que, aliás, pode ser coadjuvada por outros elementos probatórios. Em tal hipótese, conferir uma credibilidade automática ao depoimento desta testemunha chamada viola a procura da verdade material que informa o processo penal»[18].

Termos em que não vislumbramos razão, para, formal e abstractamente sobrevalorizar um meio de prova em detrimento de outro, em particular, nos casos em que a testemunha referência e a testemunha-fonte prestam depoimento em audiência, com observância do contraditório.

Questão diferente será, a de saber, se em face da prova produzida, na valoração da prova, o decisor apreciou os depoimentos das testemunhas de referência e da fonte conforme a livre convicção que, nos termos do artigo 127.º, do Código de Processo Penal acima citado, deve , ainda atender, às regras da experiência comum, de que falaremos mais adiante.  

Na audiência de discussão e julgamento, foram ouvidas as testemunhas…, sob a égide da oralidade, imediação e contraditório, sendo que da fundamentação da decisão de facto consta as regras máxima da experiência que o tribunal recorrido entendeu ser de considerar. Se tais regras foram ou não violadas, é questão de erro de julgamento e não de validade do depoimento indirecto.

Daí que, tendo sido cumpridas as condições de validade da admissibilidade dos depoimentos indirectos exigidos pelo artigo 129.º, do Código de Processo Penal, não existe motivo, para que o tribunal preso a que … confirmasse os depoimentos indirectos.

Improcede, assim, esta pretensão dos Recorrentes.

 

2. Valoração proibida da prova por testemunhas de identidade ocultada

Segundo os Recorrentes o tribunal recorrido não poderia ter considerado os depoimentos da testemunha de identidade ocultada, já que foram decisivos para a condenação do arguido.

Vejamos se assim é:

A reserva do conhecimento da identidade da testemunha integra o conjunto das medidas de protecção das testemunhas em processo penal, reguladas na Lei n.º 93/99 de 14 de julho, (Lei de Protecção de Testemunhas).

Como tal medida dificulta o exercício do direito de defesa -  já que,  por regra, impede o acusado e seu defensor, de obter o conhecimento da identidade da testemunha -  incluindo além do nome e sobrenome, endereço, quaisquer elementos que, isolados ou conjuntamente com outros, permitam individualizar uma pessoa, distinguindo-a das demais – obedece a regras especificas de admissibilidade, que ajustem os dois interesses em confronto, o das exigências da acção e perseguição criminal e o direito a um processo equitativo, de que o direito de defesa é corolário.

Não podemos olvidar que o  controlo da formação da convicção pelo tribunal e pela defesa inicia -se logo no momento da produção da prova, designadamente, com o conhecimento da identificação da testemunha e das características da sua personalidade e memória e com a apreciação dos elementos pessoais reveladores da credibilidade da testemunha -  v.g. a liberdade e espontaneidade do depoimento ou das declarações; a prontidão e espontaneidade das respostas, a segurança e hesitações (cf. artigo 138.º do Código de Processo Penal) - elementos que estão vedados ao julgador e á defesa (cf. artigo 10.º, 16, 17.º e 19.º, n.º 1, da Lei de Protecção das Testemunhas), sendo que, a as declarações são prestadas com recurso a meios tecnológicos de distorção da imagem e da voz, o quer dificulta, também, a aferição da credibilidade. 

Compreende-se, assim, que a valoração do depoente anónimo seja subtraída à livre apreciação, carecendo de corroboração, de um complemento, que conforme a declaração. O fundamento da exigência da corroboração não é apenas a fiabilidade dos testemunhos anónimos, em razão dos desvios das regras de processos inerentes à prova testemunhal, mas sobretudo, as dificuldades objectivas do arguido e do próprio decisor na fiscalização da fonte probatória.

A exigência de corroboração do testemunho anónimo integra, deste modo, uma das excepções à livre convicção, impedindo que o convencimento do julgador se possa fundamentar em declarações das testemunhas anónimas, quando se constituam como única fonte de prova ou quando não sejam suportadas por outros «elementos idóneos a confirmá-los no plano da atendibilidade. E isto, sublinhe-se, mesmo quando esteja pessoal e intimamente seguro da veracidade do conteúdo narrado: neste domínio, para sustentar a condenação a “certeza moral” do julgador tem de combinar-se com a “certeza legal.»[19]

Em consonância, dispõe o artigo 19.º, n.º 2, do diploma citado:

«Nenhuma decisão condenatória poderá fundar-se, exclusivamente, ou de modo decisivo, no depoimento ou nas declarações produzidas por uma ou mais testemunhas cuja identidade não foi revelada.».

Inspirado na jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem (TEDH), pretendeu-se exigir que a convicção do Tribunal não pode fundar-se, exclusivamente, ou em grau decisivo, no depoimento de uma pessoa que o arguido não confrontou nem teve oportunidade de confrontar, quer durante a investigação ou em julgamento.

A  valoração da prova dos testemunhos anónimos regulada no mencionado artigo 19.º é delimitado pela negativa:  a não contribuição de grau decisivo para a condenação de tais declarações, ou seja, a contrario, exige-se corroboração por outros meios probatórios[20], os elementos corroborantes. Se o não forem não podem servir com fundamento da condenação.

Em sentido comum e na definição de Dominioni, citado por Medina de Seiça[21] a propósito das declarações do co-arguido, mas aplicáveis ao caso, elementos corroborantes «são factos que por si só nada têm a ver com o histórico do processo, mas de cuja existência (adquirida no processo mediante qualquer meio de prova: documento, testemunho, perícia, inspecção judicial), se conclui que  o autor da declaração a verificar foi verdadeiro».   

Em principio, podem ser quaisquer factos com potencialidade para sustentar a consideração da testemunha. E isto porque «[é] normalmente impossível manipular harmoniosamente vários fragmentos de uma história, sem que algum deles escape à manipulação» A Lei de protecção de testemunhas”, postulando uma diferenciação ontológica (e não meramente quantitativa) de tais elementos em relação à declaração, apenas exclui que possam ser constituídos pelo depoimento de outra testemunha anónima.

Parece evidente o motivo pelo qual a verificação da atendibilidade de um determinado meio de prova, considerado menos valioso do ponto de vista gnoseológico (e ético) – e, por isso, insuficiente de per si para sustentar um juízo condenatório – não pode fazer-se através de um elementos probatório de idêntica natureza e igualmente necessitado de conforto.»[22]

O artigo 19.º, n.º 2, ao referenciar que a condenação não pode se pode fundar, exclusivamente ou de modo decisivo nas declarações prestadas por uma ou mais testemunhas, não indica se basta que exista um elemento corroborante que conforte a ponderação da fonte ou se será necessário um elemento mais especifico, uma terceira prova que confirme o conteúdo das declarações.

Nesta segunda hipótese, para que a declaração fosse considerada, tinha de existir uma meio de prova autónomo, entendido como «confirmação de um resultado probatório pela sua correspondência a outro resultado oriundo de uma fonte independente»[23], ou seja, a demonstração por uma fonte autónoma do conteúdo do relatado pela testemunha anónima, estendendo-se, assim, a corroboração a todos os factos narrados pela testemunha.

Esta interpretação, se por um lado, aumenta a credibilidade das declarações das testemunhas anónimas, de outro, conduz ao paradoxo  apontado à jurisprudência do TEDH, firmado Acórdão de 23 de abril de 1997[24] já que torna difícil a  aplicação  do carácter decisivo exigido para a valoração da declaração prestada pela testemunha não identificada. Isto «porque se o depoimento da testemunha anónima é utlizado pelo tribunal como parte da prova, tal verificar-se-á sempre porque o tribunal o considera uma parte decisiva da prova para que a mesma se apresente completa ou, pelo menos suficiente».

Na verdade, a não revelação da identidade da testemunha é uma media carácter excecional [artigo 1.º, n.º 4 da Lei de Protecção de Testemunhas] que tem lugar se verificarem cumulativamente as condições enunciadas no artigo 196.º, n.º 1, da Lei de Protecção das Testemunhas, entre as quais, o depoimento se reportar a um dos crimes catálogo [alína a)]; não ser fundadamente posta em dúvida a credibilidade da testemunha [alínea c)] e o depoimento ou as declarações constituírem um contributo probatório de relevo [alínea d)], estando sujeita a critérios de necessidade e adequação (só é aplicada quando nenhuma outra se verifique como a adequada a satisfazer as exigências do processo).

Todas estas condições requerem uma avaliação da importância das declarações da testemunha anónima, no sentido de verificar se constituem um contributo probatório de relevo, por isso, importante e decisivo no apuramento dos factos, o que não seria compatível com a exigência da comprovação de todos os factos relatados.

Como assinala Medina Seiça[25]«ou a segunda prova, empregue como meio de verificação, é suficiente para demonstrar o facto contido na declaração a comprovar e, então seria desnecessária a primeira fonte probatória; ou, como nova prova, requer uma ulterior comprovação e, nesse caso, o problema está destinado a reproduzir-se até ao infinito».

Por outro lado, a exigência que a prova corroborante demonstre todos os factos declarados tornaria praticamente inútil a utilização deste tipo de declarações, do ponto vista da acusação, e, por conseguinte, da perseguição criminal.

Com efeito, a informação disponibilizada pela testemunha quando evoca um evento por si percepcionado não pode ser senão um relato complexo de tal acontecimento, apenas artificialmente decompível em proposições factuais singulares e, por isso, dificilmente confirmado na sua integralidade, por fontes autónomas e independentes.»[26]

Assim, salvo melhor opinião e respeito por posição contrária, cremos que a corroboração não abrange todos os factos narrados pelas testemunhas anónimas. Se existirem meios de prova exteriores que sustem a credibilidade das declarações prestadas por testemunha(s) não identificada(s), consideradas global e articuladamente, é possível afirmar que não foram decisivas na condenação.

É o que sucede no nosso caso.

A convicção do Colectivo de Coimbra fundou-se numa panóplia de prova corroborante - como por exemplo, os depoimentos das testemunhas, …, os relatórios periciais, os relatórios de exame, os registos fotográficos, as anotações do malogrado … e outros documentos, a inspecção judiciária e os autos de busca e apreensão – das declarações prestadas pelas testemunhas oculares, que apesar de serem importantes, não foram decisivas para a condenação.

Nenhuma censura merece a valoração das declarações das testemunhas com os códigos 246810 e 135710, improcedendo, nesta parte o recurso.

3. A impugnação de facto

Os recorrentes centram a sua defesa no erro de julgamento que, segundo eles, foi cometido pelo tribunal recorrido na apreciação da prova produzida.

Antes de entrarmos na apreciação destas questões, convém recordar, os limites dos poderes de cognição desta Relação, no âmbito da impugnação de facto.

Decorre dos princípios norteadores da valoração de prova – livre apreciação, imediação e oralidade já aflorados no ponto 1 e 2 – que o Tribunal de recurso não deverá alterar a matéria de facto fixada pelo juiz do julgamento, se a livre convicção se encontrar devidamente fundamentada, e for uma das possíveis soluções segundo as regras da experiência comum.

Neste sentido, decidiu o Acórdão desta Relação, de 6 de março de 2002[27]:

 «Quando a atribuição da credibilidade a uma fonte de prova pelo julgador se basear na opção assente na imediação e na oralidade, o tribunal de recurso só a poderá criticar se ficar demonstrado que essa opção é inadmissível face às regras da experiência comum».

Ou seja, só perante a constatação de que a livre convicção se configurou em termos errados é legalmente possível ao tribunal superior alterar a matéria de facto fixada pelo tribunal recorrido.

Como salienta o Acórdão da Relação de Coimbra 6 de Dezembro de 2000[28]

«O tribunal superior só em casos de excepção poderá afastar o juízo valorativo das provas feito pelo tribunal a quo, pois a análise do valor daquelas depende de atributos (carácter; probidade moral) que só são verdadeiramente apreensíveis pelo julgador de 1.ªinstância».

Ou, conforme se escreveu, entre outros, no Acórdão do Tribunal desta mesma Relação de 3 de Novembro de 2004[29]

 «(...) É evidente que a valoração da prova por declarações e testemunhal depende, para além do conteúdo das declarações e dos depoimentos prestados, do modo como os mesmos são assumidos pelo declarante e pela testemunha e da forma como são transmitidos ao tribunal, circunstâncias que relevam, a par da postura e do comportamento geral do declarante e da testemunha, para efeitos de determinação da credibilidade deste meio de prova, por via da amostragem ou indiciação da personalidade, do carácter, da probidade moral e da isenção de quem declara ou testemunha»

Na verdade, lê-se, no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 20 de setembro de 2005:

«A convicção do tribunal é construída dialecticamente, para além dos dados objectivos fornecidos pelos documentos e outras provas constituídas, também pela análise conjugada das declarações e depoimentos, em função das razões de ciência, das certezas e das lacunas, das contradições, hesitações, inflexões de voz, (im)parcialidade, serenidade, olhares, "linguagem silenciosa e do comportamento", coerência do raciocínio e de atitude, seriedade e sentido de responsabilidade manifestados, coincidências e inverosimilhanças que, por ventura, transpareçam em audiência, das mesmas declarações e depoimentos», elementos que a audição da gravação dos depoimentos prestados não fornece ao tribunal de recurso.

Esse o motivo pelo qual o artigo 412º, nº 3, do Código de Processo Penal impõe ao sujeito processual que impugne a decisão sobre a matéria de facto, o ónus da especificação, indicando (i) os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados; (ii) as concretas provas que imponham decisão diversa da recorrida e (iii) as provas que devem ser renovadas.

Impor decisão diversa da recorrida não é o mesmo que admitir prova diversa, assente em outros juízos de credibilidade.

O que significa que, havendo prova produzida em audiência que consinta duas ou mais decisões de facto, e o julgador, fundamentadamente optar por uma delas em detrimento de outra ou de outras, a decisão que proferir sobre a matéria de facto é, em principio inatacável, ainda que o recorrente faça uma leitura diversa, a não ser que, as provas produzidas imponham uma decisão diferente da do tribunal recorrido, o que acontecerá, nomeadamente, «sem preocupação de enunciação exaustiva, designadamente, quando o julgador decidiu a apreciação dos meios de prova ou de obtenção de prova ao arrepio e contra a prova produzida (v.g. dá como provado determinado facto com fundamento no depoimento de determinada testemunha e ouvido tal depoimento ou lida a respectiva transcrição constata-se que a testemunha disse coisa diversa da afirmada na decisão recorrida ou nem se pronunciou sobre aquele facto, ou quando o tribunal valorou meios de prova ou de obtenção de prova proibidos, ou apreciou prova produzida desrespeitando as regras sobre o valor da prova vinculada ou das legis artis, ou quando a apreciação da prova produzida contraria as regras da lógica, princípios da experiência, ou ainda, quando a apreciação se revela ilógica, arbitrária e valorada do favor rei).»[30]

Delimitados os poderes de cognição do Tribunal, vejamos os factos concretamente impugnados pelos Recorrentes.

Quer a prova directa, quer a prova indirecta legalmente admissíveis. São dois meios de chegar ao conhecimento da realidade (ou verdade) do factum probandum: pela primeira via ou método, «a percepção dá imediatamente um juízo sobre um facto principal»,  ao passo que na segunda «a percepção é racionalizada numa proposição, prosseguindo silogisticamente para outra proposição, à base de regras gerais que servem de premissas maiores do silogismo, e que podem ser regras jurídicas ou máximas da experiência. A esta sequência de proposição em proposição chama-se presunção.»[31].

É, dentro das provas validamente produzidas em audiência, que as presunções assumem especial relevo, para construir a realidade de um facto desconhecido, sempre dentro dos limites dos princípios da presunção e de livre apreciação da prova.

Para encontrar o equilíbrio entre a prova indirecta e a presunção de inocência do arguido, a doutrina e jurisprudência tem procurado critérios que superam os direitos em conflito, de entre os quais, Carlos Climent Durán[32] Para este autor, há que distinguir o conceito vulgar de presunção e o conceito normativo.

A presunção abstracta é constituída por uma norma ou regra de presunção, susceptível da prova em contrário, que pode ter sido estabelecida pela lei ou por decisão judicial, apoiando-se, em ambos os casos, em alguma máxima da experiência. Apresenta uma estrutura em que os factos básicos estão conexionados através de um juízo de probabilidade, que por sua vez se apoia na experiência, de maneira tal que a prova de um envolve a prova de outro. Enquanto a presunção concreta supõe a projecção da presunção abstracta sobre o caso ajuizado ou, se se preferir, a subsunção do caso concreto dentro da presunção abstracta, uma vez que se tenha praticado ou podido praticar a correspondente contraprova e se tenha comprovado judicialmente a existência de uma ligação racional entre os indícios e o facto presumido, com descarte de qualquer outro possível facto presumido. Em rigor já não cabe falar de facto presumido, mas antes de facto provado. O seu fundamento já não assenta no juízo de probabilidade, mas antes no juízo de certeza (certeza moral), como qualquer outro meio probatório ao qual a presunção se parifica. (…) Toda a presunção consiste, dizendo em poucas palavras, em obter a prova de um determinado facto (facto presumido) partindo de um outro ou outros factos básicos (indícios) que se provam através de qualquer meio probatório e que estão estreitamente ligados com o facto presumido, de maneira tal que se pode afirmar que, provado o facto ou factos básicos, também resulta provado o facto consequência ou facto presumido».

Como salienta o Cons.º José António Henriques dos Santos Cabral[33],  sendo a máxima da experiência uma regra que não pertence ao mundo dos factos, originando um juízo de probabilidade e não de certeza, «só quando a presunção abstracta se converte em concreta, após o sopesar das contraprovas em sentido contrário e da respectiva valoração judicial, se converterá o conhecimento provável em conhecimento certo ou pleno.

Só este convencimento, alicerçado numa sólida estrutura de presunção indiciária – quando é este tipo de prova que está em causa –, pode alicerçar a convicção do julgador.

Num hipotético conflito entre a convicção em consciência do julgador no sentido da culpabilidade do arguido e uma valoração da prova que não é capaz de fundamentar tal convicção será esta que terá de prevalecer.

Para que seja possível a condenação é imprescindível que, por procedimentos legítimos, se alcance a certeza jurídica, que não é desde logo a certeza absoluta, mas que, sendo uma convicção com génese em material probatório, é suficiente para, numa perspectiva processual penal e constitucional, legitimar uma sentença condenatória:»

De volta ao caso;

Vale para dizer que o facto de as testemunhas não terem presenciado o momento em que os recorrentes decidiram vingar-se de …, matando-o, ainda assim, é possível, com segurança, chegar a tal conclusão.  

Foi o que fez o Colectivo de Coimbra.

Para além dos contributos das testemunhas oculares, provindos de quem, praticamente in loco, presenciou  uma parcela significativa dos comportamentos determinativos da morte do aludido …, atendeu o Tribunal igualmente a toda uma outra panóplia de elementos – testemunhais, mas não só – que, na sua concatenação e conjugação recíprocas, e à luz das mencionadas regras da experiência comum, nos inculcaram a convicção – (…) – de que os arguidos … e … podem e devem ser individualizados e destacados da mole de pessoas que, na noite em causa, vitimou o referido …

Assim, foi essencial, pela sua profundidade, clareza e exaustividade, o conteúdo do relatório técnico-pericial constante de fls. 474 a 476, relativo à mancha hemática recolhida, …, na viatura do arguido …, mais exactamente na zona posterior do encosto do banco central do conjunto de bancos traseiros do veículo coincidente com o perfil biológico da vítima …

O aspecto acabado de realçar e, sobretudo, a zona, no interior do veículo, no qual foi recolhida a mancha hemática, mostram-nos, de modo bastante evidente, como aquilo que as testemunhas de códigos 246810 e 135710 afirmaram em audiência se reveste de todo o sentido, verosimilhança e credibilidade, mostrando-se, pois, compatível com o que conseguiram vislumbrar naquela noite. …

Ademais, insista-se que Tribunal a quo não acreditou na narração de …, uma vez que disse tudo o que pôde para não se colocar em uma situação delicada perante os arguidos (…). …

Em contrapartida e, apesar das contradições evidenciadas no Acórdão recorrido, considerou a primeira instância, o depoimento de …, …

Conjugada toda esta prova com as declarações das testemunhas oculares, concluiu o Tribunal recorrido que o arguido … e …, tinham elaborado um plano para matar o …, como vingança pelo desaparecimento das armas e da droga.

Com efeito, a testemunha com a identificação de código 246810 viu  dois “senhores”, à força, a colocar um jovem … em um dos veículos automóveis de mercadorias – ou seja, em uma “carrinha” …

O rapaz agredido (com murros e pontapés) gritava por socorro, ao mesmo tempo que os dois “senhores” primeiramente mencionados (…) tentavam colocá-lo no interior do veículo branco …o, através da respectiva porta do meio, do lado direito, o que acabaram por lograr fazer; mas, assim que entrou dentro do automóvel, o agredido conseguiu sair pelo vidro da porta do “pendura” (ou seja, pelo aro do vidro da porta dianteira direita), caindo no chão, desamparado.

Dando conta disso, e de modo pressuroso, as duas pessoas que o haviam introduzido, instantes antes, no interior da “carrinha”, acercaram-se imediatamente dele e puseram-no novamente dentro do veículo, dessa feita pela porta traseira.

Mas as coisas não ficaram por ali, pois que a vítima conseguiu sair por essa mesma porta traseira, caindo aos pés daqueles que o haviam enfiado no veículo, os quais, de imediato, e de um modo ainda mais enérgico, lhe desferiram novamente murros e pontapés, enquanto continuava o agredido, em vão, a clamar por socorro.

Nesse momento, saiu o tal “…” do lugar situado atrás do condutor e, reunindo-se aos outros dois que ali se encontravam, desferiu, com um objecto que à depoente pareceu claramente tratar-se de um pau, diversas pancadas nas costas e até na cabeça da vítima.

 Surgiram ainda, também, uma “senhora” e um outro indivíduo, que, com o que parecia ser um taco de baseball, se baixou, disse algo ao ouvido do rapaz que jazia no chão, que então restou quieto, assim o colocando, novamente pela porta da traseira, no interior do tal veículo de mercadorias branco, pouco após entrando também aqueles (que não a “senhora”) no automóvel, conduzido pelo “senhor” mais velho (claramente detentor de uma voz de comando relativamente aos outros), dali arrancando.

Por seu turno, (…) a testemunha com a identificação de código 135710 não teve dúvidas em afirmar que a cena se desenrolou ao lado da casa onde vive o arguido …, e os …. Assim, havia um jovem rapaz que, gritando por socorro e ajuda, era agredido de modo violento por dois indivíduos que não conseguiu reconhecer ou divisar com clareza. A dado momento, e perante as “escapadas” que o tal jovem protagonizava, saindo de um dos veículos de mercadorias do “…”, ou seja, … para onde os outros dois tentavam introduzi-lo –, ali chegou … com um taco de baseball na mão, agachou-se até ao agredido, disse-lhe algo ao ouvido, cessando este qualquer tentativa de manifestação sonora ou de fuga.

Depois, uma vez a vítima no veículo (para onde foi “atirada” pela porta traseira), entraram alguns dos indivíduos (do sexo masculino) que ali se encontravam …, arrancando o veículo de imediato e saindo do local, por isso percebendo também a testemunha que estaria já alguém ao volante. …

Estes e outros fundamentos correspondem ao relatado pelas testemunhas em audiência e ao que consta na prova por exame, pericial e documental, não se podendo, por isso, afirmar que não existe prova do facto impugnado.

A prova existe, foi devidamente esmiuçada pelo Tribunal a quo, dela ressaltando o modo como os recorrentes e dois filhos do arguido AA, participaram na morte de …, só conseguida pela concertação evidenciada nos actos de execução praticados por cada um.

Assim resulta dos testemunhos das pessoas não identificadas, de … e de … que, como já se disse supra, não podem ser apreciados de forma isolada e fragmentada, como fazem os Recorrentes, antes devem ser contextualizados na globalidade da prova.

Não corresponde, pois, à verdade que não tenha sido produzida prova de que o arguido … e …, cientes de que o autor do furto das armas e da droga, foi o malogrado …, decidiram vingar-se dele, matando-o.

Termos em que improcede impugnação da matéria de facto, mantendo-se na íntegra a decisão que, a este titulo foi fixada pela primeira instância.

4. Medida da Pena

V.  DECISÃO

Em face do exposto, acordam os Juízes da 5ª Secção Criminal deste Tribunal da Relação de Coimbra em negar provimento aos recursos interpostos …

Custas pelos Recorrentes Custas pelos recorrentes, solidariamente os encargos, individual a taxa de justiça que se fixa em 5 UCS [artigos 513.º, no 1, do CPP e 8.º, n.º 9 do RCP e Tabela III anexa].

Coimbra, 9 de outubro de 2024

Relatora: Alcina da Costa Ribeiro

1.º Adjunto: Cristina Branco 

2º Adjunto: Maria da Conceição Barata dos Santos Miranda

 

[1] A regra do artigo 128.º, n.º 1 do Código de Processo Penal, é a de que a testemunha seja inquirida sobre factos de que possua conhecimento directo e constituam objecto de prova.

«O primeiro limite do depoimento testemunhal respeita desde logo aos factos que constituem objecto da prova. A testemunha não pode ser inquirida sobre factos que não sejam objecto da prova, só podendo ser inquirida sobre os factos de que possua conhecimento directo, salvas as limitações decorrentes do artigo 129.º do Código de Processo Penal. [Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal vol. II, p. 221] .Sumariamente pode afirmar-se que a prova testemunhal é um depoimento pessoal e isolado (artigos 138.º, e 348º do Código de Processo Penal). A testemunha deve apresentar a razão de ciência para a sua declaração. Depoimentos sem razão de ciência não merecem crédito e não há que levá-los em conta [Cavaleiro Ferreira, Curso de Direito Penal, II, p. 338].
[2] O conhecimento directo dos factos surge da percepção imediata e não intermediada, através dos seus próprios sentidos e o conhecimento indirecto dos factos resulta do que se apercebeu de outros meios de prova relativos aos factos, mas não imediatamente dos próprios factos [Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, II, página 158}.
Diz-se que tem conhecimento directo dos factos da ocorrência em apreço quando o mesmo resulta da percepção pessoal da testemunha, - doravante designada por testemunha fonte -, isto é colhido através dos seus sentidos; e diz-se que tem conhecimento indirecto ou de ouvir dizer quando o mesmo se formou por intermediação da percepção de outrem e transmitido através de uma representação oral, escrita ou mecânica   [Carlos Adérito Teixeira, Depoimento Indirecto e Arguido: Admissibilidade e Livre Valoração versus Proibição de Prova, Revista do CEJ, n.º 2, 1.º Semestre de 2005, p.139].
Quando a testemunha presta depoimento sobre factos que presenciou e percebeu directa, imediata e pessoalmente, estamos diante de um depoimento directo (artigo 128.º, n.º 1, do Código de Processo Penal).
[3] Cf. entre outros, Santos Cabral, Código de Processo Penal Comentado, em anotação ao artigo 129.º.
[4] Germano Marques da Silva, op. cit., pág. 158 e ss
[5] Santos Cabral, Código de Processo Penal Comentado, em anotação ao artigo 129.º, página 486.
[6] Processo n.º 3202/17.7T8GMR relatado pelo Senhor Desembargador Cruz Bucho, em www.dgsi.pt, sitio a que nos referiremos d, de ora em diante, sem menção do contrário.
[7] Sobre os fundamentos da admissão do depoimento indirecto com limitações, no sistema de processo penal acusatório, cf. o Parecer de Costa Andrade publicado na CJ, 1981, T. 1/p. 5-11, referenciado no Acórdão do Tribunal Constitucional nº 213/94 de 02.03.94, BMJ 435/155. Cf. ainda, cf. Carlos Adérito Teixeira, Depoimento Indirecto e Arguido, in Revista do CEJ, n. º2, 1º semestre 2005, p. 131-133; Paulo Dá Mesquita, A Prova do Crime e o que se disse antes do julgamento, Coimbra editora, 2011, p. 520 e Costa Pinto, Depoimento indirecto, legalidade da prova e direito de defesa, p.s 1043 e ss).
[8] Comentário do Código de Processo Penal, nota 2 ao artigo 129.º.

[9] Eduardo Correia, Revista de Direito e Estudos Sociais, ano XIV, janeiro-junho de 1967, nºs 1-2. p. 29.

[10]  Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Vol. II, p. 131.

[11] Figueiredo Dias, in Direito Processual Penal, páginas 233 a 234.

[12] Germano Marques da Silva, Do Processo Penal Preliminar, p.68.
[13] Michele Taruffo, “conocimiento científico e estándares de prueba judicial” in Boletin Mexicano de Derecho Comparado, nueva série, año XXXVIII, nº 114, pp. 1285-1313, “
[14] Curso de Processo Penal", Vol. II , p..30.
[15]Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, 1º Vol. páginas 203 a 205.

[16] Carlos Adérito Teixeira, Depoimento Indirecto e Arguido: Admissibilidade e Livre Valoração versus Proibição de Prova, revista do CEJ, 1.º semestre 2005, n.º 2, páginas 140 e 141.

[17] Acórdão da Relação de Guimarães de 11 de fevereiro de 2019, (proc. n.º 7/16GTV.G1, relator: Desembargador Cruz Bucho.

No mesmo sentido, decidiram, entre outros, os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 20/11/ 2002, CJ, III, 232; de 12/12/2018, (relator: Conselheiro Pires da Graça) e de 18/10/2018, (relator: Conselheiro Carmona da Mota); o Acórdãos da Relação de Guimarães de  13 /02/2014 (relatora:  Desembargadora Teresa Baltazar); de 11/02/2019 (relator: Cruz Bucho);  os Acórdãos da Relação do Porto de 7/11/2007, (proc. nº 0714613);  de 23/11/2016,  15/12/2021 (relator: Desembargadora Eduarda Lobo), de 25/02/2022 (relator: Desembargador Pedro Vaz Pato); os Acórdãos da Relação de Coimbra de 26/11/2008 (Relator: Desembargador: Vasques Osório); de 18/04/2012 (relator: Desembargador: Abílio Ramalho), os Acórdãos da Relação de Lisboa de 23/11/2016, (relator: Desembargador João Lee Ferreira) e de 01/07/2021, (relator: Desembargador Abrunhosa de Carvalho) e Acórdãos da Relação de Évora de 30/01/2007 (proc. n.º  10/01/2017, (relator: Desembargador António João Latas) e de 14/07/2020, (relator: Desembargador João Amaro).

[18] Santos Cabral, Código de Processo Penal Comentado, obra colectiva, anotação ao artigo 129.º

[19] Sandra Oliveira e Silva, ob. e loc. citados.

[20] Sandra Oliveira e Silva, A Protecção das testemunhas em Processo Penal, p.295.
[21] Ob. e loc cit. p.200.
[22] Fassone citado por Sandra Oliveira Silva, ob. cit. página 322.
[23] Medina de Seiça, ob. citada páginas  219-220.
[24] Cf. declaração de vencido do juiz Van Dick (v.g os juízes, Matscher e Valticos) no Acórdão TEDH Van Mecehelen e ourtos c. Holanda, de 23 de abril de 1997.
[25] Ob. cit. p. 20º, nota 525.
[26] Sandra Oliveira Silva, ob. cit. p. 325

[27] C.J. ano XXVII, Tomo II, p. 44.

[28] Processo nº 733/2000.
[29] Processo n.º 1417/04

[30] Acórdão da Relação de Coimbra de 22 de outubro de 2014, Processo nº 27/12.0JACBR.C1, Relator: José Eduardo Martins.

[31]  Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, II, 1993, 79.

[32] citado peloo Desemb. Belmiro Andrade, e-book, Da prova indirecta ou por indícios: 4. A valoração da prova no âmbito da criminalidade económico-financeira, p..87.

[33] - Prova indiciária e as novas formas de criminalidade, JULGAR n.º 17 e-book CEJ: Da Prova Indirecta ou por Indícios 1. Prova directa e indirecta, págs. 16 e 17