Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
406/21.1PCLRA.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: SARA REIS MARQUES
Descritores: CRIMES DE VIOLAÇÃO AGRAVADA
CRIME DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
CONCURSO REAL
Data do Acordão: 03/12/2025
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE LEIRIA - JUÍZO CENTRAL CRIMINAL DE LEIRIA - JUIZ 4
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ART.º 164º, Nº. 1, AL. A) E N.º 3 DO CP; ART.ºS 14º N.º 1, 152º N.º1 AL. B) E N.º 2 AL. A) E N.º 4 E 5 DO CP E ART.º 3º N.º 2 DO DL 2/98, DE 3/1; ARTS 77.º E 78.º DO CP.
Sumário: 1 - Não é razoável que o Tribunal a quo entenda que o depoimento da ofendida é credível relativamente à violência verbal e física de que a ofendida foi alvo por parte do arguido, - não obstante a vítima não se tenha afastado do arguido depois do primeiro episódio de agressão - e use este argumento para afirmar que o mesmo depoimento não é credível no relato que por ela é feita dos episódios de violência sexual.

2 - A ausência de oposição expressa ao ato não significa que não exista constrangimento e atuação contra a vontade da vítima que se tinha negado a ter relações sexuais com o arguido e que, por isso, havia sido espancada durante a noite e arrastada contra vontade para casa do arguido, e que já de madrugada adormeceu - e estava a dormir - quando o arguido introduziu o pénis na sua vagina.

3 - Com efeito, num primeiro momento, estando a dormir, a vítima não se podia expressar, sendo pois evidente, num juízo de normalidade, que dado o contexto em que tudo sucedeu, não terá o arguido deixado de saber que a vítima não queria a prática daqueles actos e que a sua passividade estava viciada por medo de novas agressões, pela constatação da inutilidade, naquelas circunstâncias, da resistência à prática sexual abusiva.

4 - O silêncio ou passividade da vítima nestas circunstâncias nunca poderá ser entendida como forma de colaborar ou consentir a relação sexual.

5 - E a cognoscibilidade por parte do agente das circunstâncias envolventes que limitam a formação ou exteriorização da vontade da vítima é bastante para efeitos de constrangimento desta, nos termos e para efeitos do disposto no nº 1 e 3 do art. 164º do CP.


(Sumário elaborado pela Relatora)
Decisão Texto Integral: *  *  *

  Acordam na Secção Criminal (5ª) do Tribunal da Relação de Coimbra:

I- Relatório:

-» No Juízo Central Criminal de Leiria - Juiz 4, do Tribunal Judicial da Comarca de Leiria foi proferido Acórdão, datado de 24 de outubro de 2024, que decidiu do seguinte modo: (transcrição):
a Face ao exposto, as Juízes que compõem este Tribunal Coletivo, julgam a acusação parcialmente procedente, por parcialmente provada e, em consequência decidem:
I - Absolver o arguido AA da imputada prática de 3 (três) crimes de violação agravada, na forma consumada, p. e p. pelo artigo 164º, nº1, al. a) e 2, al. a), do Código Penal.
II - Absolver o arguido AA da imputada prática de 2 (dois) crimes de violação agravada, na forma tentada, p. e p. pelos artigos 22º, 23º, 164º, nº1, als. a) e b) e 2, als. a) e b), do Código Penal;
III - Absolver o arguido AA  da imputada prática de 1 (um) crime de coação sexual, p. e p. pelo artigo 163º, nº1, do Código Penal.
IV -  Absolver o arguido AA  da imputada prática de 1 (um) crime de condução perigosa de veículo rodoviário, p. e p. pelos artigos 69º, nº1, al. a) e 291º, nº1, b), do Código Penal.
V - Condenar o arguido AA pela prática de um crime de violência doméstica  p. e p. pelo artº artº 14º nº 1, 152º nº 1 al. b)  e nº 2 al. a) nº 4 e 5 do Código Penal, na pena de 3 (três) anos de prisão bem como na pena acessória de proibição de contacto com a BB pelo período de 3 anos.
VI - Condenar o arguido AA pela prática de - 2 (dois) crimes de condução sem habilitação legal, p. e p. pelo artigo 3º, nº2, do DL nº 2/98, de 03/01, na pena de 6 (seis) meses de prisão por cada um;
VII - Condenar o arguido AA na pena única de 4 anos de prisão.
 Ao abrigo do preceituado nos artigos 1º, 2º, nº 1, 3º, nº 1 e 4 e 8º, nº 1, todos da Lei nº 38-A/2023, de 2 de agosto, declara-se perdoado um ano de prisão a incidir sobre a pena única de 4 (quatro) anos aplicada em cúmulo jurídico ao arguido.
VIII - Condenar o arguido AA a pagar ao Centro Hospitalar de ..., E.P.E. a quantia indemnizatória de a quantia de 85,91€  (oitenta e cinco euros e noventa e um cêntimos), acrescida de juros, a titulo de danos patrimoniais.
IX -  Condenar o arguido AA a pagar à ofendida  BB a quantia indemnizatória de €5.000,00 (cinco mil euros),  a título de danos não patrimoniais.
X - Condenar o arguido AA  no pagamento da taxa de justiça que se fixa em 3 (três) UC’s, nos termos dos artºs 513º e 514º do CP e  artº 8º nº 9 do Regulamento das Custas Processuais e tabela III anexa ao referido diploma e nos demais encargos.”         
                                                      *

Inconformado, o M.º P.º interpôs recurso, apresentando motivações e concluindo do seguinte modo, (transcrição parcial):
2. Não pode o Ministério Público conformar-se com o decidido pelo Tribunal a quo, desde logo, no que respeita à factualidade consignada como “não provada” no acórdão recorrido; sendo que a discordância se centra também subsunção dos factos ao direito; e ainda, nessa decorrência, no que respeita às consequências jurídicas dos crimes, mormente quanto à dosimetria das penas de prisão – parcelares e única – irrogada ao arguido AA (insuficientes e desadequadas às exigências de prevenção, geral e especial, que no caso se fazem sentir).
Nunca é despiciendo lembrar que as conclusões da motivação do recurso delimitam o objecto do recurso (cfr. artigos 402.º, 403.º e 412.º, todos do Código Penal), mas não precludem o conhecimento oficioso dos vícios enumerados nas alíneas a), b) e c), do n.º 2, do artigo 410.º do mesmo diploma, conquanto os mesmos resultem do texto das decisões recorridas, por si só ou em sua conjugação com as regras da experiência comum (cfr. acórdão de fixação de jurisprudência n.º 7/95, do S.T.J., in DR I série., de 28-12-1995) ou ainda das nulidades (v.g. 379.º, do Código de Processo Penal) de que as mesmas eventualmente enfermem.
3. Em obediência ao estatuído no artigo 412.º, n.º 2, al. a) do Código de Processo Penal, especificar que reputamos de incorrectamente julgados os seguintes pontos de facto consignados como não provados – 3., 4., 5, 6, 7, 8, 9, 10, 11, 12, 13, 14.
4. Impõe decisão diversa da recorrida, quanto à matéria de facto, toda a prova indicada na acusação pública, que aqui se dá por integralmente reproduzida, e sobretudo, a consideração das declarações para memória futura prestadas pela vítima BB (constantes da gravação digital, disponível na aplicação informática "H@bilus Media Studio", com a duração de 01 hora, 8 minutos e 23 segundos, com início às 15:20:51 horas, e com o seu termo pelas 16:35:07 horas – vide acta da sessão de julgamento, de 10-10-2024, sob a Ref.ª 108588896), que nós, tal como o Tribunal recorrido, também reputamos de credíveis e detalhadas, na narração dos factos de que foi vítima e que, cremos, terem ocorrido conforme se encontravam vertidos na acusação pública).

5. No despacho de encerramento do inquérito, o Ministério Público imputou ao arguido:
i- 1 (um) crime de violência doméstica agravado, p. e p. pelos artigos 14º, nº1 e 152º, nº 1, al. b), nº 2, al. a), nº 4 e 5, do Código Penal, na pessoa da vítima BB;
ii- 3 (três) crimes de violação agravada, na forma consumada, p. e p. pelo artigo 164º, nº1, al. a) e 2, al. a), do Código Penal.
iii- 2 (dois) crimes de violação agravada, na forma tentada, p. e p. pelos artigos 22º, 23º, 164º, nº1, als. a) e b) e 2, als. a) e b), do Código Penal;

iv- 1 (um) crime de coacção sexual, p. e p. pelo artigo 163º, nº1, do Código Penal.
v- 2 (dois) crimes de condução sem habilitação legal, p. e p. pelo artigo 3º, nº2, do DL nº 2/98, de 03/01.
vi- 1 (um) crime de condução perigosa de veículo rodoviário, p. e p. pelos artigos 69º, nº1, al. a) e 291º, nº1, b), do Código Penal
6. Portanto, seguindo a talhe de foice pelos crimes pelos quais foi condenado – 1 crime de violência doméstica e 2 crimes de condução sem habilitação legal – cumpre sublinhar que a própria factualidade consignada como provada – mormente nos factos 40 a 50, 53 a 54 e 69 a 71 já permitia o preenchimento dos elementos objectivos dos tipos de crime correspondentes, imputados ao arguido (resultando, para nós, inexplicável – porque não explicado – o motivo porque não se deu como provada a correspondente factualidade, atinente aos elementos subjectivos do tipo).
7. Mas, sublinhe-se ainda que, da procedência do recurso da matéria de facto, a factualidade consignada como provada permitirá dar como provados os restantes crimes, pelos quais o arguido foi absolvido.

8. Em conclusão, admitindo que:
- a factualidade vertida nos factos provados 31 a 32 não se autonomize dos elementos típicos da violência doméstica por que foi condenado o arguido (mantendo-se a absolvição pelo crime de violação na forma tentada, imputado ao arguido);
- a factualidade vertida nos factos provados 40 a 41 também não se autonomize dos elementos típicos da violência doméstica por que foi condenado o arguido e/ou seja consumida pelos factos/crime descrito nos pontos 42 a 50 (mantendo-se a absolvição pelo crime de coacção sexual, porque consumido pelo crime de violação na forma tentada, imputado ao arguido);
9. Somos de parecer que o arguido se comprometeu com a prática, para além dos crimes porque foi condenado, de um crime de violação agravada, na forma consumada (factos provados 11 a 14, mais os factos impugnados, que devem passar para o rol dos factos provados); um crime de violação tentada (factos provados 40 a 50, mais os factos impugnados, que devem passar para o rol dos factos provados); um crime de violação, na forma consumada (factos provados 51 a 54, mais os factos impugnados, que devem passar para o rol dos factos provados); um crime de um crime de violação agravada, na forma consumada (factos provados 69 a 71, mais os factos impugnados, que devem passar para o rol dos factos provados, correspondentes aos factos 76 a 77 da acusação); e ainda o crime de condução perigosa de veículo rodoviária (factos provados mais o facto impugnado 4, que deve passar para o rol dos factos provados)
10. Aplicando tais parâmetros a cada uma das condenações que irá emergir da procedência do presente recurso, somos de parecer que deverão ao arguido ser aplicadas as seguintes penas, a acrescer às penas já aplicadas pelo crime de violência doméstica (3 anos de prisão efectiva) e de condução sem habilitação legal (6 meses de prisão efectiva por cada um dos 2 crimes):
- um crime de violação agravada, na forma consumada (factos provados 11 a 14, mais os factos impugnados, que devem passar para o rol dos factos provados): 5 anos de prisão efectiva;
- um crime de violação tentada (factos provados 40 a 50, mais os factos impugnados, que devem passar para o rol dos factos provados): 2 anos de prisão efectiva;
- um crime de violação, na forma consumada (factos provados 51 a 54, mais os factos impugnados, que devem passar para o rol dos factos provados); 4 anos de prisão efectiva;
- um crime de violação agravada, na forma consumada (factos provados 69 a 71, mais os factos impugnados, que devem passar para o rol dos factos provados, correspondentes aos factos 76 a 77 da acusação): 5 anos de prisão efectiva; e
- um crime de condução perigosa de veículo rodoviária (factos provados mais o facto impugnado 4, que deve passar para o rol dos factos provados): 1 ano de prisão efectiva e 6 meses de pena acessória de proibição de conduzir veículos a motor
10.º Tudo ponderado, o Ministério Público é de parecer que será justo, proporcional e adequado aplicar ao arguido, em cúmulo jurídico, face ao facto de compressão resultante desta ponderação (e também da idade actual dos arguidos) uma pena única que seja encontrada dentro da moldura abstracta – que se situará entre um patamar mínimo de 5 anos de prisão e um patamar máximo de 20 anos – a fixar, eventualmente, dentro de uma moldura de prevenção entre 8 e 9 anos (fixando-se em 8 anos, após desconto de um ano de perdão).
11. Foram violados os artigos 40.º, 50.º, 71º, 77.º, e os artigos supracitados, atinentes aos tipos da incriminação.”
                                                           *

Também o arguido apresentou recurso, que motivou, apresentando as seguintes conclusões (transcrição parcial):
III- Quanto ao Ponto 2 da matéria provada, ao contrário do que foi dado como facto provado, o Arguido e a Ofendida não iniciaram uma relação de namoro em maio de 2020 dado que apenas tinham uma relação ocasional, encontrando-se sem qualquer carácter de regularidade.
IV- Não mantendo contactos, enquanto suposto casal, com familiares de ambos nem com amigos, não comparecendo a eventos juntos, quer de família, quer convívio com amigos.
V- Exatamente, como corroborou a testemunha CC, quando perguntado pelo Digno Magistrado do Ministério Público: “00:01:17- E convivia com eles como casal também? Ou só convivia com um ou com outro?" “00:01:20- Muito pouco mas sim. A relação deles era deles os dois, ou seja, não havia muito convívio com amigos.”
VI- Quanto ao Ponto 3 da matéria provada, é completamente descabido afirmar que o Arguido ingira, frequentemente, bebidas alcoólicas e consuma produtos estupefacientes em excesso, nomeadamente, haxixe e cocaína e tanto assim é que apenas a Ofendida refere que o via alterado por esses motivos, sendo que nenhuma das outras testemunhas o mencionou.
VII- Inclusivamente, insinuou que o via sempre alterado, justificando o seu comportamento com esses alegados consumos, sendo que quem consumia drogas - «ganzas» - era a própria Ofendida, acompanhada de outras pessoas, como referiu a testemunha, DD, quando questionado pela mandatária do Arguido:
“00:02:24- E o senhor convivia com ela, nessa altura?” “00:02:27- Sim, já fumámos umas ganzas” “00:02:23- E o senhor convivia com ela, nessa altura?” “00:02:27- Sim, já fumámos umas ganzas”. “00:02:32- Todos juntos?” “00:02:33- Eu com ela e com outra rapariga que se chama EE e ela perguntou-me por ele”.
VIII- Não consubstanciando prova bastante deste suposto facto, mal andando o Tribunal

ad quo a dá-lo como provado.
IX- Quanto ao Ponto 5 da matéria provada, ainda prosseguindo com insinuações da ofendida, a mesma que referiu que, em setembro de 2020, na via pública da Quinta ..., na sequência de uma discussão, o Arguido se dirigiu a si, seriamente, dizendo:
“não te rebento agora porque ainda tenho sentimentos por ti”.
X- Posto isto, é completamente falso que alguma vez este acontecimento tenha sucedido, muito menos que o Arguido tenha ameaçado a ofendida seja onde for, inclusivamente, na via pública.
XI- Sendo que o Arguido é uma pessoa extramente calma e jamais se dirigiria assim à ofendida, acrescendo o facto de que, efetivamente, tinha sentimentos pela mesma, apesar
de não se assumirem, nem serem, namorados.
XII- Quanto ao Ponto 6 da matéria provada, vem a Ofendida referir que o Arguido, num
dia do mês de novembro de 2020, lhe desferiu um pontapé na perna direita.
XIII- Efetiva e infelizmente, o Arguido provocou esse sofrimento à Ofendida, no entanto,
tratou-se de um equívoco pois não era em si que queria acertar uma vez que jamais faria
alguma coisa para a prejudicar ou fazer sofrer.
XIV- Na realidade, o que se passou foi que foi criada uma confusão entre grupos de pessoas que estavam no local em questão, o estacionamento do campo de futebol dos ..., sendo que o Arguido quis defender os seus amigos e, como tal, entreviu  na luta entre pessoas que se criou ali.
XV- Porém, como a Ofendida estava ao seu lado, a tentar impedi-lo de intervir na confusão, o Arguido acabou por lhe acertar sem qualquer intenção, tudo tal como corrobora, quando questionado pelo Digno Magistrado do Ministério Público: “00:02:20- Olhe e então quem é que lá estava e o que é que aconteceu?”, a testemunha CC: “00:02:25- Eu tinha acabado de chegar. Estava lá o AA e muitos marroquinos. Estava lá a FF - que também vem testemunhar entretanto - eu e a BB e estava uma confusão muito grande. Porradas com pessoas, outros também à porrada e eu vi, com os meus olhos, o AA a dar um pontapé na BB enormes – que ela tem fotos e até foi fazer um exame e tudo à perna – pronto, e ele a ser muito agressivo com ela, nesse dia, levou-a para dentro da mata e tudo.”
XVI- Assim sendo, o Arguido agiu sem intenção e sem dolo na sua conduta que, infelizmente, provocou danos corporais na Ofendida sendo que, logo de seguida, a levou para junto da mata para a retirar do meio daquele conflito, uma vez que se preocupava bastante com ela, e não queria que a situação se repetisse e esta fosse atingida de novo.
XVII- Sendo certo que, pelo menos naquela altura, a Ofendida entendeu que se tratou de um incidente sem maldade, tendo ido consigo para o interior da mata de livre vontade, tudo tal como corrobora, quando questionado pelo Digno Magistrado do Ministério Público: "00:03:55- Saíram dali, em direção a essa dita mata, do que estava a ver, eles estavam a ir os dois livremente para ir conversar, como estava a dizer, ou alguém estava a puxar alguém e a arrastá-la por lá?” a testemunha CC: “00:04:04- Exato, não. Ela também foi de livre vontade.”
XVIII- Ademais, caso tivesse sido obrigada, os demais presentes ter-se-iam apercebido, apesar da confusão, dado que a Ofendida certamente teria manifestado o seu desacordo, no entanto, quando questionada pela Mandatária do Arguido, “00:13:54- Sim, a discutir.
Mas não viu o AA e a BB a afastarem-se para irem conversar, para irem tentar resolver?”, a testemunha FF respondeu: “00:13:59- Não, isso não reparei porque estava mais gente no local e nós não estávamos fixados.”
XIX- Definitivamente, não se compreende como é que a Ofendida, caso tivesse sido pontapeada de forma intencional, por pura maldade do Arguido, concordaria em ir para a mata consigo.
XX- No que concerne ao Ponto 10 da matéria provada, não é verdade que o Arguido, no dia 25/01/2021 tenha ficado irritado e muito menos tendo desferido quatro cabeçadas na Ofendida, após o que se teria colocado em cima e si quando estava deitada.
XXI- Novamente, chama-se à colação o carinho que o Arguido tinha pela Ofendida, sendo incapaz de tal atitude, mal tendo andado o Tribunal ad quo por dar como provado este alegado facto.
XXII- Quanto ao Ponto 12 da matéria provada, não é verdade que, em vez alguma, o Arguido tivesse insistido com a Ofendida para ter relações sexuais consigo, pelo que, todas as vezes em que tal sucedeu, foi única e exclusivamente, com o consentimento e vontade expressa da Ofendida.
XXIII- Quanto ao Ponto 18 da matéria provada, também é ficção que o Arguido, alguma vez, tenha dito à Ofendida: “ver-te assim deixa-me ainda com mais excitado, gosto de te ver com medo”, uma vez que o Arguido não tinha qualquer intenção de lhe provocar medo nem de a assustar, fosse em que situação fosse.
XXIV- Além de que, desconstruindo o contexto dessa situação, a Ofendida apenas s encontrava com receio pelo motivo de estarem a passear a pé, numa estrada sem iluminação, tendo o Arguido, imediatamente, tomado a iniciativa de sair dali em direção à
zona de conforto da Ofendida, a Quinta ....
XXV- Quanto ao Ponto 20 da matéria provada, não é verdade que o Arguido, em agosto de 2021 tenha ficado irritado pelo facto de a Ofendida ter querido interromper relações sexuais consigo, muito menos atendendo ao motivo que a Ofendida invocou, isto é, que não se estava a sentir confortável.
XXVI- No que toca ao Ponto 22, apesar de terem começado uma discussão por motivos que o Arguido não se recorda quais foram, não é verdade que o Arguido tenha alguma vez dito à Ofendida: “vou-te atirar pela janela, vou meter fogo ao carro da tua mãe, vou atacar o teu cão”, aliás, nunca tais palavras saíram da boca do Arguido, apesar de a Ofendida vir invocar que sim.
XXVII - Não obstante, uma vez que estavam efetivamente a discutir, a mãe da Ofendida, expulsou-o de casa dado que se sentiu incomodada com a situação por, antes disso, estar prestes a adormecer, entendendo que seria esta a única alternativa que lhe restaria para conseguir descansar dado que nem o Arguido nem a sua filha, ora Ofendida, acalmavam os ânimos.
XXVIII- Tudo como confirma, quando questionada pela Mandatária do Arguido “00:08:06- Desejava um esclarecimento. Quando disse que, naquela noite que os ouviu a discutir e que depois se dirigiu ao quarto, disse que os ouviu a discutir. Mas discutiam os dois? Falavam os dois?” a testemunha, mãe da Ofendida, GG: “00:08:16- Sim, era em voz alta. Mais a voz dele.”
XXIX- Posteriormente, após ser expulso, o Arguido e a Ofendida saíram ambos do local dos factos para virem esclarecer o motivo do conflito, já na via pública, sita na Quinta ..., não se compreendendo como é que a Ofendida, se tivesse realmente sido mesma ameaçada, ainda seguiria o Arguido para esclarecer fosse o que fosse.
XXX- Quanto muito, por se sentir amedrontada, agradeceria a postura defensiva da sua
mãe, tendo ficado, alegadamente, mais segura em sua casa, acompanhada de sua mãe.
XXXI- Tanto assim é que até a sua própria mãe permitiu que a mesma saísse de casa, após a discussão, dado que entendeu tratar-se de um desentendimento casual entre duas pessoas, tal como sustenta, quando questionada pela Mandatária do Arguido:
“00:08:27- E, a seguir a isso, relatou também que foram os dois depois conversar para a

                rua. Depois não viu o que é que se passou, com certeza, portanto, foram conversar.”
“00:08:34- Eu expulsei-o de casa e ela achou, por bem, ir falar com ele.”
XXXII- Quanto ao Ponto 25 da matéria provada, já na via pública, não é verdade que o Arguido tenha desferido um pontapé na perna direita da Ofendida, alegado facto que a fez cair, sendo que, na verdade o que a fez cair e magoar-se foi o facto de ter tropeçado na calçada.
XXXIII- Quanto ao Ponto 27 dos factos provados, não é, de todo, verdade que tenha ameaçado a Ofendida com uma pedra grande de um canteiro existente no local, referindo: “Se não parares de chorar, rebento-te toda, eu vou-te matar e vamos ser capa do jornal”.
XXXIX- Prosseguindo para o Ponto 28 da matéria provada, pela mesma via vai o facto de ter feito uma contagem decrescente para que a Ofendida parasse de chorar de dor, munido com a dita pedra, uma vez que tinha caído no chão e se tinha magoado, ficando, portanto, o Arguido incrédulo com tais barbaridades que a Ofendida cogitou que o mesmo alguma vez lhe tenha dito.
XXXIX- Sendo que tudo o que sempre lhe deu foi uma grande amizade e preocupação, e, repondo a verdade, o Arguido recorda-se, inclusivamente, de a ter reconfortado após a queda e questionado se necessitada de ajuda para se levantar.
XL- Quanto ao Ponto 29 da matéria provada, ambos seguiram para casa de um amigo do Arguido, HH, sendo que a Ofendida foi de livre vontade, apesar de ter referido que apenas foi para, alegadamente, acalmar o Arguido que não entende o Arguido como pode retirar tais ilações se se encontrava plenamente tranquilo.
XLI- Inclusivamente, aceitando o convite do seu amigo para ir para sua casa, dado que nada o perturbava, ou seja, se estivesse irritado com alguma situação, certamente, não iria ter acedido ao seu convite, muito menos permitindo que a Ofendida o acompanhasse, isto, claro, caso estivesse irritado consigo.
XLII- Quanto ao Ponto 31 da matéria provada, quando chegaram, juntos, a casa de HH, não é verdade que o Arguido tenha querido ter relações sexuais consigo, naquele local, muito menos insistindo, colocando as suas mãos na zona genital da Ofendida, tudo porque o seu amigo se encontrava na mesma divisão que o Arguido e, como é lógico, não iria ter relações sexuais com a Ofendida naquelas circunstâncias.
XLIII- Tendo, apenas, ambos ficado deitados no chão, ali tendo intenção de pernoitar. sendo que, a certa altura, a Ofendida foi-se embora não por alegadas insistências do Arguido manter relações sexuais consigo, mas sim por querer voltar para sua casa, e estar cansada, como a própria afirmou.
XLIV- Desconhece o Arguido se o motivo foi querer estar mais confortável, nos seus aposentos, ou o facto de estar preocupada em tranquilizar a sua mãe, após toda a confusão gerada pela discussão que ambos, naquela noite, tinham tido.
XLV- No que se refere ao Ponto 33 da matéria provada, num outro episódio, a 6/09/2021, refere a Ofendida que o Arguido foi ter consigo, pelas 14:00h, encontrando se alcoolizado e sob o efeito de substâncias estupefacientes, no entanto, conforme supra se referiu, não é, de todo, verdade que o Arguido se sujeite a esses estados alterados, quer físicos quer mentais.
XLVI- Ademais, quanto ao Ponto 34 dos factos provados, não é fidedigno que o Arguido se coloque a gritar pela Ofendida, do exterior do seu prédio, para que esta descesse, uma vez que sempre conversou, por mensagens e chamada, com a mesma, pelo que, estando ao lado do seu prédio e querendo estar com a Ofendida, dirigiu-se, a si, de uma das duas formas.
XLVII- Quanto ao Ponto 35 da matéria provada, em consonância com o que supra se referiu, não é verdade que a Ofendida tenha vindo ao encontro do Arguido para o acalmar, dado que o mesmo se encontrava plenamente tranquilo, desconhecendo, portanto, qual foi o motivo que levou a Ofendida a pensar que estaria com o seu comportamento alterado.
XLVIII- Quanto aos Pontos 36 e 37, ambos da matéria provada, o Arguido desconhece o motivo pelo qual referiu que circulou consigo, com um carro emprestado, uma vez que o Arguido não tem carta de condução, não sendo, portanto, verdade que o tivesse conduzido nesse dia e naquele local.
XLIX- Inclusivamente, a Ofendida referiu que o automóvel seria de um amigo do Arguido que referiu ao Tribunal ad quo, quando questionado pela Mandatária do Arguido:
“00:01:09- Olhe, diga-me uma coisa: o senhor alguma vez emprestou alguma viatura automóvel ao AA? Alguma viatura sua?”, respondeu que: “00:01:16- Não, nunca emprestei viatura ao senhor AA. Nunca emprestei carro nenhum nem ao AA nem a ninguém. Carro não se empresta.”
L- Pelo que o Arguido não se recorda, em relação a este dia, de que modo se deslocou com a Ofendida para o café mas, de certeza, não foi de automóvel, consigo a conduzir.
LI- No que respeita aos Pontos 38, 39, 40, 41, 42, 43, 44, 45, 46, 47, 48, 49 e 50 da matéria provada, o Arguido apenas e tão só tem a esclarecer que nunca se deslocaram para casa do seu amigo II, pelo que tudo o que foi indicado como sendo verdadeiro, neste dia e naquele local, pela Ofendida, não o é.
LII- Tanto assim é que a testemunha II confirmou, quando questionadopela Mandatária do Arguido: “00:01:43- Pronto, nunca se apercebeu. Diga-me uma coisa só: alguma vez eles dormiram na casa do senhor?” que “00:01:48- Não. Eu sou casado e tenho quatro filhos e com os pais, como é que vão pessoas a minha casa? Não, nunca.”
LIII- Posto isto, mal andou o Tribunal ad quo a considerar todos estes factos como provados.
LIV- Quanto aos Pontos 51 e 52 da matéria provada, tal como supra referido, não só o Arguido não se dirigia à Ofendida com berros, à porta do seu prédio, quando queria conversar e estar consigo, como também não é, de todo, verdade que, no dia 4/10/2021,
tivesse ido ter consigo a cambalear, pelo que, quando a Ofendida esteve consigo nesse mesmo dia, foi por também ser sua intenção passar tempo de qualidade com o Arguido e
não para o tentar acalmar, como veio iludir.
LV- Já quanto aos Pontos 53, 54 e 55, novamente se esclarecesse que não é verdade que alguma relação sexual mantida entre o Arguido e a Ofendida, alguma vez, tenha sido sem o consentimento de ambos.
LVI- Assim como se reitera que nunca, em momento algum, o Arguido tenha ficado irritado com a Ofendida por lhe pedir que parasse a relação sexual, por se sentir desconfortável ou por outro motivo qualquer.
LVII- Quanto aos Pontos 56, 57, 58, 59, 60, 61, 62, 63, 64, 65, 66, 67, 68, 69, 70, 71, 72, 73 e 74 da matéria provada e, por último, vem o Arguido relatar que, na noite do dia 4/10/2021, efetivamente, foi ter com a Ofendida porque aquela lhe solicitou mas, qual não foi o seu espanto, dado que, quando foi ao seu encontro, a Ofendida se encontrava completamente ferida, apresentando, essencialmente, maus-tratos ao nível da face.
LVIII- Questionando-a sobre o sucedido, não se demonstrou receptiva em desabafar sobre o sucedido, sendo que o Arguido, ao dia de hoje, ainda desconhece a verdadeira razão.
LIX- Já no que concerne ao facto de a ter levado para sua casa, efetivamente, é verdade que tal sucedeu uma vez que a queria proteger mas não tinha as suas roupas de dormida consigo.
LX- Assim sendo, foi precisamente isso que sugeriu à Ofendida e esta, como não queria ficar sozinha em casa, uma vez que a mãe se tinha ausentado no fim-de-semana, acedeu e foi com o Arguido para sua casa.
LXI- Deste modo, quando confrontado com a situação pelos amigos da Ofendida, referiu que, provavelmente, teria sido outro homem, por estar a trabalhar na noite.
LXII- Quanto ao Ponto 78 da matéria provada, após este episódio, o Arguido entendeu que a Ofendida o tinha culpado do seu estado, muito provavelmente, por ciúmes e por pensar que andaria a encontrar-se com outras raparigas.
LXIII- No entanto, magoado com a situação, o Arguido decidiu deixar de se encontrar com a Ofendida, sendo que, por motivos que lhe são alheios, a mesma foi viver para o ..., talvez até para não ter que se cruzar consigo, não por ter medo, mas sim porque o nArguido não queria assumir uma relação consigo e começou a manter contacto com outras raparigas.
LXIV- Ora, esse facto deve ter incomodado a Ofendida e decidiu mudar de vida, devido a
esse facto, no entanto, o Arguido desconhece os seus motivos verdadeiros, estando apenas a especular.
LXV- Já quanto aos Pontos 79, 80 e 81 dos factos provados, reitera, novamente, o Arguido que a Ofendida nunca foi sua namorada, mas que, apesar disso, tinha carinho por si, jamais querendo o seu mal, não se revendo em qualquer situação descrita nos autos.
LXVI- Não agindo, em situação alguma, com o deliberado intuito de a maltratar fisicamente e psicologicamente, sempre a tendo respeitado, mas, apesar disso, é verdade que ambos discutiam frequentemente dado que as suas personalidades chocavam bastante.
LXVII- No entanto, não se revê com atitudes de insensibilidade perante a Ofendida.
LXVIII- Por fim, quanto ao Ponto 82, resta referir que não é verdade que tenha conduzido, perigosamente, naquele dia e naquele local dado que, caso assim fosse, as autoridades policiais teriam, respectivamente, dado conta da ocorrência.
LXIX- Sobretudo por se tratar de um dia e hora em que havia muito movimento na estrada, pelo que, se alegadamente, tal tivesse acontecido, dificilmente o acontecimento passaria despercebido.
LXX- Noutra aceção, com relevância para as presentes alegações de recurso, tenhamos presentes os seguintes factos dados como não provados pelo Tribunal ad quo, que se passam a citar:
“1. Os factos referidos supra sob 6. ocorreram no dia 15.11.2020.
2. BB fez exames no Hospital ....
 3. Na situação referida sobre 12. BB e o arguido mantiveram relação sexual de cópula contra a vontade daquela.
4. O arguido percorreu pelo menos duas rotundas em contramão e a circular em
velocidade excessiva.
5. BB ficou com hematomas nas zonas atingidas, em consequência do referido sob 48.
6. O arguido acertou com o telemóvel no olho direito de BB.
7. O arguido agredia BB, na situação referida sobre 62.
8. Quando BB estava a tentar adormecer, de barriga para cima, dado que era muito tarde e estava desgastada física e psicologicamente, contra a sua vontade e sem o seu consentimento o arguido introduziu o pénis na vagina de BB;
9. Quando BB acordou, ficou em choque dado que só aí se apercebeu do que se
estava a passar, após o que o arguido se levantou e ejaculou para a parede de um canto do quarto;
10. O arguido tenha ordenado a BB para não ir à policia;
11. O arguido agiu com o propósito logrado de, com o recurso à força física, constranger
a vítima, BB, a sofrer, contra a sua vontade, introdução vaginal do pénis daquele, com o único intuito de tentar satisfazer os seus instintos libidinosos bem sabendo que assim punha em causa a liberdade sexual da vítima, o que previu e quis.
12. O arguido representou a sua descrita conduta e quis agir dessa forma, com a intenção de introduzir o seu pénis na vagina de BB, o que não conseguiu fazer por  razões alheias à sua vontade, sabendo que a vítima só se sujeitava à sua actuação em virtude da forma como agiu.
13. O arguido agiu com o intuito de satisfazer os seus instintos sexuais, bem sabendo
que coartava, desse modo, a possibilidade de a vítima se determinar livremente nesse
campo da sua vida e sendo certo ainda que, atuando com aquele propósito, o arguido usou
violência física contra a mesma, por modo a obstar que aquela resistisse aos seus intentos,
o que logrou conseguir.
14. O arguido violou, de forma grosseira, regras estradais, tal como descrito, com isso criou perigo para os veículos que com ele se cruzaram, e que foram forçados a imobilizarem-se, sob pena de serem embatidos pelo arguido, sob pena de lhes provocar estragos alheios de valor elevado, bem como colocou em perigo a integridade física e mesmo a vida da ocupante, BB, que com o arguido seguia naquele veículo automóvel.”
LXXI- Bem andou o Tribunal ad quo em não provar estes factos supra apresentados.
LXXII- Porém, o enquadramento jurídico-penal não está devidamente consagrado.
LXXIII- Uma vez que dúvidas não restam que o Arguido e a Ofendida não mantinham uma relação de namoro, o enquadramento legal, por mera cautela de patrocínio — salvo o devido respeito pelo douto Tribunal ad quo, que é muito — não deveria enquadrar-se como violência doméstica.
LXXIII- Ora, o crime de violência doméstica, no caso em apreço, foi indevidamente enquadrado no artigo 152.º alínea a) do Código Penal: “Quem, de modo reiterado ou não, infligir maus tratos físicos ou psíquicos, incluindo castigos corporais, privações da liberdade, ofensas sexuais ou impedir o acesso ou fruição aos recursos económicos e patrimoniais próprios ou comuns a pessoa de outro ou do mesmo sexo com quem o agente mantenha ou tenha mantido uma relação de namoro ou uma relação análoga à dos cônjuges, ainda que sem coabitação é punido com pena de prisão de um a cinco anos, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal.”
LXXIV- Outrossim, deveria ter sido alterada a qualificação jurídica – alteração não substancial dos factos – para, quando muito, o que não se concede, mas por mera hipótese de raciocino se aceita, o crime de ofensas à integridade física simples.
LXXV- Corroborando esse enquadramento o facto de se tratar de duas pessoas que se conhecem e se encontram, ocasionalmente, sem qualquer conexão em comum com amigos nem família de ambos.
LXXVII- Assim sendo, a moldura penal, a existir e por mera cautela de patrocínio, deveria seguir os trâmites do crime de ofensas à integridade física simples, prevista e punida nos termos do artigo 143.º n.º 1 do Código Penal: “Quem ofender o corpo ou a saúde de outra pessoa é punido com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa.”
LXXVIII- Excluindo-se, por completo, a situação de violência doméstica, prevista e punida No artigo 152.º n.º 1 do Código Penal, do Arguido para com a Ofendida dado que nem sequer uma relação com condições análogas às de cônjuge eles mantinham.
LXXIX- Já no que concerne ao crime de condução sem habilitação legal, previsto e punido pelo artigo 3.º n.º 1 da Lei n.º 2/98, de 3/01, no nosso entendimento, não ficou provado que o mesmo se tenha verificado.
LXXX - Já no tocante da escolha pela pena privativa da liberdade, derivado ao facto de o Arguido ter antecedentes criminais, resta invocar que o Arguido é uma pessoa integrada na sociedade e com uma consciência social equilibrada.
LXXXI- Estando, portanto, inadequada a opção por uma pena privativa da liberdade, sendo certo que as suas condenações prévias não são relativas a crimes da mesma índole.
LXXXII- Nesse intuito, invoca-se o artigo 56.º do Código de Processo Penal em que se refere que:
 “A suspensão da execução da pena de prisão é revogada sempre que, no seu decurso, o condenado:
a) Infringir grosseira ou repetidamente os deveres ou regras de conduta impostos ou o plano de reinserção social; ou
b) Cometer crime pelo qual venha a ser condenado, e revelar que as finalidades que estavam na base da suspensão não puderam, por meio dela, ser alcançadas.
2 - A revogação determina o cumprimento da pena de prisão fixada na sentença, sem que o condenado possa exigir a restituição de prestações que haja efectuado.”
LXXXIII- Por conseguinte, parece ao Arguido que tal condenação, com suspensão provisória da pena, não pode nem deve ser considerada para esta medida da pena, eventualmente, a aplicar.
LXXXIV - Em suma, entende o Arguido que, a existir condenação, e por mera cautela de patrocínio, deverá beneficiar da suspensão provisória da pena, dado que cumpre todos os requisitos legais postulados no artigo 281.º do Código de Processo Penal.
LXXXV- Reforçando-se que o enquadramento legal jamais poderá consubstanciar o crime de violência doméstica dado que, para o Arguido, a Ofendida é apenas alguém com quem mantinha uma “amizade colorida”.
LXXXVI- Por conseguinte, desintegra-se totalmente da noção de crime de violência doméstica, sendo, sim, um alegado crime de ofensas à integridade física simples, devendo este ser enquadrado na suspensão provisória da pena.
LXXXVII- Justificando-se esta afirmação na frase proferida no douto acórdão: “no tocante à prevenção de futuras delinquências, revelando o arguido uma personalidade desconforme o direito, bem assim uma falta de respeito pela vida, pela integridade física e pela segurança dos demais utentes da via pública.”
LXXXVIII- Acrescida de que: “Ou seja, uma apreciação liminar e global de todos os factos apurados aponta para que apenas a aplicação ao arguido de uma pena de prisão dê realização aos fins das penas.”
LXXXIX- Ora, em tom conclusivo, temos a maior convicção de que o Tribunal ad quo se precipitou nesta ilação, não estando correctamente integrada a pena a aplicar ao Arguido, isto, em caso de os factos se darem, novamente e incorrectamente, como provados e por mera cautela de patrocínio.
XC- Devemos debruçar-nos, igualmente, sobre a a violação do princípio in dubio pro reo e do princípio constitucional da presunção de inocência (artigo 32.º, n.º 2, 1.ª parte, da CRP).
XCI- Independentemente da qualificação jurídica, e face à escassez de prova produzida, entende o Arguido ter sido violado o princípio do «in dubio pro reo», que é um princípio geral do processo penal.
XCII- O princípio do in dubio pro reo constitui uma imposição dirigida ao julgador no sentido de se pronunciar de forma favorável ao arguido, quando não tiver certeza sobre os factos decisivos para a decisão da causa.
XCIII- Este princípio tem implicações quanto à apreciação da matéria de facto, quer seja nos pressupostos do preenchimento do tipo de crime, quer seja nos factos demonstrativos da existência de uma causa de exclusão da ilicitude ou da culpa.
XCIV- O ónus de prova recaía sobre os intervenientes processuais, pelo que não tendo logrado fazer prova cabal dos factos, não poderá ser proferida decisão que desfavoreça o Arguido.
XCV- O princípio in dubio pro reo, é uma das vertentes que o princípio constitucional da presunção de inocência (artigo 32.º, n.º 2, 1.ª parte, da CRP) contempla, e impõe uma orientação vinculativa dirigida ao juiz no caso da persistência de uma dúvida sobre os factos: em tal situação, o tribunal tem de decidir pro reo.
XCVI- As declarações da Ofendida foram frágeis e não tendo sido confirmadas por qualquer outro meio de prova, o tribunal deveria ter ficado na dúvida irresolúvel quanto à ocorrência de tais factos e, na dúvida, aplicou-se o princípio do in dubio pro reo, como emanação constitucional do princípio da presunção da inocência.
XCVII- É possível, ou até mesmo provável que seja o Arguido o autor dos factos. Mas, como afirma Cavaleiro Ferreira “provável e provado são expressões antitéticas sob o ponto de vista jurídico” e a dúvida terá sempre de funcionar em sentido favorável ao arguido”.
XCVIII- Deste modo, como se disse, não foi feita prova dos factos dados como provados, sendo que a única testemunha de todos os factos provados foi a própria Ofendida, sendo que foi violado o princípio da livre apreciação da prova, uma vez que o mesmo não pode, de modo algum, querer apontar para uma apreciação imotivável e incontrolável – e, portanto, arbitrária – da prova produzida.
XCIX- Se a apreciação da prova é, na verdade, discricionária, tem evidentemente essa discricionariedade os seus limites, que não podem ser licitamente ultrapassados: a liberdade de apreciação da prova é, no fundo, uma liberdade de acordo com um dever – o dever de perseguir a chamada «verdade material» – de sorte que a apreciação há-de ser, em concreto, recondutível a critérios objectivos e, portanto, em geral susceptível de motivação e controlo – cf. Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, 1.ª ed. (1974), Reimpressão, Coimbra Editora, 2004, págs. 202-203, cf., ainda, Cristina Líbano Monteiro, In Dubio Pro Reo, Coimbra, 1997, e Pinto de Albuquerque, Comentário do Código de Processo Penal, Universidade Católica Editora, 2007.
 C- O Tribunal Constitucional (Ac. 1165/96, de 19-11, Proc. n.º 142/96 - 1.ª, in BMJ 461.º/93), debruçando-se sobre a norma do artigo 127.º do CPP, acompanhou estas  considerações, realçando que a livre apreciação da prova não pode ser entendida como uma operação puramente subjectiva, emocional e, portanto, imotivável.
CI- Há-de traduzir-se em valoração racional e crítica, de acordo com as regras comuns da lógica, da razão, das máximas da experiência e dos conhecimentos científicos, que permita ao julgador objectivar a apreciação dos factos, requisito necessário para uma efectiva motivação da decisão.
CII- A livre apreciação da prova está sujeita ao controlo do tribunal de recurso sempre que a violação do princípio da objectividade for evidente, sem necessidade de outras indagações probatórias, como aqui no presente caso se verifica.
Termos em que deverá ser o recurso julgado procedente e, em consequência, ser o Arguido absolvido de todos os crimes que lhe foram imputados e, caso assim não se entenda, deve ser aplicada a suspensão provisória da pena, bem como absolvido do pedido cível em que foi condenado.
Fazendo-se assim a tão acostumada JUSTIÇA!”
                                                           *

-» Os recursos foram admitidos, com subida imediata, nos próprios autos e com efeito suspensivo (arts. 406.º, n.º 1, do Cód. de Proc. Penal e art.º 408.º, n.º 1, al. a) do Cód. de Proc. Penal).

                                                           *

O M.º P.º apresentou resposta ao recurso interposto, pugnando pela respetiva improcedência e apresentando as seguintes conclusões (transcrição):
“1. O presente recurso reflecte uma mera discordância do recorrente relativamente à valoração que o Tribunal fez da prova submetida à sua apreciação, contestando a convicção do julgador com a sua própria versão dos factos, não através do recurso a transcrições genéricas e descontextualizadas (que nem terão cumprido o ónus de impugnação especificada, estatuído no artigo 412.º, n.º 3 do Código de Processo Penal, pelo menos no que diz respeito aos impugnados factos 5, 10, 12, 18, 20, 25, 27, 28, 29, 31, 33, 34, 35, 51-52, 53-55, 56-74, 78, 78-81 e 82, conforme se pode constar na motivação do recurso, sumariada, quanto a estes factos, nas conclusões IX-81, XX-XXI, XXIII-XXIV, XXV, XXVI-XXXI, XXXII, XXXIII, XXXIX, IL-XLI, XLII-XLIV, XLVI, XLVII, LIV, LV-LVI, LVII-LXI, LXII-LXIV, LXV-LXVII e LXVIII) – pelo que deve improceder o recurso da matéria de facto.
2. O princípio da presunção da inocência do arguido, consagrado no artigo 32.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa não foi violado.
3. Mantendo-se a decisão condenatória, deve também improceder a pretensão do recorrente quanto às consequências jurídicas dos crimes por si praticados; com a sua condenação (não nos moldes consignados no acórdão recorrido, mas outrossim) nos termos propugnados pelo Ministério Público, no recurso por si interposto (Ref.ª 11376362, de 28-11-2024, que aqui dou por reproduzido).
4. Não se mostram violados, por qualquer forma, quaisquer princípios ou preceitos legais, mormente os invocados pela recorrente.
**
Face ao exposto, e ao abrigo das disposições legais supracitadas, deve o presente recurso ser julgado totalmente improcedente, confirmando-se, na íntegra, a decisão judicial recorrida.”

                                               *

A resposta apresentada pelo arguido ao recurso interposto pelo M.º P.º foi julgada extemporânea.

                                                       *

-» Uma vez remetido a este Tribunal, o M.º P.º proferiu parecer no sentido da improcedência do recurso do arguido e da procedência do recurso do Ministério Público, aderindo à argumentação por este expendida na 1ª instância.

                                                           *

Notificado o arguido, nos termos e para os efeitos do disposto no art.º 412.º do CPP, não apresentou resposta.

                                                           *

-» Proferido despacho liminar, foram os autos aos “vistos” e teve lugar a conferência.

                                                           *

II – Questões a decidir:

De acordo com o disposto no artigo 412.º do Código de Processo Penal e com a jurisprudência fixada pelo Acórdão do Plenário da Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça n.º 7/95, de 19 de outubro de 1995, o objeto do recurso define-se pelas conclusões que o recorrente extraiu da respetiva motivação, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso.

As possibilidades de conhecimento oficioso, por parte deste Tribunal da Relação, decorrem da necessidade de indagação da verificação de algum dos vícios da decisão recorrida, previstos no n.º 2 do artigo 410.º do Código de Processo Penal, ou de alguma das causas de nulidade dessa decisão, consagradas no n.º 1 do artigo 379.º do mesmo diploma legal.

Atentas as conclusões apresentadas, as questões a examinar e decidir prendem-se com o seguinte:

Recurso do Mº P.º:

- saber se existe erro de julgamento relativamente aos factos não provados 3 a 14 e se estes devem, em consequência, ser considerados provados;

-   enquadramento jurídico dos factos dados como provados, em consequência da alteração da matéria de facto;

- medida das penas concretas e da pena única;

Recurso do arguido:

- saber se existe erro de julgamento relativamente aos factos  provados em 2, 3, 5, 6, 10, 12, 18, 20, 22, 25, 27 a 29, 31, 33, 34, 35, 36 e 37, 38 a 82 e se estes devem, em consequência, ser considerados não provados;

- violação do princípio da presunção de inocência e do princípio in dúbio pro reo

- enquadramento jurídico dos factos provados: saber se os factos provados integram um crime de ofensa à integridade física simples, p. e p. pelo art.º 143 do CP.

-  escolha da pena;

                                                           *         

III - Com interesse para a decisão a proferir, consta da sentença recorrida o seguinte (transcrição):

                “II - Da audiência de julgamento resultaram provados os seguintes factos:

Da discussão da causa resultaram provados os seguintes factos:

1. BB e o arguido eram vizinhos, vivendo ambos em ..., motivo pelo qual se conheciam há vários anos.

2. Em maio de 2020, BB e o arguido iniciaram uma relação de namoro.

3. Com frequência, o arguido ingeria bebidas alcoólicas em excesso e consumia produtos estupefacientes (haxixe e cocaína).

4. As discussões entre o casal eram frequentes.

5. Em setembro de 2020, na via pública, na Quinta ..., na rua onde ambos residiam, na sequência de uma discussão entre o casal, o arguido dirigiu-se a BB, com foros de seriedade, nos seguintes termos: “não te rebento agora porque ainda tenho sentimentos por ti”.

6. Em dia não concretamente apurado do mês de novembro, na via pública, junto ao campo de futebol de “...”, quando a BB, que se encontrava a conviver com outras pessoas, se dirigiu ao arguido, este último, motivado por ciúmes, sem que nada o fizesse prever, desferiu-lhe um pontapé na perna direita.

7. Em consequência, BB ficou com dores e com um hematoma na perna direita, tendo-se deslocado ao Hospital ..., em ..., onde foi observada e assistida.

8. Os amigos de BB, CC e FF, assistiram ao episódio supra descrito.

9. No dia 25/01/2021, de madrugada, no interior da residência da BB, mais concretamente no seu quarto, depois de ambos se reconciliarem, esta recusou-se a manter relações sexuais com o arguido.

10. O arguido ficou irritado, após o que desferiu quatro cabeçadas na BB, colocando-se em cima dela, quando a mesma se encontrava deitada.

11. BB começou a chorar e o arguido reconfortou-a.

12.O arguido continuou a insistir em manter relações sexuais, e BB, permitiu que ele introduzisse o pénis dele na vagina dela, mantendo relação sexual de cópula completa.

13. Em julho de 2021, BB e o arguido, que, entretanto, haviam terminado o namoro porque o arguido esteve ausente do país, retomaram o relacionamento amoroso.

14. Em data não concretamente apurada, desse verão de 2021,  de madrugada, o arguido convidou BB para ir dar uma volta de carro, ao que esta acedeu.

15. A dada altura do percurso, o arguido levou BB pelos ..., junto do rio ..., em ..., da Estação até à ..., onde não existia luz nenhuma, nem ninguém àquela hora.

16. O arguido agarrou a BB e tentou beijá-la.

17. Contudo, BB estava mais preocupada em sair do local, porque se encontrava apavorada.

18. Apercebendo-se do estado em que BB estava, o arguido dirigiu-se-lhe nos seguintes termos: “ver-te assim deixa-me ainda com mais excitado, gosto de te ver com medo”.

19. Em agosto de 2021, no interior da residência de BB, sita na Rua ..., em Quinta ..., ..., o casal estava a manter relações sexuais.

20. A dada altura, enquanto mantinham relações sexuais, a BB pediu ao arguido para parar, o que o desagradou.

21. De imediato, o arguido iniciou uma discussão com BB.

22. No decurso da referida discussão, aos gritos, o arguido dirigiu-se a BB, com foros de seriedade, nos seguintes termos: “vou-te atirar pela janela, vou meter fogo ao carro da tua mãe, vou atacar o teu cão.”

23. Mal se apercebeu dos gritos do arguido, a mãe de BB dirigiu-se ao quarto da filha, entrou na referida divisão, após o que expulsou o arguido de sua casa.

24. Com medo do arguido e, achando que ele poderia concretizar as ameaças que lhe acabara de dirigir, BB saiu atrás dele, para o tentar acalmar.

25. Na rua, estando o arguido alterado, ele desferiu um pontapé numa das pernas da BB que, em consequência, caiu para o chão do seu lado direito.

26. De seguida, BB levantou-se a chorar.

27. Após, o arguido agarrou numa pedra grande de um canteiro existente no local e dirigiu-se a BB, com foros de seriedade, nos seguintes termos: “se não parares de chorar, rebento-te toda, eu vou-te matar e vamos ser capa do jornal.”

28. De imediato, sempre com a referida pedra junto da cara da BB, o arguido começou em contagem decrescente para ela deixar de chorar, o que sucedeu.

29. Após, um marroquino amigo do arguido, HH, disse-lhe para parar e convidou o casal para ir para casa dele, ao que a BB acedeu, para o tentar acalmar.

30. Já em casa de HH, a BB e o arguido deitaram-se no chão, no mesmo quarto onde HH se deitou na cama.

31. De seguida, o arguido tentou, uma vez mais, manter relações sexuais com BB, colocando por várias vezes uma das suas mãos na vagina ao mesmo tempo que aquela lhe pedia para parar.

32. Após o que BB se levantou do chão e ausentou-se do local.

33. No dia 06/09/2021, pelas 14h00m, o arguido, que se encontrava alcoolizado e sob o efeito de substâncias estupefacientes, telefonou a BB, através de videochamada, convidando-a para sair, o que esta recusou porque se encontrava em isolamento profilático, dado que havia testado positivo para a COVID-19.

34. Pelas 14h30m, o arguido dirigiu-se à casa de BB, e, do exterior, começou a gritar para ela descer e ir ter com ele.

35. Dado o estado em que o arguido se encontrava, e, para o tentar acalmar, BB desceu ao encontro dele.

36. Mal avistou BB, o arguido, que se encontrava ao volante do carro de um amigo e não tem carta de condução, disse à BB para entrar no carro e convidou-a para irem dar uma volta.

37. De seguida, pelas 16h00m, o arguido conduziu o veículo supra referido por várias artérias da cidade, até que  parou perto da Quinta ... (junto do “A...”), onde se encontrava o amigo que lhe havia emprestado o carro, II.

38. De seguida, o arguido e a BB foram para casa de um amigo daquele, que se situava muito perto, com esse amigo e II.

39. Aí chegados, entraram na residência e o arguido levou-a para um quarto, que se encontrava vazio, após o que se sentaram no chão do quarto, sendo que BB tentou acalmar o arguido, que se encontrava muito alterado.

40. De seguida, o arguido colocou-se em cima de BB, apalpou-a começou a fazer movimentos como se estivesse a manter relações sexuais com ela.

41. Isto, apesar de estarem ambos ainda vestidos.

42. Após, BB sentou-se de costas para o arguido, tentando conversar com ele e dizer-lhe que ele não podia ter aquele tipo de comportamentos.

43. De imediato, irritado, o arguido desferiu uma chapada nas costas da BB.

44. De seguida, o arguido colocou-se em cima de BB, que, entretanto se havia deitado no chão, após o que tentou, manter relações sexuais com ela.

45. Perante os comportamentos do arguido, BB começou a chorar.

46. O arguido tentava retirar, à força, a roupa que BB trazia vestida, enquanto esta continuava a chorar e lhe dizia para ele parar, o que decorreu durante uns minutos.

47. Após, o arguido disse-lhe “eu não tenho necessidade de violar gajas”.

48. BB continuava a chorar, após o que o arguido lhe torceu um dos braços.

49. Em consequência, BB sentiu dores nas costas e nos pulsos.

50. De imediato, BB disse ao arguido que queria ir embora e, irritado, o arguido abriu a porta de casa, após o que a empurrou para fora de casa.

51. No dia 04/10/2021, de madrugada, cerca das 03h00m, BB encontrava-se sozinha em casa e quase a dormir, quando começou a ouvir, do exterior, gritos do arguido a pedir-lhe para ela o deixar entrar.

52. Sobressaltada, BB dirigiu-se à janela do quarto e, como viu que o arguido se encontrava a cambalear, abriu-lhe a porta para o tentar acalmar.

53. Pouco depois, o arguido tentou, uma vez mais, manter relações sexuais com ela.

54. BB manteve relações sexuais com o arguido, por ter medo de que ele atentasse contra a sua integridade física.

55. Entretanto, BB pediu ao arguido para parar e este ficou irritado.

56. De seguida, com o quarto às escuras, enquanto BB estava a tentar acalmar o arguido, sentada na cama, aquele desferiu-lhe uma bofetada.

57. Em consequência, BB caiu de lado, na cama, após o que o arguido lhe continuou a desferir várias (sete) chapadas, seguidas, lado esquerdo da face.

58. Após, BB acendeu a luz do quarto e viu-se ao espelho, altura em que se apercebeu que tinha a cara toda inchada, com vários hematomas e que o seu ouvido esquerdo estava a sangrar.

59. De imediato, a chorar, a vítima implorou ao arguido que se fosse embora e disse-lhe que, se tal não sucedesse, que ia chamar a polícia.

60. Enquanto isso, BB agarrou no seu telemóvel, com o intuito de telefonar para a PSP ..., a pedir socorro.

61. O arguido tirou-lhe o telemóvel à força das mãos, depois de lhe ter batido com ele no lado direito da cara.

62.Por várias vezes, o arguido empurrou BB, com força, para cima da cama.

63. Depois, o arguido colocou ambas as mãos à volta do pescoço da BB, tentando asfixiá-la.

64. Em consequência, BB ficou durante alguns segundos sem conseguir respirar.

65. De seguida, BB disse ao arguido que a mãe ia chegar pelas 07h00m e que era melhor ele ir-se embora para não ver o estado em que ele a havia deixado.

66. De imediato, o arguido disse a BB “Então vamos para minha casa”, tendo-se esta recusado a acompanhá-lo para casa dele, que se situa a poucos metros da sua.

67. Após, o arguido agarrou BB pelos braços, à força, e arrastou-a pelas escadas do prédio até à porta de saída, contra a vontade daquela.

68. Mal o arguido parou em frente à casa dele, largou o braço de BB, altura em que esta tentou fugir, começando a correr.

69. Contudo, o arguido foi atrás dela e voltou a agarrá-la pelo braço, à força, arrastando-a para casa dele.

70. Aí chegados, o arguido levou BB para o seu quarto, atirou-a para cima da cama e deitou-se ao lado dela, sempre a agarrá-la, com o braço, por cima do seu, pescoço após o que BB adormeceu.

71. Quando BB acordou, o arguido depois de afastar para o lado as calças de pijama daquela, introduziu o seu pénis na vagina de BB.

72. Pelas 11h00m, o arguido deixou BB sair de casa, e disse-lhe para não lhe estragar a vida.     

73. Mal saiu de casa do arguido, BB telefonou aos amigos CC e FF, aos quais contou o episódio supra descrito e pediu ajuda.

74. Mal os amigos viram o estado em que a vítima se encontrava, eles telefonaram de imediato às autoridades policiais.

75.. Após, BB deslocou-se ao Centro Hospitalar de ..., onde foi assistida e examinada.

76. Em consequência das condutas supra descritas, o arguido provocou na BB as seguintes lesões:

“- Crânio: escoriação no pavilhão auricular esquerdo, medindo 0,4 cm de comprimento, rodeado de vestígios hemáticos secos;

- Face: equimose amarelada na metade externa da região peri-orbitária direita, medindo 2,5 cm de diâmetro; estendendo-se desde a região frontotemporal esquerda (pré-auricular) até à região mandibular homolateral, equimose amarelada, sobre a qual assenta fino pontiado hemorrágico, medindo 11 cm de comprimento por 4cm de maior largura.”

77. As lesões descritas causaram mal psicológico e dores à vítima BB e foram causa direta e necessária de um período de doença fixável em 7 (sete) dias, 3 (três) dos quais com afetação da capacidade de trabalho geral e profissional.

78. Em maio de 2022, devido a todos os comportamentos do arguido, com medo dele e do que ele lhe pudesse vir a fazer, dado que residiam no mesmo bairro, em ..., BB decidiu mudar-se para a cidade ..., para ficar afastada do arguido e desse meio.

79. O arguido sabia que a BB era sua namorada, e, sempre que adotou os comportamentos supra descritos, actuou com o propósito, concretizado e reiterado, de a ofender e maltratar física e psiquicamente de modo a atingir o seu bem estar físico e psíquico, a sua tranquilidade, honra e dignidade pessoais.

80. O arguido agiu do modo descrito, sabendo que infligia maus-tratos físicos e psicológicos à sua namorada, BB, humilhando-a e sujeitando-a a tratamentos degradantes e causando-lhe um estado de humilhação, ansiedade e medo permanentes.

81. Actuou sempre o arguido com manifesta insensibilidade perante a integridade física e psíquica da vítima BB, que bem sabia dever respeitar, particularmente por ser sua namorada.

82. O arguido procedeu ao exercício da condução de veículo, na via pública, bem sabendo, que não era titular de licença de condução ou de qualquer outro documento que legalmente a habilitasse à condução estradal e que, por isso, lhe estava vedada tal actividade e, apesar disso, não se absteve de atuar como atuou.

83. O arguido agiu sempre de modo livre, voluntário e consciente, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei penal.

84. Do relatório social do arguido consta o seguinte:

“AA nasceu em Marrocos, mas veio para Portugal aos dois anos de idade junto dos pais e de um irmão mais velho. Aos quatro anos de idade a família mudou-se para Espanha, tendo regressado a Portugal em 2014, ocasião em que fixou residência na morada indicada anos autos. O arguido concluiu o 9º ano de escolaridade em Espanha. Em Portugal ingressou no 10º ano de escolaridade, mas não revelou interesse pela continuidade dos estudos. Foi orientado para cursos vocacionais, tendo iniciado três áreas profissionais distintas, Banca e Seguros; Contabilidade; e por último Informática, acabando por desistir, sem concluir nenhuma delas. Ao nível profissional, tem vindo a experienciar atividades laborais em diversos setores profissionais, mas por curtos períodos de tempo, revelando dificuldades de adaptação e de consolidação laboral, cessando frequentemente os contratos de trabalho que lhe têm sido proporcionando pelas entidades empregadoras. Durante a adolescência e juventude, foi jogador federado em diversas equipas distritais. AA e BB residiam no mesmo bairro habitacional e conhecem-se há vários anos. Aquele admitiu que há data dos factos, mantinha com a vitima, BB, uma relação análoga à de namoro, mas que nunca considerou ser uma relação séria e responsável. Acresceu que BB o procurava em sua casa, e tentava-o a saírem juntos por interesses económicos, ao que ele acabava por ceder, apesar de, por vezes o fazer contar a sua própria vontade. Segundo o mesmo, após a denuncia que deu origem aos presentes autos, desvinculou-se dos referidos encontros e referiu não pretender vê-la, nem com ela ter qualquer tipo de interação. BB, alegada vitima nos autos, referiu-se à relação que mantiveram como séria e fiel. Junto desta apuramos também que, no presente, não existe risco de ocorrem novos episódios de violência, entre ambos, uma vez que terminou a relação com o ex-namorado, e alterou a residência para uma localidade distante de .... Acresceu ainda que costuma deslocar-se a ... para visitar uma família com que detém relações similares às de familiares e que reside nas imediações da residência do arguido. Por ocasião destas deslocações, já se cruzaram algumas vezes, sendo que o arguido a tem vindo a respeitar, não a incomodando, nem tentado qualquer contacto. AA integra o agregado familiar dos pais, do qual nunca se desvinculou. Deste fazem parte, mais três irmãos, dois dos quais mais novos, nascidos durante o período em que viveram em Espanha. O agregado reside em habitação própria, adquirida pelos pais, um apartamento de tipologia 4, que dispõe de boas condições de habitabilidade, situado na periferia da cidade .... A economia familiar é caraterizada pelo arguido e pelo progenitor como adequada às necessidades da família, suportando-se na atividade de comércio de máquinas e ferramentas desenvolvida pelo pai, em parceria com os filhos. O negócio possui espaço físico na Quinta ... e on-line, modalidade na qual a atuação do arguido é mais fluente, tal como nas entregas de mercadoria. Do que ambos informaram, não tem rendimentos próprios fixos, uma vez que vive na dependência económica e habitacional dos pais, beneficiando também dos proventos adquiridos no mesmo negócio para gastos pessoais que necessitar. Estas eram as condições pessoais familiares que detinha à data dos alegados factos. O arguido expressa um elevado nível de inconformismo e incoerência perante os factos que lhe são imputados, tendendo a adotar uma postura de vitimização e de oportunismo por parte BB. O mesmo denotou encontrar-se emocionalmente afetado, repetindo várias vezes, que só quer ver o processo resolvido e não quer ver, nem contactar com a alegada vitima. Do ponto de vista familiar, não se evidenciam sinais de represálias para com o arguido face ao presente processo. Os elementos do núcleo familiar têm conhecimento da presente situação processual em que

o arguido está envolvido, e pese embora manifestem alguma preocupação, manifestaram–se disponíveis para o apoiar, quaisquer que seja o desfecho do presente processo. No meio residencial, AA é conhecido e beneficia de uma imagem socialmente adequada. Ao nível da sua situação jurídico ou penal, este não é o primeiro contacto com o sistema da justiça. O arguido, à data atual, pela prática de crime de roubo, foi condenado numa pena de quatro anos e seis meses de prisão, suspensa na sua execução, por igual período, com termo previsto para julho de 2025. Quanto a esta, o arguido tem vindo a cumprir genericamente, com as ações que lhe foram fixadas no PRS

– Plano de Reinserção Social elaborado por esta Equipa de Reinserção Social, não se evidenciando impactos decorrentes da sanção penal que lhe foi aplicada”.

85. Do certificado de registo criminal do arguido consta uma condenação a 27.11.2020, transitada em julgado a 11.01.2021 no âmbito do processo nº 197/19.... do JCC de ... J4 pela prática de um crime de roubo qualificado em 27.4.2019 na pena de 4 anos e seis meses de prisão cuja execução ficou suspensa na sua execução.

86. Em consequência da conduta do arguido a ofendida BB foi assistida no dia 4 de outubro de 2021 no serviço de urgência do Hospital ..., E.P.E,  tendo os encargos com a assistência prestada importado na quantia de 85,91€ (oitenta e cinco euros e noventa e um euros).

                                                               *

Com interesse para a decisão da causa, não se provou que:

1. Os factos  referidos supra sob 6. ocorreram no dia 15.11.2020.

2. BB fez exames no Hospital ....

3. Na situação referida sobre 12. BB e o arguido mantiveram relação sexual de cópula contra a vontade daquela.

4. O arguido percorreu pelo menos duas rotundas em contramão e a circular em velocidade excessiva.

5. BB ficou com hematomas nas zonas atingidas, em consequência do referido sob 48.

6. O arguido acertou com o telemóvel no olho direito de BB.

7. O arguido agredia BB, na situação referida sobre 62.

8. Quando BB estava a tentar adormecer, de barriga para cima, dado que era muito tarde e estava desgastada física e psicologicamente, contra a sua vontade e sem o seu consentimento o arguido introduziu o pénis na vagina de BB;

9.Quando BB acordou, ficou em choque dado que só aí se apercebeu do que se estava a passar, após o que o arguido se levantou e ejaculou para a parede de um canto do quarto;

10. O arguido tenha ordenado a BB para não ir à policia;

11. O arguido agiu com o propósito logrado de, com o recurso à força física, constranger a vítima, BB, a sofrer, contra a sua vontade, introdução vaginal do pénis daquele, com o único intuito de tentar satisfazer os seus instintos libidinosos bem sabendo que assim punha em causa a liberdade sexual da vítima, o que previu e quis.

12.  O arguido representou a sua descrita conduta e quis agir dessa forma, com a intenção de introduzir o seu pénis na vagina de BB, o que não conseguiu fazer por razões alheias à sua vontade, sabendo que a vítima só se sujeitava à sua actuação em virtude da forma como agiu.

13. O arguido agiu com o intuito de satisfazer os seus instintos sexuais, bem sabendo que coartava, desse modo, a possibilidade de a vítima se determinar livremente nesse campo da sua vida e sendo certo ainda que, atuando com aquele propósito, o arguido usou violência física contra a mesma, por modo a obstar que aquela resistisse aos seus intentos, o que logrou conseguir.

14. O arguido violou, de forma grosseira, regras estradais, tal como descrito, com isso criou perigo para os veículos que com ele se cruzaram, e que foram forçados a imobilizarem-se, sob pena de serem embatidos pelo arguido, sob pena de lhes provocar estragos alheios de valor elevado, bem como colocou em perigo a integridade física e mesmo a vida da ocupante, BB, que com o arguido seguia naquele veículo automóvel.

                                                                               *

A convicção do Tribunal, uma vez que o arguido usou, validamente, o seu direito ao silêncio teve por base as declarações para memória futura da prestadas pela ofendida BB que, com pormenor e credibilidade descreveu as várias situações em que  houve discussões entre si e o arguido, sendo que algumas das vezes ambos se encontravam alcoolizados e se passaram na Quinta ...; tais situações começaram a ter lugar em finais de julho de 2020 até maio de 2022; referiu que o arguido a ameaçou e disse que “só não te rebento agora… porque ainda tenho sentimentos por ti”; em  novembro  junto ao campo de futebol de ... (o CC assistiu) o arguido deu-lhe um pontapé na perna direita e ela caiu e ficou com um hematoma na perna; acrescentou que o arguido queria ter relações sexuais com ela, mas que, nem sempre queria, mas acabava por lhe fazer a vontade;  descreveu uma situação em que  foram dar uma volta para os ... e ele lhe disse que vê-la com medo o deixava excitado; referiu que em setembro estavam a ter relações sexuais, mas a meio ela quis parar porque não se estava a sentir bem e ele  começou a falar-lhe mal;  descreveu uma situação ocorrida em casa da sua mãe e que esta pôs o arguido na rua e ele saiu muito alterado tendo saído atrás dele para o acalmar; acrescentou que o arguido lhe chamava “puta” e dizia  que não era uma mulher correta;  quando via o arguido alterado, ia sempre atrás dele para o acalmar e acabava sempre por lhe fazer a vontade; acrescentou que o arguido conduzia sem ter carta e fazia-o muito mal; descreveu ainda uma situação em que o arguido a começou a beijar e a tentar ter relações sexuais com ela,  como recusou, ele deu-lhe uma chapada nas costas, afastou-se e disse “não tenho necessidade de violar gajas”; descreveu outra das situações em que mantiveram relações sexuais, consentidas e a seguir ela quis parar e ele ficou furioso e  deu-lhe uma chapada, sendo que lá o tentou, novamente, acalmar; ficou a sangrar do ouvido e disse-lhe que ia chamar a policia e ele tirou-lhe o telemóvel , atirou-lho à cara e bateu-lhe; pediu-lhe para não lhe estragar a vida quando disse que ia à policia;  sopesado o depoimento das testemunhas: CC, que referiu ser o melhor amigo da BB e afirmou que à sua frente o arguido desferiu um pontapé na perna da BB e que esta caiu ao chão e ficou com um hematoma e numa outra situação a BB foi ao hospital e chegou junto dele negra e inchada; definiu a relação entre o arguido e a sua amiga como “tóxica”, tendo chegado a, para além destas duas situações, visto a BB mais vezes com marcas de agressões; EE,  referiu ter assistido uma primeira vez em outubro de 2020, descreveu que era de noite e estavam a conversar  ela e a BB e o arguido apareceu com outras pessoas e  puxou a BB para a mata e começou a bater-lhe com as mãos e com os pés, dando-lhe chapadas e murros e ela ficou com um “alto” durante muitos meses; foram em socorro e separara-nos; na passagem de ano, em casa de um amigo, perto da Quinta ..., o arguido e a BB brigaram, mas foi tudo muito rápido e apenas se lembra de ver a BB no chão; a BB ficou com marcas negras  no corpo e mordidas; a BB recebeu tratamento hospitalar; também descreveu a relação entre o arguido e a ofendida como sendo “tóxica”; GG, mãe da BB, referiu ter assistido apenas a um episódio em que o arguido estava muito agressivo verbalmente para com a BB e disse que a ia deitar pela janela fora motivo pelo qual o expulsou de casa e a filha foi falar com ele  lá para fora; acrescenta que não assistiu a mais nada mas chegou a ver a filha com marcas no corpo; JJ, primo do arguido e II, vizinho, esclareceram o Tribunal sobre a personalidade do arguido. Na análise da prova documental, nomeadamente: auto de denúncia, fls. 5; auto de notícia, fls. 12; elementos clínicos da vítima, fls. 31 a 33, 129 a 134, 153 a 154; auto de transcrição de ficheiros áudio, fls. 91 a 92; CD, com gravação áudio, fls. 97; Relatório da Perícia de Avaliação de Dano Corporal em Direito Penal realizado à ofendida de fls. 10 a 13. Relatório social de fls. 301 e ss e CRC de fls. 315, documento junto com o pedido de indemnização civil efetuado pelo CHL.

Com efeito, da conjugação destes meios de prova, chegou o Tribunal aos factos provados e não provados supra.

Como referido, o arguido não contou a sua versão dos factos e, se isso não o beneficia, também não o prejudica, pois sobre ele não impende nenhum ónus da prova, muito menos negativo.

Os factos narrados pela ofendida lograram obter credibilidade por parte do Tribunal, sendo alguns dos episódios corroborados pelas testemunhas CC, FF e mãe da BB o que levou a que o Tribunal conclua pela condenação do arguido no que tange ao crime de violência doméstica e de condução de veiculo sem habilitação legal;

Já da análise das declarações da ofendida, é ela própria quem admite que acaba por ceder em manter relações sexuais com o arguido para lhe fazer a vontade. O Tribunal até aceita que o arguido tentasse manter relações sexuais com a BB e esta recusasse, no entanto nunca a mesma foi peremptória nessa recusa acabando, invariavelmente, por aceder e depois de iniciado o ato dizer que já não queria; como expressamente afirmado pela ofendida, estamos perante relações sexuais consensuais, consentidas por ela. Alega (como o faz a acusação) que as mesmas não eram inicialmente desejadas por si, mas que acabava por “deixar acontecer” e por “lhe fazer a vontade”. Aliás, mais uma vez, se a BB não queria ter relações sexuais com o arguido, porque acedia deixá-lo ir dormir em sua casa e iam ambos dormir para casa de amigos? E, mesmo que se admitisse que, da primeira vez, a ofendida fosse colhida de surpresa, como deixou que a mesma situação acontecesse por mais vezes? Tal versão não faz qualquer sentido, perante um padrão do mais simples e elementar bom senso. E, por isso, o Tribunal ficou convencido da existência dessas relações sexuais consentidas pela ofendida, mas não da sua oposição às mesmas ou que o arguido a tenha forçado a manter relações sexuais à força e após ela ter dito que NÂO. Em suma, se se prova a ocorrência dos actos sexuais consentidos (como a própria ofendida assume), fica a dúvida insanável sobre a concreta oposição daquela, não sendo possível formar a convicção de que os factos ocorreram como vertidos na acusação.

Com efeito, “não existindo um ónus de prova que recaia sobre os intervenientes processuais e devendo o tribunal investigar autonomamente a verdade, deverá este não desfavorecer o arguido sempre que não logre a prova do facto; isto porque o princípio in dubio pro reo, uma das vertentes que o princípio constitucional da presunção de inocência (art. 32.º, n.º 2, 1.ª parte, da CRP) contempla, impõe uma orientação vinculativa dirigida ao juiz no caso da persistência de uma dúvida sobre os factos: em tal situação, o tribunal tem de decidir pro reo.

O princípio do in dubio pro reo constitui uma imposição dirigida ao julgador no sentido de se pronunciar de forma favorável ao arguido, quando não tiver certeza sobre os factos decisivos para a decisão da causa; como tal, é um princípio que tem a ver com a questão de facto, não tendo aplicação no caso de alguma dúvida assaltar o espírito do Juiz acerca da matéria de direito. Este princípio tem implicações exclusivamente quanto à apreciação da matéria de facto, quer seja nos pressupostos do preenchimento do tipo de crime, quer seja nos factos demonstrativos da existência de uma causa de exclusão da ilicitude ou da culpa.”

Assim, deram-se como não provados os factos imputados ao arguido, no que concerne à sua não aceitação da oposição da ofendida ao prosseguimento da relação sexual oposição essa que também se não provou.

Deste modo, em estrita obediência aos princípios “in dubio pro reo” e da presunção de inocência, o arguido terá, necessariamente, de ser absolvido da imputada prática de três crimes de violação agravada, na forma consumada, de dois crimes de violação agravada, na forma tentada e de um crime de coação sexual.

Igualmente não se logrou provar que o arguido tenha praticado um crime de condução perigosa de veiculo rodoviário, uma vez que não logrou provar-se que o arguido conduziu o veiculo em contramão, mormente, percorrendo duas rotundas e em velocidade excessiva, pelo que também, nesta parte, o arguido deverá ser absolvido.”

IV – Fundamentação:

4.1. Recurso em matéria de facto: 

Como resulta do disposto no artigo 428º, nº 1 do Código de Processo Penal, os Tribunais da Relação conhecem de facto e de direito, do que decorre que, em regra e quanto a estes Tribunais, a lei não restringe os respetivos poderes de cognição.

A matéria de facto pode ser sindicada por duas vias: no âmbito dos vícios previstos no artigo 410º, nº 2, do Código de Processo Penal, no que se denomina de «revista alargada», que são vícios que traduzem defeitos estruturais da decisão penal e não do julgamento e no âmbito da impugnação ampla da matéria de facto, a que se reporta o artigo 412º, nos 3, 4 e 6, do mesmo diploma legal, caso em que a apreciação se alarga à análise da prova produzida em audiência, dentro dos limites fornecidos pelo recorrente, só podendo alterar-se o decidido se as provas indicadas obrigarem a decisão diversa da proferida.

Dispõe o artigo 410º, nº 2, do C. P. Penal que:

Mesmo nos casos em que a lei restrinja a cognição do tribunal de recurso a matéria de direito, o recurso pode ter como fundamentos, desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum:

a) A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada;

b) A contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão;

c) Erro notório na apreciação da prova”.

Como decorre expressamente da letra da lei, qualquer um dos elencados vícios tem de dimanar da complexidade global da própria decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, sem recurso, portanto, a quaisquer elementos que à dita decisão sejam externos, designadamente declarações ou depoimentos exarados no processo durante o inquérito ou a instrução ou até mesmo o julgamento, salientando-se também que as regras da experiência comum, no dizer de Germano Marques da Silva “não são senão as máximas da experiência que todo o homem de formação média conhece, englobando as regras da lógica, os princípios da experiência e os conhecimentos científicos” (citado no Ac. RL de 15-01-2019, in www.dgsi.pt).

Já o recurso a que se referem os artigos 412º nºs 3 e 4 e 431º do Código de Processo Penal envolve, não apenas o texto da decisão, mas a apreciação da prova produzida ou examinada em audiência de julgamento.

Este recurso não implica um segundo julgamento, uma nova análise de todos os elementos de prova produzidos e que serviram de fundamento à decisão recorrida, mas apenas e tão só uma reapreciação autónoma da decisão tomada pelo tribunal a quo, circunscrita aos factos individualizados que o recorrente considere incorrectamente julgados, valorando as provas que o recorrente entende que impõem uma decisão diferente pelo tribunal e outras que se afigurem necessárias para a decisão.

Nos casos em que o recorrente cumpriu os requisitos de que o legislador fez depender a impugnação da decisão em matéria de facto, impõe-se ao Tribunal de recurso averiguar se a convicção do Tribunal relativamente à matéria de facto impugnada está fundamentada e tem de avaliar se tal fundamentação e os meios de prova em que se baseou impõem essa decisão do Tribunal recorrido ou se, ao invés, os meios de prova por ele especificados impõem decisão distinta, concretamente aquela que o recorrente advoga.

Escreve Sérgio Poças, in “Quando o recurso incide sobre a decisão da matéria de facto”, Revista Julgar:

Como o tribunal de recurso não vai rever a causa, mas, como vimos, apenas pronunciar-se sobre os concretos pontos impugnados, é absolutamente necessário que o recorrente nesta especificação seja claro e completo. De facto, não podem ficar dúvidas sobre quais os concretos pontos de facto que o recorrente considera incorrectamente julgados(…) Em segundo lugar, o recorrente deve especificar as concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida. O recorrente, tratando-se de prova testemunhal (outra pode ser, como é obvio) deve identificar as testemunhas cujos depoimentos, no seu entendimento, e relativamente ao concreto ponto de facto em questão, impõem decisão diversa (importa reter as considerações feitas sobre a motivação e as conclusões no ponto anterior). Mas não basta identificar as testemunhas; o recorrente deve ainda indicar concretamente as passagens dos depoimentos dessas testemunhas em que se funda a impugnação — artigo 412.º, n.º 4.”

É unânime a jurisprudência no sentido de que é inegável o contacto pessoal conferir ao juiz em primeira instância os meios de apreciação da prova pessoal de que o tribunal de recurso não dispõe. Contudo, tal não significa que o Tribunal da Relação se tenha de limitar a apreciar se a convicção do tribunal a quo respeitou as regras probatórias e que não possa formar a sua própria convicção.

Lemos no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, 26.06.2019, processo: 174/17.1PXLSB.L1.S1, disponível em dgsi.pt., a cuja doutrina aderimos:

obviamente que o legislador ao estabelecer o recurso sobre matéria de facto sabe que o tribunal de recurso não se encontra presente no julgamento e por isso o estabelece nas condições em que o fez permitindo, ainda assim, uma apreciação global da prova com base no registo da mesma;  a falta de imediação por parte do tribunal de recurso, e nos termos em que esses recursos se mostram concedidos, não assume qualquer relevância; (...); o relevante é que do processo constavam todas as provas e elementos necessário a que o tribunal de recurso pudesse apreciar toda a prova existente e formar a sua convicção”.

E ainda Ana Maria Barata de Brito, in “Os poderes de cognição das Relações em matéria de facto em processo penal”, Estudo de 2012, disponível em http://www.tre.mj.pt/ docs/ESTUDOS:

Se a capacidade de reapreciação da matéria de facto pelo Tribunal da Relação sofre limitações decorrentes da falta de imediação – cumpre, então, questionar: a que falta (de imediação) nos referimos? A uma privação total, como genericamente se parece afirmar? E quais as consequências dessa privação, ou em reverso, qual o plus concretamente acrescido por via da imediação? Mesmo para além dos casos de renovação da prova (art. 430º CPP), as Relações não estão totalmente desprovidas de imediação. Têm-na desde logo, e aqui na exacta medida do juiz de julgamento, relativamente a todas as provas reais (no sentido de todas as outras provas, não pessoais: documentos, exames, perícias, apreensões, vigilâncias…). Têm-na relativamente à prova gravada/escutada – por via do acesso directo à documentação da prova, potenciado com o fim das transcrições que até 2007 mediatizavam o acesso. Ou seja, mesmo relativamente à prova pessoal existe uma imediação parcial. A prova pessoal ou oral revela-se, ao que aqui interessa, em duas componentes: de voz e de imagem. O tribunal ad quem fica privado da relação de proximidade com a imagem da pessoa que intervém no julgamento, na qualidade de arguido, testemunha ou declarante. Mas dispõe do acesso directo à voz do autor dos relatos, e pode apreender tudo o que, no processo comunicacional, é transmissível através da voz (gravada). Não deve falar-se por isso de uma total ausência de imediação, mesmo na parte referente à prova pessoal”.

Leia-se ainda Sérgio Poças, op. e loc. cit.:

“a ausência da imediação e da oralidade na Relação são factores a ponderar devidamente na decisão e daí que só com elementos seguros de uma clara e objectivada errada convicção sobre determinado facto a Relação possa alterar a decisão. Mas uma coisa é a natural ponderação e cautela, dada a ausência daqueles princípios na 2.ª instância, outra, bem diferente, é aquela invocação assumir-se de facto como impedimento ao exercício do direito ao recurso sobre a matéria de facto, o que não pode ser, como todos estaremos de acordo.”

Sobre a apreciação da prova, sabemos que no nosso sistema processual penal vigora o princípio da livre apreciação da prova, estabelecendo o art. 127° do CPP, que “salvo quando a lei dispuser diferentemente, a prova é apreciada seguindo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente”.

A este propósito, salienta Figueiredo Dias, in “Direito Processual Penal”, v. I, Coimbra Editora, Lda., 1981, pág. 202:

" Uma coisa é desde logo certa: o princípio não pode de modo algum querer apontar para uma apreciação imotivável e incontrolável - e portanto arbitrária - da prova produzida. Se a apreciação da prova é, na verdade discricionária, tem evidentemente esta discricionariedade (...) os seus limites que não podem ser licitamente ultrapassados: a liberdade de apreciação da prova é, no fundo, uma liberdade de acordo com um dever - o dever de perseguir a chamada" verdade material" - de tal sorte que a apreciação há-de se, em concreto, recondutível a critérios objectivos e portanto, em geral susceptível de motivação e de controlo”.

A apreciação da prova não é feita por segmentos isolados, estanques, opacos e incomunicáveis entre si, mas antes através da análise de todo o acervo produzido e da sua ponderação à luz dos critérios estabelecidos no artigo 127º do Código de Processo Penal.

Esta  livre valoração da prova não é livre arbítrio ou valoração puramente subjectiva, pela qual se chega a uma conclusão unicamente por meio de impressões ou conjecturas de difícil ou impossível objectivação, mas sim uma valoração racional e crítica, de acordo com as regras comuns da lógica, da razão, das máximas da experiência e dos conhecimentos científicos, que determinam uma convicção racional, objectivável e motivável.

Diz Marques Ferreira, in Jornadas de Direito Processual Penal, O Novo Código de Processo Penal, " Meios de Prova", Livraria Almedina, pág. 227/228.:

" Por outro lado, livre convicção ou apreciação não poderá nunca confundir-se com apreciação arbitrária da prova produzida nem com a mera impressão gerada no espírito do julgador pelos diversos meios de prova. A mais importante inovação introduzida pelo Código nesta matéria consiste, precisamente, na consagração de um sistema que obriga a uma correcta fundamentação das decisões que conheçam a final do processo de modo a permitir-se um controlo efectivo da sua motivação".

Tal não significa que a motivação seja totalmente objectiva, pois não pode nunca dissociar-se da pessoa do juiz que a aprecia e na qual “(…) desempenha um papel de relevo não só a actividade puramente cognitiva mas também elementos racionalmente não explicáveis (v.g. a credibilidade que se concede a um certo meio de prova) e mesmo puramente emocionais (...)” - cfr. Figueiredo Dias, in Direito Processual Penal, pág. 205. 

O princípio da livre apreciação da prova obriga à fundamentação da decisão proferida sobre a matéria de facto, inclusive por imperativo constitucional, o que implica - para além da sua sustentação em prova efetivamente produzida - uma explicação analítica e racional do processo de valoração da prova, que deixe claros os motivos que levaram o tribunal a julgar provada ou não provada a factualidade relevante.

E tal convicção só existirá quando o tribunal tenha logrado convencer-se da verdade dos factos para além de toda a dúvida razoável, exigência que entre nós sempre deriva dos princípios da culpa e da presunção de inocência.

Diz-nos Germano Marques da Silva, in “Curso de Direito Processual Penal, vol. II, pág. 126 e 127:

" O juízo sobre a valoração da prova tem diferentes níveis. Num primeiro aspecto trata-se da credibilidade que merecem ao tribunal os meios de prova e depende substancialmente de imediação e aqui intervêm elementos não racionalmente aplicáveis (v.g. a credibilidade que se concede a um certo meio de prova). Num segundo nível referente à valoração da prova intervêm as deduções e induções que o julgador realiza a partir dos factos probatórios e agora já as interferências não dependem substancialmente da imediação, mas hão-de basear-se na correcção do raciocínio, que há de basear-se nas regras da lógica, princípios da experiência e conhecimentos científicos tudo se podendo englobar na expressão regras da experiência.".

Tendo presente todo este edifício jurídico, e em coerência, o legislador estabeleceu um específico dever de motivação e formulação de conclusões do recurso em matéria de facto – cfr. artigo 412º, n.º 1, 3 e 4 do CPP.

Assim, segundo o n.º 3 do citado artigo 412º, quando impugne a decisão proferida sobre a matéria de facto, o recorrente deve especificar:

a) Os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados;

b) As concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida;

c) As provas que devem ser renovadas.

Por outro lado, por força do n.º 4 do mesmo artigo 412º, quando as provas tenham sido gravadas, as especificações previstas nas alíneas b) e c) do número anterior fazem-se por referência ao consignado na acta, nos termos do disposto no n.º2 do artigo 364º, devendo o recorrente indicar concretamente as passagens em que funda a impugnação.

À luz das considerações acima tecidas, vejamos então, em concreto, as razões de discordância dos recorrentes relativamente à matéria de facto que o Tribunal julgou estar provada.

a) Recurso do M.º P.º:

Relativamente ao recurso interposto pelo M.º P.º, constatamos que por ele foi integralmente cumprido o ónus a que alude o art.º 412 do CPP.

Efetivamente, o recorrente não só indicou os factos impugnados, como também a prova que, no seu entender, impõe decisão distinta: passagens das  declarações para memória futura prestadas pela vítima

Lemos o que escreveu o tribunal a quo na motivação da sentença (acima transcrita) e vemos que entendeu serem credíveis as declarações prestadas pela ofendida para memória futura e que estas, relativamente a alguns momentos relatados, são corroboradas pelos depoimentos das testemunhas CC, FF e ....

Sobre os factos que deu como não provados e que respeitam às relações sexuais mantidas entre o arguido e a vítima, escreve o Tribunal a quo:

“Já da análise das declarações da ofendida, é ela própria quem admite que acaba por ceder em manter relações sexuais com o arguido para lhe fazer a vontade. O Tribunal até aceita que o arguido tentasse manter relações sexuais com a BB e esta recusasse, no entanto nunca a mesma foi peremptória nessa recusa acabando, invariavelmente, por aceder e depois de iniciado o ato dizer que já não queria; como expressamente afirmado pela ofendida, estamos perante relações sexuais consensuais, consentidas por ela. Alega (como o faz a acusação) que as mesmas não eram inicialmente desejadas por si, mas que acabava por “deixar acontecer” e por “lhe fazer a vontade”. Aliás, mais uma vez, se a BB não queria ter relações sexuais com o arguido, porque acedia deixá-lo ir dormir em sua casa e iam ambos dormir para casa de amigos? E, mesmo que se admitisse que, da primeira vez, a ofendida fosse colhida de surpresa, como deixou que a mesma situação acontecesse por mais vezes? Tal versão não faz qualquer sentido, perante um padrão do mais simples e elementar bom senso. E, por isso, o Tribunal ficou convencido da existência dessas relações sexuais consentidas pela ofendida, mas não da sua oposição às mesmas ou que o arguido a tenha forçado a manter relações sexuais à força e após ela ter dito que NÃO. Em suma, se se prova a ocorrência dos actos sexuais consentidos (como a própria ofendida assume), fica a dúvida insanável sobre a concreta oposição daquela, não sendo possível formar a convicção de que os factos ocorreram como vertidos na acusação.”

Vejamos.

Este Tribunal de recurso ouviu a totalidade do depoimento prestado pela vítima para memória futura ( e não apenas os segmentos indicados pelo recorrente).

E constatamos que a vítima, relativamente ao episódio datado de 25/1/2021 declarou, cerca do minuto 12.00:

-“Pronto, e então a minha ideia era lá estar só, irmos dormir e ele aí estava a falar para termos relações sexuais e eu estava a dizer que não queria e então aí estávamos os dois deitados na cama quando ele estava por cima de mim e estava sempre a tentar ter relações e eu estava sempre a recusar

e ele aí começou-me a dar cabeçadas”

 Mma. Juiz: cabeçadas?

 Ofendida: cabeçadas eu me lembro que ele deu-me umas 4 cabeçadas seguidas e eu comecei a chorar e depois ele aí tentou reconfortar-me, porque eu já estava a chorar, e depois ele continuou a tentar ter as relações e então aí eu deixei, porque eu estava com medo também de que ele continuasse a agredir-me.

Mma. Juiz: Ou seja, ele punha-se em cima de si, tentava introduzir o pênis na vagina ou era outro tipo de relações sexuais?

Ofendida: Não.

Mma. Juiz: O que é que ele tentava fazer que a senhora dissesse que não?

Ofendida Ele estava por cima de mim e ele estava a falar para termos a relação sexual e eu estava a dizer que não queria. Ele verbalizava, não era só o gesto. Sim, aí verbalizava e eu estava a dizer que não queria.

Mma. Juiz: E a senhora verbalizou que não queria?.

Ofendida: Não queria, sim. E ele como estava por cima, pronto, ele já estava a me agarrar.

Mma. Juiz: Pronto, e depois na altura dá-lhe as cabeçadas. A senhora chora, ele reconforta. E depois de reconfortar, voltou a tentar?

Ofendida: Voltou a tentar e aí eu deixei que acontecesse, porque eu estava com medo que ele continuasse a agredir-me”

Constatou assim este Tribunal que a ofendida declarou efetivamente que verbalizou não querer manter relações sexuais com o arguido e que este insistiu e, estando em cima dela,  deu-lhe cabeçadas. Com medo do arguido, a ofendida acabou por não resistir mais e acedeu em ter relações sexuais com ele.

Aqui chegados, o que dizer?

Entende o Tribunal a quo que as declarações da vítima não são credíveis quanto ao facto de não querer ter relações sexuais com o arguido pois, se assim fosse, não o teria deixado dormir em casa dela. E o facto de ter alegadamente sucedido mais do que uma vez é também sinal de que a arguida não está a dizer a verdade, já que não entende o Tribunal como é que a ofendida pode ter deixado que tal sucedesse mais do que uma vez.

Todas estas inquietações do Tribunal a quo encontram resposta nos inúmeros estudos (médicos, sociológicos, psicológicos) feitos sobre o fenómeno da violência doméstica e sobre o chamado “ciclo da violência”. O próprio site do SNS (https://www.sns.gov.pt/) explica:

“A violência doméstica funciona como um sistema circular e que, regra geral, apresenta três fases:

. fase da tensão: aumento da tensão: sucessão de episódios de irritações com pequenas coisas, acessos de raiva, ameaças e humilhações, em que as tensões do dia-a-dia são direcionadas para a vítima

. fase da agressão: a tensão acumulada da fase anterior dá lugar a explosão de violência… podendo culminar em homicídio.

. fase calma ou “lua-de-mel”: a pessoa agressora demonstra arrependimento e promete mudar o comportamento e a não repetição do mesmo. Se houve rotura da relação na fase anterior, nesta fase pode haver lugar à reconciliação.

Este ciclo caracteriza-se pela sua continuidade no tempo, ou seja, pela repetição sucessiva ao longo de meses ou anos, podendo diminuir o intervalo entre as fases e aumentar a intensidade da violência ao longo da repetição do ciclo, sendo um preditor importante na avaliação do risco de homicídio.

A jurisprudência tem aludido em inúmeros arestos a este ciclo e às particularidades do comportamento das vítimas de violência doméstica e de agressão sexual.

Escreveu-se com particular interesse no recentíssimo Acórdão desta Relação, datado de 06-11-2024, proferido no processo 28/21.7PAPBL.C1 e disponível in www.dgs.i.pt:

Estudos indicam que na reação perante o agressor, as vitimas de agressão sexual e de violência doméstica podem ter comportamentos considerados incoerentes pelo cidadão comum, por ficarem, muitas vezes, mumificadas durante e após o contacto sexual, por não serem capazes de tomar decisões nem de pedir ajuda, por se culparem a si próprias, por se tornarem dependentes emocionalmente do agressor, por apresentarem sentimentos ambivalentes de amor/ódio, desejo/repulsa, libertação/dependência, comportamentos que podem traduzir a maneira como a vitima conseguiu sobreviver a eventos tão violentos e traumáticos.

Mas há ainda que dizer que não se entende razoável que o Tribunal a quo diga que o depoimento da ofendida é credível relativamente à  violência verbal e física de que a ofendida foi alvo por parte do arguido, não obstante a vítima não se tenha afastado do arguido depois do primeiro episódio de agressão, e use este argumento para afirmar que o mesmo depoimento não é credível no relato que por ela é feita dos episódios de violência sexual.

Afastadas as reservas do tribunal a quo e ouvido o depoimento da vítima, constatamos que este se mostrou espontâneo, coerente, sem contradições ou incoerências que nos façam duvidar da sua veracidade,  sendo por isso credível, concretamente no relato do episódio datado de 25/1/2021.

Daqui o Tribunal a quo errou na análise que fez da prova produzida em julgamento e errou desde logo quando consignou  na motivação da sentença que a vítima “nunca foi peremptória nessa recusa” e que “acaba por ceder em manter relações sexuais com o arguido para lhe fazer a vontade”.

Não foi  isso o que a vítima declarou, como se vê da transcrição acima feita: ela transmitiu claramente ao arguido a sua recusa e a verdade é que, para que se afirme a ausência de consentimento de uma vítima, não é necessário que esta adopte atitudes heroicas e temerárias, que se coloque em risco, bastando que a recusa seja clara, como foi.

 À luz da motivação da sentença, o Tribunal a quo, ao formar a sua convicção, não fez de facto um bom uso do princípio de livre apreciação da prova, valorando-a de forma ilógica.

E, deste modo, porque a prova indicada pelo recorrente o impõe, há que julgar provado o facto 3 dos não provados:

Na situação referida sobre 12. BB e o arguido mantiveram relação sexual de cópula contra a vontade daquela.

                                                                       *

 Mas também quanto aos factos dados como não provados em 8 a 13,  argumenta o recorrente que as declarações prestadas pela vítima para memória futura impõem que se deem os mesmos como provados.

Lembra que foi com fundamento nessas mesmas declarações que o Tribunal a quo deu como provados os factos descritos em 40 a 50.

Assiste -lhe razão.

A ofendida contou a razão pela qual, na madrugada do dia 4/10/2021, deixou o arguido entrar na sua casa.

Disse ainda, cerca do minuto 39.00:

“e nisto ele, obviamente, tentou ter relação sexual comigo e eu, como já estava a ver o estado que ele estava alterado, eu pensei para mim, se eu não fizer o que ele está a dizer, ele vai me bater.

Então eu deixei, lá está, fiz-lhe a vontade de termos a relação sexual, mas eu não aguentei por muito tempo.

Foi bastante rápido que eu disse, não consigo, desculpa, não consigo mesmo fazer isto.

Então quis parar e ele ficou todo ofendido, do tipo, ah, ok, então vamos dormir, e estava assim, todo agressivo e ofendido a falar comigo.”

Contou a ofendida que tentou questionar o arguido sobre o seu comportamento e que a determinada altura ele lhe deu várias chapadas (cerca de sete) e ela chorou e pediu-lhe para parar.

Disse: “nisto eu acendi a luz do quarto e olhei para o meu espelho e eu tinha a cara toda inchada e via as marcas e tinha sangue a escorrer-me do ouvido”.

A ofendida assustou-se ao ver a cara assim, chorou, disse que ia chamar a polícia e  agarrou o telemóvel, mas o arguido tirou-lho da mãe e continuou a bater-lhe dizendo que se ela ia fazer queixar a polícia, não ia ser só por umas chapadas.  A ofendida ficou com muito medo, gritou. Acrescentou que inclusivamente, estando ela deitada, o arguido a asfixiou e que lhe atirou com  o telemóvel, que lhe acertou na cara

A determinada altura, depois da ofendida lhe dizer que a mãe iria chegar a casa cerca das 7h00, o arguido disse -lhe para irem para casa dele. A ofendida disse que não  queria ir, mas ele agarrou-lhe no braço e saiu com ela de casa, arrastando-a e segurando -a quando ela se tentava libertar. Quando se conseguiu soltar e fugir, o arguido foi atrás dela e alcançou-a e levou-a para casa dele. Deitou-a na cama dele e ele deitou-se  também e agarrou- a e acabaram por adormece.

E conta:

eu devo ter adormecido porque eu acordo, senti aquela sessão de estar a acordar. Eh, e aí foi foi quando eu acordei e ele tava eu senti que estava a ser tocada na minha vagina e eu assim que acordo e sinto aquilo, eu fiquei parada a pensar, não acredito que ele tá a fazer isto neste contexto comigo assim. Hum. E depois eu senti ele introduzir o pénis dele e eu estava só mobilizada. Eu não não me mexi, eu tava tipo sem qualquer tipo de reação.

Não sei quanto tempo isto durou, mas eu penso que foi um prazo bastante curto de tempo. E depois ele terminou, ele levantou-se, ah, foi assim ao canto do quarto, voltou tipo a arranjar as calças para cima e ficou e olhou para mim e disse: "Vamos tomar banho e depois vamos tomar o pequeno almoço". E eu fiquei tipo um bocado incrédula com aquela reação dele, como se não tivesse problema.

E vincou a ofendida, ao minuto 50 :

“ele esteve-me a bater durante horas e tudo começou outra vez porque eu não queria fazer sexo com ele. Então acho que estava mais explícito que eu não queria fazer aquilo.”

(…)

“ eu estava a dormir, então ele começou-me a tocar enquanto estava a dormir. Ele olhou para mim e pensou, ela não vai dizer que sim nem que não, ela está a dormir.

Mma. Juiz: E quando acordou verbalizou alguma coisa?

Ofendida: Não, eu não falei nada.

Mma. Juiz: Ou mediante aquele contexto deixou-se assustar?

Ofendida: Eu estava completamente perplexa- Eu não estava a acreditar que ele estava a fazer aquilo. Depois daquilo tudo. E depois é isso. Ele só disse-me aquilo. Como se estivesse tudo bem. Eu disse, eu quero ir embora.

Mma. Juiz: Mas ele manteve a relação sexual?

Ofendida: Sim.

(…)

E nisto ele abre a porta outra vez e diz assim, por favor não estragues a minha vida.

Contou ainda que, logo quando saiu de casa e enquanto descia as escadas do prédio do arguido, telefonou ao amigo CC e ele e a FF vieram ao seu encontro de imediato.

Ouviu ainda este Tribunal da Relação os depoimentos das testemunhas CC e FF, que confirmaram que efetivamente foram ao encontro da ofendida num dia de manhã e a viram com muitas nódoas negras na cara e no corpo, dizendo ter sido agredida pelo arguido. Chamaram a polícia.

Não podemos de facto secundar a  apreciação que o Tribunal a quo fez destes meios de prova.

As declarações prestadas pela ofendida foram circunstanciadas, coerentes e, por isso, credíveis, como acima foi já explicado.

E tais declarações, conjugadas com os depoimentos das testemunhas CC e FF e com as regras da experiência e do normal acontecer, num raciocínio lógico e dedutivo, impõem de facto, uma decisão diferente, dando-se como provada a factualidade descrita em 8, 9 dos factos não provados:

- Quando BB estava a dormir, de barriga para cima, dado que era muito tarde e estava desgastada física e psicologicamente, contra a sua vontade e sem o seu consentimento o arguido introduziu o pénis na vagina de BB;

- Quando BB acordou, ficou em choque dado que só aí se apercebeu do que se estava a passar, após o que o arguido se levantou e ejaculou para a parede de um canto do quarto;

                                               *

Por razões de lógica e de coerência, o facto 71 passa a ter a seguinte redação:

- Para introduzir o seu pénis na vagina de BB o arguido afastou para o lado as calças de pijama daquela.

                                               *

Os mesmos meios de prova impõem ainda, num raciocínio lógico e dedutivo, fundado nas regras da experiência e do normal acontecer, que se dê como provada a seguinte factualidade que havia sido dada como facto não provada em 11:

- O arguido agiu do modo supra referido, no dia 25/1/2021 com o propósito logrado de, com o recurso à força física, constranger a vítima, BB, a sofrer, contra a sua vontade, introdução vaginal do pénis daquele, com o único intuito de tentar satisfazer os seus instintos libidinosos bem sabendo que assim punha em causa a liberdade sexual da vítima, o que previu e quis. 

- O arguido agiu do modo supra referido, no dias 4/10/2021 (factos agora aditados, correspondentes aos não provados em 8 e 9 e nova redação do facto 71) com o propósito logrado de constranger a vítima, BB, a sofrer, contra a sua vontade, introdução vaginal do pénis daquele, com o único intuito de tentar satisfazer os seus instintos libidinosos bem sabendo que assim punha em causa a liberdade sexual da vítima, o que previu e quis. 

                                                           *

Relativamente à factualidade não provada em 11 respeitante ao episódio do mesmo dia relatado no facto 54, vejamos.

Diz a ofendida, nas declarações que presta:

ele entrou na minha casa, eu vi que ele já tinha as mãos com sangue e questionei-o sobre isso, mas ele não uma só ficou tipo, ah, ele não me explicou o que é que tinha acontecido e eu até tive-lhe a limpar o sangue das mãos e a tentar decurar-lhe que ele estava com as mãos feridas. Pronto, depois aí eu estava a tentar questioná-lo sobre o que é que estava a passar, onde é que ele tinha estado para estar assim tão alterado, o que é que estava a passar, porque é que ele estava a vir ter comigo, pronto, estava assim a questionar isso tudo. Hum, e nisto ele, obviamente tentou ter relação sexual comigo. E eu, como já estava a ver o estado que ele estava alterado, eh, eu pensei para mim, se eu não, se eu não fizer o que ele tá a dizer, ele vai- me bater. Então, eu deixei, lá está, fiz-lhe a vontade de de termos a relação sexual, mas eu não aguentei por muito tempo. Foi bastante rápido que eu disse, não consigo, desculpa, não consigo mesmo fazer isto. Então, quis parar e ele ficou todo ofendido do tipo, ah, ok, então vamos dormir e estava assim todo agressivo e ofendido a falar comigo.”

Em momento algum do depoimento a ofendida declarou ter, por alguma forma, transmitido ao arguido a sua recusa em manter um relacionamento sexual com ele, na referida madrugada. Manteve-a, sem vontade, mas por provar ficou que se tenha recusado e que o arguido soubesse dessa recusa.

E, nessa medida, permanece não provado o seguinte facto:

O arguido agiu do modo supra referido em 54  com o propósito logrado de constranger a vítima BB, a sofrer, contra a sua vontade, introdução vaginal do pénis daquele, com o único intuito de tentar satisfazer os seus instintos libidinosos bem sabendo que assim punha em causa a liberdade sexual da vítima, o que previu e quis. 

                                               *

Com referência ao facto descrito em 40, dá o Tribunal como não provado em 13 (correspondente ao artigo 90 da acusação) o seguinte

“. o arguido agiu com o intuito de satisfazer os seus instintos sexuais, bem sabendo que coartava, desse modo, a possibilidade de a vítima se determinar livremente nesse campo da sua vida e sendo certo ainda que, atuando com aquele propósito, o arguido usou violência física contra a mesma, por modo a obstar que aquela resistisse aos seus intentos, o que logrou conseguir.”

O MP pretende que tal facto não provado em 13 transite para os provados.

Contudo, o recurso tem de improceder relativamente a esta matéria, já que na realidade, ouvidas as declarações para memória futura, vemos que o facto 40  nunca sucedeu e não deveria constar do elenco dos provado.

Expliquemos:

Diz a ofendida (ao minuto 33.00 das declarações):

“E ele, pronto, fechou a porta do quarto, estávamos às escuras. Estávamos sentados no chão, eu estava a conversar com ele a tentar acalmá-lo para ele se ir embora e ir para casa e ele aí tentou ter relações comigo e eu estava a recusar, a dizer, não vamos fazer isto aqui.”

Mm.a Juiz: o que é que ele tentou fazer?

Ofendida: “Ter relações sexuais”

M,ma Juiz: “sim, mas há várias maneiras

Ofendida: Começou-me a tentar beijar

M.ma Juiz: foi para cima de si? Deu beijos? drdar beijo, não é de ter tentar ter relações, não é?.

Ofendida: “sim, mas ele estava a tentar ter essas relações E eu disse logo: "Não vamos fazer isto aqui, tu não estás bem, isto não faz qualquer sentido". E eu lembro-me, estava sentada e eu estava a falar de costas para ele enquanto ele estava tipo atrás de mim. Eu estava a falar de costas, a dizer: "Eu devia estar a falar, estamos sempre nisto, tu nunca estás bem". E assim a falar, apontar-lhe mesmo que as situações que ele provoca. E nisto ele dava uma chapada nas costas. Ah, e aí eu fiquei, pronto, agora eu comecei-me a sentir em perigo a partir do momento que ele me deu a chapada nas costas.”

Assim, de acordo com o relato da ofendida, não existiu um momento em que o arguido se tenha colocado em cima dela, a tenha apalpado e de seguida tenha feito movimentos como se estivesse a manter relações sexuais, em momento anterior a ter sido agredida com uma bofetada nas costas.

E, nessa medida, o facto não provado em 13 (correspondente ao 90. da acusação), por referência ao facto provado 40, tem de permanecer não provado e o facto descrito no ponto 40 transita para os factos não provados.

                                               *

Também relativamente ao facto não provado em 9, improcede o recurso do MP, dado que nenhuma prova se fez do mesmo. Vejamos que a ofendida, nas declarações para memória futura, declarou que o arguido lhe disse, quando ela saiu de casa “por favor, não estragues a minha vida”, mas não que lhe tenha nessa altura ordenado que não fosse à polícia.

                                                            *

Quanto ao facto não provado em 12 (correspondente ao artigo 89 da acusação), deverá permanecer não provado, uma vez que nas situações aí referidas (factos provados em 31 e 32 e 44 a 50 dos provados) o arguido abandonou livremente, espontaneamente, a execução do facto, deixando a ofendida ir embora de casa, não concretizando a sua intenção de introduzir o pénis na vagina da vítima.

                                                *

Quanto ao facto não provado em 4:

Argumenta ainda o M.º P.º, que “perante o concreto e circunstanciado relato da ofendida (narrando as circunstâncias de tempo, modo e lugar em que o arguido conduziu um veículo automóvel, em via pública concreta e determinada, circulando em faixa de rodagem destinada ao transito em sentido contrário ao seu, em duas rotundas onde circulavam outros veículos automóveis, que apitavam) impõe a conclusão de que o referido episódio se passou conforme consta nos pontos 40 e 41 da acusação e, nesta decorrência, que seja dado como provado o facto n.º 4 do rol dos factos não provados.”

Tem parcialmente razão o recorrente.

A ofendida relata, de forma clara (cerca do minuto 29.00 das declarações para memória futura) :

“eu estava a dizer assim, não vais conduzir porque estás não tás bem e tu nem sequer sabes conduzir, então vai, mas é para casa e a casa dele era mesmo ali. Então eu estava sempre a dizer para ele ir para casa.

E nisto ele tava fingir que estava tudo bem, ele diz: "Ah, vamos dar uma volta que eu estou bem e vamos dar uma volta". Então ele arrancou com o carro com uma condição muito perigosa.

(…)

ele começa a sair da dessa zona da Quinta .... Foi até pela aquela estrada da estação como quem vai depois para aquela rotunda ao pé da grelha. Ele seguiu esse caminho.

E eu vi que ele que aquilo não ia correr nada bem porque ele estava a conduzir muito mal e os carros estavam a apitar e a condição dele era mesmo muito má e eu estava a ficar com imenso medo. E isto era por volta das 4 e tal da tarde, então até havia algum movimento de trânsito e e depois ele fez essas retundas dessa avenida toda da Nova ....

M.ma Juiz: Estamos a falar depois da Rotunda ... também?

Ofendida: Sim, essa rotunda e ainda a rotunda dos robôs lá à frente.

(..)

ele fez essas duas retundas. Eu não tenho carta, eu não sei conduzir, mas eu sei que o lado tem que se fazer a rotunda. E ele fez a rotunda pelo outro lado

M.ma Juiza: em contramão?

Ofenida: Sim. E os carros estavam todos a apitar e eu aí estava mesmo a entrar em pânico porque eu pensei na minha cabeça só pensava que nós íamos ter um acidente. Eu estava só à espera de sentir o carro a bater e eu estava mesmo muito em pânico e ele estava a fazer essa condução. Pronto, ele fez duas retundas e pronto, com a condição invertida ao contrário, não sei, e nisto ele subiu para cima para a parte onde tem a A...”

Considerando este depoimento, que o Tribunal a quo entendeu ser credível -  no que merece o nosso acordo – há que concluir que a prova produzida em julgamento impõe que se dê como provado que o arguido fez duas rotundas em contramão.

Relativamente à velocidade a que seguiam, a verdade é que a ofendida não a quantifica minimamente, pelo que tem de se manter tal factualidade  não provada.

Em conformidade e concluindo, relativamente a este episódio, passará tão só a constar da factualidade provada que o arguido percorreu duas rotundas em contramão.

                                               *

No que respeita ao facto não provado em 14, permanecerá não provado, improcedendo o recurso do M.º P.º quanto a este ponto, porquanto, na realidade, das declarações da ofendida resulta que esta sentiu medo, mas não descreve uma concreta situação de perigo para ela e para os veículos com que se cruzaram e seus ocupantes. 

                                               *

Em suma, em conformidade com o que decorre do artigo 431º do Código de Processo Penal, há que proceder à alteração da matéria de facto no sentido pretendido pelo recorrente, nos termos supra expostos, procedendo parcialmente o recurso do M.º P.º neste segmento

*

b) recurso do arguido:

Impugna o arguido o ponto 2 dos factos provados, dizendo que são falsos e invoca um segmento do depoimento da testemunha CC, que transcreve e que, segundo entende, impunha que tais factos fossem jugados não provados.

            No entanto, a verdade é que, por um lado o referido segmento não impõe conclusão distinta quanto ao facto impugnado (vejamos que é possível uma relação de namoro sem existir convívio do casal com os amigos) e, por outro lado, o Tribunal valorou vários elementos de prova, de entre os quais as declarações para memória futura prestadas pela ofendida.

É por conseguinte clara a improcedência desta impugnação.

Também quanto aos pontos 3, 6, 22, 36 e 37 dos factos provados, que sustenta serem falsos, o recorrente indica como prova segmentos de depoimentos de testemunhas – que transcreve – os quais não impõem uma conclusão distinta daquela a que chegou o tribunal a quo. A prova a que o recorrente alude e transcreve é também a prova que o Tribunal a quo valorou para dar como provados os factos que nessa qualidade descreveu e a verdade é que da leitura dos segmentos transcritos não resulta que as testemunhas tenham dito algo de notoriamente contrário ou incompatível com a factualidade provada. O que sucede é apenas que desses elementos de prova o recorrente extrai uma conclusão diferente daquela que foi a do Tribunal a quo.

Já quanto aos pontos 38 a 50, o recorrente transcreve um segmento do depoimento da testemunha II onde este declara que o arguido e a ofendida nunca pernoitaram em casa dele. Ora, os factos impugnados, de acordo com o descrito, ocorreram em casa de um amigo do arguido que não era o II. Desta forma, a prova indicada pelo recorrente não impõe uma decisão distinta daquela que foi tomada pelo Tribunal a quo, não tendo por conseguinte sido cumprido o ónus de impugnação especificada a que o arguido devia obediência.

Relativamente aos pontos 5, 10, 12, 18, 20, 25, 27, 28, 29, 31, 33, 34, 35, 51 a 88, o recorrente não cumpre o ónus de impugnação, não indicando prova que imponha resultado distinto, centrando o seu recurso numa avaliação diferente da prova que foi feita em julgamento, dando a sua visão pessoal da mesma e das conclusões que, a seu ver, o Tribunal a quo deveria ter chegado.

Esta forma de colocar em causa a factualidade não preenche, de facto, o ónus de impugnação que se impunha.

E deste modo o arguido impossibilitou o efectivo conhecimento da impugnação ampla da matéria de facto.

Não pode haver lugar, nestas situações, ao convite ao aperfeiçoamento para acrescentar nas conclusões as especificações que não fez na motivação, já que tal equivaleria  à concessão de novo prazo para recorrer, o que não pode considerar-se compreendido no próprio direito ao recurso – neste sentido, vd. acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 07.10.2004, e os Ac TC n.º 259/2002, de 18.06.2002, e 140/2004, de 10.03.2004, in www.tribunalconstitucional.pt.

Em suma: não tendo o arguido cumprido o ónus imposto no artigo 412º, nº 3, alíneas a) e b) e nº 4, este Tribunal não pode reexaminar amplamente a matéria de facto supra indicada fixada pelo Tribunal recorrido, impondo-se a rejeição do recurso neste segmento.

                                               *

Por tudo o exposto, concluímos que, quer por improcedência da impugnação, quer por rejeição do recurso, não tem qualquer sucesso a pretensão do recorrente relativamente à matéria de facto dada como provada.

                                                            *

4.2. Violação do princípio da presunção de inocência e do princípio in dubio pro reo:

O arguido alega que, face à prova produzida, o Tribunal deveria ter permanecido na dúvida quanto aos factos provados, pois as declarações prestadas pela ofendida foram frágeis e não foram corroboradas por outros meios de prova, o que imporia a respetiva absolvição, em obediência ao princípio in dubio pro reo, que decorre do princípio de presunção de inocência, constante do art.º 32º n.2 da CR

Como sabemos, o que resulta deste princípio é que, quando o Tribunal fica na dúvida quanto à ocorrência de determinado facto, deve daí retirar a consequência jurídica que mais beneficie o arguido, sendo que, conforme refere Figueiredo Dias, in Direito Processual Penal, I, p. 205, dúvida relevante para este efeito há-de ser uma dúvida razoável, uma dúvida fundada em razões adequadas e não uma qualquer dúvida.

Como se ponderou no acórdão da RL de 10.01.2018, Processo: 63/07.8TELSB-3, acessível em www.dgsi.pt.

O princípio in dubio pro reo constitui um princípio de direito relativo à apreciação da prova/decisão da matéria de facto, estando umbilicalmente ligado, limitando-o, ao princípio da livre apreciação – a livre apreciação exige a convicção para lá da dúvida razoável; e o princípio «in dubio pro reo» impede (limita) a formação da convicção em caso de dúvida razoável. A dúvida razoável, que determina a impossibilidade de convicção do tribunal sobre a realidade de um facto, distingue-se da dúvida ligeira, meramente possível, hipotética. Só a dúvida séria se impõe à íntima convicção. Esta deve ser, pois, argumentada, coerente, razoável. De onde que o tribunal de recurso “só poderá censurar o uso feito desse princípio (in dubio) se da decisão recorrida resultar que o tribunal a quo chegou a um estado de dúvida e que, face a esse estado escolheu a tese desfavorável ao arguido – cfr. acórdão do STJ de 2/5/1996, CJ/STJ, tomo II/96, pp. 177. Ou quando, após a análise crítica, motivada e exaustiva de todos os meios de prova validamente produzidos e a sua valoração em conformidade com os critérios legais, é de concluir que subsistem duas ou mais perspetivas probatórias igualmente verosímeis e razoáveis, havendo então que decidir por aquela que favorece o réu.”

Sublinhamos, a este respeito, que a seleção da perspetiva probatória que favorece o acusado só se impõe quando, esgotadas todas as operações de análise e confronto de toda a prova produzida perante o julgador, apreciada conjugadamente entre si e em conformidade com as máximas de experiência, a lógica geralmente aceite e o normal acontecer das coisas, subsista mais do que uma possibilidade de igual verosimilhança e razoabilidade.

Assim, só haverá violação do mencionado princípio quando, perante uma dúvida inultrapassável sobre factos essenciais para a decisão da causa, venha o julgador a decidir em desfavor do arguido.

Tal não ocorreu no caso dos autos, mostrando-se a factualidade julgada provada estribada em prova produzida em julgamento e em consonância com essa prova.

E o Tribunal não equacionou outras explicações para as lesões da ofendida porque entendeu, pelas razões que expôs na motivação da sentença, que a versão trazida a juízo pela ofendida era credível.

E, contrariamente ao que o arguido argumenta, o Tribunal não valorou apenas o depoimento da ofendida para dar como provados os factos que estão aqui em causa, mas também os depoimentos das testemunhas CC, FF e KK e a prova documental (incluindo elementos clínicos da ofendida) e a prova pericial junta aos autos.  Escreveu o Tribunal que os depoimentos das testemunhas acima referidos corroboram alguns dos episódios que a ofendida relatou.

De modo algum transparece do texto do acórdão recorrido que o Tribunal a quo tivesse tido qualquer hesitação quanto à valoração da prova e a verdade é que não se vislumbra que, na concreta situação dos autos, devesse ter tido qualquer dúvida.

Não se mostra por conseguinte violado o disposto no art.º 32º da CRP

Improcede, assim, o recurso neste segmento.

                                                                       *

4.3. Enquadramento jurídico:

a) Recurso do arguido:

Defende o arguido que, uma vez que o Arguido e a Ofendida não mantinham uma relação de namoro, os factos não são subsumíveis ao crime de violência doméstica pelo qual foi condenado, mas sim ao crime de ofensa à integridade física, p. e p. pelo art.º 143º n.º 1 do CP.

Esta argumentação falece desde logo no confronto com os factos provados, dado que se provou que o arguido e a ofendida eram namorados.

Dito isto,  e porque do cotejo entre a factualidade provada e o disposto no art.º 152 do CP resulta claramente que os factos praticados pelo arguido são subsumíveis ao crime em apreço, qualquer outra consideração jurídica sobre o crime seria um excesso, remetendo-nos aqui para as considerações jurídicas tecidas no Acórdão recorrido, que subscrevemos.

           

b) recurso do M.º P.º

Pugna o recorrente pela condenação do arguido, para além dos crimes porque foi condenado no Acórdão recorrido, também pela prática dos seguintes crimes:

- um crime de violação agravada, na forma consumada (factos provados 11 a 14, mais os factos impugnados, que devem passar para o rol dos factos provados);

- um crime de violação tentada (factos provados 40 a 50, mais os factos impugnados, que devem passar para o rol dos factos provados);

-  um crime de violação, na forma consumada (factos provados 51 a 54, mais os factos impugnados, que devem passar para o rol dos factos provados);

- um crime de um crime de violação agravada, na forma consumada (factos provados 69 a 71, mais os factos impugnados, que devem passar para o rol dos factos provados, correspondentes aos factos 76 a 77 da acusação);

- um crime de condução perigosa de veículo rodoviário, p. e p. pelo art.º 291 e 69 do CP (factos provados mais o facto impugnado 4, que deve passar para o rol dos factos provados)

Ora, da análise da matéria de facto provada e não provada (e considerando a improcedência do recurso do M.º P.º relativamente a estes pontos da matéria de facto) resulta claramente (sem necessidade de maiores elucubrações) que a conduta do arguido não é subsumível a este último crime, nem tampouco ao crime de violação na forma tentada (por referência aos factos 40 a 50) e ao crime de violação na forma consumada (por referência aos factos provados 51 a 54).

No que concerne aos dois crimes de violação agravada na forma consumada, p. e p. pelo art.º 164 n,º 1 al. a) e 2 al. a) do CP, que o M.º P.º imputa ao arguido, vejamos a factualidade em causa:

- 9. No dia 25/01/2021, de madrugada, no interior da residência da BB, mais concretamente no seu quarto, depois de ambos se reconciliarem, esta recusou-se a manter relações sexuais com o arguido.

- 10. O arguido ficou irritado, após o que desferiu quatro cabeçadas na BB, colocando-se em cima dela, quando a mesma se encontrava deitada.

- 11. BB começou a chorar e o arguido reconfortou-a.

- 12.O arguido continuou a insistir em manter relações sexuais, e BB, permitiu que ele introduzisse o pénis dele na vagina dela, mantendo relação sexual de cópula completa.

E ainda, por força do supra decidido em 4.2.,  está provado que:

- Na situação referida sobre 12. BB e o arguido mantiveram uma relação sexual de cópula contra a vontade daquela.

- O arguido agiu do modo supra referido, no dia 25/1/2021, com o propósito logrado de, com o recurso à força física, constranger a vítima, BB, a sofrer, contra a sua vontade, introdução vaginal do pénis daquele, com o único intuito de tentar satisfazer os seus instintos libidinosos bem sabendo que assim punha em causa a liberdade sexual da vítima, o que previu e quis. 

E está provado que:

- agiu sempre de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei (facto provado em 83).

                                                           *

Sobre o crime de violação, pouco diremos, por a situação dos autos não nos obrigar a tecer grandes considerações jurídicas.

Salienta-se apenas que o traço distintivo entre o crime base e o crime qualificado -  previsto no nº 1 e no n.º 2 é o emprego de violência ou ameaça grave como forma de constrangimento da vontade da vítima ou a colocação desta inconsciente ou na impossibilidade de resistir, exigindo-se aqui um nexo causal entre a prática dos actos sexuais referidos e o meio utilizado para alcançar esse fim.

Fazendo o n. 2 do art.º 164º do CP uma referência genérica a «violência»,  é discutido na doutrina e na jurisprudência saber se a violência moral pode (e deve) também ser elemento constitutivo do tipo de violação.

No caso dos autos, a factualidade provada desobriga-nos dessa discussão.

Sobre a violência física e a ameaça grave, escrevem José Mouraz Lopes e Tiago Milheiro, in Crimes Sexuais, 4ªEd, págs 99 a 101:

 “O que importa salientar é que a violência ou ameaça grave abrange uma panóplia de situações que envolvem a força física ou de pressão psicológica, mas cujo elemento comum é a aptidão para, naquele caso em concreto, atento as suas especificidades, lograrem a concretização de um ato sexual de penetração contra a vontade da vítima ou cujo consentimento não foi livre e espontâneo. Não se exige para a qualificação que a vítima resista, não sendo este elemento típico necessário para concluir pela existência de violência ou ameaça grave, que devem ser “verificados” na sua objetividade e na sua aptidão/idoneidade para condicionar o exercício livre e voluntário da liberdade de decidir o ato sexual de relevo pela vítima”.

E diz ainda o Ac. do STJ de 17/3/2004, proc.439/04-3ªsecção, in www.dgsi.pt:

“Uma resistência efectiva não se torna indispensável, bastando que devesse contar-se com ela e o uso da violência se destine a vence-la; (…) Assim, o juízo de violência capta-se e apoia-se em função das condições pessoais e concretas em que a vítima é colocada, não se exigindo uma resistência pertinaz, uma oposição ilimitada, até às últimas consequências, da vítima (…): o simples convencimento da vítima da inutilidade de oferecer ou não prolongar por mais tempo a resistência é suficiente para integrar o conceito de violência, e esta é tanto a física como a psíquica. (…) Relevante é a idoneidade dos actos praticados sobre a vítima para cercear a sua livre autodeterminação sexual, e decisivo é que o acto sexual de relevo, pelo seu modo de execução, denote ausência de consentimento da vítima, em nexo causal com a violência sobre o corpo ou psiquismo da vítima, uma e outra aferidas segundo as condições pessoais e particulares daquela» 

Ora, os factos em causa nos autos, praticados em 25/1, mostram que o arguido subjugou a vítima pela violência (pois que se colocou em cima da ofendida, estando ela deitada e lhe deu quatro cabeçadas), vencendo a resistência da vítima e que manteve cópula com ela, o que fez sabendo que agia completamente contra a sua vontade e que, dessa forma, atentava gravemente contra a liberdade de a mesma se autodeterminar sexualmente.

Atentas as circunstâncias, ocorreu violência física idónea, nos termos da doutrina da adequação, a constranger a vítima a suportar os atos de cópula, sendo que, como já se disse, da vítima não é exigida uma atitude heroica, uma resistência ilimitada, colocando em risco a sua integridade física e vida. Aliás, a resistência da vítima não constitui, de facto, elemento do tipo, não se exigindo que a mesma se debata, que grite ou que tente por todos os meios libertar-se.

Verificados que estão os elementos objetivos do crime, e não havendo dúvidas quanto aos subjetivos, conclui-se que o arguido preencheu de facto o crime de violação previsto e punível pelo art. 164º, nº 2 al. a) do Código Penal.

                                                           *

Quanto aos factos praticados em 4/10, provou-se, conforme supra decidido em 4.2.,   que:

- (no dia 4/10/2021) Quando BB estava a dormir  de barriga para cima, dado que era muito tarde e estava desgastada física e psicologicamente, contra a sua vontade e sem o seu consentimento, o arguido introduziu o pénis na vagina de BB;

- Para o efeito, o arguido afastou para o lado as calças de pijama da BB.

- Quando BB acordou, ficou em choque dado que só aí se apercebeu do que se estava a passar, após o que o arguido se levantou e ejaculou para a parede de um canto do quarto;

- O arguido agiu do modo supra referido com o propósito logrado de  constranger a vítima, BB, a sofrer, contra a sua vontade, introdução vaginal do pénis daquele, com o único intuito de tentar satisfazer os seus instintos libidinosos bem sabendo que assim punha em causa a liberdade sexual da vítima, o que previu e quis. 

E está provado que (facto provado em 83):

- agiu sempre de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei.

A conduta do arguido é, segundo se entende, claramente subsumível ao n.1 al. a) e n.º 3 do art.º 164 do CP, mas já não ao n.º 2 do mesmo normativo.

Expliquemos.

Para que uma conduta seja subsumível à descrição típica do art.º 164 e, concretamente, ao conceito de constrangimento, é necessário que por meio não previsto no nº 2 (violência, ameaça grave, ou depois de, para esse fim, ter tornado a vítima inconsciente ou posto na impossibilidade de resistir), o arguido pratique os referidos actos sexuais contra a vontade cognoscível da vítima”.

Urge assim saber o que é “a vontade cognoscível da vítima”.

Liliana Cristina Gomes Correia (in As alterações de 2019 ao Código Penal em matéria de crimes sexuais: os crimes de Coação Sexual e Violação, in Julgar online, Dezembro 2020, p. 12 e 13) defende, em termos com que não podemos deixar de concordar, o seguinte:

“a vontade contrária da vítima tem de ser cognoscível, ou seja, esta tem de agir de forma a dar a conhecer a sua recusa perante o ato, através da verbalização (um “não”), do choro, da própria linguagem corporal, etc. A cognoscibilidade prende-se com a existência de factos e/ou circunstâncias que demonstrem – possam demonstrar – conhecimento por parte do agente de que a vítima tem a sua vontade limitada ou que nem sequer tem condições de transmitir a sua vontade real. Não significa que o agente tem de conhecer, significa apenas que tem de poder conhecer”.

E, como se nota no Ac STj de 04-07-2019, Processo: 461/17.9GABRR.L1.S1, disponível in www.dgsi.pt, “o constrangimento inclui a designada intimidação ambiental, entendida como situação objetiva de limitação da liberdade da vítima que, devido à sua posição de fragilidade ou impossibilidade de defesa, receia fundada e razoavelmente pela sua integridade, situação de que se aproveita dolosamente o agente para - vencendo/dobrando deste modo a sua vontade - a compelir a praticar ou sofrer atos sexuais típicos.”

Ou seja, a vítima tinha-se negado a ter relações sexuais com o arguido e que, por isso, havia sido espancada durante a noite e arrastada contra vontade para casa do arguido. Já de madrugada, adormeceu e estava a dormir quando o arguido introduziu o pénis na sua vagina.

É certo que a vítima neste momento não verbalizou qualquer recusa, não se debateu, mas esta ausência de oposição expressa ao ato não significa que não exista constrangimento e atuação contra a vontade da vítima.

Vejamos que num primeiro momento, estando a dormir, a vítima não se podia expressar. Ora,  parece-nos evidente, num juízo de normalidade, que dado o contexto em que tudo sucedeu, não terá o arguido deixado de saber que a vítima não queria a prática daqueles actos e que a sua passividade estava viciada por medo de novas agressões, pela constatação da inutilidade, naquelas circunstâncias, da resistência à prática sexual abusiva.

O silêncio ou passividade da vítima nestas circunstâncias nunca poderá ser entendida como forma de colaborar ou consentir a relação sexual.

 E a cognoscibilidade por parte do agente das circunstâncias envolventes que limitam a formação ou exteriorização da vontade da vítima é bastante para efeitos de constrangimento desta, nos termos e para efeitos do disposto no nº 1 e 3 do art.164º do CP.

Cometeu deste modo o arguido um crime de violação p. e p. pelo art.º 164º n.º 1 al. A) e n.º 3.

Improcede a pretensão do recorrente de subsumir esta conduta ao n.º 2 do mesmo normativo, pois aqui estamos perante um crime de execução vinculada e os factos provados não traduzem o uso de nenhum dos meios aí previstos.

                                                           *

Sobre o concurso efetivo entre o crime de violação e o crime de violência doméstica, remetemo-nos para o AC STJ de 21.11.2018, Processo: 574/16.4PBAGH.S1, em www.dgsi.pt, onde se faz uma análise exaustiva das posições doutrinais e jurisprudenciais na matéria.

No caso em apreço, entendemos que estes crimes de violação praticados pelo arguido são cometidos em concurso efetivo com o crime de violência doméstica p. e p. pelo art.º 152 n.º 1 al. B) e n.º 2 al. a) e n.º 4 e n.º 5 do CP, pelo qual o arguido foi condenado, na medida em que os factos que integram estes crimes (de violação) consubstanciam autónomas resoluções criminosas, perfeitamente cindível das reiteradas resoluções presentes nos demais comportamentos e, consequentemente, diferentes sentidos de ilicitude. Trata-se de comportamentos que têm em si mesmos um desvalor da ação autónomo, com a violação de um bem jurídico também diferente, integrando, como referido, um diferente sentido de ilicitude e, como tal, uma infração que poderá  e deverá ser valorada autonomamente para efeitos de punição.

                                                *

Em suma:

Na procedência parcial do recurso do M.º P., o arguido será condenado pela prática de um crime de violação p. e p. pelo art.º 164º n.º 1 al. A) e n.º 3 e de crime de violação previsto e punível pelo art. 164º, nº 2 al. a) do Código Penal, em concurso real com os crimes pelos quais foi já condenado no acórdão recorrido.

4.4.Escolha da pena:

Insurge-se o arguido contra as penas de prisão em que foi condenado pela prática dos crimes de condução sem habilitação legal p. e p. pelo art.º 3º n.º 21 do DL do D.L. n.º 2/98 de 3 de Janeiro, pugnando pela condenação em penas não privativa da liberdade, uma vez que a sua condenação prévia não é por crime da mesma natureza. Em concreto, pugna pela aplicação do instituto da suspensão provisória do processo, a que alude o art.º 281 do CPP.

Vejamos se lhe assiste razão. 

Sabemos que, admitindo a punição prevista para os crimes acima referidos a aplicação, em alternativa, de duas penas principais, deve o juiz começar por escolher a espécie de pena que concretamente vai aplicar, seguindo o critério fixado no art.º 70º do C. Penal:

Se ao crime forem aplicáveis, em alternativa, pena privativa e pena não privativa da liberdade, o tribunal dá preferência à segunda sempre que esta realizar de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.

Relativamente às exigências de prevenção, ensina Figueiredo Dias, in Direito Penal Português, in As Consequências Jurídicas do Crime, Aequitas, Editorial Notícias, pág. 211 e ss e 327 e ss., que a prevalência não pode deixar de ser atribuída a considerações de prevenção especial de socialização, por serem sobretudo elas que justificam, em perspetiva político-criminal, todo o movimento de luta contra a pena de prisão.

Tal significa que o Tribunal só deve negar a aplicação de uma pena alternativa ou de uma pena de substituição quando a execução da prisão se revele necessária, do ponto de vista da prevenção especial de socialização.

Por seu turno, a prevenção geral positiva surge aqui sob a forma do conteúdo mínimo de prevenção de integração indispensável à defesa do ordenamento jurídico, como limite à actuação das exigências de prevenção especial de socialização. Quer dizer que, se impostas ou aconselhadas à luz de exigências de socialização, a pena alternativa ou a pena de substituição só não serão aplicadas se a execução da pena de prisão se mostrar indispensável para que não sejam postas irremediavelmente em causa a necessária tutela dos bens jurídicos e a estabilização contrafáctica das expectativas comunitárias (cfr. ainda Anabela Rodrigues, em anotação ao Ac. do STJ de 21/05/90, in RPCC, 2, 1991, pg.243).

É, pois, tendo presente este quadro legal e doutrinário que tem de se apreciar a pretensão do recorrente de ser condenado em penas de multa.

A condenação que consta do registo criminal é anterior à data dos crimes que estão em causa neste processo, pela prática de um crime de roubo. O arguido não tem, efetivamente, qualquer condenação pela prática de crimes estradais e estava familiar, profissional e socialmente inserido.

Contudo, a verdade é que praticou estes factos na pendência da suspensão de uma pena de prisão, cuja condenação era muito recente, obrigando-nos a concluir que este recente contacto do arguido com o sistema de justiça formal não surtiu o esperado efeito ressocializador, não o inibiu da prática de novos crimes.

Acresce que tal condução está intimamente relacionada e conexionada com o crime de violência doméstica cometido, que é um crime grave e que contende com bens jurídicos pessoais, tal como sucede com o crime de roubo pelo qual o arguido tinha sido já condenado.

Nesta medida, entende-se que a reposição da confiança dos cidadãos na norma violada pelo arguido - e que proíbe a condução sem carta - e por aí a protecção do bem jurídico da segurança rodoviária e, ainda, as elevadas exigências de prevenção especial, não poderão ser plenamente alcançadas sem a aplicação de uma pena privativa da liberdade.

Improcede assim o recurso do arguido neste segmento

4.5. Determinação da medida da pena:

Há que proceder determinação da medida concreta das penas a aplicar ao arguido, em obediência ao disposto no artigo 71.º do Código Penal, como decorrência da procedência do recurso do M.º P.º e da condenação do arguido pela prática dos crimes de violação, conforme resulta do supra decidido e considerando o disposto no art.º 40 e no art.º 71 do CP.

Ora, no presente caso, as exigências de prevenção geral são elevadas, tendo em consideração o crescente número de situações como as descritas e a necessidade que a comunidade tem de sentir que as normas penais, apesar de violadas, se mantêm vigentes, sendo premente a proteção de bens jurídicos essenciais à vida em comunidade designadamente as que protegem a liberdade sexual da pessoa humana.

As exigências de prevenção especial são também elevadas, já que o arguido praticou os factos em apreço na pendência da suspensão da execução de uma pena de 4 anos de prisão pela prática de um crime de roubo qualificado. Ou seja, a ameaça da prisão não serviu de suficiente advertência ao arguido no sentido de este pautar a sua vida pelo respeito ao Direito, voltando ele a praticar novos factos criminosos contra as pessoas. Acresce que o arguido adopta uma postura de vitimização, sem demonstrar empatia para com a vítima, circunstância esta que agudiza tais exigências.

Atenuando estas exigências, pondera-se a circunstância de o arguido, apesar de se ter cruzado já com a vítima, não a ter incomodado nem procurado o contacto e, ainda, a inserção familiar, social e profissional.

O dolo direto com que agiu sempre e os sentimentos demonstrados nos factos praticados, de ausência de empatia para com a vítima e o inabalável intuito de satisfação dos seus instintos libidinosos. A culpa é, assim, elevada.

No que se reporta aos fatores concernentes à execução do facto e denunciadores da gravidade da violação jurídica cometida, importa valorar a intensidade e persistência com que praticou os atos, indiferente ao sofrimento causado à vítima.

No que se reporta aos fatores concernentes à execução do facto e denunciadores da gravidade da violação jurídica cometida, importa valorar a intensidade e persistência com que praticou os atos, indiferente ao sofrimento causado à vítima.

Tudo visto, entende-se adequado fixar a pena, pela prática do crime de violação p. e p. p pelo art.º 164 n.º 2 al. a), em 5 (cinco) anos de prisão e pelo crime p. e p. pelo art.º 164 n.º 1 e n.º 3 do CP, em 2 anos e 6 meses de prisão.

4.6 Da determinação da pena única

Tem de se determinar a pena a aplicar ao concurso de crimes praticados pelo arguido  (os crimes de violação em que agora é condenado e os crimes de violência doméstica e de condução sem habilitação legal em que havia sido já condenado no Acórdão recorrido) seguindo a regra que nos é dada pelo n.º 2 do artigo 77.º do Código Penal.

Não tendo o legislador nacional optado pelo sistema da acumulação material, nem pelo da exasperação ou agravação da pena mais grave, é forçoso concluir que com a fixação da pena conjunta se pretende sancionar o agente, não só pelos factos individualmente considerados, mas também e especialmente pelo respetivo conjunto, não como mero somatório de factos criminosos, mas enquanto revelador da dimensão e gravidade global do comportamento delituoso do agente. Por conseguinte, razões que se prendem com as exigências da culpa e da prevenção, sobretudo da prevenção especial, ao nível das finalidades da punição, estão na base do regime constante dos artigos 77.º e 78.º, por o mesmo impor uma avaliação conjunta dos factos e da personalidade do agente.

Importante para a determinação concreta da pena única será, por isso, a averiguação sobre se ocorre ou não ligação ou conexão entre os factos em concurso, a existência ou não de qualquer relação entre uns e outros, bem como a indagação da natureza ou do tipo de relação entre os factos, sem esquecer o número, a natureza e a gravidade dos crimes praticados e das penas aplicadas, tudo ponderando em conjunto com a personalidade do agente referenciada em factos, tendo em vista a obtenção de uma visão unitária do conjunto dos factos.

A pena abstratamente aplicável aos crimes em concurso tem como limite máximo 11 (onze) anos e 6 (seis) meses de prisão e como limite mínimo 5 (cinco) anos de prisão.

Nesta moldura, há que considerar os seguintes aspetos:

- a natureza, gravidade e quantidade de crimes praticados e o período de tempo em que ocorreram, das quais resulta que o arguido possui uma personalidade violenta, impulsiva, um enraizado e profundo desrespeito para com a vítima e os bens jurídicos pessoais de que esta é titular e uma grande intensidade de vontade criminosa, o que nos leva a concluir pela intensidade das exigências de prevenção especial presentes no caso;

- os antecedentes criminais, dos quais resulta que a recente condenação por crime contra bens jurídicos pessoais e a pendência de uma pena suspensa não surtiram o esperado efeito ressocializador, o que se reflete no aumento das exigências de prevenção especial positiva;

- a inserção familiar, profissional e social, militando em seu favor, por atenuar as exigências de prevenção especial positiva;

- as fortes exigências de prevenção geral, pela confiança comunitária no seu ordenamento jurídico através da reposição contrafática das normas violadas;

- a culpa elevada do arguido, resultante do dolo direto com que agiu, da persistência e intensidade do propósito criminoso, da falta de empatia para com a vítima;

Face ao exposto e considerando que todos estes crimes foram praticados sobre a mesma vítima, estando contextualizados, não refletindo uma carreira criminosa mas sim uma pluri-ocasionalidade julga-se adequado aplicar ao arguido a pena única de 7 anos de prisão.

Mantém-se a condenação do arguido na pena acessória de proibição de contactar a ofendida pelo período de 3 anos.

*

Uma última linha, ex abundante cautela, para dizer que, considerando a medida concreta da pena única, a pretensão do arguido de ser suspensa a execução da pena de prisão, não pode proceder, por não ter cabimento legal (art.º 50º do CP)

V- DISPOSITIVO:

Pelo exposto, acordam as juízas da 5.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra em:
a) Julgar totalmente improcedente o recurso interposto pelo arguido AA ;
b)  conceder parcial provimento ao recurso interposto pelo Ministério Público e, em consequência:
1. Determinar a alteração da matéria de facto provada e não provada nos termos acima expostos em 4.1.
2. Revogar o Acórdão recorrido, condenando o arguido AA  pela prática:
- como autor material, de um crime de violação p. e p. p pelo art.º 164 n.º 2 al. a), em  5 (quatro) anos de prisão;
- como autor material,  pelo crime de violação, p. e p. pelo art.º 164 n.º 1 e n.º 3 do CP, em 2 anos e 6 meses de prisão;
- em cúmulo jurídico, entre estas penas e aquelas em que foi condenado no Acórdão recorrido - pela prática dos crimes de violência doméstica, p. e p. pelo art.º 14º n.º 1, 152º n.º1 al. b) e n.º 2 al. a) e n.º 4 e 5 do CP e de condução sem habilitação legal, p. e p. pelo art.º 3º n.º 2 do DL 2/98, de 3/1
-  condenar o arguido na pena única de 7 anos de prisão efetiva e na pena acessória de proibição de contactar com a BB pelo período de 3 anos.

            3. No mais, mantém-se o decidido no acórdão recorrido, sem prejuízo da ponderação pelo Tribunal a quo do perdão emergente da Lei 38-A/2023, de 2/8.      

                                               *

Custas pelo arguido, fixando-se a taxa de justiça em 3 UC.

*

         Comunique-se de imediato à 1ª instância, com cópia.

*

Coimbra, 12/3/2025

[Elaborado e revisto pela relatora - artigo 94.º, n.º 2, do Código de Processo Penal]

Sara Reis Marques - Juíza Desembargadora Relatora

Alcina Ribeiro - Juíza Desembargadora Adjunta

Maria da Conceição Cardoso - Juíza Desembargadora Adjunta)