Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | JTRC | ||
Relator: | ANA CAROLINA CARDOSO | ||
Descritores: | CONDUÇÃO PERIGOSA PREENCHIMENTO DO CRIME | ||
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Data do Acordão: | 01/22/2025 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Tribunal Recurso: | LEIRIA (JUÍZO DE COMPETÊNCIA GENÉRICA DA MARINHA GRANDE – J2) | ||
Texto Integral: | N | ||
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Meio Processual: | RECURSO CRIMINAL | ||
Decisão: | PARCIALMENTE REVOGADA | ||
Legislação Nacional: | ARTS. 291º, N.º 1, AL. B), CP; 7º CE | ||
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Sumário: | 1- Não basta a violação das regras da circulação rodoviária relativas às manobras a que se refere o art. 291º, n.º 1, al. b), do CP para se considerar preenchido tal elemento do crime de condução perigosa, exigindo-se que se trate de uma violação grosseira (rude) dessas mesmas regras, consubstanciada numa condução temerária, destemida, arriscada e, assim, perigosa.
2- Exige-se, ainda, um comportamento particularmente perigoso para a circulação rodoviária, isto é, um comportamento temerário e ousado perante o perigo, ou seja, uma intensificação da negligência não só ao nível da culpa como da ilicitude. 3- Tendo o acidente ocorrido num cruzamento em que a vítima passou o sinal verde, não tendo o arguido obedecido a um sinal de obrigação de paragem inscrito na estrada, no chão, encontrando-se o seu semáforo com a luz amarela ligada, conclui-se não se poder assacar ao arguido aquelas temeridade e particular censurabilidade exigidas pela norma incriminadora. (Sumário elaborado pela Relatora) | ||
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Decisão Texto Integral: | Acordam, em Conferência, na 5ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra
I. RELATÓRIO 1. Por sentença datada de 12 de junho de 2024, proferida pelo Juízo de Competência Genérica da Marinha Grande – J2, da Comarca de Leiria, no processo comum singular n.º 804/21.0PAMGR.C1, foi decidido: Condenar o arguido AA pela prática, em autoria material, na forma consumada e em concurso real: -De um crime de condução perigosa de veículo rodoviário, p.p. pelos art.ºs 26º, 1ª parte, 77º, 291º, n.º 1, al. b) e 69º, n.º 1, al. a), todos do Código Penal, na pena parcelar de 18 (dezoito) meses de prisão; - De um crime de ofensa à integridade física por negligência, p.p. pelos art.os 26º, 1ª parte, 77º, 148º, n.º 1 e 69º, n.º 1, al. a), todos do Código Penal, na pena parcelar de 8 (oito) meses de prisão; - Operando o cúmulo jurídico, na pena de 15 (quinze) meses de prisão; - Suspender a execução da pena de 15 (quinze) meses de prisão aplicada ao arguido AA pelo período de 15 (quinze) meses; Condenar o arguido AA na pena acessória de proibição de conduzir quaisquer veículos com motor por um período de 7 (sete) meses, pela prática do crime de condução perigosa de veículo rodoviário e na pena acessória de 7 (sete) meses de proibição de conduzir veículos motorizados, quanto ao crime de ofensa à integridade física negligente; - Operando o cúmulo jurídico, condena-se o arguido AA, na pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados pelo período de 11 (onze) meses;
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2. Inconformado com a decisão, dela recorre o arguido AA, formulando as seguintes conclusões:
(...) * 4. Nesta Relação, a Exma. Procuradora-geral Adjunta emitiu parecer no sentido da parcial procedência do recurso, referindo:
(...) Sem pretendermos alongar-nos na análise do tipo legal, tanto mais que o tribunal já sobre ele dissertou, bem como o Ministério Público na primeira instância, sabe-se que a verificação do perigo concreto para a vida ou para a integridade física de outrem ou para bens patrimoniais alheios de valor elevado a que se refere o artigo 291º, nº 1, al b), do código penal tem, naturalmente, de se retirar das concretas circunstâncias do caso. Sabe-se, também, que este ilícito típico apresenta duas categorias alternativas de comportamentos capazes de preencher o tipo: uma primeira, relativa à ausência de condições para a condução e a segunda relativa à violação grosseira das regras de circulação automóvel, estando sempre subjacente o bem jurídico protegido - a segurança rodoviária, enquanto tutela reflexa e circunscrita à medida da proteção de bens individuais, como a vida, integridade física e património de elevado valor. (vide acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 11/02/2009 - processo 137/06.2GBSRT.C1, publicado no mesmo sítio da internet). Porém, não basta que um condutor viole as regras de trânsito especificadamente previstas no tipo, tendo de atender-se, repetimos, às circunstâncias concretas da condução e da circulação rodoviária, relacionando-se a violação das regras de circulação rodoviária com o perigo previsível; e exige-se que o perigo para a vida ou para a integridade física seja provocado, isto é, causado pela conduta do arguido; se bastasse a violação das regras estradais, o ilícito típico seria um crime de perigo abstrato, e não é. Seguro é que a violação das regras de circulação tem de ser uma violação grosseira para que o tipo legal se consubstancie. A negligência grosseira, à falta da respetiva designação no código penal, acontece quando, em cada caso, fica demonstrado um grau especialmente elevado da negligência, exigindo-se, neste tipo de ilícito, uma ação particularmente perigosa, revelando o agente uma atitude particularmente censurável de leviandade ou descuido – cf. F.Dias/Nuno Brandão, Comentário Conimbricense do Código Penal. “O conceito de negligência grosseira implica uma especial intensificação da negligência não só ao nível da culpa, mas também ao nível do tipo de ilícito. A este último nível torna-se indispensável que se esteja perante uma ação particularmente perigosa e de um resultado de verificação altamente provável à luz da conduta adotada.” - in acórdão do Tribunal da Relação de Évora, de 18/11/2008 - processo 1115/08-1, em www.dgsi.pt. (bold nosso) De outra banda, e já com referência ao caso, importa dizer que existe uma hierarquia entre as prescrições do trânsito, prevalecendo umas sobre as outras - cf. artigo 7º do código da estrada -, a saber: 1 - As prescrições resultantes dos sinais prevalecem sobre as regras de trânsito. 2 - A hierarquia entre as prescrições resultantes da sinalização é a seguinte: 1.º Prescrições resultantes de sinalização temporária que modifique o regime normal de utilização da via; 2.º Prescrições resultantes dos sinais inscritos em sinalização de mensagem variável; 3.º Prescrições resultantes dos sinais luminosos; 4.º Prescrições resultantes dos sinais verticais; 5.º Prescrições resultantes das marcas rodoviárias. 3 - As ordens dos agentes reguladores do trânsito prevalecem sobre as prescrições resultantes dos sinais e sobre as regras de trânsito. E obviamente se sabe que o sinal de semáforo intermitente autoriza os condutores a passar, desde que o façam com especial prudência. Vejamos, agora, o que na sentença se considerou provado: (...) Na motivação da sentença, fez-se constar, em suma, que o arguido “negou que tivesse visto o assistente de frente para si, no cruzamento onde ocorreram os factos, descrevendo que a iluminação pública não estaria completamente funcional, em particular, dois candeeiros e sufragando o semáforo onde se encontrava estava amarelo intermitente e que, no piso, estaria inscrita a expressão ‘’STOP’’. E fez-se constar que o assistente disse que “se encontrava na Avenida ..., circulando em direção à Marinha Grande – Leiria, que quando chegou ao cruzamento o sinal estaria verde e que já estaria sensivelmente a meio do cruzamento quando foi atingido pelo veículo conduzido pelo arguido.” As gravadas declarações do arguido são pouco percetíveis, por deficiência da gravação. A prova testemunhal não é concludente quanto à verificação de condução perigosa. Acresce que o acidente aconteceu pelas 21,50 do mês de Novembro, ou seja, de noite, sendo que não está indicada nenhuma velocidade de circulação de qualquer um dos intervenientes no acidente. Nesta conformidade, o que decorre dos factos é que houve, efetivamente, uma condução imprudente e desatenta do arguido. Contudo, para além da coincidência, no local do acidente, de sinalização luminosa intermitente e de marca rodoviária no pavimento, prevalecendo a primeira sobre a segunda, fator que não é irrelevante na situação para a decisão do arguido de avançar, cremos que do conjunto da prova produzida e da factualidade assente não se retira, com suficiência e evidência, uma violação grosseira das regras de circulação rodoviária em termos de poder configurar o crime de condução perigosa. Sem outro rigor, sem outras exigências, sucederia que não haveria crime de ofensa à integridade física simples por negligência, resultante de acidente de viação, que não concorresse com o crime de condução perigosa de veículo rodoviário. Destarte, pese embora o arguido aceite, na sua motivação, a violação das regras de circulação, crê-se que os factos provados não permitem, sem mais, a sua condenação pelo crime de condução perigosa, o que configura, nessa parte e na nossa perspetiva, insuficiência para a decisão da matéria de facto provada e, também, erro de julgamento. As penas aplicadas Com o entendimento acima assumido, pugnando-se pela absolvição do arguido do crime de condução perigosa, pondera-se, tão-só, a pena aplicada pelo crime de ofensa à integridade física simples por negligência. Assim, considerada a moldura penal abstrata correspondente, as condições pessoais do arguido, mormente a ausência de antecedentes criminais e estradais, a pena de prisão aplicada, suspensa na execução, mostra-se adequada e proporcional à gravidade do crime cometido e às sentidas exigências de prevenção geral e especial. A pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor correspondente a este crime mostra-se igualmente adequada e proporcional às sentidas exigências de prevenção geral e especial. Em conclusão, aderindo apenas em parte ao que foi respondido pelo Ministério Público na primeira instância, somos de parecer que o recurso deve ser julgado parcialmente procedente, absolvendo-se o arguido do crime de condução perigosa e mantendo-se, no mais a sentença. *
5. Cumprido o n.º 2 do art. 417º do Código de Processo Penal, nada foi dito nos autos. 6. Foram colhidos os vistos legais. ***
II SENTENÇA RECORRIDA (transcrição das partes relevantes para o conhecimento do recurso) «(…) Estão provados os seguintes factos com interesse para a discussão da causa: 1. No dia 23 de novembro de 2021, cerca das 21h50, o ofendido BB conduzia o ciclomotor de marca Suzuki, modelo ..., cor azul e matrícula ..-EV-.., de sua propriedade, na Av. ..., na ..., no sentido Oeste-Este (Marinha Grande-Leiria). 2. Nesse momento, o arguido AA conduzia o veículo automóvel ligeiro de passageiros de marca Renault, modelo ..., cor cinzenta e matrícula ..-RU-.., de sua propriedade, na referida avenida, mas no sentido oposto. 3. Ao chegar ao cruzamento entre a Av. ... e a Av. ..., BB, pretendendo seguir em frente e tendo a luz verde do semáforo ligada, não imobilizou a marcha do seu veículo e conduziu o mesmo para o interior do cruzamento. 4. Ao mesmo tempo, o veículo conduzido pelo arguido chegou ao mesmo cruzamento. 5. Aí chegado, e apesar de existir no pavimento a palavra STOP, o semáforo ter ligada a luz amarela intermitente e circular o ciclomotor do ofendido no referido cruzamento, o arguido não imobilizou a marcha do veículo que conduzia, conduziu o mesmo para o dito cruzamento e mudou de direção para a esquerda, em direção à Av. .... 6. De imediato, o veículo conduzido pelo arguido embateu no ciclomotor conduzido por BB, que foi projetado para o passeio e caiu em frente ao estabelecimento “A...”. 7. Como consequência direta e necessária da conduta do arguido, BB sofreu dores e mal-estar, para além das seguintes lesões: a) no membro superior esquerdo: · esfacelo do antebraço esquerdo com esquírolas ósseas; · ferimento em evolução cicatricial, com vestígios de pontos de sutura, de bordos bem coaptados, curvilíneo de abertura superior, estendendo-se da face antero-medial à face posterior do terço médio do antebraço, medindo 9cm; · cicatriz com 10 x 1,2cm ligeiramente queloide, de coloração castanho-rosada, arciforme de concavidade superior, no terço médio da face posterior do antebraço; rigidez ativa da metacarpofalângica do 5º dedo, à custa de aparente diminuição da força do antebraço; b) no membro inferior direito: área escoriada em evolução cicatricial na região pré-maleolar medial, de formato irregular, medindo 1,2 x 1,1cm; área escoriada em evolução cicatricial na região infra-maleolar lateral, medindo 2 x 1cm; e c) no membro inferior esquerdo: · fratura exposta grau I do fémur esquerdo; · cicatriz de incisão cirúrgica em evolução cicatricial, orientada longitudinalmente, no terço médio da face lateral da coxa, medindo 8cm; 2 cicatrizes de incisões cirúrgicas em evolução cicatricial, no terço inferior da face lateral da coxa, a maior medindo l,5cm e a outra medindo 1,3cm; área escoriada em evolução cicatricial na face anterior do joelho, de formato irregular, medindo 2 x 1cm; área escoriada em evolução cicatricial interessando os terços superior e médio da face anterior da perna, medindo l6 x 2cm; mobilidades da anca e joelho com acentuada limitação e dor; e · área cicatricial com retração cutânea com 3 x 1cm, de coloração acastanhada, na face anterior do joelho; cicatriz acastanhada com 5 x 1cm, vertical, não queloide, na face lateral da anca; abaixo desta última, ainda na anca, duas cicatrizes verticais com 1cm de comprimento cada; cicatriz rosada vertical no terço médio da face lateral da coxa com 8 x 0,2cm, não queloide; no terço distal da face lateral da coxa, duas cicatrizes verticais com 1cm cada, não queloides; amiotrofia da coxa relativamente à contralateral: perímetro de 40cm vs 43cm, avaliados 15cm acima do pólo superior das rótulas. 8. Tais lesões determinaram a BB e foram causa adequada de 176 dias para a consolidação com 156 dias de afetação da capacidade para o trabalho geral e 176 dias de afetação da capacidade para o trabalho profissional. 9. A rigidez ativa da articulação metacarpofalângica do 5º dedo da mão esquerda, as cicatrizes e a amiotrofia da coxa esquerda constituem consequências permanentes. 10. O arguido conhecia a natureza do veículo que conduzia e da via onde circulava. 11. O arguido sabia que era obrigado a imobilizar o veículo automóvel que conduzia no local onde se encontrava a palavra STOP, mas, não obstante ter visto a dita palavra, o arguido não imobilizou o veículo que conduzia, desrespeitando a obrigação de parar, o que quis e conseguiu. 12. O arguido sabia que, perante a luz amarela intermitente do semáforo, deveria circular com especial cuidado e era obrigado a imobilizar o veículo automóvel que conduzia caso circulassem outros veículos no interior do cruzamento e na via que o mesmo iria ocupar com a pretendida mudança de direção, mas, não obstante ter visto o dito semáforo e o ciclomotor conduzido por BB, o arguido não imobilizou o veículo que conduzia, desrespeitando o semáforo, o que quis e conseguiu. 13. O arguido agiu da forma descrita, apesar de saber que, ao desrespeitar as obrigações impostas pela palavra STOP e pelo semáforo, colocava em perigo a segurança e a integridade física ou até a vida dos utentes da via; perigo este com que o arguido se conformou e que se veio a concretizar. 14. O arguido não tomou as necessárias precauções para evitar que o veículo que conduzia embatesse no ciclomotor conduzido pelo ofendido, como lhe competia e era capaz, e, por isso, provocou um acidente de viação e molestou fisicamente BB, infligindo-lhe lesões, dores e mal-estar. 15. Apesar de não o dever ter feito, agiu o arguido da forma descrita, confiando que conseguiria que o seu veículo atravessasse o cruzamento sem embater no ciclomotor do ofendido, apesar deste já se encontrar a circular no interior do cruzamento. 16. O arguido agiu livre, deliberada e conscientemente, sem o cuidado que se lhe impunha e de que era capaz e bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei. Mais se provou que: 17. O arguido reside com a esposa, em casa própria; 18. Suporta o pagamento mensal de €190,00 a título de crédito a habitação; 19. O arguido encontra-se reformado por invalidez, auferindo uma reforma de cerca de €820,00; 20. Aufere uma prestação social para a inclusão, no valor mensal de €316,33; 21. Não tem filhos menores de idade; 22. A esposa do arguido é gerente de uma empresa, auferindo o salário mínimo nacional; 23. O arguido tem um curso superior em engenharia; 24. O arguido reside em Portugal desde 2000. E ainda que: 25. Do certificado de registo criminal do arguido nada consta; 26. O arguido não possui averbamentos no registo individual de condutor; 27. O arguido não procurou inteirar-se do estado de saúde do assistente; 28. O arguido não se demonstrou arrependido dos factos praticados. (...) Do crime de condução perigosa de veículo rodoviário, p.p. pelos art.os 26º, 1ª parte, 77º, 291º, n.º 1, al. b) e 69º, n.º 1, al. a), todos do Código Penal Estabelece o artigo 291.º, n.º 1, al. b) do Código Penal que: 1 - Quem conduzir veículo, com ou sem motor, em via pública ou equiparada: (…) b) Violando grosseiramente as regras da circulação rodoviária relativas à prioridade, à obrigação de parar, à ultrapassagem, à mudança de direção, à passagem de peões, à inversão do sentido de marcha em autoestradas ou em estradas fora de povoações, à marcha atrás em autoestradas ou em estradas fora de povoações, ao limite de velocidade ou à obrigatoriedade de circular na faixa de rodagem da direita; E criar deste modo perigo para a vida ou para a integridade física de outrem, ou para bens patrimoniais alheios de valor elevado, é punido com pena de prisão até três anos ou com pena de multa. (…) Este tipo legal de crime tem por bem jurídico subjacente a segurança do tráfego rodoviário, na sua dimensão de tutela de bens individuais. Na verdade, na medida em que a circulação em rutura com o corpo de normas que disciplina o tráfego terrestre motorizado sinalize de forma importante um risco acrescido de lesão, da integridade física ou da vida, dos utentes da via pública, entende-se que é colocado em crise um bem jurídico-penal destacado, que agrega como uma estrutura essencialmente uniforme do ponto de vista da dogmática jurídico-penal: (i) a segurança na circulação nas rodovias do domínio público e (ii) a tipologia de bens pessoais que se insira no perímetro de perigo importante de lesão criada por essa esfera de insegurança – cf. Paula Ribeiro de Faria, in, Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, Tomo II (Artigos 202.º-308.º), Coimbra Editora, 1999, pp. 1079-180. É na deficiente prestação do condutor, ao conduzir sem estar em condições de o fazer com segurança ou violando grosseiramente as regras de circulação rodoviária, que assenta a razão de ser da proibição. São, pois, elementos constitutivos deste crime: (i) a condução, i.e., a utilização de mecanismos de direção do veículo, de forma a verificar-se uma deslocação de um lugar para o outro; (ii) de veículo, com ou sem motor, i.e., todo o meio de transporte ou equiparado, com ou sem motor, apto e destinado a transitar, pelo que o conceito extravasa o conceito de veículo automóvel, abrangendo, ainda, os tratores, as máquinas, os ciclomotores, velocípedes, carros elétricos, de tração animal e todos os que, a quaisquer destes, forem equiparados; (iii) em via pública ou equiparada, pois que é aqui que avulta a existência de uma liberdade de circulação, apenas restringida pelas regras de gerais do ordenamento jurídico rodoviário – cf. artigo 1.º, alíneas v) e u) do Código da Estrada; (iv) e a adoção de uma determinada conduta típica que, no âmbito da circulação rodoviária, é suscetível de acarretar insegurança na condução e, consequentemente, perigo concreto e efetivo para certos bens jurídicos tutelados pela norma em apreço – para a vida, integridade física ou para bens patrimoniais alheios de valor elevado. Nesta dinâmica, estaremos a falar da existência de falta de condições para a condução em segurança, por exemplo, por influência de álcool - sempre que a taxa de álcool no sangue for igual ou superior a 0,5 g/l e até 1,2 g/l – cf. artigo 81º, n.º 2 do Código da Estrada - e em estado de embriaguez - sempre que a taxa de álcool no sangue for igual ou superior a 1,2 g/l, mas também por influência de estupefacientes ou medicamentos, por ser possuidor de alguma deficiência física, ou psíquica ou ainda por estar sob extremo cansaço e fadiga excessiva, de molde a criar uma situação de perigo provocada pela incapacidade do condutor para conduzir veículos na via pública. Ademais, incluirá a violação de regras de circulação rodoviária (com a redação introduzida pela Lei n.º 77/2001, de 13 de Julho, as regras de condução rodoviária cuja violação é suscetível de determinar o preenchimento do tipo legal passaram a ser as tipicamente descritas, ou seja, as relativas à prioridade, à obrigação de parar, à ultrapassagem, à mudança de direção, à passagem de peões e inversão do sentido de marcha em autoestrada ou em estradas fora de povoações, à marcha atrás em autoestradas ou em estradas fora de povoações, ao limite de velocidade ou à obrigatoriedade de circular na faixa de rodagem da direita), de forma grosseira (isto é, resultante de «uma conduta de manifesta irreflexão ou ligeireza, ou a falta das precauções exigidas pela mais elementar prudência ou das aconselhadas pela previsão mais elementar a observar nos atos correntes da vida») – cf. Leal Henriques e Simas Santos, in Código Penal Anotado, vol. II, Editora Rei dos Livros, 1997, p. 195. Deste modo, poder-se-á concluir como o Venerando Tribunal da Relação de Coimbra, em Acórdão datado de 11.02.2009, segundo o qual «o artº 291º, sob a epígrafe condução perigosa de veículo rodoviária, apresenta duas categorias alternativas de comportamentos capazes de preencher o tipo: uma primeira, relativa à ausência de condições para a condução e a segunda relativa à violação grosseira das regras de circulação automóvel. Ambas visam proteger o bem jurídico segurança rodoviária, enquanto tutela reflexa e circunscrita à medida da proteção de bens individuais, como a vida, integridade física e património de elevado valor. A configuração do crime tipificado no artº 291º do CP como crime de perigo concreto tem sido unânime na doutrina e na jurisprudência, o que valerá por dizer que se caracteriza pela exigência de verificação de um concreto pôr-em-perigo, face à previsão no tipo de ilícito da criação de perigo para a vida ou para a integridade física de outrem ou para bens patrimoniais alheios de valor elevado» - cf. Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 11.02.2009, Proc. 137/06.2GBSRT.C1, acessível em www.dgsi.pt. Assim, analisando os elementos constitutivos deste tipo legal de crime, é de concluir que estamos perante um crime de perigo concreto, na medida em que é seu elemento essencial a verificação de uma situação de perigo concreto e efetivo. Trata-se, assim, de um crime material ou de resultado, uma vez que se exige que a conduta do agente crie perigo concreto para a vida ou para a integridade física de outrem ou para bens patrimoniais alheios de valor elevado - isto é, cujo valor exceda 50 UCs avaliadas no momento da prática do facto, conforme resulta do disposto no artigo 202.º, alínea a) do Código Penal. Porém, o perigo concreto só ocorre quando a condução chega a uma situação crítica em que a segurança de uma pessoa ou de uma coisa é de tal modo atingida que só dependerá do acaso que a lesão do bem jurídico se realize ou não. O perigo concreto constitui, assim, uma probabilidade de dano ou «a situação a partir da qual é provável a produção de um resultado negativo» - Cf. Faria Costa, in O Perigo em Direito Penal, p. 611. Parafraseia-se, pela pertinência, o teor do Acórdão do Tribunal da Relação de Évora, de 07.11.2023, Proc. 29/19.5GDEVR.E1, acessível em www.dgsi.pt, segundo o qual «II. O crime de condução perigosa de veículo rodoviário é um crime de perigo concreto, cuja consumação [sublinhado nosso], para além da condução de um veículo em violação das condições de segurança ou de regras estradais, depende da efetiva criação de um perigo para a vida, integridade física ou bens patrimoniais de elevado valor». Por conseguinte, a ação típica que esteja subjacente na violação (grosseira) de regras estradais, como é o caso dos autos, exige, inarredavelmente, uma violação grosseira e/ou flagrante dessas mesmas regras, em que as «fronteiras do risco permitido rodoviário» são excedidas – cf. Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 24.11.2021, Proc. 604/20.5GBAGD.P1, acessível em www.dgsi.pt. Para indagação, em concreto, da verificação do perigo aludido, haverá que lançar mão das regras da experiência, verificando se, nas circunstâncias concretas, a ação gerou perigo para os bens jurídicos protegidos, de tal sorte que existirá uma situação de perigo sempre que a produção do resultado desvalioso, mediante a formulação de um juízo de experiência, é mais provável que a sua não produção; ou pelo menos ocorre uma forte probabilidade de o resultado desvalioso se vir a desencadear ou a acontecer. Para além disso, a incriminação em análise caracteriza-se, no que ao agente diz respeito, por ser um delito de mão própria, dado que o sujeito do crime deverá ser um condutor de veículo – cf. Paula Ribeiro de Faria, in Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, tomo II, p. 1088. No que concerne à vertente subjetiva do tipo incriminador em análise (necessariamente lacunar), este crime pode ser doloso ou culposo, admitindo combinações de dolo e culpa. De acordo com o artigo 291.º, n.º 1 do Código Penal, exige-se que o agente atue com a consciência e a vontade de praticar os elementos objetivos do tipo - dolo genérico – e com conhecimento e vontade de criar uma situação de perigo - dolo de perigo. De acordo com o n.º 3 do referido preceito legal, exige-se que o agente atue com a consciência e a vontade de praticar os elementos objetivos do tipo - dolo genérico -, bastando a criação do perigo meramente culposa, isto é, o agente não representa ou representa e afasta a possibilidade de criação de um perigo para os bens jurídicos em apreço. Por fim, nos termos do n.º 4 do mesmo artigo, quer a conduta quer a criação do perigo podem ser meramente culposas, desconhecendo o agente (negligentemente) a sua incapacidade e propondo-se, dessa forma, conduzir um veículo rodoviário. No caso dos autos, apurou-se que o arguido sabia que era obrigado a imobilizar o veículo automóvel que conduzia no local onde se encontrava a palavra STOP, mas, não obstante ter visto a dita palavra, o arguido não imobilizou o veículo que conduzia, desrespeitando a obrigação de parar, o que quis e conseguiu. Com pertinência, mais se provou que o arguido sabia que, perante a luz amarela intermitente do semáforo, deveria circular com especial cuidado e era obrigado a imobilizar o veículo automóvel que conduzia caso circulassem outros veículos no interior do cruzamento e na via que o mesmo iria ocupar com a pretendida mudança de direção, mas, não obstante ter visto o dito semáforo e o ciclomotor conduzido por BB, o arguido não imobilizou o veículo que conduzia, desrespeitando o semáforo, o que quis e conseguiu, tendo agido da forma descrita, apesar de saber que, ao desrespeitar as obrigações impostas pela palavra STOP e pelo semáforo, colocava em perigo a segurança e a integridade física ou até a vida dos utentes da via; perigo este com que o arguido se conformou e que se veio a concretizar. Assim, e por outras palavras, o aqui arguido AA não deteve a marcha do veículo ligeiro de passageiros que conduzida, perante a marca transversal – linha de paragem – ‘’STOP”, prosseguindo a mudança de direção no cruzamento entre a Avenida ... e a Avenida ..., apesar de se lhe apresentar semáforo com luz amarela intermitente. De acordo com o Regulamento de Sinalização de Trânsito, Decreto Regulamentar n.º 22-A/98, in Diário da República n.º 227/1998, 1º Suplemento, Série I-B de 1998-10-01, a sinalização do trânsito compreende, nos termos do artigo 2.º, e para o que importa para os presentes autos, marcas rodoviárias e sinais luminosos. Quanto às marcas rodoviárias, as mesmas podem configurar, marcas transversais, instituindo linhas de paragem com o símbolo ‘’STOP’’, maxime o sinal M8a, constante do aludido Regulamento, a qual indica o local de paragem obrigatória. Porém, e cumulativamente à aludida sinalização, o arguido deparou-se ainda com a “luz amarela intermitente”, prevista no artigo 71.º do Dec. Regulamentar referido, a qual apenas autoriza os condutores a passar (in casu, a fim de efetuar uma manobra de mudança de direção à esquerda), desde que o façam com especial prudência e, caso circulassem veículos no interior do cruzamento, então, estaria sujeito à paragem obrigatória. Assim sendo, e atenta a factualidade apurada e descrita, cometeu o arguido uma contraordenação (violação da obrigação de paragem imposta pelo STOP) p.p. pelos art.os 20º do Regime Geral das Contraordenações, 2º, n.os 1, al. a) e 2, al. b), 21º e 23º, al. a), ambos do Regulamento de Sinalização de Trânsito e 146º, al. n) e 147º, n.os 1 e 2, ambos do Código da Estrada e uma contraordenação (violação da obrigação imposta pelo semáforo) p.p. pelos art.os 20º Regime Geral das Contraordenações, 71º, n.º 1 e 76º, al. b), ii), ambos do Regulamento de Sinalização de Trânsito. Nesta dinâmica, e aprofundando um pouco o que dissemos sobre o primeiro elemento do tipo-de-crime que aqui nos ocupa para passarmos à confrontação do caso dos autos com o Direito constituído, a caracterização da violação grosseira exige, não apenas um desrespeito em um dado grau da norma de trânsito, mas efetivamente uma conduta que desconsidera que aquela ordem normativa sequer existe, não lhe oferecendo qualquer dimensão de obediência, total ou parcial e mesmo tendo por traço caracterizante um modus de agir que não oferece correspondência em nenhuma medida ao sinal de securitização que a regra imprime à circulação estradal. Por outras palavras, é necessário que a conduta do agente haja desrespeitado globalmente o comando normativo que se lhe impõe ou oferecido um cumprimento de tal forma ténue que a dimensão de obediência não assume importância no contexto real dos factos. Em conformidade, e no caso dos autos, temos que o arguido AA adotou um comportamento caracterizável nos termos que expusemos, pois que, ao aceder ao cruzamento daquela forma a fim de virar à esquerda, colocou-se em rota de colisão com o aqui assistente, mas com os demais utentes da via, anulando in totum o comando rodoviário que o vinculava, dando causa a um abalroamento iminente do sobredito veículo conduzido pelo assistente. Atendendo ao enquadramento dogmático que viemos de enunciar, o arguido violou, de forma propositada e absoluta, sem nenhum significativo sinal de obediência, antes com total e integral desrespeito, a disciplina de ordenação social, assim desobedecendo de forma grosseira aos cânones estradais em causa e enroupando a sua conduta dos caracteres típicos previstos no articulado penal que aqui nos ocupa. Temos, ainda, resulta da matéria dada como provada, que o aqui arguido agiu da forma descrita, apesar de saber que, ao desrespeitar as obrigações impostas pela palavra STOP e pelo semáforo, colocava em perigo a segurança e a integridade física ou até a vida dos utentes da via; perigo este com que o arguido se conformou e que se veio a concretizar, pelo que o arguido agiu com dolo eventual - cf. artigo 14.º, n.º 3 do Código Penal. Nestes termos, mostra-se consubstanciada a prática, pelo arguido AA, de um crime de condução perigosa de veículo rodoviário, p.p. pelos art.os 26º, 1ª parte, 77º, 291º, n.º 1, al. b) e 69º, n.º 1, al. a), todos do Código Penal. (...) A. Do concurso de crimes Vem definido pelo art. 30.º, n.º 1 do Código Penal que o número de crimes determina-se pelo número de tipos de crimes efetivamente cometidos, ou pelo número de vezes que o mesmo tipo de crime for preenchido pela conduta do agente. A violação dos tipos legais pode ter lugar através de uma ou várias condutas. Existe concurso ideal de infrações quando o agente, mediante uma única ação, viola uma pluralidade de tipos legais (concurso ideal heterogéneo) ou viola diversas vezes o mesmo tipo legal (concurso ideal homogéneo). Estaremos perante um concurso real de infrações quando, com uma pluralidade de ações, o agente viola vários tipos legais (concurso real heterogéneo) ou viola diversas vezes o mesmo tipo legal (concurso real homogéneo). O artigo 30.º, n.º 1, equipara, pois, para efeito da punição, o concurso ideal ao concurso real de crimes. Perfilha-se, assim, o critério teleológico para distinguir a unidade e pluralidade de infrações, atendendo ao número de tipos legais de crime efetivamente preenchidos pela conduta do agente, ou ao número de vezes que essa conduta preencheu o mesmo tipo legal de crime. Há que atender não aos fins procurados pelo agente que praticou as infrações, mas sim aos fins visados pela incriminação das normas violadas. O arguido, através da mesma ação, praticou factos subsumíveis a dois tipos criminais distintos, de ofensa à integridade física por negligência, e de condução perigosa de veículo automóvel, os quais visando proteger bens jurídicos não coincidentes, não são consumidos por aquele primeiro crime. Surpreende-se, ademais, da matéria factícia apurada e da sua subsunção ao direito que se realizou, uma prática plúrima de factos criminais (do ponto de vista jurídico, não puramente naturalístico, desde logo, e em termos de desvalor interior com que o arguido agiu, ora dolosamente, ora com negligência), existindo uma autonomização evidente de desvalores de ação, pela verificação destacada e múltipla do resultado proibido lesivo do ordenamento e, outrossim, de culpa, esta projetada na formulação de vontade criminal, desvaliosa e penalmente relevante, de forma autonomizada, que se mostra causal com cada uma daquelas ações. Mais se diga, ainda, que, atenta a remissão operada pelo artigo 294.º, n.º 3 para o disposto no artigo 285.º do Código Penal – em que há lugar à agravação quando o crime praticado, in casu, e previsto pelo disposto no artigo 291.º, resultar a morte ou ofensa à integridade física grave de outra pessoa – a qual é omissa relativamente à ofensa à integridade física negligente, é nossa convicção que, efetivamente, e como já haveríamos concluído preteritamente, que os crimes de condução perigosa de veículo rodoviário e ofensa à integridade física por negligencia se encontram em concurso efetivo. Neste sentido, os crimes por que vem acusado o arguido, encontram-se numa relação de concurso ideal heterogéneo. (…)» **
III QUESTÕES A DECIDIR O objeto do recurso está limitado às conclusões apresentadas pelo recorrente [cfr. Ac. do STJ, de 15/04/2010: “É à luz das conclusões da motivação do recurso que este terá de apreciar-se, donde resulta que o essencial e o limite de todas as questões a apreciar e a decidir no recurso, estão contidos nas conclusões(…)”], sem prejuízo da eventual necessidade de conhecer oficiosamente da ocorrência de qualquer dos vícios a que alude o artigo 410º, do Código de Processo Penal nas decisões finais (conhecimento oficioso que resulta da jurisprudência fixada no Acórdão nº 7/95, do STJ, in DR, I série-A, de 28/12/95). São as conclusões da motivação que delimitam o âmbito do recurso, e devem por isso ser concisas, precisas e claras. Se estas ficam aquém, a parte da motivação que não é resumida nas conclusões torna-se inútil porque o tribunal de recurso só pode considerar as conclusões, e se vão além da motivação também não devem ser consideradas, porque são um resumo da motivação e esta é inexistente ([1]). Assim, são as seguintes as questões a decidir: a) Subsunção jurídica dos factos ao crime de condução perigosa de veículo automóvel; b) Concurso de crimes; e c) Medida das penas principal e acessória. *
IV. APRECIAÇÃO DO RECURSO A) Crime de condução perigosa de veículo: Não foi deduzida impugnação da matéria de facto no recurso interposto, que assim se mantém inalterada.
O recorrente foi condenado, além do mais, pela prática de um crime de condução perigosa de veículo de veículo rodoviário, p. e p. pelo art. 291º, n.º 1, al. b), do Código Penal. Prevê a norma incriminadora a seguinte conduta: “Quem conduzir veículo, com ou sem motor, em via pública ou equiparada, b) violando grosseiramente as regras da circulação rodoviária relativas à prioridade, à obrigação de parar, à ultrapassagem, à mudança de direção, à passagem de peões, à marcha atrás em autoestradas ou em estradas fora de povoações, ao limite de velocidade ou à obrigatoriedade de circular na faixa de rodagem da direita; e criar deste modo perigo para a vida ou para a integridade física de outrem, ou para bens patrimoniais de valor elevado, é punido com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa”. Na peça recursiva, defende o recorrente que o crime em causa não se encontra preenchido ou, no máximo, que se encontra em situação de concurso aparente com o crime de ofensa à integridade física por negligência por cuja prática foi condenado. Vejamos: Consabidamente o crime em causa é um crime de perigo concreto, independente da verificação do resultado, e que pressupõe, para o preenchimento do elemento objetivo, o exercício em concreto da condução sem que o agente tenha condições de o fazer em segurança ou violando grosseiramente as regras da condução. O bem jurídico protegido pelo tipo de crime é a segurança da circulação, colocando ao mesmo tempo em perigo a vida ou a integridade física ou ainda bens patrimoniais de valor elevado, sendo preponderante a tutela de bens jurídicos individuais ([2]). Violação grosseira das regras de circulação rodoviária é aquela que se traduza em comportamento particularmente perigoso para a circulação rodoviária, isto é, comportamento temerário e ousado perante o perigo, com um grau especialmente elevado da negligência que agrava a punição, ou seja, uma intensificação da negligência não só ao nível da culpa como da ilicitude. «A ação típica do crime de condução perigosa de veículo rodoviário é, como o próprio nome indica, a condução perigosa que ocorre sempre que o condutor: (…) viola grosseiramente as regras estradais, ultrapassando as fronteiras do risco permitido rodoviário, entendendo-se por “violação grosseira das regras de circulação rodoviária” a “violação de elementares deveres de condução, suscetível de traduzir carácter particularmente perigoso do comportamento para a segurança do tráfego e para os bens jurídicos pessoais envolvidos” ([3]). Para que ocorra a previsão deste preceito não basta que se violem regras da circulação rodoviária, sendo necessário que se trate de uma violação grosseira dessas mesmas regras (exigência que se mantém na atual redação da al. b) do n.º 1 do cit. art.291º, que, no entanto, agora, especifica as regras da circulação rodoviária a cuja violação grosseira se liga tipicamente o perigo a que se refere a parte final do normativo.» ([4]). Assim, do ponto de vista do tipo de ilícito exige-se que se esteja perante “uma ação particularmente perigosa e de um resultado de verificação altamente provável, e ao nível da culpa que o agente revele uma atitude particularmente censurável de leviandade ou descuido perante o comando jurídico-penal, plasmando na sua conduta qualidades particularmente censuráveis de irresponsabilidade e insensatez” ([5]) (sublinhado nosso). Deste modo, não basta a violação das regras da circulação rodoviária, exigindo-se que se trate de uma violação grosseira (rude) dessas mesmas regras, consubstanciada numa condução temerária, destemida, arriscada e, assim, perigosa. Passando ao caso dos autos, temos como provado o seguinte: - Ao chegar ao cruzamento entre a Av. ... e a Av. ..., BB, pretendendo seguir em frente e tendo a luz verde do semáforo ligada, não imobilizou a marcha do seu veículo e conduziu o mesmo para o interior do cruzamento. - Ao mesmo tempo, o veículo conduzido pelo arguido chegou ao mesmo cruzamento. - Aí chegado, e apesar de existir no pavimento a palavra STOP, o semáforo ter ligada a luz amarela intermitente e circular o ciclomotor do ofendido no referido cruzamento, o arguido não imobilizou a marcha do veículo que conduzia, conduziu o mesmo para o dito cruzamento e mudou de direção para a esquerda, em direção à Av. .... - De imediato, o veículo conduzido pelo arguido embateu no ciclomotor conduzido por BB, que foi projetado para o passeio e caiu em frente ao estabelecimento “A...”. - O arguido sabia que era obrigado a imobilizar o veículo automóvel que conduzia no local onde se encontrava a palavra STOP, mas, não obstante ter visto a dita palavra, o arguido não imobilizou o veículo que conduzia, desrespeitando a obrigação de parar, o que quis e conseguiu. - O arguido sabia que, perante a luz amarela intermitente do semáforo, deveria circular com especial cuidado e era obrigado a imobilizar o veículo automóvel que conduzia caso circulassem outros veículos no interior do cruzamento e na via que o mesmo iria ocupar com a pretendida mudança de direção, mas, não obstante ter visto o dito semáforo e o ciclomotor conduzido por BB, o arguido não imobilizou o veículo que conduzia, desrespeitando o semáforo, o que quis e conseguiu. - O arguido agiu da forma descrita, apesar de saber que, ao desrespeitar as obrigações impostas pela palavra STOP e pelo semáforo, colocava em perigo a segurança e a integridade física ou até a vida dos utentes da via; perigo este com que o arguido se conformou e que se veio a concretizar. - O arguido não tomou as necessárias precauções para evitar que o veículo que conduzia embatesse no ciclomotor conduzido pelo ofendido, como lhe competia e era capaz, e, por isso, provocou um acidente de viação e molestou fisicamente BB, infligindo-lhe lesões, dores e mal-estar. - Apesar de não o dever ter feito, agiu o arguido da forma descrita, confiando que conseguiria que o seu veículo atravessasse o cruzamento sem embater no ciclomotor do ofendido, apesar deste já se encontrar a circular no interior do cruzamento. - O arguido agiu livre, deliberada e conscientemente, sem o cuidado que se lhe impunha e de que era capaz e bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei. O arguido não obedeceu a um sinal de obrigação de paragem inscrito na estrada, no chão, encontrando-se o semáforo com a luz amarela ligada; a vítima, por sua vez, passou o sinal verde do semáforo do sentido donde provinha, tendo o embate ocorrido naquele cruzamento. O sinal de semáforo amarelo intermitente autoriza os condutores a passar, desde que o façam com especial prudência. O acidente ocorreu à noite: 21,50 horas do dia 23.11.2021. O arguido conduzia um veículo automóvel, e a vítima um ciclomotor. Ignora-se a velocidade a que seguia cada um dos veículos, nomeadamente o conduzido pelo arguido. Como bem refere a Exma. Procuradora-geral Adjunta, o art. 7º do Código da Estrada estabelece uma hierarquia entre as prescrições de trânsito, da seguinte forma: 1 - As prescrições resultantes dos sinais prevalecem sobre as regras de trânsito. 2 - A hierarquia entre as prescrições resultantes da sinalização é a seguinte: 1.º Prescrições resultantes de sinalização temporária que modifique o regime normal de utilização da via; 2.º Prescrições resultantes dos sinais inscritos em sinalização de mensagem variável; 3.º Prescrições resultantes dos sinais luminosos; 4.º Prescrições resultantes dos sinais verticais; 5.º Prescrições resultantes das marcas rodoviárias. Conforme consta da sentença sob recurso, «De acordo com o Regulamento de Sinalização de Trânsito, Decreto Regulamentar n.º 22-A/98, in Diário da República n.º 227/1998, 1º Suplemento, Série I-B de 1998-10-01, a sinalização do trânsito compreende, nos termos do artigo 2.º, e para o que importa para os presentes autos, marcas rodoviárias e sinais luminosos. Quanto às marcas rodoviárias, as mesmas podem configurar, marcas transversais, instituindo linhas de paragem com o símbolo ‘’STOP’’, maxime o sinal M8a, constante do aludido Regulamento, a qual indica o local de paragem obrigatória. Porém, e cumulativamente à aludida sinalização, o arguido deparou-se ainda com a “luz amarela intermitente”, prevista no artigo 71.º do Dec. Regulamentar referido, a qual apenas autoriza os condutores a passar (in casu, a fim de efetuar uma manobra de mudança de direção à esquerda), desde que o façam com especial prudência e, caso circulassem veículos no interior do cruzamento, então, estaria sujeito à paragem obrigatória. Assim sendo, e atenta a factualidade apurada e descrita, cometeu o arguido uma contraordenação (violação da obrigação de paragem imposta pelo STOP) p.p. pelos art.os 20º do Regime Geral das Contraordenações, 2º, n.os 1, al. a) e 2, al. b), 21º e 23º, al. a), ambos do Regulamento de Sinalização de Trânsito e 146º, al. n) e 147º, n.os 1 e 2, ambos do Código da Estrada e uma contraordenação (violação da obrigação imposta pelo semáforo) p.p. pelos art.os 20º Regime Geral das Contraordenações, 71º, n.º 1 e 76º, al. b), ii), ambos do Regulamento de Sinalização de Trânsito.» Concomitantemente com a violação destas normas estradais, que por si implicam o cometimento de uma contraordenação muito grave, nos termos do disposto no art. 146º, al. n), do Código da Estrada (O desrespeito pelo sinal de paragem obrigatória nos cruzamentos, entroncamentos e rotundas), mas não podemos deixar de dar relevo ao facto de, à noite, o sinal obrigatório de paragem se encontrar apenas inscrito na estrada, encontrando-se o semáforo “amarelo” – o que permitiria uma passagem com cuidado, que de igual forma o arguido não cumpriu. De qualquer modo, entendemos que perante o semáforo com que o arguido se deparou, que poderá ser entendido como contraditório com as inscritas na estrada, sendo certo que o sinal vertical prevalece sobre as marcas rodoviárias, não se poderá assacar ao arguido aquelas temeridade e particular censurabilidade exigidas pela norma incriminadora em análise. Afastamo-nos, pois, nesta parte da subsunção jurídica efetuada na sentença. Concorda-se que o arguido violou de forma quase grosseira a norma estradal que lhe impunha especiais cuidados ao entrar no cruzamento, mas, no caso e nas circunstâncias concretas constantes dos factos provados, essa sua conduta não é suficientemente gravosa ou temerária para concluir pelo preenchimento do elemento objetivo do tipo legal de crime a que se refere o art. 291º, n.º 1, al. b), do Código Penal. A entender-se assim, teríamos de concluir que qualquer cometimento de contraordenação prevista naquela al. b), caso resultasse na colocação em perigo, ou causação de danos, a pessoas ou bens de valor elevado, incorreria automaticamente na prática do crime de condução perigosa de veículo. O que manifestamente não é intenção do legislador, que exige uma ilicitude acrescida na violação das normas estradais para que a mesma seja considerada como condução perigosa – a referida condução temerária, anormal. Acresce que o arguido foi punido pelo n.º 1 do art. 291º, ou seja, por atuar dolosamente na violação da norma estradal e ainda pela criação dolosa do dolo de perigo – o que, perante a dinâmica provada e a ausência de prova sobre se o arguido havia avistado o ciclomotor conduzido pela vítima antes de entrar no cruzamento, nos parece excessivo. Sem embargo, é desnecessária a consideração de qualquer dos vícios a que se refere o art. 410º, n.º 2, do Código de Processo Penal para este efeito, afastado que ficou o preenchimento do elemento objetivo (violação grosseira das regras de circulação).
Pelas razões expostas, não cometeu o arguido o crime de condução perigosa de veículo rodoviário, p. e p. pelo art. 291º, n.º 1, al. b), do Código Penal, impondo-se nesta parte a sua absolvição.
Prejudicado fica, assim, o conhecimento da questão suscitada relativa ao concurso de crimes, tendo o arguido incorrido na prática de um crime de ofensa à integridade física por negligência, p. e p. pelo art. 148º, n.º 1, do Código Penal.
* O recorrente foi condenado, pela prática de um crime de ofensa à integridade física por negligência, na pena de 8 meses de prisão, suspensa na sua execução, e na pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor pelo período de 7 meses. Pugna, em primeiro lugar, pela opção pela pena de multa, uma vez que o crime praticado pelo arguido é punível, em alternativa, com pena de prisão até 1 ano ou com pena de multa até 120 dias – art. 148º, n.º 1, do Código Penal. É verdade que o art. 70º do Código Penal impõe que o julgador aplique a pena não privativa da liberdade desde que esta realize de forma adequada e suficiente as finalidades da punição, enunciadas no art. 40º, n.º 1, do mesmo diploma. Na sentença recorrida, a opção pela aplicação da pena privativa da liberdade assentou nas fortes exigências de prevenção geral que se fazem sentir: «quanto ao crime praticado contra a integridade física, estes ilícitos são tidos pela sociedade como crimes graves, que criam um elevado grau de insegurança, principalmente quando praticados em zonas residenciais (veja-se, aliás, que o comportamento criminal caracterizado na matéria provada atinge um nível importante neste plano por entroncar no conceito de violência pública, que se associa a delinquência e desordem social, impondo uma dimensionada reação criminal, como única forma de restituição das expectativas comunitárias na vigência e integridade do paradigma ético quebrado, o que deverá ser sopesado na decisão a proferir).» Concorda com tal afirmação o recorrente, quando afirma que “as necessidades de prevenção geral são elevadas, considerando que se trata de crime praticado no exercício da condução, sendo elevadíssima a sinistralidade nas nossas estradas, todos os anos, com elevado número de vítimas (feridos e mortos), sendo que, por isso, a comunidade exige dos Tribunais uma punição exemplar para os autores deste tipo de crimes, tanto mais que, no caso dos autos, a conduta do arguido assume alguma gravidade…”. Assim, a ausência de antecedentes criminais e a inserção familiar e social do arguido não são suficientes para permitir a aplicação da pena não privativa da liberdade – mantendo-se a aplicação da pena de prisão. No que respeita ao quantitativo da pena de prisão, foi fixada em 8 meses, numa moldura abstrata entre 1 e 12 meses de prisão.
** V. DECISÃO Pelas razões expostas, decide-se julgar parcialmente procedente o recurso interposto pelo arguido AA, decidindo-se: - Mantendo-se ainda a condenação na pena acessória de 7 meses de proibição de conduzir veículos com motor.
Sem tributação.
Coimbra, 22 de janeiro de 2025 Ana Carolina Cardoso (relatora – processei e revi) Sara Reis Marques (1ª adjunta) Maria da Conceição Miranda (2ª adjunta)
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